domingo, 20 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7823: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (5): Pedaços da vida dum bígamo...

Texto de Belmiro Tavares, ex-Alf Mil, CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), Prémio Governador da Guiné (1966), empresário hoteleiro, camarada e amigo do nosso Jero, membro do nosso blogue, nosso camarigo:

Pedaços da vida dum… Bígamo
Texto e fotos:  © Belmiro Tavares (2011). Todos os direitos reservados

Todos sabemos, pelo menos em termos teóricos, o que é a Bigamia; se perguntássemos aos soldados do senhor de La Palisse o que é Bigamia eles responderiam, mais ou menos, como segue: 


- Bigamia é o oposto a Monogamia!  - A verdade à La Palisse não é bem isto, mas à falta de melhor.

Também é do conhecimento geral que, segundo a Lei Portuguesa, um homem não pode casar com segunda mulher enquanto não se livrar da primeira por divórcio ou morte; a libertação do homem (ou da mulher) pode ainda ser conseguida (caso raro) através da anulação do casamento via Papal.

Todos aprendemos, há mais ou menos tempo, que não há regra sem excepção; acontece porém que, por vezes, a excepção é própria regra.

Será que perante um tal axioma – afirmação tão simples, tão clara, tão evidente que não carece demonstração – é possível haver excepção?!

Também neste caso há lugar à ressalva quando mais não seja… para confirmar a regra.

Verdade, verdadinha! 





Ainda vive, graças a Deus, na região da Grande Lisboa, um português, dito de rija têmpera, que, embora não tenha convivido em simultâneo com duas mulheres, debaixo do mesmo tecto… foi legalmente casado com duas senhoras e convivia com ambas em dias determinados… sob tecto diferentes.

Possuía (ainda possui) duas casas na região da grande Lisboa: uma no Beato onde passava as noites de segunda, quarta e sexta-feira com a senhora com quem casou em primeiro lugar (era mãe da sua única filha que lhe deu três netas); e um apartamento na Amadora onde passava as noites de terça, quinta e sábado com a segunda esposa da qual não teve filhos, propositadamente – problemas conjugais já ele tinha em abundância. Os domingos eram divididos religiosamente e alternadamente pelas duas.

Aquecidos os motores com este intróito, passamos a narrar a história (alguns retalhos) do nosso bígamo começando pelo alicerce.

O nosso herói, Jaime de seu nome (e mais não digo),  nasceu na década de vinte do século passado, na zona oriental de Lisboa, casa que pertencia a seus pais.

A vida era difícil para todos – ou para quase todos –; o Jaime começou a trabalhar ainda cedo – fazia pela vida – para apoiar o equilíbrio do orçamento doméstico de seus pais, era uma atitude comum naqueles tempos economicamente complicados.

Foi conseguindo empregos à sua medida e, trabalhando duro, conseguiu ir amealhando umas magras notas no escaninho da sua mala. Naqueles tempos, no campo, trabalhava-se de sol a sol; na cidade… não havia horário ou, se havia, era só para fiscal ver… ou quase. 



No início da década de cinquenta casou com pouca pompa e alguma circunstância com uma senhora de nome Elisa (e por aqui me fico) que era cozinheira; convirá referir a profissão, porque, creio firmemente que o facto de ela ser cozinheira tenha influenciado positivamente o relacionamento entre ambos; O Jaime sempre foi um bom garfo.

Nos anos que se seguiram à guerra, a vida continuava a não ser fácil: o trabalho escasseava; as dificuldades avolumavam-se; o nosso herói, não sendo excepção, decidiu procurar novo meio de vida noutras paragens, emigrando para o Brasil donde, roído de saudades, regressou à Pátria, menos de dois anos depois de ali ter chegado.

De regresso a Lisboa conheceu a Joquinha passando a dividir o tempo disponível com ela e com a Elisa. Além do emprego, dedicava-se ao biscate que além de uma receita extraordinária (sem impostos) permitia que fácilmente pudesse desenfiar-se de ambas.

A sua vida na capital era cada vez mais era atribulada devido à sua imprevidência.

Depois de várias peripécias, a Joquinha sugeriu que fossem para a sua terra Natal – Fornos de Algodres -; lá poderiam viver calmamente o seu amor; o Jaime concordou e começou a tratar da viagem e do que levaria consigo. 



A Elisa apercebeu-se e escondeu-lhe a roupa para impedir – no mínimo dificultar – a sua saída de casa. 


Sugeriu à Joquinha que fosse de comboio; que arranjasse casa e ele encontrar-se-ia lá com ela dentro de dias. 

Reunidos os poucos haveres que podia levar consigo e algumas ferramentas (entre estas um torno que deve ser uma peça muito especial como veremos) montou-se na motoreta e abalou em direcção a Fornos.

Pernoitou em Coimbra e, logo pela manhã, continuou a viagem.

Era Janeiro! Uma chuva miúda mas persiste fustigava-o; sentia-se enregelado até ao tutano dos ossos.

Mais umas horas de motoreta e... Fornos à vista!



Apareceu-lhe ali um cão descomunal que se empinou à sua frente mostrando uns dentes enormes, ameaçadores; não teve tempo de se desviar. Atropelou o cão que, assustado e a ganir, desapareceu; o Jaime andou aos trambolhões no alcatrão, rasgou o casaco e bateu com o capacete num marco da estrada, amolgando-o. “Mais um salvo pelo capacete”, pensei eu. Ainda hoje o guarda aquele capacete como relíquia! 

O nosso herói sentou-se na berma da estrada para fazer contas... à vida. Entendeu que aquele cão seria o diabo a pretender impedi-lo de se aproximar de uma das suas queridas.



Reiniciou a viagem! Chovia ainda! Fornos Algodres escondia-se no nevoeiro. Assustou-se ao ver outro arrenegado que segundo ele, também quereria impedi-lo de se abeirar da sua Joquinha: viu na rua um grande molho de feno com um guarda-chuva em cima; “aquele monte de palha” começou a deslocar-se, levando o guarda-chuva consigo. 

O Jaime estarreceu! Seria possível que uma nova forma de mafarrico pretendesse impedi-lo de se reajuntar com quem levava no coração e não lhe saia da cabeça?!

Apareceu a Joquinha! Depois dos cumprimentos da praxe manifestou o seu pavor por causa daquelas aparições demoníacas. A Joquinha riu-se descaradamente e decifrou o enigma: - aquilo é um homem com uma palhoça; (uma espécie de sobretudo feito de palha de centeio) é usada principalmente pelos pastores para se protegerem do frio e da chuva.

O Jaime era um menino da capital: não sabia o que era um pastor e muito menos uma palhoça!

As casas eram de granito, muito escuras e não tinham chaminé; o fumo saia pelas juntas das telhas. Aquilo era para ele um mundo novo e assustador... era o fim do mundo!

Não demorou a arranjar emprego; era a época do volfrâmio que “dava dinheiro barato” aos mineiros e a quem o comercializava; vivia-se bem!

Em Lisboa a Elisa colocou anúncios nos jornais: “Marido desapareceu! Procura-se! Não me responsabilizo pelas suas dívidas”!

Começou a trabalhar numa serralharia e fez questão de ali instalar o “seu torno”.

Um indivíduo, ligado ao volfrâmio passou por ali; viu o torno; mirou-o por todos os lados e perguntou:
- De quem é este torno?
- É do Jaime; um gajo que veio de Lisboa e é casado com uma mulher de Fornos; veio para cá há pouco tempo.
- A mulher dele está em Lisboa; está é a amante; onde está o Jaime?
- Foi almoçar! Deve estar a chegar!

O Jaime chegou e... abraçou o irmão. Encontro puramente casual! O forasteiro reconheceu o torno! Aquele torno deve ser muito especial para ser tão facilmente reconhecida denunciando o seu dono.

O Jaime, perante a insistência do mano para que voltasse a Lisboa. Respondeu que ainda era cedo: 

- Tenho de arranjar dinheiro para voltar; não posso aparecer junto da Elisa de mãos a abanar; só mais uns meses! 

Despediram-se!

O irmão veio para Lisboa e informou a cunhada do paradeiro do marido.

Uns dias mais tarde o mano mandou recado por outro “volframista” ao nosso herói que a Elisa e a filha estavam a caminho... de Fornos. O Jaime preparou o estratagema: num anexo à oficina “montou”as suas “instalações domésticas”; colocou lá um colchão, cobertores, tachos velhos, uns pratos e um fogareiro a petróleo.

A Elisa chegou com a filha e foram recebidas no “seu palácio”.  A Elisa chorou que nem uma Madalena e pediu perdão por lhe ter escondido a roupa e por ter “anunciado” o sei desaparecimento.

O Jaime almoçou com a esposa (a primeira) e a filha e convenceu-as a voltar a Lisboa; ele também voltaria depois de aforrar mais algum dinheiro.

A Elisa e a filha regressaram à casa do Beato, esperando ali, ansiosas, pelo regresso do marido e pai.

O Jaime começou logo a convencer a Joquinha que aquilo não era vida; o melhor seria voltarem ambos para Lisboa.

