terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10784: (Ex)citações (204): Razões portuguesas e razões guineenses (João Meneses / Cherno Baldé)

1. Resposta do João Meneses [, fo to ao lado, ] ao comentário do Cherno Baldé ao poste P10769 (*)


Data: 7 de Dezembro de 2012 23:54

Assunto: Resposa a comentário de Cherno Baldé


Caro Luís e Carlos

Deixo exclusivamente ao vosso critério, em vez de o fazer directamente, a publicação da resposta (a seguir) que gostaria de dar a Cherno Baldé, critério que são vocês os únicos indicados para decidir.

Na actualidade:

1 - Sempre fui e serei Português (com muito orgulho)

2 - Cherno Baldé é Guineense (certamente com muito orgulho)
No tempo da guerra éramos todos Portugueses, independentemente de conceitos diversos sobre o tema.

Segue a minha resposta.

Um grande abraço, Luís e Carlos

2º TEN FZE João Carvalho Meneses
_________________________
Em resposta a Cherno Baldé [, foto à direita] (**):

Desejo-lhe a melhor sorte da vida. Não o conheço a si, nem me conhece igualmente a mim, como prova o seu comentário. Logicamente que o Zé Macedo nada tem a haver com isto, conforme esclarece, e oportunamente, o Luís Graça, estando ele totalmente isento, por direito, e como tal sugiro que lhe apresente desculpas, ou admita que se enganou. Bastava que antes de escrever, tivesse lido com mínima atenção. Levou-o simplesmente o ataque. Do que escrevo, sou eu o único responsável, conhecendo que por vezes, para que todas as sensibilidades fiquem esclarecidas, para dizer uma única palavra, deva fazer uma explicação do sentido que essa mesma palavra pretende.

Se esse comentário se dirigiu ao meu artigo, certamente que sim, caro Baldé. Mas ataque, o conceito e não a pessoa. Não distingo, nem sequer admito que eu o pudesse fazer, entre o PAIGC e o POVO da Guiné Bissau, dado que num estado democrático, é o Povo que elege (ou deve eleger) qual o partido ou os partidos que o devem governar. As lutas internas dos partidos deveriam só a eles dizer respeito, não tendo o direito de fazer sofrer um Povo inteiro, ao tentarem impor-se. Posso extrapolar para qualquer povo. Acrescento qu, e para além da linha PAICG, existem outras, e que é o povo que as escolhe. Não entro, aqui, em análises políticas, por saírem fora do interesse deste espaço e do meu próprio.

Assim, com esta introdução, afirmo-lhe que o PAIGC não tem a importância que o povo tem. Só o tem, se for eleito e o servir na realidade. Vê qual a ordem de prioridades?

Sobre a existência de lutas tribais, já Amílcar Cabral, inconfesso defensor da Guiné e seu Povo, reconhecia essa evidência, derivada de variadíssimos factores, entre eles as diferentes crenças religiosas e comunicação. Verifique-se primeiro: O território da Guiné Bissau diminui 1/3 entre a maré vazia e a cheia. As vias de comunicação são dificílimas de implantar dado que, de um ponto a outro, se tem que contornar bolanhas extensas, aumentando exponencialmente as distâncias. A comunicação entre as diversas ilhas, necessitariam de um serviço minimamente eficiente de meios de transporte, marítimos e fluviais. Os recursos naturais têm limitados meios de produção, etc, etc, que saberá mais aprofundadamente do que eu.

Quanto à droga, está à vista. É organizada por estrangeiros que se servem da Guiné, mas que acabam por os envolver. Não são os Guineenses que plantam, fornecem e distribuem a droga. O dinheiro fácil, corrompeu alguns que, por razão da movimentação dos capitais envolvidos, tentam impor à política a facilitação do pretendido. Estudos internacionais sobre este problema já reconheceram a sua existência, a razão da mesma e o descontrolo.

Quanto ao "está-lhes no sangue", referi-me às evidências do que tem acontecido nas classes dirigentes, até à data, não desde a autoproclamação da Independência, mas a partir da saída dos Portugueses.

Repare, tudo isto, à revelia do Povo.

Dou por finda a minha explicação sobre o que penso da Guiné, desejando a todos os Guineenses que consigam entender-se e estabilizar, para que o Povo tenha a legítima dignidade que ele merece.

Não me leve a mal que escreva o que penso. Não pretendo ofender nenhuma sensibilidade. No tempo em que estive na Guiné morreram Portugueses de várias cores incluindo camponeses.

Com respeito

João Carvalho Meneses

______________

Nota do editor:


(*) Vd. poste de 7 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10769: Tabanca Grande (371): João Carvalho Meneses, ex-2º TEN FZE RN, DFE 21, 1972, grã-tabanqueiro nº 591

(...) (i) Comentário de Cherno Baldé,com data de 7/12/2012:

Caro João Meneses,

"(...)aquela terra está ainda muito longe da calma e estabilidade, com sucessivos golpes. Infelizmente está-lhes na massa do sangue, tanto pelas guerras étnicas, como pelo dinheiro fácil - a droga, como também por ganâncias pessoais".

Esta frase cega, que não faz nenhuma diferença entre o PAIGC e os cidadãos da Guiné-Bissau, vinda de um português de origens caboverdianas e que fez a guerra no território que hoje considera violenta e cujos habitantes têm a violência no sangue, é no mínimo infeliz e lamentável.

O FZE do DFE, Tenente Meneses, hoje advogado, tinha a obrigação de conhecer bem a história da Guiné, ou melhor, da Guiné de Cabo-Verde e saber quem, na verdade, semeou, ao longo dos séculos nos rios da Guiné, ou ainda trás no sangue os germes da intriga étnica e da violência.

Tanto assim que o próprio nos esclarece melhor quais as suas origens e a vocação da sua familia:

"(...) Meu Bisavô, meu Avô também morreu em Angola, etc. Família, sabes. (...)".

Afinal, quem trás a guerra e a violência na massa do sangue?

São os Guinenses, concerteza. Quem havia de ser?

Cherno Baldé. (...)

(...) (ii) Novo comentário do Cherno Baldé, com data de 10/12/2012

Caro Luis e amigos da TG,

Desculpem esta recepção um tanto crispada ao João Meneses que confundi com o José Macedo, mas a intenção foi chamar a atenção sobre a ambiguidade de certas frases e discursos que, não sendo intencionais, acabam em generalizações abusivas.

Na Guiné nunca houve guerras étnicas, pois aquilo que se considera como tal, por exemplo entre fulas e mandingas, na minha opinião, era muito mais que isso, porque dificilmente se poderá tomar cada um destes grupos simplesmente como uma etnia. Mas isto é outra história.

Desejo boas vindas ao amigo João Meneses a nossa Tabanca Grande porque eu sei que ele gosta da Guiné e dos Guineenses e aproveito dizer-lhe que tivemos familiares integrados nos FZE (não sei se no 21 ou 22) dos quais me lembro do Sedjali Embaló, preso e morto nos primeiros anos após a independencia.

Cherno Baldé

(**) Último poste da série > 3 de dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10757: (Ex)citações (203): O "fado das comparações"... ou o humor sarcástico do Cancioneiro do Niassa(Luís Graça)

Guiné 63/74 - P10783: Blogoterapia (219): Reflexão sobre a nossa condição militar (António Melo, camarada da diáspora)

1. Mensagem, de 1 do corrente, do António Melo (ex-1.º Cabo Rec Inf,  BCAÇ 2930, Catió e QG, Bissau, 1972/74), camarada que vive em Espanha [, foto à direita]:
Hoje quero falar um pouco sobre as verdades do passado, presente e futuro dos ex-militares que na sua juventude partiram para uma aventura desconhecida, que para uns foi enriquecedora, para outros nem fu nem fa, para outros amarga e para alguns, não poucos , foi o final da sua curta vida (e que aqui rendo a minha homenagem a esses valorosos caídos).

