segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Guiné 63/74 - P10462: Notas de leitura (413): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Agosto de 2012:

Queridos amigos,
Continuamos à volta da história da Guiné, de René Pélissier, seguramente uma das obras incontornáveis para o estudo da Guiné entre 1841 e 1936.
Importa esclarecer que há muitíssimo pouco acerca do período pré-colonial (a grande exceção é a tese de doutoramento de Carlos Lopes intitulada “Kaabunké, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de que falaremos oportunamente), segue-se a história da Guiné de João Barreto (muito ultrapassada), a história da Guiné portuguesa de Teixeira da Mota (obra fundamental), temos depois René Pélissier e haverá que ter em conta os trabalhos de António Duarte Silva e a guerra da Guiné propriamente dita em que o livro do coronel Fernando Policarpo é indispensável.

Um abraço do
Mário


A história da Guiné por René Pélissier (2)

Beja Santos

René Pélissier é seguramente, tal como Teixeira da Mota, a referência obrigatória para o estudo da história da Guiné, no período colonial. É patente que o século XIX foi de grande turbulência: ficou esclarecida a dimensão do território, confinado a uma fração do que fora a Guiné de Cabo Verde dos séculos XVI-XVII, que começava na foz do Senegal e ia até à Serra Leoa; na primeira metade do século, portugueses e lusitanizados vivem junto aos rios, em tensões com as populações nativas e a presença de outros concorrentes estrangeiros; a perda do tráfico negreiro irá alterar a atividade comercial; todo o trabalho de interiorização irá custar sucessivas campanhas que se prolongarão até 1936. Como é óbvio, ainda há outros factos a anotar, como é o caso da separação completa da Guiné de Cabo Verde, a despeito de metade dos funcionários administrativos serem provenientes do arquipélago.

As insurreições à volta de Bissau são uma constante, ainda na primeira metade do século XIX; mas também em Cacheu e mais esporadicamente no Geba. O autor documenta rigorosamente todos estes conflitos, hostilidades e insubordinações, deixa bem claro como é frágil e poroso o domínio territorial. Por vezes, os contingentes militares têm que pedir auxílio às forças estrangeiras.

“À imagem das suas superfícies contraditórias e imaginárias, a Guiné de Cabo Verde, antes de 1879, é o império das incertezas. Incertezas não só na sua extensão, mas na sua própria existência. Como, efetivamente, conservar feitorias que se esboroam e cuja vida económica está dependente, exclusivamente do estrangeiro, a sobrevivência política dos socorros pedidos ao exterior e a identidade de uma crioulização de geometria variável?”. A tão inquietante pergunta procura responder o historiador. Queixa-se da falta de documentação, mas é possível identificar os vários nomes de maior influência história: Caetano José Nosolini e Honório Pereira Barreto, não se poderá entender a diplomacia a apagar fogos juntos dos grumetes de Bissau e de Farim, a travar as perturbações no Geba, nos conflitos internacionais que vão envolver Bolama e a região do Casamansa, a intervenção francesa em Bissau, o florescimento do amendoim no rio Grande de Buba, sem a atividade destes dois proprietários, que muito provavelmente tiveram comércio negreiro. A segunda metade do século XIX, eles vão estar presentes no combate às perturbações, de Norte a Sul da colónia, e fazendo frente à avidez de franceses e britânicos. Até agora acantonados à volta de Bissau, Cacheu e Geba, os portugueses lançam-se no Geba e hasteiam bandeira em Bambadinca, Fá e Ganjarra, isto a um tempo em que os Papéis se vão sublevar no Norte e que surge outro fenómeno inquietante que as autoridades portuguesas não têm capacidade para controlar, as invasões Fulas no Gabu (a grande batalha de Kansala ou Cam-sala terá ocorrido em 1864 e representa a perda de poder dos Mandingas a favor dos Fulas.

Entrou-se assim num período de ameaças estrangeiras, da exploração económica do Rio Grande de Buba (comércio do amendoim), de expedições contra os Papéis do Norte e de uma clarificação dos estabelecimentos portugueses. Em 30 de Dezembro de 1878 ocorre o desastre de Bolor, uma significativa derrota do exército na Guiné e em que os vencedores são os Felupes de Jufunco. Em 18 de Março de 1879 o distrito da Guiné será desafetado da província de Cabo Verde. Dali em diante, a Guiné torna-se numa verdadeira província com um governador totalmente independente do governador-geral na Praia. A lição tirada do desastre de Bolor é de que as autoridades têm mesmo de avançar e ocupar território. O autor recorda que em 468 meses (1845-1878) o Exército e a Marinha portugueses combateram pelo menos 9 vezes, não tendo aí resultado o domínio do território. Se até agora o importante era manter a alfândega, a ideia de ocupação é um princípio vital, segue-se um período em que a Guiné está permanentemente em armas. Já não chega as concentrações comerciais em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Bissau, Geba e Bolama, a fronteira francesa parece querer asfixiar tudo. Enviam-se destacamentos para os Bijagós, para o Rio Grande de Buba, para o Geba e mais acima, no Casamansa. A despeito desta ofensiva, da procura de ganhar posições no Sul da Guiné, haverá uma vitória dos Beafadas contra os portugueses em Jabadá, os incidentes franco-portugueses no Casamansa será uma constante e é neste período que ganha notoriedade o alferes Marques Geraldes, um militar que terá sido o primeiro a percorrer a Guiné desde o centro até ao Casamansa, praticamente sozinho, o que lhe granjeará um enorme prestígio. Ao tempo surge um problema inesperado na fronteira do antigo Gabu, ocupado pelos Fulas-Pretos. Um insurgente, Mussa Molo, começa a praticar razias junto dos Beafadas, toda a região do Geba vai entrar em convulsão. É por esta época também que a região do Cuor passa a ter importância dado que aqui se assegura ou se corta o trânsito com Bissau.

E ao tempo em que se celebra a Convenção Luso-Francesa de delimitação de fronteiras (Maio de 1886) que as forças militares espadeiram em todo o território: no Rio Grande de Buba, no Cubisseque, junto ao Casamansa, no Mansomine. Portugal terá cedido à França o Casamansa para obter apoio ao projeto da imensa faixa inter-oceânica entre Angola e Moçambique. Como observa Pélissier, em troca daquilo que nada lhe custa (a concessão a Portugal da sua liberdade de ação na África centro-austral), a França vai engolir as duas margens do Casamansa e levar as suas posições até à proximidade do rio Cacine. Concretamente, a Guiné portuguesa perdeu profundidade continental. Após um período de vitórias, a que se pode associar o nome de Marques Geraldes, entra-se numa fase que Pélissier classifica de anos medíocres, a Guiné é no essencial uma colónia fluvial.

Começa um novo período, que se estenderá até 1908, prosseguem as campanhas, na maioria dos casos bastante tímidas, deu-se a liberalização alfandegária, previram-se grandes sociedades interessadas em explorar a Guiné, falou-se em capitalistas franceses (caso do conde de Butler) e de um consócio ítalo-português, envolvendo o marquês de Liveri de Valdausa e António da Silva Gouveia, facto é que se irá criar a Companhia de Comércio e Exploração da Guiné, a Casa Gouveia que só se extinguirá em 1974.

Prosseguem à guerras à volta de Bissau, os papéis estão mais renhidos do que nunca, e Mussa Molo continua a ser uma dor de cabeça sobretudo no Gabu e em Pachisse. Em 1895 consegue-se obter uma posição no Forria. Dá-se uma inversão da preponderância dos franceses no negócio do amendoim, os alemães continuam muito ativos. O imposto de palhota continua a ser praticado em Farim. Aos poucos, sente-se que as populações nativas estão cansadas de se revoltar contra os portugueses mas é exatamente neste período que começam as guerras luso-mandingas, que se estendem de Farim, passando pelo Oio, até ao Geba. A Pax Lusitana, a despeito de um estado latente de insubmissões e guerras de fisco, é quase uma realidade.

(Continua)



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Nota de CV:

Vd. poste de 28 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10447: Notas de leitura (412): "História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936", por René Pélissier (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10461: Dossiê Guileje / Gadamael (25): Memórias do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (Armindo Batata)


1. Resposta, de ontem, do Armindo Batata ao meu pedido para comentar as suas fotos publicadas no poste P10442 (*)


Caro Luís

Vamos lá então, na medida do possível, acrescentar as legendas, mas, com muito raras excepções, não me recordo dos nomes de ninguém.


Na primeira foto, a número 15 [, à esquerda], sentados, estou eu e mais dois alferes da companhia. Não identifico o local. 

Na que se segue [, foto nº 12, à direita], estão, um dos cabos do Pel Caç Nat 51 e o 2º sargento do mesmo Pel Caç Nat. 

Este 2º sargento era de Bissau, casado com uma enfermeira a trabalhar também em Bissau. Não estava desarranchado.