Acordo fechado!  Reuniram os “haveres” e viajaram até à capital.  Alugou um apartamento na Reboleira onde se instalou com a Joquinha e... recomeçou a fazer vida “dupla”.  A breve trecho comprou a casa da Reboleira, deixando de ser inquilino.

Passo seguinte: convenceu a Joquinha a “emigrar” para Lourenço Marques, onde tinha uma irmã bem instalada na vida; ele emigraria para a África do Sul e dava notícias; ela entraria na África do Sul e ali dariam início uma nova vida.

Bom planeamento! Tudo correu como previsto.

Na África do Sul teve de passar pelas dificuldades inerentes à entrada num país estranho onde deparou com clima, língua, mentalidade e cultura totalmente diferentes daquilo a que estava habituado. Comeu ali, como soi dizer-se, “o pão que o diabo amassou”.

Muito a custo foi vencendo as dificuldades que iam surgindo até que arranjou emprego dentro do ramo – ele era caldeireiro, canalizador e ferreiro mas também “arranhava” um pouco de pedreiro, soldador, electricista e ladrilhados; era o que se chama um “faz tudo” um polivalente ou ainda “homem dos sete ofícios”.

Amargurado pelo afastamento da Elisa e da filhinha que haviam ficado na sua casa do Beato, ia vivendo corajosamente... um dia de cada vez no seu “degredo”.  Logo que lhe foi possível ordenou à Joquinha que deixasse Moçambique e se lhe juntasse.

A Joquinha também era cozinheira – caso estranho – como convinha a um bom “garfo”.

O nosso Jaime entendeu (e fez constar, como lhe convinha) que era uma grande graça de Deus o facto de entrar na sua vida uma nova cozinheira.

Como não tinha averbado o casamento com a Elisa no seu BI, foi com a Joquinha ao Consulado de Portugal e ali deram o “nó” – eis a razão por que afirmo que ele era “legalmente” casado também com a Joquinha.

Viveram alguns anos felizes e contentes em África (assim suponho pelo que vi por cá uns anos mais tarde).  Prometeu à Joquinha que casaria com ela “com papel passado pelo padre”, logo que possível.

Cerca de 1960 decidem regressar à Pátria... e aos enredos provenientes da sua imprudência.

Recordo que o nosso herói era canalizador – picheleiro lá no Norte – e, deste modo, sabia “canalizar a água para o seu moinho”; como também era soldador, sabia “remendar os buracos” em que, incauto, se metia, umas vezes com a convivência de uma esposa, outras com o apoio da outra e frequentemente com a colaboração e complacência isolada e secreta de ambas.

O Jaime “das duas mulheres” – como era carinhosamente tratado entre amigos – arranjou emprego no Hotel Dom Carlos em Lisboa, nas imediações da praça Marquês de Pombal.

Não sei bem como, mas a breve trecho, o pessoal do hotel, cedo tomou conhecimento dos seus segredos sentimentais. Como era um excelente companheiro e também porque ajudava de boa vontade os outros trabalhadores do hotel a solucionar problemas da sua profissão (ões) em suas casas, todos colaboravam para que as suas duas “esposas” não soubessem uma da outra, poupando assim o amigo a novos e complicados dissabores. A todos ele convenceu que uma esposa não sabia que... “afinal havia outra”!

As telefonistas eram as suas principais cúmplices; sabiam perfeitamente onde ele estava – ou devia estar – em cada dia da semana.  Se uma das esposas telefonava a perguntar pelo Jaime num dia em que ele “não lhe pertencia”, a resposta era imediata:
- O Jaime está na Malveira (por vezes no Porto) noutro Hotel do Patrão; deve voltar amanhã.

Tinha uma queda especial para lidar com o outro sexo; a todas (solteiras, casadas ou... assim assim) pedia um beijo para consertar o que elas lhe pedissem no serviço diário. Consta mesmo que entrou no chuveiro com uma colega para lhe “esfregar as costas” durante o banho.

Um dia a chefe do escritório afirmava a “pés juntos” que a Elisa não sabia da Joquinha e vice-versa, quando alguém a interpelou nestes termos:
- Oh Elsa! (era o nome da chefe em causa) se o teu marido te faltasse em casa todas as segundas, quartas e sextas e te aparecesse apenas em domingos alternados, acreditarias que ele prestava serviço “extraordinário” na Malveira?

Foi uma bomba! O estrondo e o fumo espalharam-se! Todos compreenderam que haviam sido agradavelmente enganados durante tantos anos. Mas assim continuaram a colaborar na manutenção do segredo do amigo; poderia acontecer uma tragédia nefasta se alterassem o seu comportamento usual.

Um dia entrei no carro para ir trabalhar e... a bateria estava descarregada. Telefonei ao Jaime. Imediatamente ele pôs-se a caminho levando carro, “cabos” (alicates) para dar carga à minha bateria.

Pedi-lhe que me seguisse até à oficina onde eu ia deixar o carro e dali dava-me boleia para o serviço. Quando saí da oficina (Av. Marconi, mesmo ao lado do Ministério do Trabalho) o Jaime olhava tão atentamente para um dos edifícios que não ouviu o meu chamamento. Aproximei-me e perguntei-lhe o que observava com tanta deferência.
- O Senhor não imagina! Pouco depois de vir de África a Joquinha trabalhava neste prédio; um dia, ao fim da tarde, passei por aqui para a levar comigo para casa; quando cheguei a Joquinha e a Elisa esbofeteavam-se em plena rua; empurrei-as para um monte de areia que aqui havia. Quando me reconheceram fugiram uma para cada lado; eu fui sózinho para casa. Pouco depois chegou a Joquinha, alegre e fagueira, como se nada tivesse acontecido. Nunca nenhuma delas me falou neste assunto!

Já nos anos oitenta, em casa da minha sogra, a conversa com o Jaime – acerca da sua vida com duas mulheres – estava animada; a minha esposa perguntou-lhe:
- Se alguém decidisse que uma das suas mulheres tinha de morrer agora, qual escolhia para ficar consigo?

O Jaime, sem hesitar, respondeu:
- Quero as duas! Elas são muito diferentes mas eu gosto de ambas da mesma maneira! Não quero que nenhuma morra! Que seria de mim sem uma delas?!

Um dia o azar bateu-lhe à porta; ao tentar recuperar um parafuso – mesmo profissionalmente não desperdiçava um tostão – ficou sem uma vista; poupar um parafuso, saiu-lhe caro! Foi parar ao Hospital dos Capuchos onde ficou internado cerca de dez dias.

As esposas começaram a perguntar por ele; as telefonistas receberam logo instruções para lhe evitar aborrecimentos acrescidos. A resposta era a mesma para as duas:
- O Jaime foi em serviço urgente para um hotel que o patrão comprou no Porto; como o hotel ainda não abriu, não tem telefone (ainda não tinha chegado a era dos telemóveis) o patrão foi com ele e dá noticias diariamente; vão ficar lá cerca de dez dias.

Quando voltou às “suas casas” explicou que não falou do acidente, porque não queria ser visitado no hospital; a mesma justificação serviu para as duas.  Como habitualmente as duas esposas acreditaram... para não arranjar mais confusões que seriam prejudiciais... para os três.

Em consequência de não ter um olho, o Jaime estaria inibido de conduzir automóveis. Isso é que era bom! Na DGV nunca se aperceberam desta mazela. Várias vezes renovou a carta e ainda hoje conduz, com 85 anos. A polícia mandou-o parar várias vezes e nunca se aperceberam que ele via apenas “a 50%”.

Embora empregado por conta d’outrem o nosso herói viveu sempre razoávelmente bem – à sua maneira – porque, além do emprego, fazia uns bons biscates que lhe proporcionavam um rendimento extra de bom nível e livre de encargos fiscais. 



Devidamente autorizado, usava máquinas e ferramentas da Entidade Patronal; ele merecia que assim acontecesse, porque estava sempre disponível para trabalhar a qualquer hora do dia ou da noite e nunca solicitou qualquer remuneração extra – caso raro. 

Com certa frequência ia jantar fora com uma esposa... ou com outra. Também os almoços eram divididos equitativamente pelas duas!

O Jaime era um bom “garfo” e adorava pratos “leves”: um arroz de marisco no Linhó, um cozido na Malveira da Serra, uma feijoada ou grão com mão de vaca e outros pratos... mas sempre “leves”.

Quando ficava com um “grão na asa”, não o preocupava um suborno para não ficar sem carta.

Uma das vezes em que tal aconteceu vinha do restaurante “O Fuso” em Arruda dos Vinhos. Na véspera recebeu o pagamento dum “biscate” com que já não contava e decidiu almoçar “à rico” – como ele dizia - com a Joquinha. Na manhã seguinte fez o mesmo com a Elisa, ao aproximar-se da portagem de Alverca, a polícia mandou-o parar. A conversa com a autoridade estava demorada; a esposa saiu do carro e foi em socorro do marido; entrou “de chancas” perguntando “delicadamente” ao Jaime:
- Que raio se passa aqui?
- O Sr. Guarda, responde o Jaime, quer ficar com a minha carta só porque eu bebi um “nadinha” acima do limite; tu sabes a falta que a carta me faz!