Hoje todos nos somos  esquecidos  pela classe politica que nos governa.
  
Mas vou explanar-me sobre o fictício mas que foi um extrato retirado de cada um de nós, ex-militares, e que ao lê-lo cada um extraia a parte  que lhe corresponde da verdade.

E que assim este texto seja de todos nós ex-soldados do Exército, Marinha ou  Força Aérea,  quer tenham sido praças, sargentos ou oficiais, hajam servido nos comandos, fuzileiros, paraquedistas ou tropa regular, e de todos os que estavam na frente de combate e dos que estavam na cidade no ar acondicionado como assim já aqui li algumas vezes.

Mas que,  sem esses que estavam na cidade,  ns os que estávamos na frente de combate não sobreviviríamos porque nos faltaria a logistica de apoio, como as munições, os conbustíveis  para a viaturas, os alimentos,  a organização de comando e o correio das nossas famílias que tanto apreciávamos e que era para nós o ar que necessitávamos para continuar a viver e não me quero alongar mais porque era incomensurável o labor que faziam para podermos  sobreviver.

E que ao ler este,  saibam que aqui inclu0 a todos que tenham servido Portugal em Cabo Verde, Guiné, São Tome e Príncepe, Angola, Moçambique, Índia, Macau ou Timor,  para todos os meus respeitos.

Um dia partia um jovem vestido de verde, azul ou branco,  com sua mochila ao ombro e uma mala na mão,  caminhava com passo seguro,  cabeça baixa e por seu rosto lhe caíam as lágrimas e sem olhar para trás,  pois nesse momento não queria ver o rosto dos que deixava destroçados e de rastros, sua mãe,  seu pai, seus irmãos,  tios,  primos,  vizinhos e amigos, e que que aos gritos pronunciavan o seu nome.

 Partia em direção à sua unidade  e no dia seguinte era o embarque  rumo a África.
  
No dia seguinte o embarque e a viagem. Para África,  claro está.   

E cada um que idealize a sua,   e já chegados  ao seu destino  lhe foi dado o seu lugar na unidade que lhe tocou, para uns um aquartelamento adequado,  para outros umas tabancas e ainda para outros uma árvore, uma arma, uma pá e uma pica e agora...  vai à vida que a tropa manda desenrascar.

Já acomodado a sua nova vida, pára. E pensa um pouco.

Mas de verdade,
 o que faço eu aqui???????'??????????????? 
aqui nao perdi nada!!!!!!!!! 
por isso nada posso encontrar!!!!!!!,
lutar, combater, morrer ou ser morto, porquê? 
se esta gente não me fez nada,   porque tenho eu que lutar? 
a mim sempre me ensinaram que tens que lutar pelo que é teu,
e isto não é meu? 

E de momento voltou à realidade e se deu conta que havia passado quase uma hora, rebobinou os seus pensamentos e encontrou a resposta:
- Sim,  é verdade,   tenho que combater, lutar,  porque e a minha vida é essa,  sim que é minha e está aqui.

Assim foram passando dias, meses e anos,   lá foi vivendo, lutando,  recebendo o correio que tanto adorava da família. E asim passa o tempo e, quase chegada a hora do regresso, ,cada vez e maior o aperto que sente dentro de si porque as saudades são muitas e quer ver a família e agora que lhe restam poucos dias para os ver adopta todas as cautelas para que nada lhe passe  porque lhe vem a mente alguns dos camaradas que como ele para ai foram e ja nao estao partiram para uma viagem sem retorno uns por acidente outros por enfermidade e outros na frente de combate.
´
Se termina o tempo e  são substituídos por outros,   chega a hora do regresso e lá vem o jovem.  Ao chegar é recebido por sus familiares e amigos,  agora já um homem curtido,  endurecido pelo que representou aquela estadia em África. Os primeiros dias vai visitando os sítios que costumava frequentar antes da vida militar, em alguns casos entra a medo,

Não  é medo que lhe possam fazer mal,  mas porque não quer aceitar a realidade que alguns dos amigos vizinhos ou conhecidos ou até   pessoas com que pouco havia tratado,  também já partiram uns que morreram,  outros que imigraram,  mas assim é a vida e,  aos poucos, vai assumindo a realidade porque quando partiu deixou uma realidade e agora encontra outra.

Dias depois começa a pensar o que vai fazer da nova vida pois nada é o mesmo,  a empresa onde trabalhava fechou as portas e ele tem de tomar uma decisão.

De todos esses que regressaram uns continuam seus estudos que tiveram que interromper para cumprir o serviço militar,   outros  voltam aos mesmo posto de trabalho que deixaram,  outros que não tiveram tanta sorte e a sua cabaça não aguentou  foram para lá uns homens com todas as faculdades mentais intactas e voltaram feitos farrapos, a sua cabeça já não é a mesma e se lançaram às ruas da cidade uma vida sem rumo. Outros há que seguiram a vida militar, outros ainda deles optaram pela imigração e assim alguns se encontram hoje repartidos pelos quatro cantos do mundo desde a Patagónia ao Canada, desde as gelidas terras do norte da Europa  África, Austrália e países asiáticos,  nunca mais se voltaram a ver aqueles que um dia e por determinado tempo foram camaradas,  viveram melhor ou pior, mas da mesma maneira sofreram choraram ou riram juntos.

Formaram um lar,  casaram, vieram os filhos e os netos,  hoje gente com o cabelo prateado, vamos sendo cada vez menos.

Agora, caros amigos, tabanqueiros,  deram-nos estes avanços técnicos  e estamos aqui reunidos ou atabancados,  como queiram.

Aquele jovem és tu,   sou eu e somos todos. Espero um dia poder estar num conivio e que possamos falar de coisas alegres e tristes mas isso só a vida nos dirá o que nos reserva.

Um grande abraço a todos e para ti amigo, Carlos, um muito especial. António Melo
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10534: Blogoterapia (218): Voltei ao Éden (Felismina Costa)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10782: Álbum fotográfico do ex- fur mil José Carlos Lopes, amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (2): Quem seria o "anjo do céu" que veio na DO 27, nº 3331, buscar feridos a Bambadinca ? Pede-se a ajuda do Humberto Reis, do João Carreira Martins, do Abel Rodrigues, da Giselda Pessoa, da Maria Arminda, da Rosa Serra, do Jorge Narciso...


Foto nº 38 -  A (pormenor)


Foto nº 38

Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) / CCAÇ 12  (1969/70) > Pista de aviação de Bambadinca... Evacuação de feridos > Em primeiro plano, uma enfermeira paraquedista (cuja identidade desconhecemos, mas esperemos que possa ser revelada por uma das suas camaradas), e o fur mil enfermeiro da CCAÇ 12, o João Carreiro Martins, o nosso querido "Pastilhas"... A seus pés um ferido, com a cabeça engessada...



Foto nº 36 - A (pormenor)


Foto nº 36-B (pormenor)


Foto nº 36

Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) / CCAÇ 12 (1969/70) > Pista de aviação de Bambadinca... A Dornier 27, nº 3331, está pronta a descolar, levando não um mas dois feridos... Ou é ilusão de ótica ?

