segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20115: Manuscrito(s) (Luís Graça) (170): Viagens ao fundo da (minha) terra e outros lugares: Parte III: a vida são dois dias e a festa são três: o 6º encontro da família Ferreira...


Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Sitio da N. Sra. do Socorro > 31 de agosto de 2019 > Cerca de um centena de membros da família Ferreira participaram no seu 6º encontro anual (que se realiza desde 1985)... O próximo já está marcado para 29 de agosto de 2020.


A capela de Fandinhães, o que dela resta (o altar mor) (séc. XIII)






A capela de Fandinhães(séc. XIII); cachorro.apresentando um exibicionista, figura masculina representada nua e com a mão direita sobre os órgãos genitais.




Capela de Fandinhães (séc. XIII): o adro, uma das duas tampas sepulcrais, esta  com a representação de uma espada.


Marco de Canaveses > Penha Longa e Paços de Gaiolo > Fandinhães > Rota do Românico > 35. Capela de N. Sra. da Livração de Fandinhães (c. meados séc. XIII)




"Hoje titulada Capela da Senhora da Livração, a antiga Igreja de São Martinho de Fandinhães constitui um verdadeiro enigma. Quando o visitante se aproxima, vislumbra o que parece ser um edifício arruinado. 

"A tradição refere o seu desmantelamento e a documentação não o contradiz. As escavações arqueológicas (2016) confirmam-no por terem identificado os alicerces das paredes norte e sul da nave, na continuação do atualmente visível à superfície.


"Aqui se cruzam várias influências românicas. As figuras apoiadas em folhas salientes no portal encontram-se também nas Igrejas de Travanca (Amarante) e de Abragão (Penafiel). No adro veem-se vestígios de uma cornija sobre arquinhos, motivo comum no românico da bacia do Sousa, que a esta chegou via Coimbra. Os toros diédricos nas frestas evidenciam a influência portuense, provinda da região francesa de Limousin. As "beak-heads" [cabeça de animal com um bico proeminente] na fresta lateral sul lembram a influência do românico beneditino do eixo Braga-Rates.

"Embora a maior parte dos cachorros exiba motivos geométricos, um deles apresenta um exibicionista, figura masculina representada nua e com a mão direita sobre os órgãos genitais, motivo encontrado na Igreja de Tarouquela (Cinfães).

"No adro, duas tampas sepulcrais: uma com a representação de uma espada e outra com uma cruz inscrita." (Fonte: Rota do Românico > Capela de Nossa Senhora da livração de Fandinhães, com a devida vénia...)


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Pode vir a ter, talvez, no futuro,  algum interesse, documental, para a sociologia e a história da família em Portugal, as festas de família que se realizam anualmente, um pouco por toda a parte, no verão, no nosso país,em espaços públicos, ao ar livre, geralmente em parques de merendas.



Afinal, porque é que as famílias se encontram ? Para se conhecerem (os mais novos), para voltarem às "raízes" (os que vivem na cidade ou no estrangeiro), para matarem saudades (os que estão longe), para partilharem memórias e afetos, para recuperarem sabores e cheiros da infância / adolescência, para reforçarem laços de parentesco e aliança, para exercerem a arte do dom (a obrigação de dar, receber e retribuir), para dizerem bem e mal uns dos outros, para fazerem, nalguns casos, as pazes e enterrarem o machado de guerra, para conviverem, para se divertirem... enfim,  para celebrarem a vida e exorcizarem o medo da doença, da incapacidade, da dependência, da solidão,  da infelicidade e da morte...



É o caso da família Crispim & Crisóstomo (, que os nova-iorquinos João e Vilma Crisóstomo têm vindo a animar, no verão, em Paradas, A-dos-Cunhados, Torres Vedras, sempre que vêm a Portugal). Ou é o caso da família Ferreira, que tem o seu núcleo duro em Candoz, Tabanca de Candoz,  Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, a que o nosso editor, por casamento, com a Maria Alice Ferreira Carneiro (n. Candoz, 1945), se veio aliar em 1976, já lá vão mais de 4 décadas.



A família, alargada, da Alice (, que é Ferreira, do lado materno, e Carneiro, do lado paterno, ) reúe-se há 35 anos, no verão. Anteontem, dia 31 de agosto, juntaram-se  4ª gerações dos Ferreira e ficaram em comunhão espiritual com mais outras 4, que nasceram e cresceram nestas terras da bacia do Tâmega e Douro, pelo menos desde 1820.

O primeiro encontro foi a 29 de setembro de 1984, em Fandinhães, Paços de Gaiolo, terra antiquíssima, freguesia do extinto concelho de Bem-Viver, onde nasceu toda a 4ª geração, incluindo a Maria Ferreira, mãe da Alice e avó do João Graça, nossos grã-tabanqueiros.




Marco de Canaveses, Paços de Gaiolo, Fandinhães > 1984 > 1º encontro da família Ferreira > Ainda eram vivos os três casais dos quatro casais da 4ª geração: (i) António Ferreira ("Vitorino") e Amélia Rocha (com residência no Alto, Paredes de Viadores); (ii) Maria Ferreira e José Carneiro (residentes em Candoz, Paredes de Viadores); e (iii)  e Ana Ferreira e Joaquim Cardoso (residentes Cacia, Aveiro e, mais tarde, Leiria)...