 Na última fotografia [, nº 14, à esquerda, ] está um outro cabo do mesmo pelotão. 

Tão aprazível local era a entrada e o tecto do abrigo do Pel Caç Nat 51 (dos cabos, sargentos e por vezes também meu).

Este abrigo situava-se no lado oeste do aquartelamento (lado do Mejo) junto ao paiol e debaixo de um grande mangueiro. 

O fogareiro a petróleo devia ter sido certamente emprestado para a ocasião (tal não era difícil num Pel Caç Nat). 

Habitualmente os cabos tomavam as refeições neste local, os sargentos na respectiva messe ou também aqui e o alferes tomava as refeições, juntamente com os restantes oficiais, na messe. 

A messe de oficiais era o alpendre do edifício comando/quarto do capitão/quarto dos alferes. Na fotografia pode-se ver esse alpendre, com a mesa para refeições no primeiro plano e as cadeiras do bar de oficiais (aqui apetece-me sorrir) ao fundo em segundo plano. 

A passagem em primeiro plano era habitualmente muito concorrida durante o jantar, já que estava no caminho de um dos espaldões de morteiro 81, dos espaldões da artilharia e dos abrigos de 3 ou 4 grupos de combate. 

Nos lados perpendiculares a este corredor/messe ficavam o chuveiro e lavatório abastecidos por bidão (o lado onde está o militar a fumar) e no lado paralelo oposto, o sanitário, que constituía um excelente abrigo para quem fosse lá apanhado sentado. 

Em último plano o depósito de géneros. O militar nesta fotografia era o alferes comandante do pelotão de artilharia que substituiu o alferes (Gonçalves?) morto em combate em Fevereiro de 1969. 

Na outra fotografia é visível a protecção do alpendre/messe de oficiais. Entre portas estou eu. De costas, t-shirt branca, calças do camuflado e quico, creio ser o cap Barbosa Henriques [, da CART 2410].

Não me recordo de que festividade se tratava, mas era a apresentação de uma cerimónia fula à tropa.

Abraço
Armindo Batata


2. Comentário de L.G.:


Armindo, obrigado pelo teu companheirismo, camaradagem, pachorra, paciência...  A gente ainda não se conhece pessoalmente, mas eu já percebi que tenho à minha frente um bravo de Guileje... Não  vou abusar da minha tendência para a adjetivação, coisa que tu não aprecias. Estou-te grato, sem advérbio modo, pelas legendas com que enriqueceste as tuas/nossas fotos, que passam a ser património da Tabanca Grande. Um dia destes  gostaria de falar contigo ao telefone, se me deres o teu contacto. 

Camarada, não consegui localizar as fotos a que te referes a partir deste parágrafo: 

"A messe de oficiais era o alpendre do edifício comando/quarto do capitão/quarto dos alferes. Na fotografia pode-se ver esse alpendre, com a mesa para refeições no primeiro plano e as cadeiras do bar de oficiais (aqui apetece-me sorrir) ao fundo em segundo plano".

Peço que me confirmes, por outro lado, em que altura exatamente estiveste em Guileje, com o saudoso capitão Barbosa Henriques, que eu e o Jorge Cabral conhecemos em Fá Mandinga, setor de Bambadinca,  como instrutor da 1ª companhia de comandos africanos, no final de 1969, princípios de 1970.  Um Alfa Bravo. LG (**).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 27 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10442: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (2):Funeral fula em Guileje (ou melhor, funeral muçulmano, segundo o nosso amigo Cherno Baldé)



(**) Último poste da série > 30 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10460: Dossiê Guileje / Gadamael (24): O abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca de Guileje (Manuel Reis, ex-Alf mil, CCAV 8350, 1972/74)

domingo, 30 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10460: Dossiê Guileje / Gadamael (24): O abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca de Guileje (Manuel Reis, ex-Alf mil, CCAV 8350, 1972/74)

1. Mensagem de Manuel Augusto Reis, com data de hoje, e em resposta a um pedido meu, formulado no poste P10456 (*)

Caro Luís:
Terei muito gosto em responder ás questões por ti solicitadas. Muito me espanta que este assunto ainda não tenha sido referido neste espaço. Já foi dissecado noutro espaço, dada a sua importância e influência que teve na decisão final da retirada de Guileje.
O poço localizava-se em Áfia, a 4 Km de Guileje, e a recolha da água era feito por um pequeno grupo de 8 homens (secção), que garantiam uma falsa protecção pois, se detectados pelo inimigo, eram facilmente apanhados à mão.

Nunca houve qualquer problema, emboscadas, minas, etc, era necessário que sucedesse uma vez,  para redobrar os cuidados, bem típico dos portugueses. Era assim nas companhias anteriores, a sobreposição foi feita deste modo rotineiro e assim continuou no meu tempo.

Como era feita a nível de secção, só me recordo de lá ter ido uma vez à água. Passei por lá outra vez de regresso a um patrulhamento que efectuámos ao Quebo, nas imediações do Mejo, onde supostamente se localizaria um novo aquartelamento, que apresentaria algumas facilidades logísticas, dada a proximidade de um largo rio que fazia fronteira com o Cantanhez.
A recolha da água era feita uma vez por dia, só excepcionalmente se ia a Áfia duas vezes. No caso de obras, por exemplo, tornava-se necessário mais água e havia necessidade de lá voltar.
Os homens, os bidões e a bomba eram transportados em viatura através de uma picada em estado muito razoável.
A população abastecia-se de água nas imediações do aquartelamento, mesmo junto do arame farpado, onde existiam uns pequeços poços. Era aí também, nessa bolanha, que as lavadeiras lavavam a roupa, nossa e delas. Foram atacadas no dia 21 de Maio de 1973, tendo recolhido ao aquartemento, apavoradas, sem ferimentos, pois tratou-se de uma pequena intimidação.

As mulheres que lá se deslocavam tinham sido por nós informadas que a partir de 19 de Maio, à tarde, o caminho estava bloqueado pelo PAIGC (3º Corpo do Exército), que receberam  ordens para se deslocarem para lá, quando lá se encontravam nas matas do Mejo.

 O dia 18 de Maio, de tarde, foi a última vez que se efectuou essa deslocação sob o comando do então Major Coutinho e Lima. A secção destacada para esse serviço tentou esquivar-se, devido à turbulência que se verificou, umas horas antes, com uma violenta emboscada, nas imediações do aquartelamento, na picada para Gadamael, e que envolveu 3 grupos de combate.
No dia 21 já não existia água e a sua necessidade esteve na origem do risco que a população assumiu.
Na época das chuvas, com a picada intransitável, o reabestecimento era efectuado na bolanha pelas NT e população.
À pergunta que formulas sobre a inexistência de um poço de água no aquartelamento não te sei responder em concreto. De facto, nas imediações, os pequenos poços utilizados pela população poderiam ser uma solução com um pequeno investimento.  
Julgo que te respondi a tudo.
Um abraço.    
Manuel Reis
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Notas do editor

(*) Camaradas de Guileje:  Não temos aqui descrições detalhadas da ida á "fonte de Guileje"... É uma questão que me intriga...

Como é que era no vosso tempo ? Quantas vezes por semana ou por dia é que se ia buscar água ? Ia sempre um grupo de combate a fazer segurança ? E no caso da população ? As mulheres e crianças eram escoltadas pela mílícia ? Qual era a distância exata do de Guileje até à fonte (no Rio Afiá) ? 4 km ? A pé, era mais do que uma hora... Houve emboscadas, minas, percalços, etc., no vosso tempo ? Quando é que a bomba a motor ? Por que razão é que em tantos anos (19634/73) nunca se abriu um poço dentro do perímetro da tabanca e do aquartelamento de Guileje ?...

Provavelmente nunca ninguém pensou que um dia poderiam "morrer à sede"... (Desculpem a ironia, mas os nossos comandantes eram pagos para pensar, decidir, comandar, prevenir, prever, liderar)...

Guiné 63/74 - P10459: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (2): A cidade moçambicana da Beira,berço do Mário Sasso (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)




Moçambique > Cidade da Beira > c. 1905 > Rua Conselheiro [António] Ennes > Foto do domínio público, cortesia da Wikipedia ("View of Rua Conselheiro Ennes, Beira, Mozambique. Photograph of original postcard c1905, published by The Rhodesia Trading Co. Ltd., Beira"). A capital da província de Sofala tem o estatuto de cidade a partir de 1907. É hoje a maior cidade de Moçambique, a seguir a Maputo (antiga Lourenço Marques).

António José Enes  (Lisboa, 1848 / Queluz, 1901), mais conhecido por António Enes, diplomado com o Curso Superior de Letras, foi um político, jornalista, escritor e administrador colonial português:  destacou-se  em Moçambique,  onde exerceu as funções de Comissário Régio durante a rebelião tsonga,  na região sul daquele território. Foi o principal organizador da expedição de Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque contra o Império de Gaza, e que levou à prisão de Gungunhana, em 1895.