Na foto 36, vê-e ao centro o fur mil op esp Humebrto Reis (2º Gr Conmb / CCAÇ 12), e à esquerda o oficial de dia, que me parece ser,  visto de costas, o alf mil Abel Maria Rodrigues, nosso grã-tabanqueiro, tal como o Humberto. Estendido na maca, na parte de trás,  está o ferido com a cabeça engessada, e no cockpit, no lugar do copiloto (ou do mecânico),  parece-me "ver" outro ferido, africano...

Serão militares da CCAÇ 12,  serão civis,  ou serão prisioneiros de guerra ? Os nossos feridos graves, em combate, eram sempre ou quase sempre helitransportados a partir do mato... Não é aqui o caso... Estes feridos são evacuados a partir de Bambadinca... Não poderiam ser seguramente os feridos das duas minas anticarros, que explodiram em 13 de janeiro de 1971, à saída do reordenamento de Nhabijões... Nessa altura, o fur mil Lopes já estava longe,  na metrópole, há 7 meses... Tanmbém não poderiam ser prisioneiros da Op Lança Afiada, março de 1969 (Nessa altura ainda estavámos na matrópole, nós, malta da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12)...

Na ausência de legendas, neste álbum do José Carlos Lopes [,foto à esquerda, numa rara foto, de bigode, em Bambadinca, possivelmente já  na segunda metade de 1969 ou princípios de 1970,] e não querendo maçá-lo ao telefone a esta hora, só espero que alguém de Bambadinca desse tempo me ajude, a começar pelos camaradas da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, aqui referidos e retratados, o Humberto Reis, o Abel Maria Rodrigues (?) e o João Carreiro Martins...

Espero também que as nossas queridas enfermeiras paraquedistas, as camaradas Giselda Pessoa, Rosa Serra e Maria Arminda (ou o melec Jorge Narciso, que é do nosso tempo de Guiné) me consigam também identificar a enfermeira paraquedista da foto nº 38...que nesse dia (não sabemos qual, mas só estar compreeendido entre finais de julho de 1969 e finais de maio de 1970) foi até Bambadinca buscar feridos graves...

Já falei ao telefone com o meu camarada Lopes, de resto meu vizinho (, mora em Linda a Velha, concelho de Oeiras,) e embora ele não visite o nosso blogue (por um questão de princípio e de higiene mental, não quer voltar a reviver esses tempos), está disposto a partilhar mais fotos do seu álbum e da sua coleção de diapositivos com os amigos e camaradas da Guiné que integra a nossa gloriosa e fraterna Tabanca Grande.

Prometi ir um dia destes fazer-lhe uma visita. Soube por outro lado qual era a sua verdadeira especialidade: Contabilidade & Pagadoria, um delicioso nome arcaico ou castrense para tesouraria... Até lá,  o meu reconhecimento e agradecimento, em nome de toda a nossa Tabanca Grande. (LG)

Guiné 63/74 - P10781: Notas de leitura (438): "A Curva do Rio", de V. S. Naipaul (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Setembro de 2012:

Queridos amigos,
Proponho, sem qualquer hesitação, que leiam esta obra-prima de V. S. Naipaul. Parece não haver dúvidas que se passa no ex-Congo Belga, a arquitetura do romance é uma perfeição, a linguagem do Prémio Nobel da Literatura de 2001 é contida, elegante, as caraterizações dos personagens são soberbas. Temos aqui a metáfora do homem novo africano e de um presidente déspota caprichoso, que todos temem. Estamos num país que procura arrasar os valores coloniais, a religião importada, mas que se transforma numa fábrica de corrupção em que as propriedades mudam de mão e toda a gente vive uma vida instável enquanto as execuções se multiplicam. Não será que ao lermos “A Curva do Rio” não nos vem à mente outros dramas africanos?

Um abraço do
Mário


A curva do rio

Beja Santos

É o retrato de uma África em pós-independência, um país algures. Há uma cidade junto a uma curva do rio e alguém, de origem indiana, de nome Salim, adquire um negócio, não tem medo da instabilidade. Ele descreve o que constitui o seu mister: “A minha loja parecia um campo de batalha. Tinha rolos de tecidos e de oleado nas prateleiras, mas a maior parte dos artigos estavam espalhados pelo chão de cimento. Eu sentava-me a uma secretária, a meio do barracão de cimento, de frente para a porta, com um pilar de cimento ao lado da secretária, pilar que me fazia sentir como que ancorado naquele mar de trastes – grandes bacias de esmalte, com os rebordos brancos e azuis, ou azuis com motivos florais; pilhas de pratos de esmalte branco, com papel de embrulho cor de lama entre os pratos, púcaros de esmalte e panelas de ferro e fogareiros a carvão e camas de ferro e baldes de zinco ou plástico e pneus de bicicleta e lanternas a pilhas e candeeiros a óleo com vidro verde, cor-de-rosa ou cor de âmbar”. Não foi fácil a Salim chegar à curva do rio, metade da cidade estava destruída, o antigo bairro europeu tinha sido queimado, naquela cidade proliferavam as ruínas.

V. S. Naipaul, Prémio Nobel da Literatura de 2001, tem uma escrita serena, extremamente elegante, descreve e contempla com cuidados desvelados, autênticas águas-fortes, todos os personagens, Zabeth, a estranhíssima vendedeira que percorre os confins da floresta ou o comerciante Nazruddin, que atraiu Salim àquela curva do rio numa altura em que os acontecimentos africanos começavam a suceder-se a um ritmo vertiginoso, com rebeliões e também massacres; Ferdinand, o filho de Zabeth, um africano que veste mal na sua pele as cargas genéticas; Metty, o criado de Salim, que procura inserir-se na sociedade africana a todo o custo, e que se irá revelar um traidor; o Padre Huismans que adora a escultura africana, e que irá ser massacrado. Mas há mais, muito mais participantes nesse país que sofrera uma revolução e depois uma guerra civil e que agora tem um novo presidente que manda construir, ali na curva do rio, a Cidade Nova. O presidente mandou executar os responsáveis do exército que vinham do período colonial, o Grande Chefe possui muito dinheiro e pode ter um exército de mercenários, o Exército de Libertação, ao seu serviço. Aquela cidade na curva do rio era um microcosmos mas também o espelho convexo de todas as aflições e turbamulta em que vivia África, nesse arranque das independências dos anos 1960. É neste ambiente que mergulhamos no assombroso romance “A Curva do Rio”, de V. S. Naipaul, em boa hora reeditado pela Quetzal Editores.

A Cidade Nova parecia um empreendimento faraónico, o presidente, que vivia na capital, deu luz verde para que na curva do rio se fizessem construções faustosas, o presidente queria mostrar uma nova África. “A Cidade Nova fora rapidamente construída; mas a sua decadência, sob o sol impiedoso e a chuva persistente, também foi rápida. Depois da primeira estação das chuvas, muitas das árvores que haviam sido plantadas na larguíssima avenida principal acabaram por definhar, com as raízes inundadas, apodrecidas por tanta água”. Havia pois que encontrar rapidamente uma utilidade para aqueles edifícios: “A Cidade Nova transformou-se numa cidade universitária e num centro de investigação. O edifício destinado às conferências passou a ser um instituto politécnico para o povo da região, e outros edifícios foram transformados em dormitórios e habitações dos professores e funcionários”. Surgem novas tensões, aqueles alunos parecem pugnar por um nacionalismo africano, desconfiam das teorias ocidentais, das religiões importadas. Chega um amigo de Salim, um professor da Cidade Nova, ele vai-lhe mostrar a cidade que se via em poucas horas: “Havia o rio, com um passeio marginal meio arruinado perto do porto. E havia o porto; os estaleiros com barracões de chapa de ferro ondulada, cheios de peças de máquinas enferrujadas, e a jusante, a catedral em ruínas, de uma grandiosidade maravilhosa e com um ar antigo, como se fosse uma catedral da Europa – mas só se podia admirá-la da estrada, porque o mato à volta estava muito cerrado e o local era famoso pelas suas cobras. Havia as praças esburacadas com os seus pedestais danificados e sem estátuas; os edifícios oficiais da época colonial em avenidas orladas de palmeiras…”. Surge um guru do presidente, mas que anda angustiado, cheio de dúvidas quanto à identidade africana e os sacrifícios ditados pelo progresso que era a marca de água das potências coloniais do passado.