O segundo encontro, no ano seguinte, em 1985, foi na serra de Montedeiras, no respetivo parque de merendes (, pertencente atualmente à freguesia de Sande e S. Lourenço do Douro, Marco de Canaveses). Enfim, perto de Fandinhães.



Por causa dos sucessivos "lutos" (, dos que morreram na sua idade, e dos que decidiram apressar a morte, e já foram três ou quatro!), os encontros interromperam-se, a partir desse ano, só se realizando o terceiro, em 10 de julho de 2011, em Paredes de Viadores, no parque de merendas da igreja de N. Sra. do Socorro. (Sim, que o luto é pesado, por estas bandas!)



O quarto encontro seria no mesmo local, dois anos depois, em 7 de setembro 2013; o quinto em 25 de agosto de 2018 e, agora, o sexto, em 31 de agosto de 2019. E o 7º já está marcado para 29 de agosto de 2020, sábado. 


35 anos depois do primeiro, parte da família (os mais novos...) ainda não tinha nascido.

Da geração nascida em Fandinhães, a 4ª (a contar de 1820), para além da Maria Ferreira (1913-1995), havia ainda os manos António Nunes Ferreira (1910-1990), Rosa Ferreira (1915-1960) e Ana Ferreira (1917-1995), todos filhos de Balbina Ferreira (1876-1938), casada com José Nunes Ferreira (,de alcunha ‘Vitorino’) (1875-1948).

O mais antigo Ferreira, até agora conhecido, é o avô da Balbina Ferreira, o João Ferreira(1821-1897), casado com Mariana Soares (1822-1895) (,considerada a 1ª geração), portanto:

(i) bisavô da Maria Ferreira;

(ii) trisavô do António Ferreira Carneiro;

(iii)  e tetravô das suas filhas (que são 4: Paula, Becas, Suzana, Romi);

(iv)  e pentavô dos filhos destas (que ainda não têm filhos);

(v) e  hexavô dos bisnetos da Rosa e do Quim [, Joaquim Barbosa,]  (um) e da Lena, viúva (dois)...




São estes as antepassados comuns, da família Ferreira, de Fandinhães, os conhecidos, por documentos escritos, os mais antigos, donos originalmente  das terras de Candoz e Leiroz: João e Mariana tiveram 6 filhos, 3 Ferreira e 3 Soares...

Enfim, quando se completar a árvore genealógica, ir-se-á descobrir que uma vulgaríssima família como os Ferreira é naturalmente muito mais velha, tão velha como qualquer outra família portuguesa aqui destas terras onde nasceu Portugal... (Não é por acaso que a rota do românico passa sobretudo pelos vales do Sousa e do Tâmega).
































Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Sitio da N. Sra. do Socorro > 31 de agosto de 2019 > 6º encontro da família Ferreira > Os elementos da festa...o pão, o vinho, a alegria, a música, a reinação, as cantigas à desgarrada, a dança, as crianças, oa adolescentes, os pais. os avós e os bisavós...Cada "família" trouxe o seu pestisco, que foi partilhado à mesa... Era já noitinha quando arrumou o trouxa e voltou às suas casas, uns mais perto, outros mais longe, com vontade de voltar no próximo ano, em 29 de agosto de 2020. Afinal, a vida são dois dias e a festa da vida deviam ser três... 




Fotos (e legendas): © Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




No sábado passado, no, 6º encontro, marcaram presença cerca de uma centena de membros da família (, não couberam todos na fotografia que acima se publica, é praticamente impossível juntar todos para a "foto de família"):



(i) representantes da 5ª geração (a contar de 1820) (ou 4ª, a mais velha das gerações vivas), como o "mano mais velho", o António Ferreira Carneiro (n. 1939), o "brasileiro", filho de Maria Ferreira e José Carneiro (1910-1996); tudo gente na casa dos 70/80;  vários membros desta geração foram mobilizados para a guerra colonial / guerra do ultramar (Angola, Guiné, Moçambique): é o caso do "mano mais velho" da Tabanca de Candoz, o António, que esteve em Moçambique(1964/66), onde foi ferido com gravidade, sendo hoje DFA...

(ii) Representantes da 6ª geração (ou 3ª geração das 4 que estão vivas), como as filhas (quatro) do António e da Graça; tudo gente na casa dos 40/50;

(iii) Representantes da 7ª geração, a dos netos do António e da Graça; tudo gente na casa dos 10/20/30...

(iv) E já temos gente da 8ª geração: por exemplo, a matriarca Lena, prima da Alice,  trisnetas de João ferreira e Mariana Soares, sendo  a mais velha dos Ferreira vivos (n. 1935,  já é duas vezes bisavó);

Da 4ª geração, os pais da Alice, gente que hoje teria mais de 100 anos, não temos infelizmente já cá ninguém. Mas estão cá os seus descendentes:

(i) O mais velho era o António Nunes Ferreira, o ‘Vitorino’, o "brasileiro", que nasceu em 1910 e casou com Amélia Rocha, pais da Lena e outros;

(ii) A mais nova era a Ana Ferreira, nascida em 1917, e que casou com Joaquim Cardoso; tem netos e bisnetos no Brasil, que este ano não virão,mas também no Porto, em Aveiro, em Leiria...