Ela, decidida, encarou o guarda e disparou:
- Isso é coisa que não se resolva com cinco contos?!
- Tem de ser oito – retorquiu o guarda.
- Por que esperas?! – interpelou ela, olhando para o marido.

Mulher de armas! E o caso ficou logo sanado. Ainda sobravam uns mil escudos do tal biscate; foram comprar marisco para gastar aquele dinheiro que ele já não contava receber.

O Jaime remediava a contento a conjuntura mais delicada em que se deixava cair.  Decidiu um dia ir almoçar a Caneças com a Elisa. Ao descer a Calçada de Carriche manifestou o seu espanto, porque Odivelas era já uma povoação “imensamente” grande.

Mas por que te surpreendes? Tu passas aqui várias vezes por semana quando vais trabalhar na Malveira!

A resposta estava na ponta da língua:
- Quem leva a “carrinha” é o meu ajudante e quando passamos por aqui, eu já vou a dormir! Nunca me apercebi deste crescimento enorme! Tão rápido!

Boa saída!

Quando lhe apetecia um arroz de marisco... ia ao Linhó onde determinado restaurante, dentro do preço/qualidade, servia o que ele considerava e publicitava como sendo o melhor arroz de marisco na zona da Grande Lisboa. A partir da segunda vez que foi lá, já a proprietária vinha à sua mesa conversar com o Jaime e a Joquinha.

Tantas vezes o cântaro vai à fonte que... um dia... “estoirou a bronca” e de que maneira! O Jaime decidiu levar àquele restaurante a Elisa, a filha, o genro e as netas. Almoçaram “à maneira”! A filha e as netas elogiaram muito àquela escolha; o Jaime estava eufórico.

Pediram café (para ele era com “cheirinho”) e apareceu a proprietária; cumprimentou os “amigos” e perguntou:
- Então o Sr. Jaime hoje não trouxe a esposa?!

O Jaime sempre soube ultrapassar com mestria as complicações mais embaraçosas, mas, desta vez, na presença das netas, empalideceu; com os olhos (só com um!) procurou um buraco onde pudesse enfiar-se.

A Elisa, sempre atenta ao que a circundava, defendendo a sua causa, deu uma ajuda, esclarecendo:
- A esposa sou eu! A outra é a amante! E lançou, os braços à volta do pescoço do marido, beijando-o ternamente.

Esta terá sido a única vez em que o Jaime não se desembaraçou pelos próprios meios. 


Um dia de manhã, na casa do Beato, o Jaime acordou e a Elisa perguntou-lhe: - Quem é a “Joquinha” com quem tu sonhaste alto durante a noite?

O Jaime ficou surpreendido; recuperou de imediato e elucidou cabalmente:
- O Joquinha é meu ajudante! Ele chama-se Jorge mas todos o tratam por “Joquinha”; é um bom rapaz e eu gosto dele, mas às vezes repreendo-o com dureza, porque ele não gosta de trabalhar – é o seu maior defeito!

Mais um caso solucionado... a contento.

Não acredito que a Elisa tivesse engolido aquela desculpa rápida mas fingiu que acreditava para o bem de ambos.

Numa festa de Natal em sua casa do Beato com a Elisa, a filha, o genro e as netas, ofereceu um carro a cada neta (todos em “segunda mão”); a filha lembrou que ficou esquecida. Ele afastou-se um pouco e emitiu um cheque de um milhão de escudos (mil contos como ele diz).
- Fiquei quase “teso” mas contente; comecei logo a fazer novas economias para a velhice!

Os anos foram passando... a saúde não dura sempre! A vida com frequência é madrasta! Quando tudo parecia um paraíso, surgiram novas complicações muito sérias relacionados com saúde.

A filha, ainda jovem, faleceu de “doença prolongada”; as netas, ainda estudantes, assumiram ainda jovens o “governo” da casa do pai apoiando também os avós sempre que podiam.

A Elisa sofreu um AVC e amputaram-lhe uma perna. O Jaime, com o assentimento e complacência da Joquinha passou a dar mais apoio à primeira esposa; passava as noites com ela. Durante o dia, por vezes, pedia à sua irmã para fazer companhia à cunhada enquanto ele ia “tratar dum biscate”. Ia até à Amadora passar umas horas com a Joquinha. Quando regressava ao seu “posto” trazia comida que a Joquinha preparava e ele comia com a Elisa e por vezes também com as netas alegando que trazia o repasto do restaurante. As netas sabiam que a comida era elaborada pela Joquinha. A Elisa... também sabia ou suspeitava, mas não se manifestava.

A Joquinha ofereceu-se para tomar conta da neta mais nova; a Elisa manifestou o seu desagrado; o Jaime não quis contrariá-la e convenceu a Joquinha a desistir da ideia.

A Joquinha, porém, visitava as netas dele (viviam com o pai perto da casa dos avós) iniciava-as nas lides domésticas e convidava-as frequentemente a almoçar ou jantar em sua casa e de lá traziam uma refeição para o Pai. As “miúdas” eram obsequiadas com artigos de enxoval que a Joquinha confeccionava.

Entretanto comemorou as bodas de prata do seu casamento... com a Elisa. Quatro anos depois a Elisa faleceu.

A Joquinha logo que considerou o momento conveniente, recordou-lhe a promessa do casamento religioso e com “papel do padre”.

Ele justificou:
- Não é isso que nos vai proporcionar mais amor; já estamos com oitenta anos; e eu perco uma boa reforma que recebo como viúvo da Elisa.

Mais uma vez houve acordo!

Também comemorou bodas de prata com a segunda esposa!

A Joquinha passou a acarinhar ainda mais as netas do seu marido. Com pequenos intervalos, as netas casaram; Vive uma para cada lado mas reúnem semanalmente ou quase com o avô, o pai... e a Joquinha que passou a fazer parte da família.

Fruto de um AVC ou similar,  a Joquinha ficou com as pernas paralisadas.  O Jaime solicitou ao médico que a mandasse para a fisioterapia: 

- Não há nada a fazer. - respondeu o “físico”. 




Uma vez mais, o Jaime foi herói: com uns tubos de ferro galvanizado, umas soldaduras, umas roldanas e cordas engendrou uma máquina “milagrosa” e a Joquinha recuperou de maneira assombrosa; Para ela tomar banho sózinha, fixou umas peças nas paredes, comprou um cinto especial e com argolas prendeu-o às tais peças, ele só tinha de lhe lavar os pés.

Ela esticava as cordas que lhe movimentavam as pernas isoladamente ou em simultâneo e voltou a caminhar – sem apoio do “marido”. O Jaime levou-a ao tal médico que ficou “meio gago”; Mostrou-lhe as fotografias da sua “máquina prodigiosa” e o médico chamou os colegas e enfermeiros para que apreciassem aquela invenção salvadora.

Há uns cinco ou seis anos, pediu-me se o ajudava a conseguir uma solução para o seu caso. Pensei que ele já trazia outra “debaixo de olho”. Mas não era isso! Ele contou:

- Como sabe eu vivo com a Joquinha na casa da Amadora; por minha morte não quero que as minhas netas lhe tirem a casa (suponho que elas não fazem esse disparate mas...), mas também não admito que os sobrinhos dela fiquem com a casa; eles só aparecem para “pedinchar” e mais nada; são cá uns “cravas”!

Sugeri que doasse a casa às netas e reservasse o usufruto da mesma para a Joquinha. Ele assim fez.

O homem põe... Deus dispõe! Nada aconteceu como ele imaginou! A Joquinha faleceu em Setembro de 2010.

O nosso herói viveu dezenas de anos “apaparicado” por duas esposas cozinheiras; agora pode contar apenas com o amor e carinho das netas; felizmente, elas adoram-no; são a única bóia a que ele pode agarrar-se.

Nas vésperas de Natal encontrei-o na Av. Liberdade; ia a uma consulta.  Aconselhei-o ir ao médico, porque... “o médico precisa de viver... e tu também”.

Perguntei-lhe como ia passar o Natal; respondeu que ia a casa do genro com as netas; não quero que, nessa noite, estejas só; se quiseres, vens a minha casa. Questionei-o se concordava que eu escrevesse sobre as peripécias da sua vida e as publicasse. Riu-se abertamente e autorizou. Não pedi que fosse ele a narrar estes e outros “retalhos” da sua vida porque sabia que isso ser-lhe-ia tremendamente doloroso. Como amigo, não tenho o direito de o massacrar, desnecessariamente.

És um “amigão”! Obrigado,  Jaime.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2011

Belmiro Tavares
Ten. Mil.

P.S.: Em fins de Janeiro de 2011, encontrei-me com o Jaime; mostrei-lhe o esboço do que seria o texto; achou imensa graça a estes retalhos da sua vida e riu a “bandeiras despregadas”. Pedi-lhe fotografias e, se possível, o “anúncio” que a Elisa pôs nos jornais. Ficou de me entregar este material o mais breve possível; - haverá dificuldades para encontrar isso porque para restaurar a casa do Beato, encaixotou todas as “miudezas”.