Como numa tragédia grega, sente-se que caminhamos para uma inevitabilidade, guerra feroz decretada por aquele enérgico presidente transformado num ditador absoluto. O presidente discursa às massas: “Os temas não eram novos: os sacrifícios que era preciso fazer; um futuro radioso; a dignidade da mulher africana; a necessidade de fortalecer a revolução, por muito impopular que ela fosse entre os negros das cidades que ansiavam acordar um dia transformados em brancos; a necessidade que os Africanos tinham de ser Africanos, de retornar, sem vergonha, aos seus hábitos democráticos e socialistas, de redescobrir as virtudes do regime alimentar e dos remédios dos seus avós, de não correr atrás de coisas como conservas e vinhos importados como se fossem crianças; a necessidade de vigilância, de trabalho e, acima de tudo, de disciplina”. O presidente castigava os desobedientes, sobretudo os Jovens Guardas da região, foram banidos e mandados para o mato. Aquela cidade na curva do rio estava repleta de fotografias do presidente, cresciam as explosões de violência, sucediam-se os motins. Então, o Grande Chefe mandou punir os desobedientes. Salim vai provar humilhações quando regressa de Londres, a cidade na curva do rio está em crescente agitação, os haveres dos brancos foram nacionalizados, cresce a corrupção e o livre arbítrio. “Havia um sentimento generalizado de que o descalabro se aproximava a grande velocidade, de que o país cairia muito em breve num caos tremendo; e algumas pessoas comportavam-se, por isso, como se o dinheiro tivesse perdido já o seu valor”.

Salim mete-se nalguns negócios escuros, é denunciado por Metty, é levado preso e mais tarde liberto por Ferdinand, agora um servidor do Grande Chefe. Na prisão, professores com botas enormes e bastões, obrigam e recorrem à brutalidade para que os jovens repitam os versos dos hinos em louvor do Grande Chefe. Mas há um grande medo que assola os carrascos. “Aqueles pobres rapazes eram também vítimas das palavras escritas no muro branco da cadeia. Mas, pelas suas expressões, podíamos concluir que os seus corações, mentes e almas, não estavam presos. Os guardas, enfurecidos, também eles africanos, pareciam compreender isso mesmo, pareciam compreender que nunca conseguiriam dominar verdadeiramente as suas vítimas”. Aproxima-se a matança e Ferdinand prevê os próximos tempos, e di-lo a Salim: “Quando o presidente vier, vai ser horrível. Ao princípio, pensaram em matar só gente do Governo. Agora, o Exército de Libertação diz que isso não chega. Ao princípio, pensaram em fazer tribunais do povo e matar gente nas praças. Agora dizem que têm de matar muito mais gente, e que todos vamos ter de manchar as mãos de sangue”. Salim consegue partir, não se sabe para onde, viaja no rio num vapor a caminho da capital. Algumas canoas procuram seguir o vapor, os desesperados querem fugir à maré dos acontecimentos. Há tiroteio. Mas o vapor prosseguiu o seu rumo e sai da zona de batalha, já não está na curva do rio.

Dizem os especialistas que o país é o Congo, o Grande Chefe era Mobutu e a cidade Kisangani. Pode ser. Mas quem não reconhece outro país, outro grande chefe, outra cidade na curva do rio, algures em África?
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10771: Notas de leitura (437): "Amílcar Cabral, Essai de biographie politique", por Mário de Andrade (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P10780: Tabanca Grande (372): O resto da autobiografia do nosso último grã-tabanqueiro, nº 591, João Carvalho Meneses, 2º tenente fuzileiro especial na situação de reforma, DFA, a residir em Azoia de Cima, Santarém

1. Mensagem de 9 do corrente do João Carvalho Meneses,  o nosso último grã-tabanqueiro (que, espero,  não será o último nem deste ano nem do resto da vida Tabanca Grande, que vai completar 9 anos a 23 de abril de 2013, e que teoricamente deveria encerrar, para balanço, quando chegar - se lá chegar - aos 11, os míticos 11 da guerra colonial na Guiné, 1963/74):

 Assunto: actualizações

Amigos: Primeiro que tudo, um grande abraço.

 (...) Junto mais alguns dados individuais, que penso te possam interessar para o Blogue:

Data de Nascimento: 05-01-1948
Data da Morte: terá que ser outro a escrever
Data de alistamento: 19-09-1971
Data de Imposição das Boinas aos Fuzileiros Especiais: 16-03-1972
Data de Promoção a Aspirantes: 14-04-1972
Data da disponibilidade: 01-05-1974 (note-se o dia - 1º de Maio, feriado oficial)
Local de Nascimento – Freguesia de Santos-o-Velho, Lisboa, PORTUGAL
Local de Falecimento – A ver vamos ….
Local de Residência – Azoia de Cima, Santarém, PORTUGAL
NOTA: Não sou EX-Ten. Sou 2º TEN FZE na Situação de Reforma (pela razão de DFA)

Afirmei também a dada altura que os meus problemas duram há 33 anos, mas foi erro meu tipográfico. Dado que ainda estou vivo, fez este Setembro 2012, a dias 29, 40 anos sobre o facto [, o grave ferimento em combate ocorrido na região do Cubisseco, a sudoeste de Emapada]

Novo Alfa Bravo (como vocês dizem)

2º TEN FZE Carvalho Meneses, Guiné, 1972
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Nota do editor:


Guiné 63/74 - P10779: Parabéns a você (507): Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700 (Guiné, 1970/72)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10775: Parabéns a você (506): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73) e Armandino Alves, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 1589 (Guiné, 1966/68)

domingo, 9 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10778: Os nossos médicos (44): Cumprir as normas, sempre (Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, com data de 4 de Dezembro de 2012:

Caro Camarada
Conforme prometido, envio-te outra aventura acontecida em terras do leste da Guiné em 1973.
Não sou de confiança em localizações geográficas, pelo que (desta vez) não me comprometi.
Junto envio três fotografias, uma do período antes da Guiné (muitas inspecções a mancebos fiz eu nas instalações da Manutenção Militar, junto à feira da Ladra), as outras duas fotos de Pirada.

Com um abraço
Valente Fernandes


CUMPRIR AS NORMAS, SEMPRE

Em 1973 eu era alferes miliciano médico no BCAV 8323 em Pirada.

Eram óbvias as nossas preocupações na perspectiva do provável agravamento da situação, isto é, das flagelações e dos contactos com os guerrilheiros numa zona de fronteira, porquanto tínhamos vivido uma intensidade operacional com menor intensidade. Sabíamos (informações muito incompletas) o que tinha acontecido em Guidage.