(iii) As do meio eram a Maria Ferreira, que casou com José Carneiro; tiveram seis filhos, incluindo a Alice, que vive hoje na Lourinhã;




(iv) e a Rosa Ferreira, que casou com o José Vieira Mendes…

Em 2019, no 6º encontro, estava previsto publicar-se um livrinho com a árvore genealógica da família Ferreira, em edição revista e aumentada… Mais as receitas das nossas "comidinhas", as letras e as músicas das nossas "tunas rurais", bem como os "cantaréus"... Mas não tempo para tudo... Fica para o ano...




Este ano, como é habitual, não faltaram os comes e bebes, a música, a poesia, os afetos, a alegria, a dança, as paródias, as cantigas à desgarrada, a reinação...Sobretudo, elas, as "primas", são danadas para a brincadeira---



Por mera curiosidade, e para os eventuais leitores interessados, aqui ficam as quadras populares, encadeadas, que o poeta da Tabanca de Candoz, Luís Graça,  escreveu para a ocasião... 




1. 
Em Paredes de Viadores,
Temos encontro anual,
Os pequenos e os maiores
Da família Ferrei…ral!

2. 
Da família Ferrei…ral,
Vivos são quatro gerações,
Quem veio é bestial,

Quem não veio tem suas razões.

3.
Quem não veio tem suas razões,
Saúde, amores, dinheiro,
P’ra eles xicorações,
… Mas não dançam no terreiro.

4. 
Mas não dansam no terreiro,
Só dançam os qu’ aqui ‘stão, 
Os do Porto e os d’ Aveiro,
Mais os de cá do Marão.

5. 
Mais os de cá do Marão,
De Montemuro e da Abob’reira,
Do Brasil não virão,
E da Lour’nhã, a vez primeira.

6. 
E da Lour’nhã, a vez primeira,
Os tios Alice e Luís,
Ela é Carneiro e Ferreira,
E vai ser uma avó feliz.

7.
E vai ser uma avó feliz,
Entrando p’ró clube dos avós,
É a Rosa quem o diz,
Lá na Quinta de Candoz.

8. 
Lá na Quinta de Candoz,
Deu o bicho carpinteiro,
A notícia correu veloz,
Anda tudo muito foleiro.

9. 
Anda tudo muito foleiro,
Ai o meu braço, ai o meu joelho,
Queixam–se no cab’leireiro,
Ai que horrível ‘tou ao espelho.

10. 
Ai que horrível ‘tou ao espelho,
E já sou cinquentona,
A quem hei de pedir conselho ?
À ‘nha filha qu’ stá uma mocetona.

11. 
À ‘nha filha qu’ stá uma mocetona,
Quer casinha para casar,
E, como é uma valentona,
Muitos gajos p’ra namorar.

12. 
Muitos gajos p’ra namorar,
Ou só um, desde que rico,
Mas não sei como é que eu fico,
Longe de me poder reformar.

13. 
Longe de me poder reformar,
Queixam-se as nossas bonecas,
No duro, a trabalhar,
As sobrinhas Paula e Becas.

14. 
As sobrinhas Paula e Becas,
Da geração terceira,
Não são nada de panquecas,
Danadas p’rá brincadeira.

15. 
Danadas p’ra brincadeira,
Tal como os primos do Alto,
Tudo com costela Ferreira,
Para o baile, isto é um assalto.

16.
Para o baile, isto é um assalto,
Qu’a vida dois dias são só,
Diz, meio-soprano, contralto,
O nosso querido doutor Jó.

17. 
O nosso querido doutor Jó,
De filhas lindas escultor,
Mas do João não tenham dó,
Que a Catarina é um amor.

18. 
Que a Catarina é um amor,
Diz a Vera, a priminha,
P’ra vida ter mais sabor,
Vai-nos dar uma Clarinha.

19. 
Vai-nos dar uma Clarinha,
Que p’ro ano vem à festa,
Por ser também Ferreirinha,
E ter estrelinha na testa.

20. 
E ter estrelinha na testa,
É o Manel, neto da Zé,
Toda lampeira e lesta,
Que o batizo amanhã é.

21. 
Que o batizo amanhã é,
E até Deus ‘tá convidado,
Por ser um lindo bebé,
Diz o bisavô babado.

22.
Diz o bisavô babado,
O nosso Joaquim Barbosa,
Aos oitentas mais cansado,
Mas a vida é sempre gostosa.

23. 
Mas a vida é sempre gostosa,
Mais no Porto que em Barcelona,
Diz a Sofia, chorosa:
“Beijos, gato, da tua gatona.”

24. 
“Beijos, gato, da tua gatona”
Só pode ser p’ro Tiago
Anda ele numa fona
Só a mamã lhe dá afago.