Agora com oitenta e cinco anos (completou-os a 24 de Janeiro) está a restaurar e remodelar a casa do Beato, onde nasceu e viveu (em part-time) com a Elisa. – “É uma boa casa com um grande quintal”. Uma das netas vai viver lá; as outras serão compensadas com dinheiro proveniente das suas contas bancárias e da venda da casa da Reboleira que vai efectuar.

Procura ser justo!

Ainda hoje, se fala duma das suas mulheres as lágrimas aparecem logo a bailar nas suas órbitas – apenas uma.

Um homem das Arábias! Se não existisse tinha de ser inventado!

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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 21 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7651: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (4): Os Adidos

Guiné 63/74 - P7822: Memória dos lugares (140): Bedanda e o seu reabastecimento no meu tempo (Rui Santos, ex-Alf Mil, 4ª CCAÇ, 1963/65)


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > 1971 > Reabastecimento do aquartelamento e povoação através do Nordatlas e do lançamento de géneros por pára-quedas, durante a época das chuvas.  Foto do Álbum de Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med, CCS / BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72)... Esteve em 1971 em Bedanda, onde foi rendido em Dezembro de 1971 pelo Mário Bravo.





Foto: © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservado

1. Texto do nosso camarada Rui Santos [, foto à direita, ](ex-Alf Mil da 4.ª CCAÇ, Bedanda, 1963/65),  sobre as suas recordações dos reabastecimentos a Bedanda (*)




Bedanda, Setembro de 1963 a Agosto de 1964, datas entre as quais posso testemunhar o que vi e vivi, tudo o que se possa ter passado fora desse tempo foi de ouvir dizer.


Assim, vamos aos reabastecimentos, os mais desejados “bojecas” e “visques”, a seguir os morfos correntes, batatas, arroz, bacalhau, azeite em bidões, óleo alimentar em bidões, gasolina em bidões, garrafões de 10 litros de vinho tinto e branco, vinagre, munições, enfim um sem número de coisas que nos eram imprescindíveis e, sempre, todos os acessórios para os petromax de iluminação do perímetro do aquartelamento de Bedanda, o meu pelotão reforçado, com cerca de 80 nativos três sargentos, alguns cabos brancos e tintos, e um “sorna” cabo branco de pele e de alma, que era o homem dos petromax e dos dois motores dos “excelentes” (!?) barcos M1 (como o chamávamos sempre: ò sorna! Não me lembro do nome real...)


Nunca fomos reabastecidos por terra,  via Cantanhez, por razões óbvias!


Éramos sempre reabastecidos via marítima por barcos da Casa Gouveia, um era o rebocador N/M Gouveia 16 (que puxava um batelão) e ía sempre Unguariuol acima até ao caisito de Bedanda a cerca de 700 mts da povoação.


Já em tempos descrevi o ataque ao Gouveia 16 aqui no blogue, e desde aí nunca mais vi barco nenhum perto de Bedanda, senão em Cobumba, 6/7 kms da povoação, aí era sempre o N/M (navio motor) Gouveia 17 que era mais comprido que o 16 e não entrava no afluente do Cumbijã , e ficava acostado a um dos lados da rampa que ali existia, e por vezes também trazia batelão, era descarregado e os materiais levados para o armazém em frente do chefe de posto e as munições para dentro do quartel da Companhia.


Estes barcos eram sistematicamente atacados nas curvas do Cumbijã entre Cadique e Cafine, mas, antes dos fuzileiros “limparem” literalmente essas duas povoações, causando dezenas de mortos ao IN e apreendendo muito material de guerra, os barcos começaram a ser escoltados por LDM dos fuzileiros, mas não no tempo que mencionei.


O correio, alimento essencial para o “psique”, vinha sempre via aérea em Dorniers ou em Auster militares, ou Dornier e Cessna civis, que por vezes também traziam medicamentos e algo essencial que tivesse sido pedido de urgência.


No período da “menopausa” marítima, lá vinham os Nordatlas em voo razante “despejar” caixotes de legumes, bacalhau, conservas, não mandarem as “bojecas” foi uma sorte, o bacalhau era o único que não se espalhava pelo mato pois vinha forrado de chapa de alumínio, mas fomos assim “tratados” apenas duas vezes.


Comentando a foto [ vd. acima,] tirada a bordo da aeronave que se aproximava do campo de aviação e estava sobre o Cantanhez, (aliás já nas “bordas” do Cantanhez):


(i) a sombra do avião cruza o Cumbijã exactamente no ponto do cais de Cobumba;


(ii)  os 4 telhados brancos mais à direita da foto eram o antigo aquartelamento da 4ª CCAÇ;


(iii)  ao centro sobre a esquerda a povoação de Amedalai que, pelo que leio, os da CCAÇ 6 lhe chamavam Bedanda (mas para que a verdade seja reposta é só verem o que “diz” o mapa cartográfico);


(iv)  saindo de Amedalai vê-se para sul a estrada para a mata do Cantanhez, Salancaur, Cabedu, Mejo, Lisboa, Cacilhas, etc.;


(v) para norte descendo para Bedanda cruzando o “campo de aviação dos legumes espalhados”, logo à saída de Amedalai e nessa direcção vê-se um pouco indistintamente o tal aldeamento das casas com telhado de zinco do lado esquerdo da estrada Amedalai /Bedanda, que o Vasco Santos ilustrou numa foto dirigida ao blogue, da qual eu duvidei, e peço desculpa, pois no Google Earth nada consta actualmente desse bairro mandado edificar pelo snr. Cap. Ayalla Botto (!?) nem o conjunto de moranças do lado direito da estrada sentido Amedalai/Bedanda, que também se avista em parte nesta excelente foto;


(vi) Lá para baixo, os “meus aposentos”, e as casas comerciais!


Em todos os pontos da foto, e muito mais para os lados coloquei as minhas botas e por vezes a minha barriga e o corpo inteiramente vestido e armado dentro de um riozito com cerca de 2mts de profundidade, salvando dois (cabo branco e soldado acastanhado) e recuperando o armamento por eles perdido.


Lá ao fundo mesmo longe na última curva do Cumbijã que se vê na foto,  rebentei sozinho da margem (direita na foto esquerda do rio) duas “big” canoas.


Como não ter saudades ? 22/23 anos, menos 40 quilos, juventude, inconsciência, sempre pronto. Só tenho pena de não ter tido um comando à altura das circunstância, e mais não digo!


_____________


Nota de L.G.:


(*) vd. poste de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7802: Álbum fotográfico de Amaral Bernardo (Alf Mil Med, CCS/BCAÇ 2930, Catió, Cacine, Bedanda, Guileje, Gadamel, Tite, Bolama, 1970/72) (1): O reabastecimento de Bedanda, no tempo das chuvas, através do Nordatlas, com lançamento de pára-quedas


Último poste desta série >


14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7778: Memória dos lugares (139): Bedanda no meu tempo (Rui Santos, ex-Alf Mil, Op Esp, 4ª CCAÇ, 1963/65)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7821: Parabéns a você (217): António Carvalho, o Carvalho de Mampatá: é bom fazer anos, mas melhor ainda ter amigos, uma tabanca inteira, para festejá-los...



Infogravura: Tabanca de Matosinhos (com a devida vénia...)


1. É bom fazer anos, mas ainda melhor ter amigos para nos darem parabéns... Quatro tabanqueiros com dupla ou tripla pertença e a mesma identidade: Tabanca Grande, Tabanca de Matosinhos, Tabanca dos Melros... 


O Álvaro, régulo da Tabanca de Matosinhos, sintetizou magistralmente como é difícil dar os parabéns, mais do que a um amigo, a um camarigo como o António Carvalho: "É difícil dar os parabéns a alguém, quando queremos dizer mais que 'parabéns'. Transmitir a um amigo o que sentimos ao desejar-lhe as maiores felicidades, no dia em que se comemora a sua chegada a este Mundo, é um pouco complicado, porque por mais que queiramos não dizemos tudo o que sentimos e queríamos que ele soubesse. É difícil dar os parabéns ao Carvalho de Mampatá, ao Carvalho das Medas, ao Carvalho da Tabanca Pequena de Matosinhos e ao António Carvalho".

O Carvalho, o de Mampatá, o das Medas (Gondomar), da Tabanca de Matosinhos, o da Tabanca Grande, o António "tout court" [, foto à direita], fez 61 aninhos, no dia 17 passado, e teve a malta em peso, amigos, camaradas e camarigos,  da Tabanca de Matosinhos,  a festejar a feliz efeméride... 

Com o atraso de dois dias, queremos também anunciar-nos às comemorações que por certo continuam por este fim de semana adentro... Ele (e o Álvaro) vai permitir-me reproduzir aqui o seu originalíssimo texto de agradecimentos:

Nasci no dia 17 de Fevereiro de 1950, no entanto entendi ser ajuizado comemorar o meu nascimento no dia 16 por ser quarta-feira de Matosinhos e a próxima quarta ocorrer já no distante dia 23.

Já sei que vão literalmente chover votos sinceros de saúde, felicidade e longa vida. Também conto com umas bocas foleiras de alguns tabanqueiros, sobretudo da parelha (esta palavra não tem ou pode ter um sentido pejorativo?) de Penafiel.