Após as consultas de saúde da manhã, primeiro no posto médico do batalhão e depois na enfermaria destinada à população, à tarde o tempo livre não nos faltava. Os dois furriéis enfermeiros das duas companhias sediadas em Pirada (da CCS e da 3ª Companhia) e os vários maqueiros, tiveram complemento de formação no âmbito do socorrismo, incluindo a administração expedita de soros por via endovenosa (na veia), soros que poderiam vir a contribuir para salvar vidas.

O acaso contribuiu para termos muitas ‘cobaias’ para treino: Tínhamos recebido informação de Bissau ‘havia que matar a maioria dos cães’ que pululavam no batalhão e na tabanca porque os serviços de saúde do Senegal tinham ‘detetado cães com raiva' no seu território, logo ali, do outro lado da fronteira’.

Conforme combinado com o comandante do batalhão, tenente-coronel Jorge Mathias (distinto equitador e coronel no ano seguinte), e para cumprimento das ordens de Bissau, foi decidido matar todos os cães existentes em Pirada que não tivessem dono. Aos cães condenados administrámos previamente Valium (um medicamento sedativo) por injecção intramuscular. Após adormecidos os animais, todos os membros do serviço de saúde do batalhão puderam praticar (várias vezes) a inserção de uma agulha com soro numa veia da face interna da coxa dos cães. Tínhamos soros em fartura. Era estranho que também houvesse num posto médico no mato tantas ampolas de Valium… Talvez não fosse tão estranho, se considerássemos o que viemos a encontrar no conteúdo do atrelado sanitário da CCS…

Lembrei aos maqueiros a importância da administração dos soros por via endovenosa e que sozinhos no mato, em caso de dúvida, deveriam sempre administrar um soro. Estávamos em ambiente militar, avisei-os que a falta de administração de um soro necessário, poderia implicar uma punição. Em contrapartida, a administração desnecessária de um soro, não implicaria qualquer penalização.

Certa manhã, uma coluna saída de Pirada sofreu uma emboscada próximo de Bajocunda (cerca de dez quilómetros para leste desta povoação? não sou competente em localizações geográficas). Imediatamente saiu um grupo de combate para os socorrer, no qual eu me integrei. Quando chegámos, o combate tinha cessado, infelizmente tínhamos dois militares mortos (os primeiros mortos do batalhão. Ainda era intenso o odor a pólvora e verifiquei que os poucos feridos tinham recebido os primeiros socorros adequados.

Reparei então que um jovem militar estava sentado no chão encostado a uma árvore, fumando um cigarro, de perna ‘traçada’ e com um soro (pendurado num dos ramos da árvore) em perfusão endovenosa, com a agulha adequadamente inserida na região do sangradouro.

Então o maqueiro que ia na coluna atacada, informou-me: Quando aconteceu a emboscada, os militares saltaram para fora das viaturas, ficando deitados no solo a responder ao ataque. Perante o intenso ruído de muitas detonações simultâneas, num ambiente de concentração de pólvora queimada, uma cobra tinha mordido aquele militar que estava tranquilamente encostado à árvore. O maqueiro que integrava a coluna tratou primeiro os outros feridos. Depois administrou a este militar o antídoto antiofídico que sempre transportava. Administrou correctamente o antídoto à volta do local da mordedura da cobra (no antebraço). Depois disso, surgiu-lhe a dúvida, dúvida agravada pela terrível vivência dos sentidos que tinha experimentado durante a emboscada: se a mordedura de cobra implicava (ou não) a administração complementar de soro na veia: o militar estava com óptimo aspecto mas, conforme às recentes normas do batalhão, em caso de dúvida era para administrar…

Manuel Valente Fernandes

Pirada > Na casa do (célebre) senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano.

Pirada > Messe
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10542: Tabanca Grande (365): Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74)

Vd. último poste da série de 17 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10394: Os nossos médicos (43): Amaral Bernardo e Mário Bravo, em Guileje, ao tempo do cap Jorge Parracho, comandante da CCAÇ 3325 (1971)

Guiné 63/74 - P10777: Álbum fotográfico de Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12 (Bambadinca, 196971) e de Luís R. Moreira, ex-alf mil, sapador, CCS/BART 2917, e BENG 447 (Bambadinca e Bissau, 1970/72): A famosa autogrua Galion...



Foto nº 1 



Foto nº 1 - A




Foto nº 1 - B


Foto nº 2 



Foto nº 2 - A

Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > Estrada Xime-Bambadinca > 23 de novembro de 1969 > A famosa autogrua Galion (*), desembarcada no Xime, em LDG,  e fornecida pela Engenharia Militar para operar no porto fluvial de Bambadinca... Atascada, no final da época das chuvas... junto à bolanha de Samba Silate, antes de Nhabijões, dois topónimos de má memória para muitos de nós que andámos por aquelas paragens...

Na primeira foto, em segundo plano (foto nº 1), aparece o Tony Levezinho, sem a camisa do camuflado, de óculos de sol, de mezinho ao peito... Ainda na mesma foto (nº 1-A, pormenor), vê-se um capitão em cima da Galion (o Humberto diz que o Figueiras, da CCS). E ao fundo, uma nesga da famosa estrada (!) Xime-Bambadinca (Mais tarde, será construída uma nova, alcatroada)... E no foto nº 1-B (pormenor), surge de costas, um major, de boina camuflada (!), que eu não consigo identificar (seria o 2º comandante do BENG 447, que trouxe a "encomenda" ?... Será que veio mesmo em coluna auto por aquelas bandas mal afamadas?... De qualquer modo, sabemos que o 2º comandante do BENG 447 esteve em Bambadinca por essa ocasião).

Na  foto nº 2 , temos em grande plano uma das rodas da Galion atascada,,, E,  em segundo plano, aparece o Humberto Reis, de cigarro na boca, óculos de sol, lenço ao pescoço, impecavelmente fardado, como mandava... a puta da sapatilha!. (Foto nº 2-A, pormenor; os outros militares, não os consigo identificar, não eram gente da CCAÇ 12, que montava a segurança à coluna).

A Galion veio para substituir as pequenas autogruas de marca Fuchs (segundo oportuno comentário do nosso camarada Vasco Ferreira (*), e que eu creio que eram duas, pintadas de azul),   existentes até então no cais de Bambadinca , por ocasião do início do ambicioso projecto de reordenamento de Nhabijões, um dos maiores da Guiné naquele tempo (cerca de 300 casas).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados.




Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > CCS/BART 2917 (1970/72) > Cais de Bambadinca, 1970... A autogrua Galion a (des)carregar vacas...Fotos do álbum do Luís FR. Moreira, ex-alf mil sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), que viria a ser gravado ferido em mina A/C em 13/1/1971, à saída do reordenamento de Nahbijões. É um dos nossos grã-tabanqueiros mais antigos.
Fotos: © Lusi R. Moreira (2005). Todos os direitos reservados.


1. A propósito destas duas fotos do Luis R. Moreira, escreveu o Humberto Reis, em 20 de setembro de 2005, na I Série do nosso blogue:

(...) A Galion a carregar vacas no cais fez-me lembrar o episódio dela no percurso do Xime para Bambadinca. A Galion veio numa LDG [ Lancha de Desembarque Grande] desde Bissau até ao Xime. E daí para Bambadinca ia pelos seus próprios meios. Passou bem pelo destacamento da Ponte do Rio Undunduma, mas quando chegou a meio da bolanha a estrada não aguentou o peso e cedeu. Resultado, a Galion desequilibrou-se e ficou meio enterrada na bolanha.

Julgo que isto se passou em 23 de Novembro de 69 (, na véspera do aniversário do Tony) Tenho este episódio documentado mas, como era hábito naquele tempo, está em diapositivo e não em fotografia. (...)