25. 
Só a mamã lhe dá afago,
Que a coisa custa a passar,
Mas, ó homem cum carago,
Espanta os males, põe-te a tocar

26. 
Espanta os males, põe-te a tocar,
Viola ou acordeão,
Tua tristesa há de passar,
Diz-lhe o F’lipe, que é o irmão

27. 
Diz lhe o F’lipe, que é o irmão,
Outro dos nossos tocadores,
Primos são um batalhão,
E todos bons comedores.

28. 
E todos bem comedores,
Dos Mendes aos Cardoso,
Mão se acanhem, meus amores,
Que o arroz está gostoso.

29. 
Que o arroz está gostoso,
Parabéns à cozinheira,
E p’ra quem for mais guloso,
Temos o doce da Teixeira.

30. 
Temos o doce da Teixeira,
E nos versos deste poeta 
‘Tá a família toda inteira.
… Viva a festa, o resto é treta!

31. 
Viva a festa, o resto é tretas,
Viva a Lena, a matriarca,
Sortuda, tem duas bisnetas
E grande enxoval na arca.

32.
E grande enxoval na arca,
Já não têm gajas d’hoje,
Só querem roupas de marca,
Foge, moço, delas foge!

33. 
Foge, moço, delas foge,
Não é coisa que se diga,
Cada um tem o seu alforje,
Tanto rapaz como rapariga.

34. 
Tanto rapaz como rapariga
Cá da família Ferreira,
Não tem o rei na barriga,
Mas é gente de primeira.

35.
Mas é gente de primeira,
Qu’ honra seu antepassado,
E esta quadra é a derradeira,
A todos digo… obrigado!


Paredes de Viadores, sítio da Nª Srª do Socorro, parque de merendas, 31 de agosto de 2019


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Nota do editor:

domingo, 1 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20114: Escritos do António Lúcio Vieira (4): À noite o silêncio pesa-me... [do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017]


António Lúcio Vieira - 25 poemas de dores e amores. Abrantes: Médio Tejo Edições - Origami Livros, dezembro de 2017, 64 pp. ISBN 9789899990814.


À NOITE O SILÊNCIO PESA-ME 

por António Lúcio Vieira

[ex-fur mil, CCAV 788 / BCAV 790 (Bula e Ingoré, 1965/67); 

natural de Alcanena, vive em Torres Novas; jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; membro da Tabanca Grande, nº 794] (*)



Nasci aqui
neste patamar do tédio
por entre ventos e mistérios.
Nasci aqui
porque aqui me trouxeram as marés
e os ventos alísios do sul e as tempestades
e os ecos do tempo. E o espanto.
Cavaram-me as trincheiras do futuro
cinco reis mouros mais D. Sebastião.
Eu não.

Ás vezes à noite o silêncio pesa-me. 

Não era bem assim que imaginava o desfazer dos dias. 
Partiram há muito os do meu sangue 
porque sou do barro o pó
e não do ouro
onde se haviam de afogar se o pó brilhasse.

Nasci aqui
coberto por dossel de espinhos
resgatado à mortalha de um calvário.
Nasci nas ruas da servidão
onde não passa a luxúria nem a suspeita
que o dia de amanhã por obra de justiça
sepulte os ferros do martírio do meu berço
onde as penas deste jugo começaram. 


Nasci aqui. 
Não vos digo quando nem porquê
que nem eu próprio aprendi
as datas e as razões de se nascer
sem se dar conta de ter aberto os olhos
nem sequer de ter gritado a raiva
por ter sido parido ao deus-dará
e deixado às hienas que me traçam o futuro

António Lúcio Vieira



[Cortesia do autor, in "25 Poemas de Dores e Amores",  
vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017]
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Guiné 61/74 - P20113: Blogpoesia (634): "Clique!", "Âncora" e "O fluir das horas...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana, que continuamos a publicar com prazer:


Clique!

Súbito. Um estalido.
A escuridão morreu.
Fez-se luz.
Surgiu o tema.
Ao som da Cavalgada das Valquírias,
Espargem centelhas.
Há fogo a arder.
Labaredas. Nuvens.
Cavalos a trote.
Tinem as espadas. A ferro e a fogo.
Há vencedores e vencidos.
Impérios da sorte.
Se almejam cenários.
Despojos no chão.
Se desfraldam bandeiras.
A vitória se canta.
Há festa.
Uma madrugada feliz...

Ouvindo Cavalgada das Valquírias de Richard Wagner
Mafra, 25 de Agosto de 2019
19h44m
Jlmg

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Âncora

Cabeça ao alto e pés no chão.
Segurar bem firme para navegar depois.
Escolher bem o porto.
O perigo espreita e não vai perdoar.

Uma amarra ao cais.
Uma âncora ao fundo.
Nunca é demais.
A violência do tornado pode galgar o molhe.

No mar da vida, a tempestade assola.
Se não se tomar cautela,
O naufrágio é certo.
Só boas amarras.
A ligação a Deus é a paz total...

Bar 7 Momentos, 26 de Agosto de 2019
9h52m
Jlmg

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O fluir das horas...

As horas fluem. As folhas vão caindo no fluir do tempo, certo e lento.
As notas breves se sucedem doces, em suave melodia.
Capaz de apagar as mágoas e curar todas as feridas.

Letra a letra, se vai escrevendo o livro duma vida inteira, para lembrar.
Incessante, a fonte escorre e enche, pura de água, o lago fresco.
Invisível, o vento soa e sopra as núvens que vagueiam no céu, na paz da liberdade.
Cobrem-se de verde os campos após as sementeiras.
Em compasso livre se repetem as quatro estações do ano.
Como é bom saber que a bonança vem sempre, depois da tempestade.