Quero que todos saibam que muito feliz fiquei por tudo o que me disserem (de bem e de mal) e que o possam fazer durante muitos anos. Quanto aqueles que nada me disserem, a propósito do meu aniversário, também ficarei feliz com eles pois pensarei que ou não sabem mandar mails, ou não sabem que eu faço anos, ou não me conhecem ou acham mesmo que esta coisa de fazer anos não interessa nada. A todos eles eu, desde já, agradeço, do fundo do coração. Na verdade, não sabendo quem me irá "parabentear" nem querendo esperar para saber, pragmaticamente aproveito para agradecer a todos.

Finalmente mando a todos um grande abraço, desejando-vos prolongada, saudável e feliz vida. Carvalho de Mampatá.

2. E falando de Mampatá, e do Carvalho, é inevitável que se recorde aqui um dos belos poemas do nosso Josema (José Manuel Lopes), evocando o Douro e a imensa saudade da terra, mas também celebrando a grande camarigagem dos Unidos de Mampatá (CART 6250, 1972/74)(**)


calor, cansaço, suor,
saudades de tudo
e de um rio...
mas podia ser pior,
pois há ali o Corubal,
com sombras e água boa,
nem tudo é mau afinal,
não é o Douro, eu sei,
nem o Tejo de Lisboa.

são outros os horizontes,
falta o xisto e o granito,
as encostas e os montes,
mas diga-se na verdade
há o Carvalho, há o Rosa,
há um hino à amizade,
há o Gomes e o Vieira
a sonhar com a Madeira,
há o Farinha e o Polónia,
gestos e solidariedade
há o Esteves e o Pinheiro
amigos e sinceridade,
há o Nina e até amor,
também sofrimento e dor,
há o desejo de voltar
e um apelo à liberdade.

josema
Mampatá 1974

[Revisão / fixação de texto: L.G.]
_________________

Notas de L.G.:

(*) Último poste da série > 14 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7780: Parabéns a você (216): 96° Aniversário de Clara Schwarz da Silva, nascida a 14/2/1915, uma cidadã do mundo, co-fundadora e professora do Liceu Honório Barreto, em Bissau, cuja presença na Tabanca Grande muito nos honra... (Luís Graça, co-editores, amigos e antigos alunos)


Guiné 63/74 - P7820: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (23): O "fefé" é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Cherno Baldé)

1. Comentário do nosso tertuliano Cherno Baldé*, a quem aproveitamos para saudar, pelo seu regresso, deixada no Poste Guiné 63/74 - P7801: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (65): Na Kontra Ka Kontra: 29.º episódio:

Caros amigos,
Quero felicitar o Fernando Gouveia por esta interessante novela em terras Guineenses que, quanto a mim, dava para um belo filme.

Senti muita inveja do Alfero Magalhães pela bonita residência que lhe coube em Madina Xaquili. Na nossa língua (fula) chamam estas casas de "Náatu ka sudu" ou seja "faça o favor de entrar", s´il vous plait.

Sobre o "fefé" quero acrescentar que é um instrumento utilizado só pelos povos originariamente islamizados (Fula e mandinga).

E, ao falar do seu ar primitivo, opinião que eu também partilho, convém salientar outros aspectos não menos importantes:

Em primeiro lugar, trata-se de um instrumento resistente e leve, sendo fácil de manobrar para toda a gente e nas diferentes faixas etárias e, em segundo lugar, é facilmente adaptável aos diferentes tipos de solos. Os solos da região tropical são diferentes dos solos das regiões temperadas pois aqui a camada nutriente que alimenta as plantas não é muita profunda. Mas, sobretudo é um instrumento altamente social, pois ninguém o utilizava de forma isolada e já se falou aqui dos "Wampanhs" daquela época. Hoje em dia, praticamente não se usa, e também porque nessa era de telefones móveis acompanhada de crises móveis, já ninguém trabalha como outrora. E por falar de trabalho, entramos na análise de uma outra vertente mais cultural ou socio-antropológica aflorada por A. Branquinho e que diz respeito a gestão da vida familiar e/ou patrimonial em que os mais velhos controlam tudo e mais alguma coisa.

Nas nossas sociedades tradicionais, providas de meios de produção bastante precários, a gestão da força do trabalho era fundamental para garantir alguma sustentabilidade (dentro de um círculo de aparente miséria). A base fundamental para o equilíbrio de todo o sistema era o controlo do sexo e da sexualidade, isto é a gestão rigorosa e racional do mesmo de forma a garantir que só têm acesso a casa das mulheres (ao sexo) aqueles que já tinham cumprido as condições e regras tacitamente estabelecidas pela sociedade para esse efeito. Este esquema permitia a (re)produção social e económica das comunidades numa perfeita harmonia com o meio envolvente.

Este modelo sofreu uma gradual mas durável destruição, primeiro com as imposições da colonização e o advento do mundo novo (a globalização) mas acabou mesmo por sucumbir sobretudo com as nossas independências. Hoje, qualquer sapateiro da esquina tem direito... tudo está politizado, o sexo se liberalizou, tornando-se baratinho e fácil de obter, os mais novos já não querem vergar a espinha para nada deste mundo.

O nosso modelo social antigo perdeu-se antes de termos tempo de construir um outro que seja funcional e adaptado a nossa realidade e as nossas condições. As nossas cidades estão cheias de gente que ao acordar de manhã não sabe o que há-de fazer com a sua vida mas também não quer ser camponês, trabalhador do campo, está civilizado antes de garantir o seu sustento.

Um velho ditado fula diz: O lado para onde olha aquele que está perdido no mato, não há tabanca nenhuma.

Um grande abraço
Cherno Baldé
____________

Nota de CV:

(*) Vd. esta série de postes com as memórias de Cherno Baldé

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7810: Memórias do Chico, menino e moço (22): Quando choviam... frangos em Fajonquito!

27 de Novembro de 2010 >Guiné 63/74 - P7350: Memórias do Chico, menino e moço (21): Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação

18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7003: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (20 ): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (II Parte)

17 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7002: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (19): Fugindo da guerra civil, de Bissau a Fajonquito, Junho de 1998 (I Parte)

17 de Agosto de 2010 >  Guiné 63/74 - P6864: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (18): A (mu)dança das bandeiras em Fajonquito, em 1974

14 de Julho de 2010 >Guiné 63/74 - P6735: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (17): A desertificação da nossa terra: até os macacos pára-quedistas nos estão a deixar

30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

18 de Maio de 2010 >Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

24 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6244: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (14): Cap Figueiredo: Capiton Lelö dahdè ou capitão cabeça inclinada

12 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6146: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (13): Fajonquito, o blogue, o meu silêncio... e as fotos do José Cortes

12 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4816: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (12): E se o Algássimo tivesse razão ?

10 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4806: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (11): Filho da p... de barrote queimado...... Ou as sobras do rancho

8 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4802: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (10): Futebol: ser do Benfica ou do Sporting, eis a questão

5 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4782: Memórias do Chico,menino e moço (Cherno Baldé) (9): Futebol, rivalidades, bajudas... e nacionalismos(s)

27 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

21 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4714: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (7): As profecias do velho Marabu de Sumbundo

13 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

6 de Julho de 2009 >Guiné 63/74 - P4646: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (5): A família extensa, reunida em Fajonquito, em 1968

30 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4611: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (4): O ataque dos meus primos a Cambajú e o meu pai que foi um herói

25 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4580: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (3): A chegada dos primeiros homens brancos a Cambajú em 1965: terror e fascínio

24 de Junho de 2009 >Guine 63/74 - P4567: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (2): Cambajú, uma janela para o mundo

19 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Guiné 63/74 - P7819: Notas de leitura (206): Antologia Poética da Guiné-Bissau (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
É inadiável fazer-se uma viagem sobre a poesia da Guiné-Bissau.
Peço o grande favor a quem possui outros livros que não esta antologia que me faculte a leitura de outras incursões poéticas de novos nomes da lírica guineense.

Um abraço do
Mário


Os poetas da Guiné-Bissau: Construção do país, construção do texto

Beja Santos

“Antologia Poética da Guiné-Bissau” com prefácio de Manuel Ferreira (Editorial Inquérito, 1990) é porventura o último grande exercício de compendiação dos principais nomes da lírica do país. Inclui poemas de Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Helder Proença, Agnelo Regalla, António Soares Lopes Júnior, José Carlos Schwartz, Pacoal D’Artagnan Aurigemma, Francisco Conduto, Carlos Alberto Alves de Almada, Jorge Cabral, Nagib Farid Said Jaud, Félix Sigá, Domingas Samy e Eunice Borges. Referindo-se a compilações poéticas anteriores, Manuel Ferreira destaca Mantenhas para quem luta! (1977) e Antologia dos novos poetas/Primeiros momentos da construção (1978), isto sem prejuízo de obras individuais, a partir dos anos 80. A generalidade destes poemas move-se em torno dos ideais de libertação, há as elegias em torno do amor, da terra, a poesia de combate social exprimindo contradições, erguendo bandeiras de ideologia revolucionária. Todos eles cantam um povo que merece sorrir, há em muitos destes poemas uma exaltação da nova comunidade, um brado ao destino histórico do povo independente. Obviamente que muitos destes poemas têm temas repetitivos quanto à ideia de África, a solidariedade, o futuro ou a esperança. Ninguém ignora que a lírica guineense está em profunda crise parece ter perdido ou adiado as causas da esperança, da vida melhor e da liberdade, insinua-se neste silêncio um acabrunhamento à dimensão das inquietações em que vive o país.