Enes defendera,  em 1870, a ideia dos Estados Unidos da Europa, temendo que Portugal fosse absorvido pela vizinha Espanha. Foi membro destacado do Partido Histórico e da Maçonaria. Exerceu as funções de deputado, de bibliotecário-mor da Biblioteca Nacional de Lisboa (1886) e de Ministro da Marinha e Ultramar na primeira fase do governo extrapartidário de João Crisóstomo de Abreu e Sousa. Era amigo pessoal de D. Carlos, que lhe atribuiu a grã cruz da Torre e Espada pelos seus "grandes e relevantes serviços", prestados à Pátria e ao ao seu Rei,  em África.

É autor, entre outras obras, de A Guerra de África em 1895. Prefácio de Afonso Lopes Vieira. Lisboa: Prefácio, 2002. 507 pp. [1º edição, 1898].  Fonte: Wikipédia e LG].


A. Continuação da nova série (*) do nosso camarada e amigo J. L. Mendes Gomes, ex-alf mil da CCAÇ 728, (Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) [, foto à esquerda, em Catió, assanaldo com um círculo a vermelho].


B. Ficou um palmeirim nas bolanhas da Guiné > (**)

2. A Cidade Moçambicana da Beira

Situada na costa leste de Moçambique, lá em cima, à borda do Índico, a cidade da Beira, de traçado geométrico, foi a encruzilhada onde se fixaram tanto as gentes do oriente amarelo como as do ocidente, negro e de feição europeia, por efeito da colonização ocidental, secular.

Indianos e malabares, asiáticos e gente de toda a orla mediterrânica, foram-se implantando, ao longo da costa de África, colorindo-a de matizes étnicos originais e muito singulares. Mesmo os que mantinham as linhas fisionómicas europeias comungavam, todos, de um mesmo tipo, anímico, resultante dessa peculiar mistura, visivelmente marcado pelos traços da grandeza ilimitada dos elementos geográficos que a todos abraçava.

Ali arribou, em tempos, gente vinda das costas do Adriático. Os Balcãs foram sempre um sítio sujeito a inesperadas convulsões, radicadas em rivalidades étnicas e religiosas, nunca bem resolvidas. 

Uma dessas famílias dava pelo apelido desconhecido, que não suscitava qualquer significado no linguajar típico, misto de português e de falares, indígenas. Era o ramo dos Sassos, oriundo da Eslovénia. Pacatos, com visível espírito de iniciativa e trabalhadores. Ficaram deslumbrados com a abundância natural que encontraram naquelas paragens. Depressa se tornaram, não só, queridos no meio, como assumiram um papel de dinamização daquelas terras. Desde as pequenas lojas de comércio, sempre a abarrotar das coisas mais modernas e de úteis utensílios, já consagrados nas terras balcânicas, às primeiras empresas empregadoras, em moldes nunca vistos.

O trabalhador duma casa dos Sassos tornava-se, a breve trecho, se demonstrasse razões de confiança, num elemento participativo integral, nos ganhos e nas perdas. A prosperidade florescia, de dia para dia, enquanto os Sassos se afirmavam como indispensáveis à vida e harmonia da cidade.

Foi assim até à 3ª geração. Eslovénia ou Jugoslávia, escondidas para lá do Adriático, já não diziam nada aos netos dos primeiros. Nunca lá foram. Era só o que os velhotes saudosistas iam tartamudeando sobre as velhas lembranças da mocidade difícil que tinham tido, há tanto tempo. Eram ferretes cravados na cabeça que só eles enxergavam.

Quando o Mário fez e 7º ano do liceu, ali na Beira, sem grandes novidades, no dia a dia, tudo era igual, nunca mais largou o pai, a chagá-lo com a de querer ir estudar para Lisboa, da Europa…. Seria talvez o apelo telúrico europeu que lhe corria no sangue a ditar toda a teimosia, que chegava a ser irritante. Tinha lá uns tios a viver. Já não era tão difícil. Na cabeça delirante do puto, tudo girava em turbilhão, à procura de uma porta aberta.

Quis o destino encarregar-se de lhe fazer a vontade. Naquele ano, os tios de Portugal foram passar férias à Beira. Em casa deles. Durante os 3 meses de verão. Fartou-se de acompanhar os primos que lhe encharcaram a cabeça com loas das ruelas e coisas de Lisboa. O Castelo de Lisboa, Sintra e arredores, a vida nocturna de fado, nos românticos bairros alfacinhas…Até a fala típica alfacinha deles o seduziam. Sabe-se lá porquê.

O certo foi que o vapor que os trouxe de volta, teve mais um passageiro a bordo. O Mário, de grandes orelhas e olhos bogalhudos, uma boca com uns lábios grossos que até chateavam…e cabelos lisos, demasiado compridos, atrevidos, à boa maneira dos futuros Beatles, até seriam da mesma idade… Havia de facto, uma certa semelhança entre ele e os futuros reis da fama. Com as suas guedelhas de rebeldia, haveriam de revolucionar o mundo inteiro.

Deixar os pais em África, a dizer adeus, chorosos, no cais da Beira, foi coisa de somenos importância. Eles ficavam bem e o Mário, ainda ia melhor, na ânsia de ver Lisboa, a mítica Coimbra ou as terras verdes do norte.

Que diferença. Uma terra, já com uns bons séculos de existência e a Europa, civilizada, à espreita, a dois passos. França ou Inglaterra eram já ali, para quem estava habituado às distâncias negras africanas… A África era demasiado natural, nas suas florestas carregadas de vida, e de liberdade, nos rios da fartura e muito francos, nas gentes pacatas e sem histórias, sempre iguais… Sentia um certo enjoo de tanta fartura!…

A atracção pelo desconhecido e pela aventura corria-lhe no sangue. Se possível, viver duas vidas numa só…era seu modo de estar, irresistível, sem saber porquê. (Continua)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 25 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10430: Ficou um Palmeirim nas bolanhas da Guiné (1): A origem do nome, Palmeirins (J.L. Mendes Gomes, ex-alf mil, CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66)


(**) Dedicada à memória do alf mil Mário Sasso, da CCAÇ 728, morto em combate no Cantanhez, em 5 de desembro de 1965

Guiné 63/74 - P10458: Blogpoesia (304): Cangalheiros deste povo (Ricardo Almeida, o poeta da CCAÇ 2548, Farim, Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71)

Cangalheiros
por Ricardo Almeida [, foto atual, à esquerda]

Cangalheiros deste povo
e
Do meu povo!,
Que já nem têm um covo
de
De terra para enterrar.
As mortes que então provocais,
Hão-de pesar-vos na alma,
Sem tempo p'ra queixumes nem ais,
Por serem mais pesados que a lama,
Os mortos que tendes de carregar...

Mas se isto não bastar
e
Se justiça houver,
Estarei cá para ver
Vosso corpo a enterrar
e
Sobre essa terra escrever
Aqui jáz erva daninha,
Não queirais essa semente,
Que isto é campo de doninha,
Não queirais ser conivente.
e
Senhores de Portugal,
Não há quem vos faça mal
Porque o poder que possuem
Não foi dado pelo povo
Mas outrossim  usurpado;
e
Nem o próprio jornal
Não os factos desta guerra
Não vá o povo saber
e
Clamar contra o poder,
Nalgum jornal lá da terra!

Mas um dia tenho a certeza,
Se saír vivo daquì.
Denunciarei a pobreza
Deste povo  e do meu povo,
e
Do mais que eu já vi.

Venham ver, venham ver...
A mãe com filhos pequenos
Sem nada ter p'ra lhe dar,
Que de nascença morenos
e
Da icterícia amarelos,
Porque a ferida do seu figado
Já não se pode sarar.


PS - Poema enviada em 26 do corrente, com a seguinte nota:

Em jeito de roda pé
volto a chamar atenção que isto é escrito,
num contexto politico muito adverso,
politico, económico, social, cultural,
e que levava ao desespero e à revolta
porque não bastava os itens acima descritos,
como a guerra que dizimava lá longe toda uma geração.
Por isso estas crónicas em jeito de poesia.

Peço desculpa por algum lapso que possa surgir,
fruto da pouca experiência de escrever no computador.

Com um abraço para toda a Tabanca Grande
marques de almeida
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Guiné 63/74 - P10457: Blogoterapia (218): Obrigado pelo acolhimento nesta Grande Tabanca, que abriga as alegrias e as dores de uma geração, batizada com suor, sangue e mosquitos, nas águas escuras dos deltas dos rios da Guiné (Vasco Pires, Brasil)


Guiné  > Região de Tombali > Gadamael > CCAÇ 2769 (Gadamael e Quinhamel,  Janeiro de 1971 a Outubro de 1972) > Vista aérea de Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.  Foto do cor art ref António Carlos Morais da Silva, e por gentilmente cedida ao nosso camarada Manuel Vaz.