Bar Castelão, 28 de Agosto de 2019
10h38m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20070: Blogpoesia (633): "Desengano", "Surpresas da vida" e "Espaços quebrados", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Guiné 61/74 - P20112: Parabéns a você (1675): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 1419 (Guiné, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20101: Parabéns a você (1674): António Barbosa, ex-Fur Mil Cav do Pel Rec Daimler 1106 (Guiné, 1966/68) e José Manuel Corceiro, ex-1. Cabo TRMS da CCAÇ 5 (Guiné, 1969/71)

sábado, 31 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20111: Os nossos seres, saberes e lazeres (351): Tavira, a encruzilhada de civilizações (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Regresso sempre a Tavira com curiosidade e nunca dali saio dececionado com aquele caleidoscópio cultural, os vestígios da Antiguidade bem prezados (intriga-me o que vai ser a pesquisa arqueológica do espaço romano de Balsa, ainda não percebi onde começa a fronteira da presença romana e acaba a fantasia), as belas igrejas, os passeios ao longo do Gilão, o espaço rural envolvente... E a Ria Formosa ali ao lado, e a sucessão de povoados, como Luz de Tavira, ainda a ecoar uma vida piscatória e aquele passado em que Tavira era inevitável ponto de passagem de e para as praças do Norte de África.
À falta de frase mais imaginativa, direi que Tavira propicia uma viagem que nunca acaba, tem tais e tantos atrativos que só apetece regressar.

Um abraço do
Mário


Tavira, a encruzilhada de civilizações (3)

Beja Santos

O viandante dá-se muito bem com a História, a urbanística, a arquitetura civil, militar e religiosa, é impressionante o diálogo de confluências que aqui se estabelecem, é o peso natural de uma região onde se imanam, com flagrante coexistência, civilização e cultura. Percorre-se esta zona do rio Gilão, aqui se está extasiado com o incêndio do poente, já se foi muitíssimo mais adiante junto de ruínas de uma fortaleza, outrora importante para prevenir incursões de um vizinho hostil, sabe-se lá se até de piratas magrebinos, por ali se passeia entre muralhas que parecem ossadas jurássicas depositadas no areal, produto do assoreamento, assim se entra na cidade para este céu limpo percorrido por um cometa de fogo.


Tavira é o ponto do Algarve que mais diálogo oferece sobre civilizações, é possível entrar numa pousada e descer ao passado a falar fenício ou romano, é verdade que não há mesquitas mas a cultura árabe deixou impressionantes marcas de água, é cidade de igrejas cheias de caráter, mosteiros e ermidas, imagens preciosas a distintos cultos a santos, e há até mesmo uma ponte que parece simbolizar a ponte dessas culturas, o rio atravessa a cidade e parece não chegar ao mar, pura ilusão, cidade caleidoscópica, possuidora de uma arquitetura civil cheia de requinte, cidade de escala humana, naquele casco histórico um arranha-céus seria clara monstruosidade.




Já se disse, e qualquer viandante o pode confirmar, a arquitetura civil tavirense tem património prodigioso, próprio de uma rica burguesia argentária ou rural, não esquecer as ricas pescarias e a indústria de conservas, um mundo agonizante a caminho da Ria Formosa. O Palácio da Galeria, o mesmo é dizer Museu Municipal foi restaurado a preceito, vale a pena quem o visita deliciar-se com os seus tetos pintados. Visitar a Igreja da Misericórdia é ser confrontado com azulejaria requintada, assim como não faltam vestígios flagrantes de fenícios ou árabes, medievos ou modernos, há barroco de alta qualidade, é tudo uma questão de pedir informações sobre as igrejas, que são muitas. O viandante bem procurou uma publicação sobre casas solarengas, nada encontrou, o que não diminuiu o prazer da deambulação.



Nos escaninhos da memória, o viandante recorda o seu primeiro passeio fora de Lisboa, tinha 7 anos, a mãe comprou bilhetes na Rodarte para ir ver as amendoeiras em flor. A memória reteve campos que pareciam floridos pelos flocos de neve, isto passou-se em 1952, havia então um Algarve de quintas e muitas pitas, carroças, uma agricultura de subsistência, vendiam-se na berma da estrada figos com amêndoa, e a fruta local. Um modo de viver que entrou em ebulição na década seguinte, com a enxurrada do turismo de massas e as empreitadas para gente altamente abonada, veio a descaraterização de Olhão, Albufeira e Quarteira. Há poetas como Nuno Júdice que cantam essa maldição.




Nos arredores de Tavira, encontrou-se um parque para piquenicar, falava-se em gamos e eles apareceram, não com pezinhos de lã mas com olhar desconfiado e por ali andaram a mordiscar, a criançada em alvoroço, os gamos não lhes deram troco, foram buscar comida um pouco mais longe. A viagem chegou ao seu termo, regressa-se a Tavira e de saco às costas parte-se para a estação da CP, antes porém colhem-se duas imagens de registo antigo, com imenso prazer, é indício seguro que se descobre sempre algo de cativante, são os tais atrativos que asseguram a vontade de regressar. Como vai acontecer.



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Notas do editor

Poste anterior de 24 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20090: Os nossos seres, saberes e lazeres (349): Tavira, a encruzilhada de civilizações (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20110: Os nossos seres, saberes e lazeres (350): a mítica estrada nacional, EN 304, em pleno Parque Natural do Alvão, entre Mondim de Basto e Vila Real... E finalmente conheci o "Ginho", "ao vivo e a cores", na sua terra natal, em terras de Basto, na "Casa do Lago"...(Luís Graça)

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20110: Os nossos seres, saberes e lazeres (350): a mítica estrada nacional, EN 304, em pleno Parque Natural do Alvão, entre Mondim de Basto e Vila Real... E finalmente conheci o "Ginho", "ao vivo e a cores", na sua terra natal, em terras de Basto, na "Casa do Lago"...(Luís Graça)












Parque Natural do Alvão > A mítica EN 304, já hoje considerada como uma das mais belas da Europa, e o miradouro das Fisgas do Ermelho, uma das maiores cascatas europeias(, fora da Escandinávia e dos Alpes),  no rio Olo, afluente do


Vídeo (30'') Luís Graça (2019) > Miradouro das Figas do Ermelo, 
Parque Natural do Alvão,  Mondim de Basto


1. Obrigado, Luís Jales de Oliveira. Acabaste por ser tu a localizar-me, pelo telemóvel, estava eu no Castelo de Arnoia, no vizinho concelho de Celorico de Basto. O teu número de telemóvel, antigo, já não estava atribuído.