Os poetas mais velhos são nitidamente da formação clássica, não iludem uma lírica neo-realista e uma organização da mensagem seja panfletária, recorrendo por vezes aos estribilhos e às palavras de ordem. Amílcar Cabral distingue-se pela sua nostalgia de ilhéu, curiosamente é a sua vertente cabo-verdiana que, com o filtro do tempo, ganhou mais corpo. Oiçamo-lo no poema:


Ilha

Tu vives – mãe adormecida –
nua e esquecida,
seca,
batida pelos ventos,
ao som da música sem música sem música
das águas que nos predem…

Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os tempos,
e ficaram no mundo dos teus sonhos
– os sonhos dos teus filhos –
a clamar aos ventos que passam,
e às aves que voam, livres,
as tuas ânsias!

Ilha:
colinas sem fim de terra vermelha
– terra bruta –
rochas escarpadas tapando os horizontes,
mar aos quatro cantos prendendo as nossas ânsias!

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7815: Notas de leitura (205) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

1. Apresentação da última parte do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 3/3

Para além de todos os bloqueamentos referenciados e que caracterizavam a situação da Guiné-Bissau antes de 7 de Junho de 1998, o país – um minúsculo território lusófono numa região francófona - e o povo – mal ultrapassando um milhão de habitantes, mas orgulhoso da sua língua de comunicação veicular – o crioulo (ou “kriol”) – e também da sua cultura crioula, criada nas praças de Cacheu, de Bolama e de Bissau, sujeito a uma administração pública e ao direito, cuja matrizes foram impostas pelo colonizador português, tinha a clara noção da diferença com os seus primos do Senegal e da Guiné-Conakry. Todavia, a entrada na União Económica e Monetária Oeste-Africana (UEMOA), a adopção do franco CFA, a pertença à Francofonia faziam diluir as características mais vincadamente guineenses, crioulas ou de inspiração lusa. E a prazo, porventura, a esbatê-las de vez. Prevalecia também a ideia de que “Nino” Vieira e os seus governos tinham conduzido a Guiné-Bissau a essa situação (o que era genericamente verdadeiro). Tal rumo – porventura inevitável em termos de integração económica regional – não o era, porém, em termos de integração linguística e cultural e esta questão era assim percebida pelo povo de Bissau e das principais cidades. A afirmação da identidade nacional bissau-guineense, ainda em fase embrionária de gestação, que não era na base anti-francófona, mas que queria apenas marcar distâncias em relação a esse universo alienígeno, acabou por vir a sê-lo, quando se sentiu ameaçada de dissolução.

Há, pois, a meu ver, um factor muito importante de afirmação patriótica, incipiente, rudimentar e difusa, perante uma ameaça externa, não só económica e militar (a presença e constante pressão do Senegal na fronteira Norte), mas creio que, principalmente, cultural que, em última análise, destruiria, inclusive, os laços afectivos com Portugal e com o mundo lusófono e que constitui uma causa profunda (numa fase inicial, quiçá, apenas assumida subconscientemente) do levantamento. Aliás, a evolução do conflito e o reforço dos laços a Lisboa e à CPLP, por parte da Junta Militar (JM), do Governo de Unidade Nacional (GUN) e do Povo em geral viriam a ilustrar eloquentemente este ponto.

A confluência das causas imediatas com factores profundos da própria sociedade guineense explicam o 7 de Junho que é no fundo uma revolta popular e patriótica, em todos os domínios: militar, político, social e económico, contra o “status quo”, a procura de uma saída – ou de saídas – para um sistema bloqueado.

O problema pessoal tem sido amiúde citado, como uma das causas próximas, senão como a causa imediata do conflito, ou seja a rivalidade entre velhos companheiros de armas: “Nino” Vieira e Ansumane Mané, em que o primeiro, enquanto Chefe do Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, demite o segundo de CEMGFA, acusando-o de negligência no tráfego de armas para os rebeldes de Casamansa, o que teria sido a verdadeira chispa para o acender do conflito. A acusação ia mais longe, na medida em que, de forma deturpada, se dava a entender, como se deu, para o exterior, de um envolvimento directo de Mané no comércio de armas para os rebeldes de Casamansa – o que era absolutamente falso e “Nino” Vieira sabia-o - , mas que calou fundo junto do ex-Presidente Abdou Diouf e da hierarquia militar senegalesa e que está na razão directa da celeridade da intervenção armada de Dakar. A meu ver, o factor pessoal terá desempenhado um papel na revolta de Ansumane Mané contra “Kabi”, mas não um papel determinante, porque, como parece estar demonstrado, o movimento era bastante mais vasto e complexo e as causas menos superficiais do que pareciam ser numa primeira leitura.
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Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)
e
18 de Fevereiro de 2011 Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

Guiné 63/74 - P7817: Os nossos médicos (23): Resposta de Morais da Silva (ex-Cap Art, CCAÇ 2796, Gadamael e Quinhamel, 1971/72) a Amaral Bernardo, ex-Alf Mil Med (CCS/ BCAÇ 2930, Catió, 1970/72)


Guiné > Região de Tombali >  Rio Cacine  a caminho de Gadamael; s/d> O Alf Mil Méd Amaral Bernardo, que pertencia à CCS/BCAÇ 2930 (Catió, 1970/72), e passou mais de um ano (1971) em Bedanda (CCAÇ 6).


Foto (e legenda) : © Amaral Bernardo (2011). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem de António Carlos Morais da Silva, com data de hoje:


Caro Dr Luís Graça

Junto envio a minha resposta à mensagem do Dr Bernardo.

Se entender que é correcto colocá-la como comentário em P7799 (*) faça o favor de me informar pois fá-lo-ei de imediato. Se julgar que deve ser publicada de outro modo tem a minha concordância.

Agradeço, uma vez mais, o acolhimento do blogue.
Os meus cumprimentos

António Carlos Morais da Silva
Amadora
antoniocmsilva@netcabo.pt
www.moraissilva.com


2. Resposta de Morais da Silva a Amaral Bernardo:


A carta que o senhor Dr. Amaral Bernardo me dirigiu obriga-me a um comentário breve.


1. O senhor Dr Amaral Bernardo apresenta desculpas por ter errado sobre a informação prestada acerca da CCaç 2796. Reposta a verdade considero-a ressarcida sem deixar de continuar a lamentar o sucedido.

2. Não pus em dúvida a conduta médica do Dr. Amaral Bernardo mas do médico presente em Cacine em 8Mai71. Deixei claro que não sabia se era o Dr Amaral Bernardo. Sei agora que não era. Ainda bem para ambos.

3. O senhor Dr. Amaral Bernardo não pode acusar-me de insinuações (e portanto repudiá-las) porque tudo o que referi foi feito de forma clara limitando-me a relatar uma triste experiência e "pedindo a Deus" que não estivesse a tropeçar, novamente, no médico que esqueceu que o era quando foi necessário. 


4. Tratei o assunto com discrição pois dirigi-me directamente ao Dr. Luís Graça que entendeu, posteriormente, publicar as posições de ambos. Fê-lo, estou certo, porque nenhum de nós pediu qualquer reserva.

5. Sobre a visão do senhor Dr Amaral Bernardo no que concerne à prática médica no campo de batalha direi apenas aquilo que todos os que combateram sabem e/ou sentem: o medo ultrapassa-se quando nos sentimos absolutamente responsáveis pela vida dos que combatem a nosso lado e de nós só esperam que assim seja.

Morais da Silva

Coronel

P.S. Antes de escrever ao Dr. Luís Graça procurei, junto de pessoal de Catió, identificar os médicos, do sector do BCaç 2930 à data de Maio de 1971. Infelizmente os contactados, tal como eu, já não se recordam.

A CCaç 2796 foi fustigada de forma brutal nos seus primeiros passos em Gadamael numa primeira tentativa do PAIGC de, indirectamente, eliminar a posição de Guileje (o que veio a conseguir em 1973 por via directa). Sofreu baixas, incluindo o comandante da companhia (24Jan71) e nos finais de Janeiro de 1971 era uma subunidade extenuada psicologicamente. Com muito trabalho de todos, reagiu, recuperou, deixou obra feita (reordenamento, escola, posto sanitário, casernas, organização do terreno) e garantiu a posse de Gadamael, a segurança da população, o apoio logístico a Guileje e a liberdade de movimentos no seu sector. Em suma "Cumpriu a Missão". Não desmereceu do seu primeiro e valoroso comandante de companhia – Capitão Assunção Silva, dos seus restantes camaradas mortos e feridos em combate e da confiança da população que apoiou de múltiplas formas e com quem manteve relações de respeito e amizade.