Foto:  © Morais da Silva (2012) [Editada por L.G., com a devida vénia]


(...) [ Sobre o ex-cap art Morais da Silva disse o Vasco Pires: Cheguei a Gadamael Porto, lá por meados de 70 para assumir o comando do 23° PelArt, encontrei uma Companhia em fim de comissão, comandada pelo então Capitão de Artilharia Rodrigues Videira, que logo nos primeiros dias me falou da importância da disciplina em zona de guerra. Logo em seguida veio uma Companhia de Infantaria, comandada pelo saudoso Capitão de Infantaria Assunção Silva, morto em combate, intrépido oficial altamente disciplinado e disciplinador, que foi substituído pelo então Capitão de Artilharia António Carlos Morais Silva, sobre o qual já falei neste blog, como um dos mais brilhantes Oficiais do Exército Português que conheci, nos meus três anos de serviço" (...)


1. Mensagem de hoje, nosso camarada e novo grã-tabanqueiro Vasco Pires, que vive no Brasil [, foto atual, à direita]:
 

Caros Luís Graça e Carlos Vinhal,

Fico muito grato, pela fraternal acolhida nesta Grande Tabanca, que abriga as alegrias e dores de uma geração, batizada com suor sangue e mosquitos, nas águas escuras dos deltas de rios da África Ocidental. 


Mais uma vez, expresso a minha admiração pela sabedoria como toda a equipe editorial magistralmente administra tantas emoções,  por vezes extremadas, de um tempo só cronologicamente distante.

Forte abraço

Vasco Pires



2. Sobre o 
Vasco Pires (e o Manuel Vaz) disse o seguinte o cor art ref Morais da Silva (que eu espero que não furioso comigo por quebrar o sigilo de um mail privado...):

Boa noite: Muito obrigado pelo alerta [, em relação ao poste P10443],  A foto que refere [, vista aérea de Gadamael,] foi cedida ao Martins Vaz que levou a cabo o levantamento da "história" de Gadamael e que, para esse trabalhão, me solicitou a dar-lhe conta do que era Gadamael no período do meu comando em 1971/72.

O Vasco Pires foi o meu alferes artilheiro. Empenhado, eficaz e corajoso. Uma das minhas "muletas" que a minha memória muito preza.

Abraço, 

Morais Silva


3. Comentário do Vasco Pires, em resposta ao anterior:
 

Caro Luís Graça:  
Fico agradecido, pelo teu e-mail. Mais de quarenta anos depois, ler as generosas palavras do seu 'commanding officer', perdoa-me o anglicismo, da estatura do Coronel Morais Silva, é ainda uma forte emoção.

Só me resta também agradecer a tua dedicação, e da tua equipe de editores, que mantem vivo um tempo, que marcou para o bem e para o mal, a vida de tantos de nós.
 
Forte abraço
VP

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Nota do editor:
 
Último poste da série > 21 de setembro de 2012 >  Guiné 63/74 - P10418: Blogoterapia (217): Mário Tito, aliás, Mário Serra de Oliveira, camarada da diáspora, está disponível, em 27 de outubro, no lançamento do seu livro, ou então na 1.ª quinzena de novembro, para estar com os camaradas de cá, para "papiar crioulo" e "parti mantenha e lembra tempo di tuga"

sábado, 29 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10456: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 (Guileje e Cufar, 1969/70) (4): Guileje: abastecimento de água...








Guiné > Região de Tombali > Guileje > Pel Caç Nat 51 (1969/70) > Em 1972/73, a fonte que abastecia o aquartelamento e a tabanca de Guileje, distava  cerca de 4 km.  Ficava no Rio Afiá. No tempo da CART 2140 (1969/70 e do Pel Caç Nat 51, o abastecimento era manual e  fazia-se com recurso a bidões, jericãs e garrafões. No tempo da CCAV 8350, a companhia que retirou de Guileje em 22/5/1973, havia já um bomba de água de água, a motor. Fotos  (nºs 1,2 3, 4) do álbum do Armindo Batata, comandante do Pel Caç Nat 51.

Fotos: © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]


Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAV 8350 (1972/73) >  Em primeiro plano, junto à bomba de água, o Fur Mil Op Esp J. Casimiro Carvalho. A aparente descontração dos militares, em tronco nu, sem armas, a avaliar pela foto, sugere que ir à água era um ato de rotina... Desconhecemos se tanto em 1970 como em 1973, o grupo de serviço à água levava escolta armarda, como mandavam as mais elementare regras de segurança. Parte-se do princípio que sim, não aparecendo a escolta nas fotografia. A população civil abastecia-se também na mesma fonte, no rio Afiá (em 1972/73).

Recorde-se aqui que, antes da retirada de Guileje, em 22 de Maio de 1973, o último abastecimento de água ao aquartelamento e tabanca tinha sido feito em 19 de Maio de 1973. Os guerrilheiros do PAIGC, a avaliar pelas declarações de alguns dos protagonistas dos acontecimentos, prestados no filme-documentário As Duas Faces da Guerra (Diana Andringa e Flora Gomes, 2007), tinham o controlo da fonte a partir dessa data (ou até mesmo antes)...

É estranho que,  desde 1964, altura em que se instalou a primeira subunidade em Guileje, nunca se tenha equacionado (e sobretudo tentado resolver) o problema do abastecimento da água, requisito vital... Coutinho e Lima, nas onze razões que evoca para decidir retirar Guileje, apresenta em 5º lugar "a falta de água no aquartelamento" (Alexandre Coutinho e Lima, Cor Art Ref - A retirada de Guileje: a verdade dos factos. Linda-A-Velha: DG Edições. 2008. p. 78):

(...) "O abastecimento de água era feito a cerca de 4 kms na direcção de Mejo; o último fora realizado na manhã de 19 de maio de 1972 e não mais foi feita nenhuma tentativa, devido à presença muito provável do IN na área e igualmente ao facto da não evacuação das previsíveis baixas, se as houvesse, o que poderia acontecer, com alto grau de probabilidade."É do conhecimento geral que se pode viver durante algum tempo sem comida (esta estava assegurada pelas rações de combate), mas sem água, o tempo de sobrevivência é reduzido" (...).


Foto: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados.




Guiné > Região de Tombali > Guileje > Carta de Guileje (1956) > Escala 1/50 mil > Detalhe: localização provável da fonte de Guileje, a 4 km a noroeste do aquartelamento e tabanca de Guileje, na estrada Guileje-Mejo. Era aqui que em 1972/73 se fazia o abastecimento de água necessário para a vida de 800 pessoas (200 militares e 600 civis).


1. Em 26 do corrente, escrevi ao Armindo Batata o seguinte mail:

Armindo: Não tenho tido notícias tuas... Fui "ressuscitar" e "refrescar" as tuas belas fotos, em arquivo,,, Infelizmente, chegaram-nos, em 2007, via Pepito, sem legendas...Também não tenho nenhuma foto tua, atual... Sei que és um homem discreto, mas gostava que aparecesses mais vezes... Este é também o teu contributo, valioso, para o enriquecimento deste espaço de partilha de "memórias e afetos" dos camaradas da Guiné...Um abraço. Luís Graça


2. O Armindo teve a gentileza de me responder de imediato. Desse mail, pessoal, que muito agradeço e que muito me alegrou, reproduzo apenas o seguinte excerto:

Caro Luís Graça: Grato pelo teu email. De facto não sou frequentador assíduo do blog. (...)

Notei a exagerada adjectivação das fotografias. Agradeço. Irei então um dia destes vasculhar o baú e tentar organizar uma mão cheia delas. Mas a memória das coisas da Guiné perdeu-se quase toda nos 15 ou 20 anos de enterramento. A exumação foi parcial, muito por lá ficou, naqueles 15 ou 20 anos. Um abraço, Armindo Batata. (...).


3. Explicação dada pelo próprio Armindo Batata sobre as fotos em questão, já depois da publicação do poste:



(...) Creio serem oportunos alguns aditamentos no que concerne às minhas fotografias. O abastecimento de água documentado teve lugar no primeiro pontão na estrada Guileje/Gadamael. Era aí que em 1969 nos abastecíamos. A segurança era mantida por um pelotão (que também procedia ao abastecimento propriamento dito) e uma viatura do pelotão de cavalaria (enquanto guarneceu Guiledje). 

No entanto, observando melhor as fotografias, julgo reconhecer um dos alferes da companhia em cima da GMC e alguns dos militares metropolitanos não são do Pel Caç Nat 51. Seriam dois pelotões? É provável, até porque o local está no lado "mau" do quartel (o lado do cruzamento). Na ultimas destas fotografias, o militar metropolitano em pé no solo, é um dos cabos (Pires?) do Pel Caç Nat 51. 