(...) Lembro-me que foi dos primeiros episódios a que assistiu o nosso amigo, na altura capitão periquito da CCS [do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70], o Figueiras, (co-organizador do habitual almoço anual que este ano que teve lugar na ria Formosa) que alguns conheciam como tenente da carreira de tiro de Tavira. (..:).


E o Tony Levezinho acrescentou o seguinte, no mesmo poste: (...)

(...) Foi todo o dia 24 [ou 23 ?]  de Novembro [de 1969] na tentativa desesperada de desatascar a Galion antes que a noite caísse. Os esforços revelaram-se infrutíferos e assim não tivemos outra alternativa que não a de convidar a mosquitada da bolanha a juntar-se a nós para comemorarmos todos (em silêncio, como a situação de emboscada impunha) o meu 22º aniversário [, a 24].

À falta de Champanhe serviram-se rodadas de Repelente que, a julgar pela sua ineficácia, funcionou como uma iguaria de entrada para os mosquitos, antes que estes chegassem à nossa pele, já depois de perfurarem até aquela capa de borracha que, creio, chamávamos ponche. (...) Recordo este episódio apenas porque se tratou da celebração mais picante que eu alguma vez tinha experimentado ao longo de toda a minha carreira. (...)

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Guiné 63/74 - P10776: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (18): 19.º episódio: Viva a peluda

1. Em mensagem do dia 5 de Dezembro de 2012, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422, Farim, Mansabá, K3, 1965/67), enviou-nos o último episódio da sua campanha no K3, dias que fazem parte dos melhores 40 meses da sua vida.


OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

19º e último episódio:
A morte do meu Comandante,  
A minha, quase, ida para os Comandos e
Viva a peluda!!!

Aquartelamento do K3 e Rio Cacheu. Vd. Carta de Farim
Foto © de Carlos Silva (2008). Direitos reservados


12 de Junho de 1966
Aconteceu o impensável, embora a morte nos tivesse já levado em 17 de Maio último um camarada FURRIEL MILICIANO e também com a traição duma mina.
Digo impensável, por ter sido ali naquele sítio. A vítima desta vez foi o nosso CAPITÃO, Comandante da Companhia.

E eu estava lá... e eu vi como foi.

O seu jeep e o meu unimog cruzar-se-iam dentro de segundos.

A mina fora preparada, disso continuo convencido, para ser detonada à distância e só mesmo quando da sua passagem, o que até nem era habitual.
Deslocava-se portanto, nesse dia e àquela hora, a título excepcional.

Já passáramos por ali mais de vinte vezes, a estrada fora picada aquando da primeira passagem e depois, de cinco em cinco minutos, voltávamos a fazer o mesmo trajecto com ida e volta, ora levando a água trazida de Farim, ora regressando para nova recolha e a área circundante tinha vasta visibilidade e estava capinada e para além disso tínhamos patrulhas a pé e em constante movimento de vai-vem, vigiando os três quilómetros que separavam o aquartelamento do rio.

Não faltou ou faltava portanto a segurança e para mim tratou-se dum atentado traiçoeiro, bem preparado e conseguido pelo IN. Perdi ali uma grande amizade e um amigo inesquecível.

Decidi então, oferecer-me para a 3ª de Comandos, a ser constituída em Brá e apenas para militares já com alguma experiência de mato.
Colaborei assim com o pedido feito para que fossem dispensados até dois elementos voluntários de cada Unidade Operacional.

Feitas as provas de admissão, aguardei a respectiva integração que já me tinha sido confirmada.

Chega entretanto a Bissau, uma verdadeira 3ª CComandos, treinada e preparada na Metrópole e sou dispensado com ordem de marcha para regressar ao meu velhinho K3. Colocado fui na CCS/QG a aguardar transporte. Pedem-me para ajudar administrativamente a Secção de Funerais e Registo de Sepulturas e logo após, dado ter terminado a comissão de serviço da chefia, é-me "oferecida" essa mesma chefia. "Aceitei"... cumpri... modifiquei e melhorei algumas coisas, apresentei propostas para alterar procedimentos, e as aceites, postas de imediato em prática resultaram em pleno.

Até que um dia... um tal de Uíge convida-me a vir com ele. Lisboa engalanou-se para me receber e ali debaixo da ponte e com o cais de desembarque à vista, juntei-me ao enorme coro que ali já deixara a sua voz e também cantei num grito:  
- VIVA A PELUDA.

E hoje quem por ali passa porque o eco ainda se houve desde a foz à nascente do Tejo, tem que saber que esta canção foi entoada por centenas de milhares de COMBATENTES, e que o fizeram em grande momento de felicidade.

E se repararem bem, ouvir-me-ão ali também.

Veríssimo Ferreira
ex-Fur Mil
CCAÇ 1422

 Veríssimo Ferreira, Mansabá, 1965
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Nota de CV:

Vd. últimos postes da série de:

11 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10652: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (10): 11.º episódio: Momentos de puro e são divertimento

14 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10668: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (11): 12.º episódio: Uma experiência como Vagomestre

18 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10691: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (12): 13.º episódio: Como 5 dias de licença em Bissau se transformaram em 30 na Metrópole

22 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10705: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (13): 14.º episódio: A estranha ausência da guerra e dos camaradas do K3

25 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10724: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (14): 15.º episódio: Hora de voltar ao palco da guerra

28 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10736: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (15): 16.º episódio: Alô K3

2 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10750: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (16): 17.º episódio: O mistério das luzinhas do K3
e
5 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10762: Os melhores 40 meses da minha vida (Veríssimo Ferreira) (17): 18.º episódio: Emboscando a morte

Guiné 63/74 - P10775: Parabéns a você (506): Amaro Samúdio, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 3477 (Guiné, 1971/73) e Armandino Alves, ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 1589 (Guiné, 1966/68)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10772: Parabéns a você (505): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pel Canhões S/Recúo 2054 (Guiné, 1968/70)

sábado, 8 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10774: Álbum fotográfico do ex- fur mil José Carlos Lopes, amanuense do conselho administrativo da CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1): Embarque de vacas no porto de Bambadinca


Foto nº 28 > Porto fluvial de Bambadinca, no Rio Geba... Enmbarque de vacas... Do outro lado era a bolanha de Finete e o caminho para Missirá, o destacamento mais avançado do Setor L1 na região do Cuor


Foto nº 32 > Embarque de vacas, muito provavelmente para o BINT (Batalhão de Intendência)


Foto nº 29 > Não tenho a certeza, mas na foto parece ser o fur mil amanuense do CA [Conselho Administrativo] da CCS/BCAÇ 2852 (1968/70), o Manuel António Rodrigues Brás


Foto nº 30 > Mais um aspeto da atribulada operação de embarque de vacas


Foto nº 31 > Em primeiro plano, à direita, o fur mil Lopes, de camuflado, o autor destas fotos


Foto nº 33 > Dois barcos civis acostados à margem esquerda do Rio Geba (Estreito) em Bambadinca... Em geral eram barcos fretados pelo BINT (Batalhão de Intendência, de Bissau)


Foto nº 34 > Rio Geba (Estreito)... O cais acostável de Bambadinca... Estes fotos (as de cima, de 28 a 32) devem ser de finais  de 1969, já no tempo da CCAÇ 12, e da autogrua Galion, chegada a 24/11/1969, e que veio melhorar as operações de cargas e descargas.

Na foto, vê-se por detrás do cais o entreposto do pelotão de intendência.