Morais da Silva
Coronel

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Nota de L.G.: 

(*) 16 de Fevereiro de 2011 > Guiné 7799: Os nossos médicos (22): Um pedido de desculpas por uma falsa informação a (e um firme repúdio pelas insinuações de) o ex-Cap Art Morais da Silva, comandante da CCAÇ 2769 (Amaral Bernardo)


Guiné 63/74 - P7816: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (4): 10/12/2009, último dia de consultas em Iemberém e viagem de regresso (10 horas!) a Bissau


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil  > 10 de Dezembro de 2009 > 13h23 > João (médico), Amarildo (técnico de verificação ambiental, que estava ali, de passagem) e Vera (enfermeira, brasileira)... Ter uma enfermeira e um centro de saúde como este é um verdadeiro luxo, no interior da Guiné-Bissau...




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil > 10 de Dezembro de 2009 > 13h18 > Um pequena amostra da pequena farmácia do centro de saúde... 





Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil > 10 de Dezembro de 2009 > 13h20 > Os últimos utentes ...






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém >  O poço da tabanca > 10 de Dezembro de 2009 > 13h28 > Um poço, mesmo com bomba manual, faz toda a diferençça numa aldeia do interior da Guiné... A saúde materno-infantil aqui é muito melhor do que em aldeias vizinhas, sem água potável nem cuidados de saúde primários...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil > 9 de Dezembro de 2009 > 12h47 > A Cadi, a mãe da futura Alicinha do Cantanhez, a ouvir o coração do bebé...






Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil > 9 de Dezembro de 2009 > 10h15 > A doce Cadi, preparando o pequeno almoço... (A Cadi, de Farim do Cantanhez, trabalha em Iemberém, numa estrutura de apoio ao ecoturismo, criada pela AD - Acção para o Desenvolvimento; vive em Farim do Cantanhez na casa do pai, Abdu Indjai, antigo guerrilheiro, presidente da comissão regional de Combatentes da Liberdade da Pátria).




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > Centro de Saúde Materno-Infantil > 10 de Dezembro de 2009 > 13h59 > A despedida de três novos amigos: O João, a Cadi e um jovem guineense não identificado.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Farim  do Cantanhez>  9 de Dezembro de 2009 > 8h35 >  O João e a Cadi, tendo ao centro a avó da Cadi, e em segundo plano, o pai, Abdu Indjai, antigo guerrilheiro do PAIGC.




Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 10 de Dezembro de 2009 > 8h35 > Da direita para esquerda: o João, o Zeca (guia do parque), um colega do Zeca e uma portuguesa...






Guiné-Bissau > Região de Tombali >   Faro Saradjuma (a 18 Km de Guileje que por sua vez está a 36 km, de Iemberem > 10 de Dezembro de 2009 > 17h01 > A caminho de Bissau... Que futuro para estes meninos ?






Guiné-Bissau > Região de Tombali >   Faro Saradjuma (a 18 Km de Guileje que por sua vez está a 36 km, de Iemberem > 10 de Dezembro de 2009 > 17h23 > A caminho de Bissau... Os meninos e o jogo da bola: uma imagem (quase) universal...




Fotos: © João Graça (2009) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


 Continuação da publicação das notas do diário de viagem à Guiné, do João Graça, acompanhadas de um selecção de algumas das centenas fotos que ele  fez, nas duas semanas que lá passou (*)... 

 10/12/2009, 5ª feira [ Continuação]

6.6. J… foi ao Centro de Saúde. [Eu] queria fazer dela um intermediário de saúde mas mal tive tempo de lhe explicar.

6.7. Idoso muçulmano (Abdulai ?), ex-combatente, vira-se para a J… e diz, apontando para a minha pele: “Ele, europeu. Ela, africana” (mais bronzeada). Joana responde: “Cadê, home?”. Ele diz: “Corto a barba e posso ser o teu home”.

6.8. Doente que tinha enviado para a Vera (urgência), afinal tinha uma forte suspeita de Sida. Conversámos com ela e com o cunhado (o tal ‘home’ da J…). Mas de nada valeu. Quando se fala em hospital, elas fogem. Análise e terapêuticas [só] em Catió (centro regional).

6.9. Zeca [, guia do Parque Nacional do Cantanhez,] pediu-me [para lhe mandar] dicionário português-francês, Universal, grande [da Texto Editora] e dicionário de português.

6.10. Doentes com leishmaniose cutânea (Farim) encaminhados.

6.11. Viagem atribulada para Bissau, 14h30 – 00h30= 10h00. Últimos 55km a 30 km/h. Muitas paragens: S. Francisco, Guileje, Mansoa [ ou Mampatá ?], Bambadinca. Antero [, motorista da AD,] preocupado: “Queres que eu vá a conduzir, Antero ?”, “Não estou cansado, estou chateado!”. Ele não tinha saldo [no telemóvel], eu não tinha carga (como sempre) […].

6.12. Segundo as brincadeiras do Pepito, as bicicletas ultrpassavam-nos. À chegada o Pepito confidenciou-me que as pessoas em Iemberém tinham ficado bastante impressionadas com a minha disponibilidade , simpatia e correcção. Os médicos na Guiné andam sempre a correr. A Enf Vera também me disse que tinha jeito para psiquiatria, que sabia comunicar bem com os doentes. Ali, “querem ou não querem ?”. Eu, não.
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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores da série:

16 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7622: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (1): 5/12/2009, sábado, viagem de carro, de Bissau (13h30) a Iemberém (21h50)

28 de Janeiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7686: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (2): 6/12/2009, domingo, 1ª consulta, um baptizo muçulmano, um casório católico, uma visita a uma fábrica de caju... 7/12/2009, 2ª feira: 1º dia de consultas. 42 doentes à porta do C.S. Materno-Infantil de Iemberém

5 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7727: Notas fotocaligráficas de uma viagem de férias à Guiné-Bissau (João Graça, jovem médico e músico) (3): 9 e 10/12/2009, em busca do dari (chimpanzé), em Farim e Madina do Cantanhez...

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7815: Notas de leitura (205): A Última Missão, de José de Moura Calheiros (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Recomendo sem qualquer hesitação “A Última Missão”, é um depoimento de grande significado, ficará indubitavelmente na galeria da nossa literatura de guerra.
Foi por respeito ao acervo documental e à qualidade narrativa de alguns dos episódios que tomei a liberdade de repartir por três textos as memórias do coronel Calheiros. Talvez depois de lerem este livro concordem que valeu a pena realçar o que há de significado histórico e de timbre na delicadeza de sentimentos do nobre soldado que arrosta levar por diante esta última missão.

Um abraço do
Mário


Das memórias do Cantanhez até às operações de Guidage
"A Última Missão"

Beja Santos

Não é um romance, não é um compêndio de recordações avulsas de diferentes comissões militares, não é um relatório rigoroso de uma missão precisa que levou um veterano dessas guerras até uma povoação da Guiné onde, 35 anos atrás, ocorrera uma tragédia, um supremo sacrifício, embora a coluna vertebral ou o pretexto da escrita seja, em concreto, uma operação de resgate dos restos mortais de três pára-quedistas e de outros sete do Exército. É um livro onde confluem, a pretexto dessa missão, memórias, recordações de todas essas experiências, vividas durante mais de dez anos, em teatros de operações diferentes; é também um registo intimista para onde convergem as lembranças de gente que se preparou para a tropa especial num determinado contexto, um amplo palco onde se vão movimentar muitos combatentes subtraídos à vida real, gente que teve medos, comportamentos heróicos, tristezas infindas. É, pois, uma obra de muitas memórias que afluem num quase presente (Março de 2008) em que um oficial pára-quedista se integrou numa missão da Liga dos Combatentes que tinha o fito de exumar, em Guidage, dez cadáveres. Levavam um croqui do cemitério militar de Guidage e procuraram levar as pessoas certas para o sucesso da missão. É esta a imensa viagem que nos propõe este belíssimo relato onde se misturam o tempo da guerra vivida e a sua memória, a pretexto de um resgate: “A Última Missão”, de José de Moura Calheiros (Caminhos Romanos, 2010).

Na aparência, tudo começa na manhã do dia 7 de Março de 2008, no aeroporto da Portela de Sacavém, é aqui que se inicia a missão de resgate. Um oficial pára-quedista, juntamente com outros pára-quedistas, dirigem-se a Guidage, onde, em Maio de 1973, ocorreu um fortíssimo assédio do PAIGC e se perderam muitas vidas. O autor recorda as suas vivências em Angola e Moçambique, as tropas com quem combateu, a natureza desses teatros de operações, a preparação dos “páras”, entremeia essas lembranças com os preparativos dessa operação de resgate, o avião aterra em Bissalanca, novas lembranças o assaltam, a começar pela sua antiga unidade, o BCP12. Percorre a Bissau de 2008 e confronta-a com a de 1971. O antes e o depois são-nos dados pelo preto e branco do passado e a fotografia a cores do presente, igualmente a composição dos textos também demarca presente e passado. E assim se parte para Farim, local escolhido para a base de operações, a algumas dezenas de quilómetros de Guidage. A própria Farim traz novas recordações, o autor também passara por aqui noutros tempos. Começa a relacionar-se com a população e apercebe-se do drama dos ex-militares das Forças Armadas Portuguesas que continuam à espera que se reponha a justiça nas pensões que lhe são devidas. Insiste-se na precisão do relato, no intimismo das observações, na serenidade dos juízos proferidos, na vontade em interpretar o que se vê à volta. A propósito da preparação dos três pára-quedistas mortos perto de Guidage, o autor descreve o curso de pára-quedismo, a integração do pára nas diferentes unidades. Passa seguidamente para as operações de baptismo de fogo e encaminha o leitor para uma operação extraordinária em que ele participou e que foi a reocupação do Cantanhez.