Com o advento da época seca, a água rareava nesse local, sendo então o abastecimento (muito mal) garantido num poço que a população também utilizava e que ficava junto a uns terrenos de cultivo a SW do quartel, do lado "bom" portanto. 

Quando tal acontecia, a água era recolhida mais do que uma vez por dia, já que se esgotava no fundo do poço, e a distribuição da água no quartel era supervisionada por um alferes que, em cima da viatura, e depois de satisfeitas as prioridades (cozinha/padaria), a ía distribuindo em muito parcas quantidades, pelos muitos que dela necessitavam. E não era fácil. (...)
 
 
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10452: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 Guileje e Cufar, 1969/70) (3): As refeições, em Guileje

Guiné 63/74 - P10455: A africanização na guerra colonial e as suas sequelas (2) (Carlos Matos Gomes)



1. Segunda parte do texto sobre tropas locais e africanização da guerra que é a adptação para publicação em livro do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra do texto que serviu de base a uma comunicação num seminário sobre a guerra colonial seus segredos, de autoria de Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (escritor e historiógrafo da guerra colonial), encaminhada para o nosso Blogue por Mário Beja Santos:




A africanização na guerra colonial e as suas sequelas

“Tropas Locais – Os vilões nos ventos da História”

Carlos de Matos Gomes

A situação pós independência das tropas coloniais

O tratamento dado às tropas coloniais após as independências deve ser analisado tendo em conta os objectivos dos novos poderes vencedores. Mesmo considerando a grande carga de popularidade da nova ideologia libertadora anunciada nos programas dos movimentos de libertação, consubstanciada na perspectiva da construção de uma sociedade nova e mais justa, o que é certo é que, ainda mais do que anteriormente, se tratava de um contexto de pós-guerra com vencedores e vencidos, em que os grandes vencidos foram os que integraram as forças especiais africanas.

Relativamente aos africanos que integraram as unidades regulares do Exército e os que pertenceram às milícias, eles foram tratados como os restantes elementos da administração colonial, em regra sem particular violência, pelo menos a que excedesse vinganças localizadas e ajustes de contas.

Já quanto aos elementos das “tropas especiais africanas” a situação foi radicalmente diferente, embora distinta em cada um dos três teatros de operações. Estas unidades passaram de vitoriosas e portadoras de um projeto político, a vencidas e a traidoras de “raça” e de “classe”, sendo que raça estava associada à negritude e africanidade e classe à da exploração colonialista. Entre um Estado português em retirada, com pouca vontade política e quase nenhuma margem de manobra (sobretudo na Guiné e em Moçambique) para se empenhar em seu favor, e movimentos nacionalistas vitoriosos, que os encaravam com os piores olhos, devido não só ao papel que haviam desempenhado durante a guerra mas, também, à ameaça que representavam nos tempos de soberania incerta, que foram os das independências, o espaço de sobrevivência que lhes restou era estreito. Reparemos que, de acordo com as estimativas dos serviços de informações portugueses, existiam 11000 guerrilheiros de três movimentos em Angola, aos quais se podiam opor 37900 efectivos do antigo aparelho militar colonial de recrutamento local, na Guiné existiam 7000 guerrilheiros para 14100 tropas locais e em Moçambique de 6500 a 10000 guerrilheiros da FRELIMO para 30900 efectivos coloniais (Quadro 1).

Os dirigentes dos movimentos de libertação temiam esses militares a dois níveis, em primeiro lugar porque eles podiam constituir uma ameaça militar, um exército oponente e em segundo, mesmo que aceitassem integrar a “nova ordem” eles iriam concorrer com eles pelos lugares de comando e chefia, para os quais estavam tecnicamente mais habilitados. O que era insuportável para os vencedores.

No fundo, eles representavam a realidade que era necessário destruir para construir uma outra e foram o bode expiatório que justificou a violência utilizada pelos vencedores para imporem a sua lei e demonstrarem o seu poder.

Os vencedores, os movimentos de libertação, tinham por objectivo não só criar um novo estado, mas governá-lo. Governar o novo estado era a recompensa natural para quem tinha feito a guerra de libertação.


As contradições do discurso nacionalista e o confronto com a realidade colonial

O período que se seguiu às independências da Guiné, de Moçambique e de Angola e o tratamento dado às “tropas especiais africanas” são um brutal revelador da contradição entre as propostas da utopia de justiça e igualdade e a realidade dos interesses humanos, das contradições do discurso nacionalista, que estão na base da atual situação de África.

O discurso nacionalista africano assentou desde a sua fundação nos anos vinte do século passado numa contradição insuperável: condena a realidade que os nacionalistas não podem (e não puderam) deixar de impor como o seu projeto. Parece complicado, mas não é. É como o discurso de condenação do uso da gravata por alguém que sabe que terá de a usar quando ocupar um certo lugar onde ela é obrigatória.

Mário de Andrade, um dos grandes teóricos do nacionalismo africano, é um bom exemplo dessas contradições. Ele defendia que o nacionalismo africano devia ter como objectivo a defesa da história de África, isto é, a defesa da ideia de que a África tinha uma história antes da chegada dos colonizadores europeus, tinha estruturas sociais, politicas, económicas e afirmava que o nacionalismo devia ter como objectivo restituir a dignidade aos africanos, libertando-os da exploração colonial . Outros autores, como Kwame Nkrumah, influenciado pelas teorias da modernização política, mais devedores da ideologia revolucionária, defendiam que o objectivo do nacionalismo era construir o homem novo e a sociedade nova. Propunha a africanização dos quadros administrativos do estado pós-colonial africano para promover o desenvolvimento económico e substituir as velhas tradições culturais africanas por uma nova elite governamental sucessora e tecnicamente apta para assumir o governo nos países africanos.

A realidade por detrás dos discursos era bem diferente e não podia deixar de o ser. Quanto à historicidade, os dirigentes nacionalistas africanos, maioritariamente urbanizados, destribalizados e ocidentalizados, frutos quase todos da necessidade do colonialismo criar quadros locais para melhorar a eficácia da sua atividade exploradora, aceitaram reescrever a história das colónias que queriam promover a nações de acordo com as fronteiras definidas pelos europeus na Conferência de Berlim, o ato fundador do colonialismo, tipicamente a-histórico, e aceitaram as estruturas politicas europeias do estado-nação. Nenhum propugnou pela reversão da situação pré-colonial de África. A OUA defendeu sempre as fronteiras coloniais.
Mais, os movimentos nacionalistas e os seus dirigentes foram muito activos no ataque às autoridades tradicionais africanas, a pretexto de lutar contra o tribalismo.

Se a historicidade não foi, de facto, um argumento consistente e coerente do nacionalismo africano, a questão da libertação do homem africano da exploração colonial também não era, não foi e não podia ser um objectivo realizável, desde logo porque o subdesenvolvimento de África obrigava os seus povos a integrarem-se no sistema de trocas desigual instituído pelo capitalismo, o que levava os africanos, como ainda hoje leva, a terem de vender o seu trabalho para exportarem matérias primas em bruto e a comprarem produtos elaborados e de alto valor acrescentado. Estavam e estão sujeitos ao capitalismo na sua fase imperialista. A essa exploração geral acrescenta-se a exploração particular feita pelas elites locais sobre a generalidade dos seus povos.

É pois, num contexto em que os novos poderes não têm condições de criar um novo homem africano, nem de impor uma visão histórica pré-colonial nos seus territórios e não podem, nem querem acabar com a exploração, que eles têm de realizar o único objectivo que lhes resta e repetindo: criar um estado-nação e governá-lo. Isto é replicar o que existe um pouco por todo o mundo.

É essa interpretação que levou Hobsbawm a afirmar que o nacionalismo é um projeto político da elite proto-nacionalista, o precursor político da construção do Estado nacional do tipo que, após a Revolução Francesa, se tornou padrão universal em diversos continentes e contextos. “Sem esse projeto político de elites o nacionalismo seria uma palavra vazia de conteúdo”.

Para atingirem este objectivo, os novos poderes tiveram de encontrar soluções para os antigos aparelhos deixados pelo poder colonial, entre eles, os antigos militares das “forças especiais africanas”, aquelas que mais claramente lhes revelavam as contradições e os vazios do seu projeto.

A solução do PAIGC e da FRELIMO para a Guiné-Bissau e para Moçambique foram idênticas: desmantelá-los numa primeira fase e eliminá-los numa segunda. A solução de Angola, onde após a independência os três movimentos iniciaram uma violentíssima guerra civil, a solução foi cada um deles aproveitar esses militares para reforçar as suas forças.

Vejamos o caso particular de cada um.