Tiveste depois a gentileza de ir ter comigo (e o meu grupo, a Alice, minha esposa, a Nitas e o Gusto, os meus cunhados e sócios da Quinta de Candoz)... Encontrámo-nos no Restaurante Esplanada Caso do Lago, em pleno centro de  Mondim de Basto. Tomámos o café juntos e selámos o nosso encontro, "ao vivo e a cores", com uma aguardente DOC Lourinhã!...

Ora, eu, de passagem pela tua terra, Mondim de Basto, queria apenas dar.te um "alfabravo" e "partir mantenhas"... 

Voltei, ontem, 5ª feira à noite, à Tabanca de Candoz, no Marco de Canaveses, depois de uma breve mas memorável viagem por terras de Basto, do Parque Natural do Alvão, e pela mítica estrada nacional nº 304... Viemos todos extasiados com a magia das tuas paisagens... incluindo as Fisgas de Ermelo (que revisitámos)... 

Agora percebo melhor donde te vem a inspiração poética... Mas Mondim de Basto é para se conhecer com tempo e vagar,segundo o teu sábio conselho... Prometo voltar... Afinal de contas, somos vizinhos. A tua generosidade e hospitalidade foram excessivas, dignas de um príncipe. E, como amor com amor se paga, espero por ti um dia deste, aqui, em Candoz, ou mais abaixo na Lourinhã, na Estremadura...

O tempo foi curto. Fiquei feliz por te conhecer pessoalmente, para mais na terra que tanto amas e que cantas como ninguém. A Alice e os meus cunhados não sabem, também,  como agradecer-te os teus mimos. Mas eles também são do Norte e sabem como receber, como as gentes de Basto. Afinal, vocês todos filhos do vale do Tâmega.

Fico feliz também por saber que ajudaste a travar o crime lesa-Tãmega, o nosso vale do Tâmega que, com o vale do Sousa, foi o berço deste terrunho  a que chamamos Portugal, crime esse que se perfilava, como uma espada de Dâmocles,  com a planeada construção da barragem de Fridão... 

Saúde e, longa vida para ti e os teus ... Tens aqui algumas das muitas  fotos que tirei.

PS - Força para o teu livro sobre a Guiné!...Haveremos de encontrar editor!...


2. Nota do editor:

Já em tempos aqui escrevemos, soltas as amarras de editor (*): há terras do Portugal profundo que tem a sorte de ter o seu poeta, o seu cantor, o seu músico, o seu pintor, o seu fotógrafo... Mondim de Basto, ou melhor, as Terras de Basto, têm o privilégio de, a par da beleza telúrica, da tradição histórica, do património cultural e da riqueza gastronómica,  poderem orgulhar-se da voz que as canta. Se uma imagem vale mil palavras, um poema é um caleidoscópio. Não há fotografia que substitua um poema.

Luís Jales de Oliveira,  carinhosamente tratado por "Ginho",  filho de Mondim de Basto, nosso camarada, membro da nossa Tabanca Grande, foi fur mil trms inf, Agrup Trms de Bissau e CCAÇ 20 (Bissau e Gadamael Porto, 1972/74).  E é, sem favor, o  autor  de um dos mais belos poemas, que eu tenho lido, sobre a a Guiné e a guerra colonial, der ressonância bíblica:  "Se eu de ti me não lembrar, Jerusalém (Gadamael Porto, Guiné, 1973)" (*).

Destaque igualmente para o seu livro de poemas, mais recente,  "Corre-me um Rio no Peito" [ed. de autor, 2010, Mondim de Basto, 72 pp. ], que merece uma leitura, pausada e saboreada,  à beira do rio Tâmega, em Momdim de Basto, ou em Amarante ou em Canavezes... Tem um outro mais antigo,  Basto (poemas). [Mondim de Basto], edição de autor, 1995, 49 pp.], de que já reproduzimos alguns excertos (**).

Faltava-me, entretanto, conhecer o "Ginho", em carne e osso, ou seja, ao vivo e a cores... Por sorte, e quase por acaso, proporcionou-se, ontem, quinta feira, dia 29, esse tão desejado encontro... Estando eu na Tabanca de Candoz,  a 60 km de distância, fomos dar um dos nossos passeios de um dia a terras de Basto, eu, a Alice e os meus cunhados e sócios da Quinta de Candoz.  Sen programa rígido, a ideia era dar um passeio pela parte antiga de Mondim de Basto, almoçar por ali e visitar as Fisgas de Ermelo... Por razões de saúde, não nos convinha fazer grandes caminhadas...