É um capítulo do maior interesse, descreve a missão que fora atribuída ao BCP 12, o Cantanhez era considerado pelo PAIGC como território libertado, estava ali estacionado o seu 1.º Corpo de Exército, esta operação foi designada “Grande Empresa”, veio a seguir à “Muralha Quimérica” em que o BCP 12 e outras unidades tentaram impedir a visita de uma delegação da ONU. O coronel Calheiros não poupa elogios à prossecução da “Grande Empresa” e descreve-a minuciosamente. Iniciou-se em Dezembro de 1972 e tinha como finalidade assegurar em continuidade a presença das tropas portuguesas em pontos estratégicos da Península do Cantanhez. É um relato de inegável valor e que clarifica o modo como foram criados aldeamentos e aquartelamentos e estabelecida a comunicação com as populações, obrigadas a viver sob a pressão dos dois lados. No final de Março de 1973, o general Spínola reconhecia que a “Grande Empresa” estava a ter sucesso com a instalação de aquartelamentos, os patrulhamentos constantes por terra e nos rios.

Voltando aos três pára-quedistas falecidos na região de Guidage, descreve a primeira operação dos soldados Loureço e Vitoriano que tinham chegado à Guiné em Fevereiro de 1973. Temos aqui igualmente um registo do maior interesse sobre Sargentoxanque e o seu modo de viver, tal como Caboxanque, Cadique e Cafine, entre outros aquartelamentos instalados no Cantanhez. E de novo salta para Março de 2008, está-se no cumprimento da missão de resgate, tudo começa pela incógnita do local onde fora o cemitério militar de Guidage, todos se sentiam desorientados sobre a sua localização. É dentro deste quadro de peripécias que a mente do coronel Calheiros regressa a Abril de 1973, altura em que várias aeronaves são atingidas por mísseis terra-ar. A referência não é inédita, no próprio blogue toda a situação de Guidage tem vindo a ser tratada por diferentes protagonistas. Depois, o autor recorda-se das conversações de Cap Skirring, que envolveram Senghor e Spínola e que culminaram no fiasco, Marcelo Caetano determinou que cessassem aqui os contactos, nada de integrar o PAIGC na vida da Guiné e muito menos criar uma perspectiva de uma total independência a dez anos.

O autor vem de férias em Abril desse ano, apercebe-se que a opinião pública está praticamente alheia ao que se passava em todos os teatros de operações. E observa: “O único local onde na Metrópole se falava abertamente da guerra do Ultramar, naquela altura e com intensidade, era nas universidades. Constatei esse facto no ISCEF, onde tive que ir poucos dias após a minha chegada. Estive lá duas ou três vezes e em todas elas pude verificar que continuava a haver reuniões de alunos e manifestações contra a guerra no Ultramar. A propaganda contra a guerra, abundantemente exposta nas paredes, bem como o fervor das reuniões que pude observar, ainda eram maiores do que antes de ter embarcado para a Guiné. Mas se nessa ocasião tinha uma posição neutra quanto a elas, olhando-as de forma despreocupada, a minha sensibilidade a este problema havia-se alterado profundamente. Agora sentia-me bastante constrangido ao observá-las pois receava muito as suas consequências. Aliás, já a estava a sentir fortemente na Guiné, com a falta de combatividade, mas sobretudo de preparação das nossas unidades de quadrícula, enquadradas quase a cem por cento por oficiais milicianos”. E estamos chegados aos acontecimentos de Maio e ao supremo sacrifício que se viveu em Guidage. Temos pois as ossadas dos mortos. É um testemunho eloquente, o adeus a Guidage e as cerimónias da entrega dos restos mortais às famílias. É matéria para o último texto desta recensão.

“A Última Missão” é uma peça relevante da nossa literatura de guerra, ponho-a sem hesitar ao lado das memórias do Sargento Talhadas e desse Comando de quem aguardamos mais notícias (Virgínio Briote, para quando?), o Amadu Djaló.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7805: Notas de leitura (204) A Última Missão, de José de Moura Calheiros (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

1. Continuação da publicação do trabalho do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, , Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, enviado em mensagem de 15 de Fevereiro de 2011:


Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 2/3

Bloqueamento social porque, sem prejuízo das diferentes fases da evolução histórica da Guiné-Bissau, no período pós-independência, mesmo tendo em conta a substituição da pequena elite burmedja (cabo-verdiana e mestiça) na sequência do golpe de estado de 14 de Novembro de 1980 por uma élite autóctone de fidjus di tchon (filhos da terra, ou seja guinéus supostamente puros) ou pretus-nok , o poder político, económico e social circunscreveu-se sempre a um grupo muito restrito, inibindo a mobilidade ascendente das demais camadas sociais e reduzindo-as a condições de mera subsistência. Este fenómeno é agravado pela explosão demográfica do país e pela concentração urbana em Bissau.

Por outro lado, as gerações mais novas, que cresceram ou nasceram após a independência e que constituem, hoje, a maioria da população bissau-guineense, já não se reviam na chamada “geração da luta”: os seus anseios eram outros, o desejo de mudança evidente. Todavia, o establishment não o permitia, porque tal poria em causa a sua própria sobrevivência. Uma minoria que viveu ou ainda vivia emigrada no estrangeiro, numa primeira fase, nos países limítrofes e do Leste europeu, numa segunda, em Portugal e nalguns países ocidentais (Brasil, França, EUA), culta ou, pelo menos, alfabetizada, com outra vivência e, principalmente, com outros objectivos, quer pessoais, quer nacionais, constatava que, à parte umas raras excepções pontuais, o bloqueamento era quase total.

Paradoxalmente a este movimento no sentido do desencravamento e do aggiornamento da sociedade bissau-guineense, conscientemente sentido por um sector, ainda que diminuto, das gerações mais novas (os demais pretendiam pura e simplesmente melhorar o quotidiano), acresce-se a deterioração acelerada da situação económica e social dos antigos combatentes da guerra colonial (os chamados combatentes da Liberdade da Pátria). E este é um dado fundamental do problema porque se trata a um tempo de uma causa remota e próxima do conflito. Remota, porque o problema, que vem de longe, nunca encontrou qualquer esboço de solução no passado. As tentativas goradas quando da governação inábil (inepta é o termo exacto) do antigo Primeiro-Ministro, Coronel Manuel Saturnino da Costa – ele próprio um homem da luta – demonstravam bem que a questão era candente e a sua resolução urgente, mas que o Poder patenteava total impotência para o resolver, por falta de meios, por falta de imaginação, ou por ambas as razões. Próxima porque a situação dos combatentes da Liberdade da Pátria (verdadeiros “descamisados”) não cessava de se agravar nos meses que antecederam o levantamento de Brá e aqueles iriam não só engrossar a legião de descontentes, mas, pior do que isso, anunciavam publicamente, poucas semanas antes do 7 de Junho de 1998, que iriam defender de armas na mão os seus direitos.

Bloqueamento económico porque a República da Guiné-Bissau era – e é - um país desesperadamente pobre, com efeito, um dos mais pobres do planeta. Não dispunha, nem dispõe, de quaisquer recursos naturais dignos de menção. Possuía, antes da guerra civil, de um rendimento per capita de 250,6 dólares americanos (dados de 1997, do Fundo Monetário Internacional), ou seja menos de 1 dólar por dia e por habitante[1] . Dispondo de uma agricultura de subsistência, praticamente sem indústria, sem recursos energéticos, com o sector dos serviços circunscrito, em larga medida, à capital, tratava-se de um dos países do mundo mais altamente endividados do mundo (918,8 milhões de dólares em 1997, por outras palavras: quase 4 vezes o PNB, também segundo dados do FMI). O seu subdesenvolvimento era endémico e sem solução à vista. Para além dos problemas estruturais com que se confrontava, o malbaratar de fundos e da própria ajuda externa, a corrupção, a má governação, constituíam outros tantos factores impeditivos a que a Guiné-Bissau pudesse emergir do fosso em que se encontrava. A principal cultura de rendimento – o cajú – na mão de intermediários e da elite local de Bissau era exportada na sua quase totalidade para o estado de Kerala na Índia. Uma exploração abjecta da mão-de-obra camponesa guineense que não foi praticada nem nos piores tempos da era colonial e agora aplicada por um país do 3º. Mundo, com o beneplácito (e os consequentes benefícios) da clique de “Nino” Vieira e acolitada pelos comerciantes de Bissau.
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[1] “O PNB por habitante era de 223 dólares norte-americanos em 1997, e caíu para 181,8 dólares por habitante em 1999, devido ao conflito militar”, Memorando do Banco Africano de Desenvolvimento/ Fundo Africano de Desenvolvimento, de 21 de Março de 2001, doc. ADB/BD/WP/2001/35
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Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)