A Guiné foi, dos três territórios, aquele em que o contexto se apresentava mais favorável aos vencedores, com o PAIGC vitorioso do ponto de vista militar, e portanto pouco aberto à negociações e compromissos. As forças portuguesas, após uma longa guerra travada em difíceis condições, queriam retirar rapidamente. Mas, a Guiné era também o território onde as tropas especiais africanas mais haviam evoluído, a ponto de constituírem um verdadeiro exército organizado em batalhões e companhias, à semelhança das forças armadas portuguesas, com grande experiência de combate e, portanto, representando uma verdadeira ameaça para o novo regime. Consequentemente, este foi impiedoso, localizando, prendendo e executando sumariamente a maior parte dos seus efetivos.

Moçambique apresentava, nas vésperas da independência, um quadro com algumas semelhanças ao da Guiné. O golpe do 25 de Abril trouxe a FRELIMO para a antecâmara do poder, um movimento pouco inclinado a negociar qualquer solução de integração das tropas especiais africanas – parte da “máquina militar colonial” que devia ser desmantelada. A FRELIMO interpretava o seu próprio percurso histórico, em que o chamado conflito interno entre revolucionários e reaccionários se havia saldado pela vitória dos primeiros, cuja vanguarda era representada pelo próprio aparelho militar. As Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM) constituíam o último reduto da pureza revolucionária, que não poderia ser conspurcado pela presença das forças coloniais . De um ponto de vista pragmático, a integração de uma força de várias dezenas de milhares de homens nas FPLM, que teriam entre 7 e 10 mil combatentes, significaria, no mínimo, uma imprudência. As forças africanas comprometidas com o regime colonial passaram a ser tratadas como fazendo parte do «inimigo interno», e como tal seriam «punidas e purificadas», embora a punição e a purificação não tenham atingido os níveis de violência da Guiné.

Em Angola o contexto foi diferente, devido à fragmentação do movimento de libertação em três unidades autónomas, com capacidade militar, embora diferenciada, para conquistar o poder. O facto das tensões político-militares terem prosseguido ininterruptamente, favoreceu a integração dos milhares de homens das unidades especiais africanas, em contraste com a Guiné e Moçambique. Os TE localizados em Cabinda desertaram de imediato com as suas armas para engrossarem as fileiras da Frente de Libertação de Cabinda (FLEC), enquanto os grupos estacionados na fronteira norte (Zaire), compostos maioritariamente por combatentes oriundos do sul, aceitaram o programa de desmobilização e indemnizações oferecido pelas autoridades portuguesas, e regressaram às suas terras, onde grande parte aderiu à UNITA. Os cerca de 3000 homens dos GE encontravam-se dispersos por todo o território de Angola, sobretudo no norte e no leste. Também a estes foi oferecido um programa de desmobilização e indemnizações. Tratando-se de uma força de base étnica, estacionada nos locais de recrutamento, grande parte terá integrado as forças militares da FNLA e do MPLA, consoante se localizavam na área de influência de um ou outro destes movimentos.

A situação em relação aos Flechas era mais delicada, quer porque se tratava da tropa especial com mais experiência de combate e com um passado de operações com grande autonomia, ao serviço da PIDE/DGS, embora houvesse para eles o mesmo plano de desmobilização com indemnizações, as autoridades da transição foram adiando a sua desmobilização porque temiam precipitar uma situação que era já de si altamente explosiva. A previsão das autoridades, nesta altura, era de que três quartos do contingente se integrariam na Unita, um quarto no MPLA, e uma franja insignificante na FNLA, o que não terá estado muito longe da realidade.

Finalmente, a situação das tropas africanas estrangeiras constituiu, o problema mais complexo de resolver, sobretudo no caso dos Fiéis catangueses, que na altura totalizavam cerca de 2400 homens, que permaneceram organizadas e em prontidão de combate depois do 25 de Abril. Várias hipóteses de dissolução desta força foram discutidas pelas autoridades, nomeadamente a sua desmobilização com indemnizações (como sucedia com as restantes forças), a negociação diplomática para o seu regresso ao Zaire ou, ainda, a discussão com as respectivas autoridades para a sua transferência para a Rodésia e África do Sul. Procurando reter os Fiéis em Angola o mais possível, até porque estes ameaçavam, na ausência de soluções alternativas, invadir o Zaire para «morrer em combate contra Mobutu», as autoridades portuguesas negociaram a sua integração no MPLA, que acolheu a perspectiva de bom grado, dada a sua notória inferioridade militar em relação à FNLA. Reforçado por elementos dos GE e dos Flechas, e agora também pelos Fiéis, o MPLA manteve a posse de Luanda e retomou o controlo do nordeste e de Cabinda. Destino idêntico tiveram os Leais, integrados na UNITA e nas tropas sul-africanas no então Sudoeste africano.


Criar e governar um Estado 

O modo como os novos poderes procedentes dos movimentos de libertação lidaram com as estruturas coloniais e com os seus agentes, quer os civis, quer os militares, após as independências de cada uma das ex-colónias portugueses de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, revelou as dificuldades dos nacionalismos africanos do início da segunda metade do século XX em criarem novas realidades políticas essencialmente diferentes das deixadas pelo colonialismo.

Após as independências, fosse por reconhecimento de um facto já internacionalmente reconhecido, como no caso da Guiné-Bissau, fosse por negociação, os dirigentes dos movimentos que haviam conduzido a luta contra o colonialismo português tiveram como principal tarefa criar um estado-nação nos territórios que haviam sido as colónias portuguesas de Angola, Guiné e Moçambique, posteriormente designadas de Províncias Ultramarinas e governá-lo com maior justiça do que a da potência colonial. Esse era o problema que lhes cabia resolver. Para o conseguirem, a primeira questão era instalarem-se o mais fortemente que lhes fosse possível no poder e exercê-lo do modo mais eficaz para o manterem.

Perante este problema, os novos dirigentes foram confrontados com tensão criada por duas forças opostas; de um lado a utopia revolucionária em que haviam fundado as suas justificações para a luta, o que os obrigava a destruir o que existia; e do outro a realidade, a de que Angola, Guiné-Bissau e Moçambique tinham a sua história e essa história resultava em boa parte da acção de uma potência colonial, que tinha implantado estruturas de governo e administração envolvendo nelas pessoas, meios e métodos, que tinha conduzido uma politica de implantação de colonos, da qual havia resultado um determinado tipo de relacionamento.

Em resumo, havia uma realidade que eram as colónias de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, constituídas pelos grupos étnicos habitantes tradicionais dos territórios e pelas comunidades europeias estabelecidas há mais ou menos tempo, por uma administração civil em que, grosso modo, os postos mais elevados e os médios eram ocupados por quadros metropolitanos, ou seus descendentes e os postos médios baixos e baixos eram providos por naturais, urbanizados e assimilados e uma estrutura de defesa e segurança, exército e polícias, onde vigorava o mesmo sistema da administração, quadros superiores metropolitanos, quadros inferiores e efetivos de linha preenchidos por elementos locais.

Esta era a realidade pré-existente aos nacionalismos africanos e às lutas anti-coloniais. Como disse Frantz Fanon , foi o colonizador que fez o colonizado. A luta anti-colonial teve por objectivo declarado derrotar e expulsar o colonizador, criar uma realidade nova, com novas estruturas politicas, novas relações e até um homem novo, liberto da exploração do colonialismo. O objetivo da luta anti-colonial e dos seus movimentos era fundar uma nova sociedade em que a utopia devia realizar-se.

A resultante do sistema de forças entre a utopia revolucionária e a realidade da herança colonial, dificilmente seria positiva, mas, para piorar as hipóteses de sucesso, surgiam ainda a realidade das fraquezas humanas, da ambição dos vencedores ocuparem os lugares dos vencidos e ainda de terem de retribuir os apoios aos seus aliados internacionais, o que, no ambiente de guerra fria da altura, significava servir os interesses estratégicos da União Soviética e, nalguns casos da China.

Os quatro elementos que balizaram as relações entre os novos poderes no período pós-independência em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique são assim: a) uma aliciante ideologia de tipo salvífico, libertador e messiânico, extraída do marxismo que a União Soviética exportou para os países do Terceiro Mundo no pós-segunda guerra; b) uma realidade colonial complexa; c) a ambição e os defeitos humanos, potenciados por uma luta vitoriosa; e) uma sujeição estratégica ao bloco soviético, que fora o aliado mais generoso e interessado das lutas de libertação.

Estes quatro fatores, comuns às três colónias onde ocorreu o conflito armado, embora em graus diversos, produzirão resultados semelhantes: a destruição das estruturas politicas, económicas e administrativas deixadas pela potência colonial, de que a expulsão dos colonos e quadros locais foi o primeiro passo, a ocupação dos lugares de comando da sociedade por elementos dos novos poderes, a aliança estratégica ao bloco Leste e a guerra civil.