Foto nº 35 > Esta  foto e as anteriores (33, 34) não tenho a certeza se são da mesma época. Estas gruas, azuis, mais pequenas foram substituídas em 24/11/1969 pela autogrua Galion, mais potente.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS/BCAÇ 2852 (1968/70) > Fotos do álbum do nosso camarada José Carlos Lopes, que era fur mil, amanuense do Conselho Administrativo (CA) da CCS... Não se percebe muito bem se é um embarque ou desembarque de vacas no porto fluvial de Bambadinca... (Provavelmente a numeração das fotos é arbitrária, não é sequencial...). Mas é mais provável tratar-se de um embarque. A zona leste fornecia gado vacuum para outras partes da Guiné, incluindo o "ventre" de Bissau (onde o bifinho com batatas fritas e ovo a cavalo era o prato favorito da tropa que vingam do "Vietname", sinónimo de "mato & porrada").

O CA da CCS era presidido pelo 2º comandante do batalhão. O chefe da contabilidade era o alf mil Nelson de Sousa Ribeiro Adão, o tesoureiro o alf mil Carlos Augusto Correia... Havia dois furriéis amanuenses, os já supracitados José Carlos Lopes e Rodrigues Brás...

Do Lopes lembro-me muito bem, de resto já nos temos encontrado (, a última das quais, em circunstâncias infortunadas, no funeral da nossa querida amiga Teresa Reis, esposa do Humberto Reis), somos de resto quase vizinhos, e ainda ontem falei com ele ao telefone, a pedir-lhe autorização para publicar estas fotos que me vieram parar às mãos, em Coimbra,  num dos últimos encontros do pessoal de Bambadinca (1968/71)... Havia ainda dois 1ºs  cabos escriturários,  o Manuel Ferreira da Costa e o Rui Manuel de Matos M. Flor. 

Estou grato ao Lopes por querer partilhar, connosco, estas fotos, de grande valor documental... Quem terá comido os bifes destas vacas ? Talvez a malta do BINT possa (e queira) ajudar a melhorar as legendas das fotos. Em Bambadinca, havia um Pelotão de Intendência (PINT), e um grande entreposto junto ao rio. O movimento portuário era constante, obrigando-nos a montar segurança, na outra margem,  na zona do famigerado Mato Cão (onde será mais tarde, no tempo do BART 2917, montado um destacamento permanente).

Nesta altura (finais de 1969) já estava  a operar a autogrua Galion,  no cais (um pontão de madeira!) de Bambadinca... O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações militares (LDM, LDP, lanchas) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia)...

O transporte desta grua,  do Xime até Bambadinca,  foi uma epopeia, a cargo da CCAÇ 12!,,, Fazia anos o Tony Levezinho no outro dia, 24 de novembro de 1969... A grua atascou-se na estrada  Xime-Bambadinca, bebemos o "champagne" refrescado com a água da bolanha, na noite de 23 para 24, enquanto montávamos segurança à "prenda" enviada pela Engenharia Militar...

O pai do nosso amigo e grã-tabanqueiro Nelson Lopes Herbert, de seu nome Armando Duarte Lopes, uma antiga glória do futebol caboverdiano e guineense ("Armando Bufallo Bill, seu nome de guerra, o melhor futebolista da UDIB, do Benfica de Bissau, internacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa"...) , trabalhou na administração do porto fluvial de Bambadinca, entre 1969 e 1971... O que só vem comprovar que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande! (L.G.)

Fotos editadas por L.G., com a devida autorização do José Carlos Lopes (a quem já foi formulado o convite para ingressar na Tabanca Grande).

Fotos: © José Carlos Lopes (2012). Todos os direitos reservados.

Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 4 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (33)

O Grupo do Cifra

Perdoem lá, mas este texto é um pouco mais longo, pois o Cifra quer apresentar-vos as personagens que o acompanharam durante dois anos neste conflito, em que esteve envolvido, sem nunca ter dado um tiro, e para ele uma granada, era um bloco de ferro que o Curvas, alto e refilão às vezes carregava no bolso.

O Cifra tem fotografias de alguns, mas como devem compreender, não as pode publicar, pois não sabe se estão vivos, o seu estado de saúde, ou o seu estado social, portanto não quer de maneira alguma ferir a sua muito digna personalidade, oxalá estejam vivos, leiam estes textos e se retratem nestas personagens, pois foram os seus companheiros, os seus “heróis”, dos quais guarda as suas imagens, no fundo do seu coração, e o acompanharam em momentos de angústia, amargura, também com muitos sorrisos e às vezes até chorando, durante o tempo em que esteve neste conflito. Esta é a homenagem que lhe presta. Portanto cá vai, com a vossa também muito digna compreensão.

O Setúbal, para o Cifra, era mais do que o companheiro, o militar, o guerreiro ou o amigo, era qualquer coisa como aquele “garoto”, que todos nós tivemos na infância, que vivia na porta ao lado da nossa casa, na mesma rua ou na mesma aldeia, com quem brincávamos, jogávamos à berlinda, à bola, roubávamos fruta do quintal do vizinho, às vezes zangávamo-nos e andávamos à porrada, mas sempre amigos. Sim, era isso tudo, mas adultos e confidentes, pois o Setúbal, contava coisas ao Cifra da sua vida privada com aquela que iria ser a sua esposa amada, e que às vezes o Cifra não queria ouvir e lhe dizia:
- Essas coisas não se devem contar, são coisas tuas e da tua noiva, pensa nelas, nesses momentos que são única e simplesmente vossos, e que ao pensar neles, mais faz fortificar o desejo de a tornar a ver, e deste modo, não a vais esquecer nunca, e o amor entre vocês, cada vez vai ser maior.

Ele ao ouvir isto, começava a chorar, mas ao fim de algum tempo, voltava ao normal, e com a chegada até eles do Curvas, alto e refilão, que vocês já conhecem a sua desafortunada história, de relatos anteriores, que foi abandonado pela sua mãe, que andava “na vida”, ainda criança, e viveu “ao Deus dará”, como é costume dizer-se, sem nunca ter um carinho ou alguém que lhe limpasse o ranho do nariz, e sem nunca ter conhecido a palavra “mãe” ou a palavra “família”, passando quase a sua adolescência em escaramuças, negócios ilícitos e em esquadras e cadeias da capital, a perguntar:
- O que é que passa com este agora? Eu não disse, que depois que veio de férias e viu a noiva, veio um pouco “amaricado?

Mas adiante, o Cifra, o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, eram amigos e faziam um grupo unido, era uma espécie de “Trempe”, era um “Triângulo”, a quem outros companheiros, às vezes queriam modificar, como por exemplo, o Mister Hóstia, a todo o momento, nunca perdendo nenhuma oportunidade de tentar convertê-los em bons cristãos, dizendo-lhes:
- Toda a vossa força unida tem que estar ao serviço de Deus, rezem e ajoelhem-se perante Jesus, que é o vosso Salvador, no lugar de andarem sempre a fumar e a beber, só pensarem no mal e nas “bajudas”, que vão ser a vossa perdição.

Como isto não chegasse, o Pastilhas, sempre que via qualquer um deste grupo aproximar-se da enfermaria, logo ia esconder o frasco do álcool, e dizia:
- Bêbados, vão morrer queimados por dentro e eu tenho muito prazer em ir ao vosso funeral.

Claro que o Curvas, alto e refilão, logo lhe respondia, naquela linguagem porca e agressiva:
- Oh pastilhas, deixa-te merdas, pois nós sabemos que às vezes ao fim da tarde, essas faces rosadas na cara, não são só do sol e o teu nariz às vezes também vermelho não engana, o que tu queres é o álcool só para ti.