Lá localizei o "Ginho" (ou melhor, foi ele que deu conta da minha presença nas terras de Basto de que ele é o "príncipe")...Ora não se entra impunemente aqui... Porquê ?... Porque, apesar do "túnel", o nosso "príncipe" avisa,  em tom intimista: “Para cá do Marão mandam cá os que cá estão,/ Que até aqui Basto eu!” (Luís Jales Oliveira, In Basto (poemas), 1995, p. 15).

Embora ele me tratasse, principescamente, como "comandante", eu tive que baixar a bolinha... E,  à despedida,  lá bebemos um "Lourinhã ( a "Casa do Lago" tem uma fantástica garrafeira!...e o dono é confrade da Alice, ou seja, irmão da Colegiada de Nossa Senhora da Anunciação da Lourinhã).

Bebemos um "Lourinhã" à vida, à saúde, à camaradagem à Guiné, a Mondim de Basto, a Candoz, à Lourinhã... E com a promessa de voltarmos, se possível na Noite de Romeiros de Santiago, em 24 de julho, hoje  o principal cartaz das Festas do Concelho de Mondim de Basto. O "Ginho" muito contribuir, enquanto antigo assessor cultural da presidência da câmara municipal, para a reabilitação e dinamização desta tradição ancestral. (***)


Mondim de Basto > Restaurante Esplanada Casa do Lago > 29 de agosto de 2019 >  Luís Jales de Oliveira, o representante da Tabanca Grande em terras de Basto...


Mondim de Basto > Restaurante Esplanda Casa do Lago > 29 de agosto de 2019 > A Alice e o Luís Jales Oliveira, carinhosamente tratado por toda a gente como "Ginho".


Mondim de Basto > 29 de agosto de 2019 > Junto ao monumento aos combatentes do ultramar >  Da esquerda para a direita, Nitas, Luís Graça, "Ginho" [Luís Jales de Oliveira] e Alice



Mondim de Basto > 29 de agosto de 2019 > Junto ao monumento aos combatentes do ultramar >  Da esquerda para a direita, Nitas, Guisto, "Ginho" [Luís Jales de Oliveira] e Alice

Fotos (e legendas): © Luís Graça  (2019). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:


Guiné 61/74 - P20109: Notas de leitura (1213): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (21) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2019:

Queridos amigos,
Conheci finalmente o bardo, fomos almoçar borrego e bebemos uma boa pinga, bom pão molhado em azeite e azeitonas saborosíssimas. Já nos tratamos pelo nome próprio, trocamos presentes, os dele necessariamente mais valiosos, são fotografias, imagens de jornais de caserna. Pedi-lhe encarecidamente que notificasse os camaradas do BCAV 490 do que aqui se passa, congeminei este tipo de divulgação da sua "Missão Cumprida" para pormos a nossa sala de conversa a funcionar em pleno, gente de todas as comissões a contar histórias parecidas, prevalecendo, claro está, os testemunhos que vierem do BCAV 490. O bardo e eu agradecemos que haja muitas interferências, comentários e adição de todos os materiais da época. Valeu?

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (21)

Beja Santos

“António Roque fugiu
ao fazer a retirada.
Na mata de Uncomené,
esta coisa amargurada.

A 487 em Caiar
ia tudo patrulhando,
algum gado apanhando
para fome não passar.
Neste sítio não houve azar
mas mais tarde surgiu.
Para a mata se partiu,
havendo muitas aflições
e, acabando as munições,
António Roque fugiu.

Morreu um cabo e um soldado
da 1.º Companhia
quando o 2.º pelotão seguia
para dentro do mato cerrado.
Passou-se um mau bocado
havendo muita rajada.
O Fitas, bom camarada,
a muito se aventurou
e um tiro na barriga levou,
ao fazer a retirada.

O comandante do Pelotão
era o sr. Alferes Menezes.
Ele recomendou muitas vezes
para não perderem reação.
Apesar de muita aflição
lutaram sempre com fé.
O amigo Henrique José
é que passou muita dor:
morreu ele e o condutor
na mata de Uncomené.

O Comandante do Batalhão
neste ataque ficou ciente:
foi talvez o mais valente
de toda a operação.
Quiseram apanhar à mão
a nossa rapaziada,
jogaram muita catanada
ao chegarem à nossa beira,
pois não esquece pela vida inteira
esta coisa amargurada.”

********************

É dever aqui ajuntar memórias de outros que andaram pela batalha do Como. Há tudo a ganhar em ler o testemunho de António Rebelo Heliodoro, fez parte do DFE8, comandado por Alpoim Calvão. Tem um antes e um depois do Como, é leitura tão emocionante que aqui se cita algum do antes e depois, conforme aparece na obra "Dias de Coragem e de Amizade, Angola, Guiné, Moçambique: 50 histórias da Guerra Colonial", de Nuno Tiago Pinto, A Esfera dos Livros, 2011:

“Fomos recebidos em Bissau por uma banda de música. Depois de deixarmos as coisas no destacamento, andámos a ver a cidade. Eram os primeiros dias de novembro de 1963. Mas não tivemos muito tempo para passear: deram-nos logo a missão de libertar a aldeia de Darsalame, que tinha sido tomado pelos ‘turras’. Era para ser uma operação de três dias. Durou oito. Passámos o rio Geba, entrámos no Corubal e chegámos a terra nas Lanchas de Desembarque Médio (LDM). Foi a primeira vez que entrei em ação. A tensão era enorme porque não sabíamos o que ia acontecer. Nunca nos explicaram o que era a guerra. Nem no curso de Fuzileiros Especiais.

O destacamento tinha 78 homens e éramos liderados pelo Comandante Alpoim Calvão. Desembarcámos num palmeiral, sofremos logo uma emboscada. A noite estava a aproximar-se quando caímos noutra emboscada, numa passagem que dava acesso à tabanca. Estava tudo destruído e não havia população. O Alpoim Calvão foi o primeiro a ser atingido por um tiro que lhe furou o camuflado e acertou de raspão nas costas. Eu é que o levantei. Combatemos. Mais à frente um rapaz foi ferido na cabeça e levado para a lancha.

Conseguimos entrar na tabanca e içámos a Bandeira Portuguesa. Depois passámos lá a noite, encostados às bananeiras a aguentar o cacimbo. Ao todo, estivemos lá oito dias e o inimigo acabou por se afastar. Recebemos ordens para regressar a Bissau. Foi um batismo a sério.

No início de 1964 fomos chamados para a Operação Tridente. Alguns destacamentos tinham a missão de tomar as ilhas de Caiar e de Catunco. A nossa era o centro do Como. Fomos acompanhados pelo Batalhão de Cavalaria 490, por uma companhia de Para-quedistas e outra de Comandos. Desembarcámos de madrugada. Estávamos a contar com uma grande receção, mas não aconteceu nada. Chegámos ao centro da ilha e içámos a bandeira. Mas na segunda noite começámos a levar porrada. Na manhã do terceiro dia o Comandante Calvão foi ao mato com duas secções. Estivemos 2 horas e 45 a combater o inimigo. Contámos uns 100 homens que nos atacaram com o fogo cruzado. Saímos da tabanca de S. Nicolau com duas baixas. Foram os primeiros fuzileiros mortos em combate. Não sabemos se lhes provocámos baixas.

Numa altura em que o Comandante Calvão foi à fragata Nuno Tristão receber ordens, começámos a ser bombardeados. Estivemos ali duas semanas naquele impasse. Não havia comida e ao fim de oito dias tivemos de ir cortar carne do gado que tinha sido abatido quando lá chegámos. O fundo dos cantis trazia um pequeno tacho onde fazíamos uma sopa em pouco tempo. Bebíamos a água das poças onde andavam os porcos. Era só meter um comprimido lá para dentro para a desinfetar. Algumas semanas depois foi montada uma base logística numa praia. Estava lá uma Companhia de Comando e Serviços a fazer comida e havia tendas de medicina. Ficávamos lá dois dias a descansar e depois voltávamos ao mato. Sempre por charcos e pela selva. Nunca pela estrada. À noite o Destroyer ia lá bombardear.

Andávamos por ali quando uma das companhias foi atacada e perdeu-se no mato. O oficial deles foi pedir ao Comandante Calvão que os fosse buscar. E nós fomos. Percorremos a mata toda e conseguimos reunir os homens, que tinham fugido cada um para o seu lado. Só ficaram lá dois que tinham sido mortos e armadilhados. Quando os puxámos, por acaso, a cavilha da granada ficou presa na terra e não rebentou. Foi um dia de glória. Por causa disso o meu Destacamento foi condecorado com uma Cruz de Guerra.

Depois voltámos aos combates. Lutei debaixo das bombas de napalm que eram lançadas por aviões que vinham do Sal para queimar a mata. Nós estávamos entrincheirados lá em baixo e sentíamos as pernadas das árvores a cair. Estremecia tudo. Foi dramático. Cheguei a pedir a Nossa Senhora de Fátima para aquilo passar. Quando contei isto, chamaram-me mentiroso. Mas eu digo aquilo que vi e por que passei. Nunca me vou esquecer disso, enquanto for vivo. Foram 72 dias e 72 noites.

Regressámos a Bissau com os mortos, fizeram-se os funerais e passado um tempo estava noutra operação na mata de Cacine. Nos dois anos em que estive na Guiné participei em 109 ações de fogo. Foram horas e horas de patrulhamento. Até que em julho de 1964 fomos acompanhar o batismo do Destacamento de Fuzileiros Especiais 10 na Operação Túlipa. Tratámos de tudo em três dias e quando nos preparávamos para regressar, ficámos sobre fogo inimigo. Um avião nosso sobrevoou a tabanca onde estávamos e começou a descarregar bombas em cima de nós. Nesse dia 17 sofremos 4 mortos e 42 feridos. Eu fui um deles. Fiquei com estilhaços nos braços, nas pernas e na cabeça – além dos problemas nos ouvidos. O sangue escorria-me. Fui evacuado para Cacine e no outro dia fui levado para Bissau. Assim que fiquei melhor regressei ao ativo. Eram precisos homens. Dos 74 operacionais iniciais ficámos com 18.”

(continua)

Imagens cedidas pelo Santos Andrade, fotografias tiradas na Ilha do Como e em Bissau, 1963-1964


Imagens das duas primeiras páginas do n.º 3, do boletim Sempre em Frente, do BCAV 490, 8 de Agosto de 1965.
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Notas do editor

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Último poste da série de 26 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20095: Notas de leitura (1212): Descrição da Serra Leoa e dos Rios da Guiné de Cabo Verde (1625), por André Donelha, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977, prefácio de Avelino Teixeira da Mota (1) (Mário Beja Santos)