A política: condição determinante do resultado da guerra

A leitura dos números de efetivos militares portugueses de recrutamento local nos três Teatros de Operações de Angola, Guiné e Moçambique (Quadro 1), num exercício a que nos estudos de situação das escolas militares de estado maior se chama “Análise do Potencial Relativo de Combate”, poderia levar à conclusão de que os militares africanos ao serviço das forças armadas portuguesas e da politica do governo de Lisboa, estavam em clara vantagem relativamente às forças de guerrilheiros. Três vezes e meia superiores em Angola, duas vezes na Guiné, três vezes em Moçambique. Em termos de quantidade e até em qualidade (organização, treino, enquadramento, equipamento) estas forças eram manifestamente superiores e podiam ter mantido o conflito numa situação de nem paz nem guerra, nem vitória nem derrota. Podiam, no mínimo, ter negado a vitória aos seus oponentes.

Aparentemente assim era, mas a guerra é antes de mais uma questão política e é essa a grande lição que podemos retirar da forma como a guerra colonial foi resolvida. O resultado da guerra colonial é a demonstração eloquente de não haver lugar a vitórias militares na guerra. O resultado da guerra colonial portuguesa foi determinado pelas condições políticas em que ela foi travada. Condições políticas internas e externas. Internamente, a guerra tornara-se um fardo insuportável para setores cada vez mais alargados e mais importantes da sociedade, que se conjugaram nos quadros intermédios das forças armadas, proporcionando-lhe o ambiente e as condições para derrubarem o governo que defendia o colonialismo através dela. Internacionalmente, o colonialismo era, no pós-segunda guerra, uma situação política insustentável. Um continente derrotado e devastado como era a Europa do pós-guerra, não podia manter colónias contra a vontade e os interesses das potências vencedoras, que apoiaram ativamente a emergência de líderes locais para substituírem os poderes coloniais, na convicção de que aqueles seriam mais fáceis de controlar e de, através deles, obterem maior controlo das riquezas (o que se veio a verificar), ou de ganharem vantagens estratégicas (caso da URSS).

O colonialismo português era, neste contexto, duplamente anacrónico, na medida em que durante o período áureo do colonialismo, da Conferência de Berlim à II GM, não dispôs de capacidade para transformar as matérias primas de África, por falta de industrias instaladas na metrópole e, a partir da II GM, era anacrónico na medida em que ficou numa situação de oposição às políticas dos seus principais aliados, a começar pela super-potência da sua zona, os EUA. Acresce ainda que a incompetência da condução da guerra feita pelos governos de Salazar e de Marcelo Caetano, que esgotaram os seus quadros militares em comissões sucessivas e não souberam utilizar de forma económica os seus recursos.

A africanização da guerra foi uma solução conhecida, que adiou a solução final, mas também a dificultou, e, acima de tudo, criou as condições para milhares de homens que serviram as forças portuguesas terem por isso sofrido torturas e mortes com sofrimentos horrorosos, que não dignificaram também os vencedores. Eles foram vítimas de um processo político que os ultrapassou.


A violência como vulgaridade no processo histórico no período pós independência

A história do modo como os novos poderes lidaram com as estruturas coloniais, incluindo os elementos locais que pertenceram às estruturas civis e militares criadas por Portugal, enquanto potência colonial, pode resumir-se na exclamação de Breno aos romanos, ao atirar a espada para cima da balança em que se pesava o ouro para pagar a partida dos gauleses: Vae victis! – Ai dos vencidos. Nada de novo em termos históricos, pois apenas confirma comportamentos e atitudes recorrentes. Não há, pois, nenhuma moral a tirar, apenas uma conclusão: a de que a racionalidade das decisões dos homens é determinada em primeira instância pelas relações de força. Isto é, que o poder é a primeira fonte da razão e que a consideração pelas consequências das decisões está sempre sujeita ao contributo que estas podem dar ao exercício do domínio.

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Bibliografia:

Coelho, João Paulo Borges (2002) “African Troops in the Portuguese Colonial Army, 1961-1974: Angola, Guinea-Bissau and Mozambique”. Portuguese Studies Review, nº10, 2002.

Telo, António José, “Campanha de Moçambique”, in Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes (org), Portugal e a Grande Guerra. Lisboa: Diário de Noticias, 2003.

Rocha, Edgar (1977) “Portugal, anos 60: crescimento económico acelerado e papel das relações com as colónias”, Análise Social, VOL. XIII (51), 3.°, 1977.

Estado-Maior do Exército, “Dispositivo das Nossas Forças”, Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 2º, 3º, 4º Vols. Lisboa: EME, 1989.

Andrade, Mário Pinto de, Origens do Nacionalismo Africano. Lisboa: D.Quixote, 1998.

Birmingham, David, Kwame Nkrumah: The father of African nationalism. Ohio: Ohio Press University, 1998.

Hobsbawm, Eric J., A Era dos Extremos. São Paulo: Companhia das Letras, 2ªed, 1995.

Fanon, Frantz, Os Condenados da Terra. Lisboa: Ulisseia, 1961
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Nota de CV:

Vd. poste de 27 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10446: A africanização na guerra colonial e as suas sequelas (1) (Carlos Matos Gomes)

Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)

1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (13)
O Bóia

Já lá ia mais de um ano de estadia na província.

A farda que usávamos era amarela, começando a aparecer tropa com roupa de diferente cor, um verde azeitona. Diziam que era feita de tecido melhor e que se adaptava mais ao clima tropical, podia ser verdade, mas estes novos militares logo foram baptizados com o nome de “Periquitos”. E alguns desses militares podiam ser pessoas com bastante senso nas palavras e com escola superior, mas isso não interessava nada, tudo o que pudessem dizer, não valia e não tinha qualquer senso, pois vinha da boca de um “Periquito”.

O Cifra tinha quase a certeza, mas podia estar enganado, de quem baptizou estes novos militares, foi o cabo “Bóia”, pois um dia quando chegou ao aquartelamento um Unimog carregado com alguns tropas vestidos com a farda verde azeitona, quando esses militares saltaram para o chão, o cabo Bóia, disse: Oh raio, parecem periquitos!

O nome pegou.

O cabo Bóia, em Portugal, era da região do Alentejo, falava devagar e com um sotaque bastante popular, que só ele sabia, era difícil de imitar. O seu vocabulário tinha um conjunto de palavras que só ele e mais uns quantos entendiam, e era conhecido por esse nome porque sempre que se aproximava a hora da refeição, dizia: Hei, compadres, está na hora da bóia.

A bóia, na sua linguagem, era a comida. Tinha um grande bigode, retorcido nas pontas, era tropa dos velhos, pois pertencia à tal companhia onde o capitão batia nos soldados e furriéis.

O Curvas, soldado atirador, alto e refilão, um dia na altura da refeição do meio dia, pega no recipiente onde vinha a comida para a mesa, que parecia uma bacia em alumínio, diz a respeito do tal capitão: Ca granda filho da puta! Se fosse comigo, enfiava-lhe com esta bacia cheia de merda nos cornos! Cabrão! Era assim o homem. Quando se lhe desprendia a língua, era melhor fugirem!.

Para nossa salvação andava sempre por perto o Trinta e Seis, soldado telegrafista, baixo e forte na estatura, que logo lhe disse:
- Cala-te homem de Deus, e tem respeito, pois isto é uma mesa onde todos comem.

Mas adiante, vamos à história. Havia uma pequena ponte, um pouco distante do aquartelamento, quem ia para o interior, creio que na estrada que ia dar à povoação de Cutia, que era guardada durante o dia por uma secção. Na dita altura das chuvas formava-se um grande pântano a que os militares chamavam bolanha sul, com alguns quilómetros de extensão, mas onde se transitava pela estrada de terra, que era um pouco mais alta, onde a água tinha pouca ou quase nenhuma altura, e quem conhecia o caminho ia e vinha sem qualquer problema. A zona onde estava localizada a ponte era seca.

Estes militares levavam comida para todo o dia, e para lá iam de Unimog, onde tinham uma espécie de pequena fortaleza montada, que era um abrigo feito com sacos de terra, coberto com uma estrutura de alguns troncos de palmeira e algumas folhas de zinco, que por sua vez estavam também cobertos de terra. Ali passavam o dia, e entre outras coisas, identificavam quem passava na ponte. Tinham aparelhagem de rádio e estavam em contacto, se fosse caso disso, com o aquartelamento.

Não muito distante havia uma pequena aldeia de naturais que trabalhavam nas terras pantanosas, ou seja a bolanha do arroz e criavam alguns animais, eram pessoas pacatas, pelo menos pareciam, não havia pessoas novas, eram só velhos e crianças, mesmo crianças. Havia até alguns militares que queriam fazer esta segurança à ponte, pois no regresso traziam aguardente de palma, que compravam, ou talvez não, na referida aldeia. O Bóia foi destacado, nesse dia, para ir com outros militares prestar segurança à referida ponte.