O Furriel Miliciano, era tratado por este nome, porque era o seu posto militar, mas no tratamento, era simples, amigo, parecendo mais um companheiro, soldado combatente e sofredor. Do seu grupo de combate fazia parte entre outros o Trinta e Seis, o Marafado, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Curvas, alto e refilão, e diziam que esse sim, era o líder. Quando saíam em patrulha, ele gostava do grupo, convivia, pois via neles uns “gajos fixes”, que fumavam cigarros feitos à mão, e sempre prontos para uma farra.

O Arroz com Pão tinha as suas queixas, mas passageiras, e no fundo, tirando o roubo do pão e de algum vinho, até gostava deles, pois às vezes ajudavam a descascar batatas, mas só em última necessidade, mesmo quando não houvesse mais ninguém, pois estragavam mais batatas do que o normal e queriam sempre a caneca do café cheia de vinho, às vezes dizendo:
- Fora daqui, vai-te lucro que me dás perca!

O Trinta e Seis, um soldado telegrafista, era um homem adulto no seu proceder, até responsável de mais para a sua idade, tinha algum poder de influência sobre o Curvas, alto e refilão, que o ouvia e só a ele obedecia, sem refilices. Diziam que quando saíam em patrulha, o Trinta e Seis ia sempre junto do Curvas, alto e refilão, e além de se protegerem um ao outro, o Trinta e Seis, controlava-o nas suas, por vezes, descontroláveis acções.

O Marafado, no princípio era alegre, gostava de vinho, e até cantava uns fados desafinados, mas depois que presenciou uma cena de uns prisioneiros mortos, onde os seus corpos foram queimados e enterrados numa vala, nunca mais foi o mesmo homem, para o final era um homem calado e marcado pela guerra, raras vezes se juntava, passava o tempo ouvindo música, o relato do seu Benfica e notícias no seu rádio portátil.

O sargento da messe compreendia o grupo, facilitava o acesso ao bar dos sargentos, talvez porque precisasse da ajuda do Cifra nas contas, pois era este que lhas acertava todos os meses, pois tinham sempre que terminar em zero, sem lucros nem perdas, e ele não era lá muito bom com algarismos, até diziam que era “burro”, passe o termo, pois era uma excelente pessoa, pelo menos para o Cifra.

O Comandante não queria que lhe fizessem a saudação, talvez para não saberem que era comandante e que dava ordens que matavam pessoas, dizia que estavam todos no mesmo barco mas com diferentes responsabilidades, o Cifra mais tarde veio a saber que era um apaixonado pela arte de fotografar, queria respeito, às vezes quando as coisas não corriam bem ficava com cara de Comandante, e quase todos o evitavam.

Também havia as filhas do Libanês que eram importantes para os militares estacionados em Mansoa, havia até quem dissesse que elas eram as causadoras de os militares tomarem banho mais frequentes vezes, vestirem roupa lavada e fazerem algumas vezes a barba, e pentearem o seu cabelo, portanto tinham mais poder e influência nos militares do que os seus superiores, que podiam dizer mil vezes para terem mais higiene pessoal, que a esses mesmos militares não lhes importava qualquer ordem nesse sentido, e que acima de tudo enchiam a igreja de perfume exótico, também se dizia que se não fossem elas a igreja talvez, em alguns dias, ficasse vazia. Talvez não fosse verdade.

Havia o “Life Boy”, de quem ainda não falei, mas irei falar lá mais para a frente, que veio para o aquartelamento algum tempo depois, que parecia um chinês, já sei que vão dizer que só faltava o “chinês”, e tinha uma costela de “Libanês”, pois passado pouco tempo de ter chegado ao aquartelamento, já se andava a fazer a uma das filhas do Libanês, era um pequeno comerciante dentro do aquartelamento.

A menina Teresa era quem escrevia as cartas que a mãe Joana mandava ao Cifra, tinha alguma influência nas decisões da família do Cifra e as referidas cartas tinham sempre o seu aval final, portanto quando o Cifra lia uma carta da mãe Joana, mais de metade eram opiniões dela, que vai ser protagonista de uma história um pouco bizarra.

Só havia o tal Major das Operações Especiais, o tal que deu uma bofetada, que mais parecia um murro, na cara de um guerrilheiro fardado, com as mãos amarradas, e que caiu no chão desamparado, por lhe ter dito que queria ser tratado como prisioneiro de guerra. O apelido do Major era Sardinha, portanto o Major Sardinha logo foi rebaptizado de Major “Petinga”. Queria a saudação sempre que com ele nos cruzávamos, o Cifra pensava que devia de ter sido promovido há pouco tempo, pois andava sempre vestido de camuflado, com um cinto, onde trazia uma pistola, os galões novos e reluzentes nos ombros, as botas sempre engraxadas, e como no comando a que o Cifra pertencia, tirando militares condutores auto, era tudo pessoal de gabinetes, que não deviam de saber acertar com um tiro duas vezes no mesmo sítio, alguns nunca tinham pegado numa G-3 nem nunca tinham tirado uma cavilha a uma granada, aquele Major vestido assim e com aquelas atitudes, fazia rir o pessoal, portanto, com tanto exagero, tornava-se ridículo.

A apresentação das personagens vai já terminar à frente. Um dia, este grupo do Cifra, do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, mais o Trinta e Seis, regressando da sede do Clube de Futebol, juntos, passa pelo tal Major, que logo diz, com uma cara séria, mostrando autoridade:
- Vocês não podem andar assim em grupos, portanto a partir de agora separem-se, só podem andar dois militares juntos.

Nesse momento, o tal Major estava na companhia de mais dois ou três militares graduados, e o Curvas, alto e refilão, como era seu costume, pois não recebia ordens, logo lhe respondeu, colocando-se na posição de sentido, com a sua medalha Cruz de Guerra ao peito, fazendo o tal Major “Petinga”, também colocar-se na mesma posição, dizendo com a maior das calmas:
- Essa lei é só para nós ou para todas as patentes militares?














O Major “Petinga”, que era muito mais baixo na estatura, virou os olhos para o chão e respondeu:
- Vão lá embora, por esta passam.

Pouco depois, o Curvas, alto e refilão, quando junto do seu grupo, disse:
- Gostava de apanhar este filho da p..., lá no mato, debaixo de uma emboscada dos guerrilheiros, pois deixava-o lá sozinho.

Passado uns dias, quando o Cifra foi entregar uma mensagem decifrada no comando, o major “Petinga”, pergunta ao Cifra:
- Ouve lá, sabes se aquele soldado, a que chamam Curvas, alto e refilão, já matou alguém? Ele olhou-me com uma cara!

Pronto, já ficaram a conhecer esta “cambada”, que se forem simpáticos, pacientes e se também tiverem um pouco de heróis combatentes, mas mesmo muito pacientes, ao ponto de terem pachorra e resistência para estarem tanto tempo sentados e ler até ao fim estes textos, que às vezes a brincar, conta a verdade das situações de dor, sofrimento, angústia e também de algumas ocasiões menos más, não muitas, que todos nós vivemos nessa maldita guerra, na então província da Guiné.

Oh meu Deus, só agora é que vi, o texto é mesmo longo, desculpem lá!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P10772: Parabéns a você (505): Jorge Teixeira (Portojo), ex-Fur Mil do Pel Canhões S/Recúo 2054 (Guiné, 1968/70)

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10761: Parabéns a você (504): Manuel Carvalho, ex-Fur Mil da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)