Tudo normal.

Chegam, inspeccionam o local, normalmente deixavam um sinal em certos pontos estratégicos para verem se alguém tinha usado a ponte ou a pequena fortaleza, durante a noite. Nesse dia, sim, tinham usado.

Havia sinal de pegadas, de sandálias que os militares conheciam, pois faziam parte da farda dos guerrilheiros, logo muito conhecidas.

Ficam com cuidado redobrado, comunicam ao aquartelamento o sucedido e recebem ordens de se manterem de olhos bem abertos, que alguma tropa iria já para lá, para reforçar a zona da ponte e talvez fazer uma patrulha mais aprofundada na zona.

O Bóia, com o cigarro no canto da boca, com o seu ar bonacheirão, com a mão direita, pois a esquerda segurava a G3, tira o cigarro da boca, molha os dedos com saliva, coloca de novo o cigarro na boca e retorcendo o seu grande bigode, diz:
- Deixa lá ver o que estes “compadres” andaram por aqui a fazer durante a noite?

Enquanto os militares se encontravam quase todos juntos a discutir a situação, o Bóia com passo lento mas firme, começa a atravessar a ponte de G3 na mão, pronta a disparar, quase com se andasse à caça aos coelhos, em alguma herdade lá no seu Alentejo, quando mais ou menos ao meio, mas mais perto do final, sente qualquer coisa a tocar-lhe a perna e a prender-lhe o movimento.

O pobre do Bóia, não viu mais nada. Sem querer accionou um engenho explosivo que lhe destruíu quase todo o corpo.

Morreu, tendo o seu corpo sido recolhido aos bocados. Mais dois soldados foram atingidos com alguns estilhaços. Quando chegaram os reforços, que aumentaram o andamento ao ouvirem o rebentamento do engenho explosivo, depararam com toda esta cena, onde parte dos soldados choravam e tentavam recolher os restos do corpo da pessoa a quem carinhosamente chamavam Bóia.

Quando chegaram ao aquartelamento, com o resto do corpo do Bóia, o Cifra tinha acabado de decifrar uma mensagem dirigida à companhia a que pertencia o defunto Bóia, comunicando que se deviam apresentar num dos próximos dois dias no comando territorial da provincia, na capital, a fim de embarcarem para Portugal, pois tinham completado o tempo de serviço, que na altura eram dois anos. Esperariam pela chegada da força militar que os vinha substituir naquele cenário de guerra, que tinha vindo no mesmo barco que os havia de levar de regresso a Portugal, levando o defunto Bóia dentro de um caixão.

Era esta a guerra onde estávamos envolvidos, onde não havia regras de sobrevivência, o militar estava exposto até ao último minuto da sua estadia, pois era substituído por outra força militar, em pleno cenário de guerra, não tinha nenhuma chance, pois mesmo que houvesse leis, não havia qualquer meios na capital da província de se restabelecer, uns dias antes de regressar à Metropole, como então se dizia.

Alguns apresentavam-se à família, no cais da Alcântara em Lisboa, com a roupa rota e suja, as botas também rotas, com o cabelo comprido, com grandes barbas e bigodes, os dentes negros, mas mesmo negros, vários insectos minúsculos em determinadas zonas do corpo, cara de selvagens, falando pouco, desconfiados, deprimidos, olhando sempre para o chão, algumas encurrilhas na testa, em sinal e na expectativa do pior, não queriam que lhes tocassem no corpo, admirados por verem tantas pessoas trajando civilmente, pensando que ainda estavam debaixo de um abrigo, que os guerrilheiros iam atacar, que o arroz que iam comer lhes fazia os intestinos andarem parados por dias, com dores constantes na região do estômago e que só de facto algum excesso de álcool, entre outras coisas, lhes fazia ter uma vida considerada “normal”.

A alguns, todos estes sintomas não mais sairam do seu corpo e passado quase cinquenta anos, os que ainda estão vivos, que são homens com um “H” muito grande, apresentam por vezes todo este aspecto, também por vezes alteram um pouco a sua voz de revolta, e algumas pessoas, das novas gerações, onde se incluem muitos políticos, ao verem-nos, viram a cara, riem-se baixinho, e dizem:
- Deixa lá esse desgraçado falar, pois aquilo é só stress e saudades da guerra.

Oxalá que o Curvas, alto refilão, ainda esteja vivo, mas que não leia este texto, porque depois de ouvir todas estas considerações do amigo e companheiro Cifra, é capaz de vir por aí e matar tudo e todos, como ele dizia, pois era a pessoa que mais bem preparada estava, naquele tempo, para enfrentar aquele conflito, pelo menos na linguagem.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10438: Do Ninho D'Águia até África (12): O Madragoa (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10453: Parabéns a você (475): António Bastos, ex-1.º Cabo do Pel Caç 953 (Guiné, 1964/66) e Manuel Moreira Vieira, ex-1.º Cabo da CART 1746 (Guiné, 1967/69)

Para aceder aos postes dos nossos camaradas António Bastos e Manuel M. Vieira, clicar nos seus nomes
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10441: Parabéns a você (474): Luís Borrega, ex-Fur Mil da CCAV 2749 (Guiné, 1970/72)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Guiné 63/74 - P10452: Álbum fotográfico de Armindo Batata, ex- comandante do Pel Caç Nat 51 Guileje e Cufar, 1969/70) (3): As refeições, em Guileje





Guiné > Região de Tombali >  Guileje > Pel Caç Nat 51 (jan 969/ jan 1970) >  Mais quatro notáveis fotos, a preto e branco, do álbum do nosso camarada Armindo Batata, ex-comandante do Pel Caç Nat 51... Na época, o Pel Caç Nat 51 esteve adido à  CCAÇ 2316 (mai 1968 / jun 1969)  e à CART 2410,  os Dráculas (jun 1969 / mar 1970). 

De cima para baixo, são fotos nº 15, 12, 13 e 14.  As fotos documentam  as "refeições em Guileje", de acordo com a anotação que vem no ficheiro cedido ao Núcleo Museológico Memória de Guiledje,  refeições essas que eram tomadas no abrigo ou no espaço reservado ao Pel Caç Nat 51.  O pelotão tinha um fogareiro a petróleo que possivelmente só servia para aquecer a comida ou confecionar refeições ligeiras. No essencial, a  confeção das refeições deveria estar a cargo da cozinha da unidade de quadrícula de Guileje (primeiro,  a CCAÇ 2316 e,  depois,  a CART 2410).

O pessoal africano do pelotão devia ser  desarranchado, como acontecia com a generalidade das unidades compostas por tropas do recrutamento local. As fotos não trazem legenda, pelo que não nos é possível identificar os militares que aqui aparecem, com exceção do alf mil Batata (foto nº 12, fardado, com galões de alferes, e de óculos, e nº 15, sentado, em tronco nu, de óculos). O pessoal metropolitano era, por sua vez, de rendição individual.

Fotos: © Armindo Batata / AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Todos os direitos reservados [Fotos editadas por L.G.]

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P10451: (Ex)citações (196): Um funeral balanta, em Barro, no tempo da CART 2412 (1968/70) (Adriano Moreira)

1. Comentário do Adriano Moreira (Admor) ao poste P10442:

[O Moreira foi Fur Mil Enf da CART 2412, Bigene, GuidajeBarro, 1968/70, e está inscrito na Tabanca Grande desde 30 de maio de 2012; foto atual à direita]


O único enterro em que fui chamado a participar ou convidado aconteceu em Barro.

Um homem grande,  de etnia balanta,  que se chamava Fonseca, meu cliente certo da enfermaria,  fez questão ou a sua família que eu assistisse ao seu funeral.

Assim, quando cheguei à tabanca,  na casa onde ele morava estava o Fonseca sentado numa poltrona de veludo vermelho, bastante coçado,  e com duas ou três notas enroladas e metidas nos lábios.

Quando foi a enterrar ao lado da sua casa,  foi precisamente num buraco aberto na vertical e na mesma posição de sentado em que estava na poltrona, que devia de servir para estas situações.

Não sei se a sua posição respeitava alguma orientação, mas como os balantas eram animistas acho que não devia ter qualquer sentido obrigatório, como Meca para os muçulmanos.

Fiquei bastante surpreendido com estas situações, mas não fiz quaisquer perguntas, nem na altura nem depois, o que realmente foi pena, pois poderia agora estar mais elucidado sobre o assunto.

Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira



Guiné > Região do Cacheu > CCAÇ 3 > Barro > 1968 > Espaldão do morteiro 81, guarnecido por dois Jagudis, de etnia balanta.

Foto: © A. Marques Lopes (2007). Todos os direitos reservados.

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Nota do editor: