quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20343: (De)Caras (141): "Nha Maria Barba" ou Maria da Purificação Pinheiro (Boavista, 1900 - Bissau, 1975): expoente máximo da morna e da morabeza da Boavista, esteve no Porto, no Palácio de Cristal, em 1934, na 1ª Exposição Colonial Portuguesa: notas de leitura de um trabalho de pesquisa biográfica, feita por Antonio Germano Lima, da Universidade de Cabo Verde




Porto > 1934 > 1ª Exposição Colonial Portuguesa  > Cantadeiras da Boavista. Maria Barba (Maria da Purificação Pinheiro) é a primeira da esquerda, de pé, segundo indicação do nosso amigo Nelson Herbert, que nos enviou esta foto, sem citação de fonte. Usa o lenço típico da sua ilha. As restantes cantadeiras eram as seguintes (, não sabemos a ordem): Maria Rodrigues Pereira, Vitória Santos Brito, Luisa Benvinda Santos e Maria Basília Ramos.



Porto > 1934 > 1ª Exposição Colonial Portuguesa  > Cantadeiras da Boavista, Cabo Verde, com homem da Boavista, de pé em segundo plano; há um homem de óculos, no primeiro plano, e por detrás uma senhora, de fato claro, que deviam pertencer à organização. Maria Barba é a primeira da esquerda, de pé. A representação de Cabo Verde, composta por 19 elementos, tinha como delegado "o sr. Machado Saldanha, colonial distintíssimo" ("Ultramar", nº 11, 1 de junho de 1934, p. 4).

Nota de António Germano Lima: Foto emprestada de "Les métis des îles du Cap Vert" [Os mestiços de Cabo Verde], Stuttgart : Ferdinand Enke Verlag, 1937. - [9] p., il. Autoria de António Augusto Mendes Correia (Porto, 1888 . Lisboa, 1960), antropólogo, professor da Universidade do Porto. A foto foi tirada no Porto, Portugal, por ocasião da Exposição Colonial de 1934.





Cabeçalho do "Ultramar - Orgão Oficial da I Exposição Colonial", Porto, nº 11, 1 de junho de 1934 (Diretor: Henrique Galvão). Cortesia de Hemeroteca Digital, CM Lisboa.


nome próprio da Maria Barba era Maria da Purificação Pinheiro, de acordo com o jornal "Ultramar", orgão oficial da Exposição Colonial, dirigido por Henrique Galvão,  n º 11, Porto, 1 de junho de 1934.

"A representação da colónia de Cabo Verde"(título da notícia na pág. 4) era composta por 19 elementos, entre cantadeiras e dançarinas (todas da Boavista), músicos e artesãos.  Facto notável, o jornal referia que desse grupo de 19, "17 sabiam ler e escrever", um proporção de longe superior à média da população metropolitana.

Segundo Germano Lima, na sua página do Facebook, Maria Barba morreu em Bissau, em 2 de julho de 1975, com 70 anos. "Estive cerca de dois meses em Bissau a investigar, fui ao cemitério onde supostamente terá sido enterrada, mas o guia não conseguiu-me ajudar a localizar a sua cova!". 


1. Por mão do nosso amigo Nelson Herbert, guineense com raízes cabo-verdianas, jornalista da VOA - Voice of America,  chegámos a este texto sobre Maria Barba, expoente máximo da Morna da ilha da Boavista,  que viveu (a partir do início da década de 1949 e morreu em Bissau, em 1975) (*), texto esse que é da  autoria do investigador e escritor António Germano Lima. 

O texto original remonta a 1990, mas vamos fazer referência à versão que ele publicou na sua página do Facebook, em 6 de junho de 2012.  Ainda não temos autorização do autor para o reproduzir na íntegra. Nem vamos reproduzi-lo na íntegra, dado o excesso de referências locais bem como ds notas de pé de página. 

Vamos, isso, sim, com a devida vénia,  destacar o interesse do texto para um melhor conhecimento desta cantadeira, esquecida (**), que viveu a última metade da sua vida em Bissau, na antiga Rua Engº Sá Carneiro (hoje, Rua Eduardo Mondlane), sendo a sua família vizinha da família do Nelson Herbert, membro da nossa Tabanca Grande.


2. Breve nota curricular sobre o autor, António Germano Lima:

(i) nasceu na Vila das Pombas, Paul, Santo Antão, Cabo Verde, em 30 de janeiro de 1952.

(ii) frequentou o ensino secundário no antigo Liceu Gil Eanes, no Mindelo, São Vicente, a ilha em frente da sua terra natal;

(iii) em 1980 licenciou-se em Pedagogia (,na especialidade de Administração Escolar), pela Universidade de Brasília;

(iv) exerceu em Cabo Verde vários cargos de direção ligados à Educação e ao Desporto;

(v) dos seus trabalhos de investigação, publicou vários artigos em jornais e revistas especializadas, nacionais e estrangeiros;

(vi) editou, em 1997, o livro “Boavista: Ilha de Capitães (História e Sociedade)” e, em 2002, “Boavista, Ilha da Morna e do Landú”.

Fonte: Adapt. de Cabo Verde Info



3. Notas de leitura, por Luís Graça

"Maria Barba não é ficção nem criação figurativa dos boavistenses; foi uma existência real"  


por António Germano Lima


[Docente da Universidade de Cabo Verde, Praia, 6 de Junho de 2012, Página do Facebook de António Germano Lima; originalmente publicado no Jornal Voz di Povo na década de 90 do século passado.]

O autor aborda três tópicos, relevantes para a história da morna, género musical por excelência da cultura cabo-verdiana, em vias de ser oficialmente classificada pela UNESCO, no próximo mês de dezembro, como "património imaterial da humanidade" (**):

(i) As cantadeiras de Morna da Boavista;

(ii) Maria Barba: símbolo da morabeza boavistense;

(iii) Maria Barba na 1ª Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934)

Nos excertos que faremos do texto, vamos respeitar a ortografia usada pelo autor. Por outro lado, não vamos sobrecarregar o poste com pesadas referências bibliográficas nem notas desnecessárias,



(i) As cantadeiras de Morna 
da Boavista


A Ilha da Boavista sempre foi terra de cantadeiras, poetas e músicos. E é considerada o "berço da morna".  E mais: era uma terra de cantadeiras-compositoras, como foi o caso, talvez mais notável, da Maria Barba. 

(...) "Dos queixumes e lamentações, típicos da morna antiga boavistense, produziram-se a kantadeira de diante (1ª voz) e o grupo de kantadeiras de baxon (coro),  provavelmente originárias dos trabalhos colectivos livremente realizados na Ilha da Boavista, tais como pastorícia, lavoura, apanha do sal, da urzela e da semente de purgueira, lavagem de roupa e apanha da água nas ribeiras e nas fontes, etc." 

Explica-se depois,  em nota de rodapé que as cantadeiras eram "mulheres que antigamente cantavam em salas de baile", (...) "regressando a casa após um dia de trabalho no campo ou nas ribeira": a  "cantadeira de diante" era a mulher que cantava a morna a solo (1ª voz),  sendo seguida e acompanhada, no "baxon" (coro), por um grupo de outras que vinham  imediatamente atrás.  

Como fonte principal de informação, o autor cita Désiré Bonnaffoux ("Música Popular Antiga de Cabo Verde"), que diz o seguinte: "quantas vezes, até aos anos 1930, as moças da vila de Sal-Rei, Boa Vista, que à tarde iam buscar água à fonte, voltavam ao cair da noite cantando uma Morna muito singela,  composta por algumas delas naquela tarde!"...

Não havia bailes nem salas de bailes sem a imprescindível presença destas cantadeiras: 

Baltazar Lopes, segundo Germano Lima, "informa que as kantadeiras boavistenses tiveram um papel importante não só na composição de mornas como na sua difusão para as outras ilhas". 

Recorde-se que há 3 variantes da morna, a da Boa Vista, a mais antiga, remontando ao séc. XIX; a da Brava, do início do séc. XX, com Eugénio Tavares; e de São Vicente, dos anos 30/40, com B.Leza. Bana (1932-2013) e Cesária Évora (1941-2011), naturais de São Vicente, são nomes maiores da morna, mas já de outra geração. 

Aliás, a Cesária ainda não tinha nascido quando "o meu pai, meu velho, meu camarada", Luís Henriques (1920-2012), ex-1º cabo inf nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão, Regimento de Infantaria nº 5 (Caldas da Rainha), chegou ao Mindelo, em julho de 1941. Mas são do mesmo signo, o Leão, o meu pai nasceu a 19 de agosto de 1920, a Césaria a 21 de agosto de 1941.

Por essa altura, a Maria Barba ou estava a partir para a Guiné ou já lá estava. Mas a sua criação, a morna "Maria Barba", era ainda popular no Mindelo, e ficou no ouvido dos expedicionários... O meu pai, pelo menos, ainda a contarolava, muitos anos depois. Bana, por sua vez, só começa a sua carreira nos anos 60, e acaba por ser responsável por manter viva a memória de Maria Barba, que vive esquecida em Bissau.

O autor, Germano Lima, cita depois um extensa lista de cantadeiras que ficaram na Boavista, do princípio do séc. XX até fim da década de 60,  lista essa em que vêm logo a cabeça dois nomes maiores: Benvinda Santos Livramento e a Maria Barba, mas também Vitória Brito, representantes de uma geração da morna boavistense que se extinguiu.


(ii) Maria Barba: símbolo 
da morabeza boavistense


"Uma das provas do espírito acolhedor, de convivência sadia, alegre e amiga da gente boavistense, genericamente alcunhada de kabreiro, é a morna Maria Barba, cuja origem e conteúdo decorrem de um diálogo de despedida entre a célebre kantadeira Maria Bárbara, conhecida por Maria Barba, e o Tenente Serra (...) da Marinha Portuguesa, de passagem pela Ilha em missão de serviço geodésico."

O ten Serra morou, inclusive, na ilha, havendo ainda, em meados dos anos 90, restos da sua casa. 

Mss quem era a Maria Barba ?

Era natural da Povoação-Velha, onde nasceu entre 1895 e 1900 (, segundo um informante local, António Lima, conterrâneo da Maria Barba, e que " teve a sorte de conviver com [ela], já de idade avançada, na Guiné-Bissau". O autor apurou depois que a cantadeira morreu em Bissau, em  2/7/1975, com 70 anos, pelo que terá nascido em 1905. 

(...) "Era filha de Nhâ Barba da Povoação-Velha; seu pai era João de Deus Vitória, natural da Vila de Sal-Rei; era irmã do tocador de viola conhecido por Ti Pó, e de Sátiro, naturais da Vila de Sal-Rei. " (...)O pai era considerado um "proprietário abastado", segundo os padrões locais.

Diz o autor que Maria Barba teve duas filhas, Lixinha e Txutxa, que "emigraram para a Argentina, de onde nunca mais regressaram" (sic)...Não diz se são filhas de um 1º casamento. Nelson Herbert conviveu com os seus netos em Bissau... Filhos de quem ? De rapazes, de outro casamento ? Um ponto  a esclarecer...

Sobre o tenente Serra, que ficou imortalizado pela letra da Maria Barba, sabe-se que "conviveu maritalmente com a kantadeira Vitória Brito, com a qual teve duas filhas: Linda, nascida por volta de 1928, e Djina, mais tarde" (...), as quais emigraram e se casaram no Senegal e nos EUA, respetivamente. (Vitória Santos Brito também fará parte da representação de Cabo Verde na 1ª Exposição Colonial Portugesa, de 1934, no Porto.)

O autor, Germano Lima,  não tem dúvidas sobre a existência real de Maria Barba e da sua importância para a história da morna que, diga-se de passagem, não é só canção, mas também dança:

(...) "De todas as kantadeiras de sala de baile da Boavista, é consenso geral que a Maria Barba, kantadeira de diante, foi a maior de todos os tempos. Ela ficou a ser conhecida para além das fronteiras da Ilha, ao cantar numa sala de baile, para o Tenente Serra, uma das mornas mais antigas da Boavista. Do diálogo então entabulado entre os dois, por um lado, ficaram decalcadas, sobre a melodia dessa morna antiga, novas letras e, por outro, a morna foi rebaptizada com o nome de Maria Barba, perdendo-se as letras e o nome da morna que se pensa original" (...).

E continua Germano Lima:


"O informante João Santos Ramalho (...)  que viveu a cena, conta que, contrariamente ao que se tem dito, Maria Barba não foi espreitar à janela ou à porta da sala do baile onde se entabulou o diálogo entre ela e o Tenente Serra, mas era uma das damas da noite nesse baile: no momento do diálogo, de madrugada, Maria Barba fazia par com o Tenente Serra, querendo, entretanto, deixar de dançar pois tinha de partir, naquela madrugada, para a Manga [, zona extensa e de muita pastagem, quando chove, explica-se em rodapé],para a matança de gafanhoto".

O Cabo Chefe da Povoação-Velha incumbira o Cabo de Polícia de intimar Maria Barba, no dia do baile, para, no dia seguinte, ir trabalhar na matança de gafanhoto, no âmbito da "paga kabesa" (, cada família destacava um elemento para a realização de trabalhos coletivos ou comunitários).


O informante Ramalho, ele próprio, "acompanhava, ao violão, o violinista da noite quando o diálogo entre o Tenente Serra e a Maria Barba se deu, produzindo uma nova poética da morna". 

O autor reproduz depois  extratos das letras da morna Maria Barba, "recuperadas por Eutrópio Lima da Cruz":

TS-Maria Barba, canta mais uma morna
para a despedida do Senhor Tenente Serra. (Bis)

MB-Ó Senhor Tenente, N ka ta kantâ mais
pamô N ta ta bai pa Manga pa matansa de kafanhote.
Ó Senhor Tenente, ali Kóbe de plisa dja bem b’skó-me.
Ai se N ka bai, el ta mandó-me preza pa Porte, oi, oi.

TS-Quem é o Chefe desta povoação?,
porque, Maria Barba, tu não vais ainda.
Quem é o Chefe desta povoação?,
porque, Maria Barba, tu não vais ainda.
...........................................

MB-Saúde Senhor Tenente, saúde, Senhor Engenheiro!
Um muito obrigada de Maria Bárbara.
Ó Senhor Tenente, óra ke busé bai pa Lisboa
ai ka busé skesé de nos, oi, oi.
...........................................


(iii) Maria Barba na 
1ª Exposição Colonial Portuguesa 
(Porto, Palácio de Cristal, 1934)

Maria Barba e outras cantadeiras da Boavista não ficaram conhecidas apenas na sua ilha.A sua fama ultrapassou mesmo as fronteiras de  Cabo Verde, tendo, por exemplo,  participado, um grupo delas,   na 1ª Exposição Colonial Portuguesa (Porto, Palácio de Cristal,  1934). A sua presença está documentada nos jornais da época. 

(...) "Durante este evento, Maria Barba, Luísa Benvinda Santos (Pantxa de Benvinda) e Vitória Brito, todas de Povoação-Velha, Lusy de Totó, da Vila de Sal-Rei, e Marí Jíjí, da Bufareira, cantaram no Palácio de Cristal, no Porto" (...).

As  cantadeiras foram acompanhadas por uma "orquestra" (conjunto tradicional) composta por 4 instrumentos (violino, violão, viola e cavaquinho) e 8 tocadores (dois por instrumento. 



Nha Maria Barba, com um dos netos ao colo,  em Bissau, c. anos 50, na sua casa em Bissau,  na Rua Eng Sá Carneiro (hoje, Rua  Eduardo Mondlane)... Nos anos 60/70,  em frente da casa ficava a messe de sargentos  da FAP.

Foto (e legenda): © Nelson Herbert (2019).  Todos os direitos reservados. [Edição elegendagem  complementar. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


E remata o autor:

(...) "Muitos outros dados poderíamos aqui avançar sobre esta figura, a Maria Barba, que tanto contribuiu, no seu tempo, para a divulgação da morna, em Cabo Verde, em Portugal e na Guiné-Bissau. Os seus ossos repousam, hoje, num dos cemitérios da Guiné-Bissau, para onde emigrara, já de meia-idade [, no início dos anos 40].

"Quando a saudade apertava o seu peito e cantava a morna que leva o seu nome, no fim acrescentava o seguinte dístico: - Oi toda vez ke N ta kantâ ese morna / el ta faze-me lenbrâ Bubista, nha téra (...).  

(...) "Por isso, pensamos que a memória da Maria Barba merece, não só uma melhor referência mas também, e sobretudo, um pouco mais de atenção por parte das autoridades competentes: que tal a transladação dos seus ossos para a sua querida Boavista (Governo de Cabo Verde, em colaboração com o Governo da Guiné-Bissau) e a elevação de um busto na Povoação-Velha (Câmara Municipal, com ajuda das forças vivas da Boavista)? 

"Desta forma, a kantadeira Maria Barba ficaria solidamente na nossa memória colectiva e, assim, ninguém mais ousaria atentar contra a sua existência real."

Mantenhas para o autor, a quem agradecemos a informação e o conhecimento que quis partilhar connosco, bem como para o Nelson Herbert, bom amigo que, afinal, ainda está em Washington, esperando reformar-se "nos próximos 2 a 3 anos e passar mais tempo no Mindelo".

[Notas de leitura elaboradas por L.G] [***]

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Notas do editor:

(*) 11 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13718: Recuerdos de uma infância: a Nha Maria Barba, a avó Barba, cantadeira de mornas, da Boavista, minha viziinha de Bissau (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

(**) Vd. postes de:


9 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20328: Meu pai, meu velho, meu camarada (59): "Maria Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más... Uma morna imortal, numa homenagem à Morna, em vias de ser oficialmente consagrada como "património cultural imaterial da humanidade"

11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20332: Historiografia da Presença Portuguesa em África (184): O modelo (Maria Barba) e o fotógrafo (José Bacelar Bebiano)... A propósito de uma morna "imortal"...Resta saber quem era o "senhor tenente Serra"...evocado na letra "Mária Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más...

12 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20335: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (112): Nha Maria Barba, ou avó Barba, a grande cantadeira de mornas da ilha da Boa Vista, foi minha vizinha, em Bissau: morávamos na antiga Rua Engenheiro Sá Carneiro, a dos serviços metereológicos e da messe de sargentos da FAP... (Nelson Herbert, Mindelo, Cabo Verde)

(***) Último poste da série > 2 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20303: (De)Caras (114): Ainda o comerciante António Augusto Esteves, transmontano, fundador da Casa Esteves, falecido em Lisboa em 1976 (Lucinda Aranha)

Guiné 61/74 - P20342: Parabéns a você (1708): César Dias, ex-Fur Mil Sapador do BCAÇ 2885 (Guiné, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Soldado At Inf da CCAÇ 3546 (Guiné, 1972/74) e Maria Arminda Santos, ex-Tenente Enfermeira Paraquedista (1961/70)



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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20339: Parabéns a você (1106): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil Art da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20341: Historiografia da presença portuguesa em África (186): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2): "Portugal Vasto Império", por Augusto da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Iniciou-se este punhado de reflexões com uma carta endereçada ao Governador da Guiné a propósito de um questionário etnográfico onde se conferia larga importância ao conhecimento da vida dos indígenas, a sua vida material e a sua constituição moral, conhecê-lo para educá-lo nos bons valores da cultura ocidental, a preponderante.
Nesse mesmo ano surgiu a obra a que agora se faz referência, surgida no início do Estado Novo, maturada durante a Ditadura Nacional, apologia do Império Português, mas onde se fala do perigo espanhol, da indiferença do povo para os valores imperiais, são inquiridas personalidades vincadamente nacionalistas, integralistas, militares das campanhas de África, um grande empresário e até um republicano, que é zurrado pelo seu comentário ao militarismo nacionalista. Seja como for, levantava-se a consciência imperial, pobretes na Europa, mas com vasto Império, imensas riquezas para explorar, o sonho de muitos era levantar a agricultura e desbravar tais riquezas pelas várias partidas do mundo.
Do racismo se falará mais adiante.

Um abraço do
Mário


A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (2)

Beja Santos

Em 1934, em circunstâncias completamente diferentes àquelas em que o Capitão Vellez Caroço se dirigiu ao Governador da Guiné para justificar o seu questionário etnográfico para melhor se conhecerem as minúcias da vida material dos indígenas, para melhor se exercer a ação colonizadora e de soberania na Guiné, a Imprensa Nacional publica um inquérito organizado por Augusto da Costa entre 1926 e 1933, o inquérito aparecera no Jornal do Comércio e das Colónias, tinham sido ouvidos Afonso Lopes Vieira, Pequito Rebelo, Fernando Pessoa, Bento Carqueja, Sousa Costa, Marcello Caetano, José Francisco da Silva, Fernando Garcia, João Ameal, João de Almeida, Paiva Couceiro, João de Azevedo Coutinho, Hipólito Raposo, Fidelino de Figueiredo, Alberto de Monsaraz, Américo Chaves de Almeida.
Augusto da Costa era inequivocamente nacionalista e tradicionalista, as suas preocupações aqui expressas prendem-se com o Império, o que fazer dele quando potências poderosas como o III Reich e o Reino Unido procuram entendimento para retalhar Angola e Moçambique, Augusto da Costa insiste que Portugal é a terceira potência colonial do mundo, que o país permanece indiferente a todas estas potencialidades e verbera:  
“Aos intelectuais portugueses se impõe o dever sagrado de levantar as forças morais do país, acordando a consciência nacional. A imprensa, não há que esconde-lo, tem graves responsabilidades: porque os jornais e jornalistas são capazes de manter o espírito público em tensão durante um mês seguido, dando-lhe todas as minúcias e particularidades de um crime misterioso, são os mesmos que se negam, pelo cansaço, a manter no público esse mesmo estado de espírito, quando se trata de mostrar os perigos que ameaçam as colónias portuguesas”.

O escritor e jornalista endereçou a um conjunto de intelectuais um pequeno questionário, com as seguintes fórmulas:
- sim ou não Portugal, potência de primeira grandeza na Renascença, guarda em si a vitalidade necessária para manter no futuro, na nova Renascença que há de seguir-se à Idade Média que atravessamos, o lugar de uma grande potência?;
- sim ou não Portugal, sendo a terceira potência colonial, tem todos os direitos a ser considerada uma grande potência europeia?;
- sim ou não Portugal, amputado das suas colónias, perderá toda a razão de ser como povo independente no concerto europeu?;
- sim ou não o moral da nação pode ser levantado por uma intensa propaganda, pelo jornal, pela revista e pelo livro, de forma a criar uma mentalidade coletiva capaz de impor aos políticos uma política de grandeza nacional, e na hipótese afirmativa, qual o caminho a seguir?

Como se depreenderá, até porque este inquérito se espraiou por diferentes anos compulsivos da Ditadura Nacional e na alvorada do Estado Novo, para além da diversa substância das respostas houve perspetivas políticas de diferente valência. Entenda-se o que Augusto da Costa pretendia: a Idade Média eram as trevas que atravessaram a monarquia constitucional e o republicanismo, gente que acreditava no parlamentarismo e liberalismo de má memória, o Renascimento aparecera com a Ditadura Nacional, havia perigos, a Espanha republicana ali ao lado, esperanças como o Acto Colonial de 1931, mas tudo imerso em dúvidas. A escolha dos intelectuais não fora arbitrária. Marcello Caetano não era indicado como assessor de Salazar mas como diretor da revista Ordem Nova, há muito boa gente que tem esquecido que o último líder do Estado Novo era simpatizante da extremíssima-direita. Fernando Pessoa acreditara em Sidónio Pais e deu apoio à Ditadura, no início; alguns deles, como Pequito Rebelo ou Hipólito Raposo, vinham do integralismo; foram questionados militares das campanhas de África como o Contra-Almirante José Francisco da Silva, Brigadeiro João de Almeida e Paiva Couceiro. Pequito Rebelo considerava que Portugal era uma nação agrária e colonial, o seu futuro estava na agricultura e nas colónias, Fernando Pessoa terá respondido em dia não, torcia o nariz à grande potência, deve ter arreliado quem o questionava respondendo coisas assim:  
“Portugal grande potência construtiva, Portugal Império – aqui, sim, é que, através de grandeza e de decadência, se revela o nosso instinto, e se mantém a nossa tradição. Nas mais negras horas da nossa decadência, prosseguiu, sobretudo no Brasil, a nossa acção imperial, pela colonização; e foi nessas mesmas horas que em nós nasceu o sonho sebastianista, em que a ideia do Império Português atinge o estado religioso”.

 Fernando Pessoa, por Almada Negreiros

A generalidade dos inquiridos não admite a hipótese da perda das colónias. Há quem aproveite para bater em tudo o que se passou depois da revolução francesa, veja-se o Dr. Sousa Costa:  

“Quanto à anarquia, essa explica-se pelas ideias falsas que os enciclopedistas, os seus filhos, netos e todos os outros herdeiros ou parentes espirituais inocularam nas grandes massas urbanas e proletárias. São essas massas, como se sabe, numa época de centralização absolutista e de activo industrialismo, quem constitui as elites populares. Para onde elas se inclinam, para aí se inclina a balança do equilíbrio social”.
O mesmo deponente, questionado se seríamos uma grande potência europeia, responde assim:  
“O exemplo da Holanda é flagrante, e constitui a melhor resposta a dar àqueles que consideram Portugal pequeno demais para tão grande território. A nossa pequenez continental serviria de justificação a todos os ataques, a todas as ambições que pairam sobre as nossas colónias. Porque não atacam a Bélgica? Porque não atacam a Holanda? Simplesmente porque nem a Holanda nem a Bélgica dão as provas de abandono que nós damos à nossa melhor riqueza; porque tanto a Bélgica como a Holanda cuidam seriamente da sua riqueza, não dando motivos a que os outros as apodem de povos perdulários. Porque tanto a Bélgica como a Holanda administram a sua fortuna. Se nós entrássemos pelo mesmo caminho, se tanto interna como externamente administrássemos as riquezas que ainda nos restam de um património já largamente desfalcado, não seria a nossa pequenez continental argumento que servisse para alguém justificar os seus instintos de rapina”.

 O jovem Marcello Caetano

Marcello Caetano também parecia estar em dia não, respondendo que o moral da nação podia ser levantado por uma intensa propaganda de forma a criar uma mentalidade coletiva, deu resposta terminante:  

“Acredito pouco na formação de uma mentalidade colectiva, irmã-gémea da soberania nacional e da opinião pública. Quanto a mim, o remédio é este: a par da propaganda intensa, a acção dirigida no intuito de alcançar o poder para uma minoria inteligente realizar aquilo que vagamente a grande massa poderá apoiar, mas não compreender. Eu não espero nada dos políticos. Espero, sim, de uma política nobre servida por homens dignos. Livro, revista,… Acho-os úteis para chamar a atenção dos homens de escola para o problema. Mas que, os que já se interessam por ele há muito e para ele acharam soluções, busquem pô-las em prática no ambiente novo em que vivemos, sem as peias da politiquice e os embaraços da verborreia estéril do Parlamento”.

A verdadeira voz dissonante foi a de Fidelino de Figueiredo, desdramatizou a perda das colónias, se tal acontecesse não atingiria as garantias da nossa independência, e escreveu:  
“Há muitos países na Europa sem os prestígios históricos e sem a individualidade de Portugal, que gozam tranquilamente a sua independência, sem possuírem colónias e sem as terem perdido”.
E enquanto é perguntado sobre uma política de grandeza nacional, o antigo diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa não esconde ser adverso do militarismo político, o que deixou Augusto da Costa encabulado, ainda por cima Fidelino atacara como gato a bofe a censura prévia, Augusto da Costa sentiu-se no dever de apoiar o 28 de Maio e lançar as suas estocadas à Rússia e à Espanha republicana.

O livro com base no inquérito de Augusto da Costa fazia a apologia do Império Português, apresentava-nos como imperialistas, havia que reabilitar o orgulho do vasto império, estabelecer os nossos deveres imperiais, rever a nossa fraca cultura histórica e lembrar a superfície total do Império Português, distribuída pelas sete partidas do mundo, um império com missão espiritual, se o nosso patriotismo era vibrante, havia que dar definição e consciência ao instinto vital da raça, moldar a opinião pública, dar-lhe consciência imperial, definir novas leis para o império, o Dr. Salazar já resolvera o problema financeiro e fizera aprovar em 1931 o Acto Colonial: Portugal, depois de ter sido a pequena casa lusitana, transformou-se, por força da fatalidade histórica e geográfica, num vasto império. O Estado Novo terá ouvido Augusto da Costa, nesse mesmo ano de 1934 realiza-se a I Exposição Colonial no Porto, lá esteve presente a Guiné, com pompa e circunstância. O Império tomara conta das elites, de alguns bancos e de alguns empresários. A Agência Geral das Colónias começou a trabalhar a todo o vapor. Mas não se desenvolveu a tal mentalidade coletiva que Augusto da Costa aspirava. E quando se desenvolveu, bastantes anos mais tarde, foi para mandar gente empobrecida para os colonatos, o novo Eldorado.

Do racismo que se irá aparelhar ao colonialismo, falaremos mais adiante.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1): Questionário Etnográfico elaborado pelo Capitão Vellez Caroço (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20332: Historiografia da Presença Portuguesa em África (184): O modelo (Maria Barba) e o fotógrafo (José Bacelar Bebiano)... A propósito de uma morna "imortal"...Resta saber quem era o "senhor tenente Serra"...evocado na letra "Mária Bárbara, canta mais uma morna... / S’nhôr Tenente, ‘m câ pôdê cantá más...

Guiné 61/74 - P20340: Memória dos lugares (400): Roteiro de Bissau, antes e depois de 1975: principais artérias e pontos de referência


Guiné > Bissau > s/d > Vista aérea da Ponte Cais, Bissau. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 119" . (Edição Foto Serra, COP 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).

Legenda: Porto de Bissau, ou ponte-cais, o edifício das Alfândegas, à direita, a praça com o monumento a Diogo Cão (derrubada a seguir à independência), a entrada para a Fortaleza da Amura, ao centro, e à esquerda, se não erro, a Casa Gouveia (ou um estabelecimento da Casa Gouveia... Este é que é (era) o coração de Bissau Velho... A marginal chama-se hoje Av. 3 de Agosto.


Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Pormenor de monumento a Diogo Gomes (às vezes confundido com Diogo Cão) e Edifício das Alfândegas > Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 136". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).


Guiné > Bissau > c. 1960/70> > Vista aérea parcial da cidade de Bissau e, ao fundo, o  Ilhéu do Rei. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 142". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).



Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL).

Bilhetes postais da coleção do nosso camarada Agostinho Gaspar / Digitalização, legenda e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010



Guiné > Bissau > c. 1969/70 > Vista aérea de Bissau: principais artérias e pontos de referência

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019)

I. Legenda da nova toponímia de Bissau (alterada em 21/1/1975, na sequência da independência) (*)

1. Av. Amílcar Cabral (antiga Av. da República)

2. Praça Heróis da Pátria (antiga Praça do Império) (é cruzada na vertical pela Av. Amílcar Cabral e na horizontal pela Av. Francisco Mendes)

3. Rua de Bolama (, alguém sabe como se chamava antes?)

4. Rua de Bafatá (, alguém se recorda como se chamava antes de 1975?)

5  Av Pansau Na Isna (antiga Av. Américo Tomás, e antes R. Mouzinho de Albuquerque, e ainda antes 5 de Julho), ligando à Estrada de Santa Luzia. (É paralela à Av. Amílcar Cabral, do lado esquerdo de quem desce para o Geba) (**)

6. Av. Domingos Ramos (antiga Av. Carvalho Viegas) (É paralela à Av. Amílcar Cabral, do lado direito de quem desce para o cais do Pidjiguiti)

7. Av.  Francisco [João]  Mendes (, nome de guerra, "Chico Tê") (antiga Av. Teixeira Pinto)

8. R. Osvaldo Vieira (no sentido descendente, tem à direita o Estádio Lino Correia)

9. Estádio Lino Correia (, antigo Estádio Sarmento Rodrigues)

10. Forte da Amura (fortificação do séc. XVIII, hoje Panteão Nacional onde repousam os restos mortais de alguns heróis da liberdade da Pátria, como o Amílcar Cabral, o Domingos Ramos, o Osvaldo Vieira, etc.)

11. Av. Unidade Africana (, alguém se lembra do nome anterior?)

12. Porto de Bissau

13. Cais do Pidjiguiti (ao fundo da Av. Amílcar Cabral)

14. Av. 3 de Agosto [, de 1959] (marginal)

15. Edifício da Catedral

16. Edifício do antigo Palácio do Governador

17. Edifício das Alfândegas


Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. Pormenor. Cortesia do nosso camarada e amigo A. Marques Lopes (2005)


II. Chama-se a atenção para outras perpendiculares à artéria principal (a Av. Amílcar Cabral), já aqui referidas e descritas no nosso blogue 

Por exemplo, a Rua Eduardo Mondlane (Antiga Rua Engenheiro Sá Carneiro), que parte do Chão de Papel (Av. do Brasil), atravessa a Av. Amílcar Cabral, a artéria central ( a antiga Av. da República,) e vai até ao Hospital Simão Mendes, ao cemitério municipal e à antiga zona industrial...(***)

Era a rua dos Serviços Meteorológicos e da messe de sargentos da FAP... O nosso amigo Nelson Herbert lembra-nos que "Nha Maria Barba viveu na Guiné, na então Rua Engenheiro Sá Carneiro, a rua dos Serviços Meteorológicos, numa casa... de três moradias (nasci e cresci numa das moradias adstritas) , mesmo defronte à Messe dos Sargentos da Força Aérea. (Com a independência, foi a primeira chancelaria da embaixada da China.). (****)
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. alguns postes anteriores cm referências à toponímia de Bissau, antes e depois da independência;

7 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20322: Historiografia da presença portuguesa em África (184): Roteiro de Bissau: ainda as velhas e as novas toponímias, depois de 21/1/1975

7 de novembro de 2019  > Guiné 61/74 - P20320: Historiografia da presença portuguesa em África (183): o desenvovimento urbano de Bissau, no período em que viveu Leopodina Ferreira Pontes, "Nha Bijagó" (1871-1959)

6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20319: Memória dos lugares (397): Roteiro de Bissau, que outrora foi um cidadezinha colonial, com as suas belas casas de sobrado...Mas umas achegas para a se compreender o "tsunami" toponímica que aconteceu em 20/1/1975, ao tempo do Luís Cabral...

4 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20311: Memória dos lugares (395): Roteiro de Bissau Velha: ruas antigas e ruas atuais, onde se localizavam algumas casas comerciais do nosso tempo: café Bento, Zé da Amura, Pintosinho, Pinto Grande / Henrique Carvalho, Taufik Saad, António Augusto Esteves, Farmácia Moderna...

(**) Vd.postes de;

12 de janeiro de  2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

9 de abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2737: Dando a mão à palmatória (8): Erros factuais nas notas biográficas sobre Osvaldo Vieira (1938/74) e Pansau Na Isna (1938/70)

Guiné 61/74 - P20339: Parabéns a você (1707): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil Art da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor:

Último poste da série

12 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20338: Parabéns a você (1105): Nasceu hoje, dia 12, 3.ª feira, às 6h01, a Clarinha (Avô Luís Graça)

Vd. também : 10 de Novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20329: Parabéns a você (1104): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20338: Parabéns a você (1706): Nasceu hoje, dia 12, 3.ª feira, às 6h01, a Clarinha (Avô Luís Graça)

Foto: © Luís Graça


NASCEU A CLARINHA

1 - Amigos tertulianos:

Indo em serviço ao facebook vi este post da nossa tertuliana Alice Carneiro:

Mas que dia inteiro e limpo, logo pela manhã bem cedinho, a minha primeira netinha fez-se ao caminho. 
Que o mundo que te acolhe, te saiba receber e que tu venhas ajudar a construir um mundo ainda melhor. 
Que não haja mais criancinhas no contentor, nem mulheres sem abrigo. 
O melhor dos mundos para ti meu grande amor!


2 - De seguida enviei esta mensagem ao Luís:

Luís 
Acabei de ler no face a mensagem da Alice a dar conta do nascimento da vossa netinha. 
Muitos parabéns aos avós e aos papás. 
Muitas felicidades para a nova cidadã que vai receber um mundo instável porque nós não tivemos juízo. 
Dá um abraço ao João a quem desejamos as maiores venturas. 

Carlos e Dina
____________

3 - A resposta não se fez rogada:

Obrigados, bons amigos desde há 15 anos!...
Acabámos de sair do quarto onde mãe, pai e filha estão bem... 
Imaginem, recebemos a notícia quase em direto, a Clarinha nasceu às 6h01... E o avô às 8h00 já tinha escritos que já leu...
É um momento de alguma ansiedade mas também de muita alegria, quando corre tudo (ou quase tudo) bem. 
[...]
O João está radiante, a Catarina cansada mas serena e feliz, está cá a avó madeirense (que foi mãe aos... 16 anos!), a avó Alice já pôs a boca no trombone em tudo o que é sitio... 
Enfim, uma nova etapa nas nossas vidas. 
Juntos versinhos.

Abraços, chicorações, 
Luís e Alice

********************

Os "versinhos" do avô Luís:

Nasceu hoje, dia 12, 3.ª feira, às 6h01, da manhã
No Hospital da Luz, a Clarinha,
Uma menina de nome Clara Klut da Graça,
Com 3,050 kg.
Parabéns aos pais, João Graça
Catarina klut

Já nasceu nossa Clarinha,
Logo às seis da madrugada,
E é linda, é moreninha,
Diz o pai, que não dormiu nada.

Diz o pai, que não dormiu nada,
Ao lado da mãe Catarina,
Sempre de mãozinha dada,
Foi no parto uma heroína.

Foi no parto uma heroína,
Dando à luz em lua cheia,
Será feliz esta menina,
Portuguesa, europeia.

Portuguesa, europeia,
Feita no bairro da Graça,
Que do mundo é uma aldeia,
Onde o Funchal se entrelaça.

Onde o Funchal se entrelaça,
Num presépio de luzinhas,
À Clara Klut da Graça,
Não lhe faltam avozinhas.

Não lhe faltam avozinhas,
Sendo da Atlântida princesa,
Nem poetas nem fadinhas,
P’ra lhe dar a papa à mesa.

P’ra lhe dar a papa à mesa
E lhe ensinar os sabores,
E as palavras e a certeza
Dos mil sons e das mil cores.

Dos mil sons e das mil cores,
Da grande paleta da vida:
Aos pais, queridos amores,
Gratidão vos é devida!

Alfragide, 12/11/2010, 8h,
Os avós, Alice e Luís
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Nota do editor:

Julgo poder deixar aqui, em nome de toda a tertúlia, os parabéns ao João, à Alice e ao Luís, por este acontecimento. 
O nascimento de uma criança é um acontecimento muito significativo e importante no seio de qualquer família, especialmente para os pais e avós. Os amigos como nós, os que por este blogue militam há tantos anos, são também contagiados pela felicidade destes particulares amigos.
Para a Clarinha e seus pais desejamos o melhor da vida.
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20329: Parabéns a você (1104): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Fur Mil Op Especiais da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

Guiné 61/74 - P20337: Convívios (910): "Memórias boas da minha guerra", uma breve apresentação do III volume na Tabanca de Matosinhos (José Ferreira da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), datada de 11 de Novembro de 2019 dando notícia da breve apresentação do III volume das "Memórias Boas da Minha Guerra" na Tabanca de Matosinhos, no passado dia 30 de Outubro:

Caros amigos
Junto mais uma pequena reportagem de um óptimo convívio vivido na Tabanca Pequena, que muito me sensibilizou.

Abraço com a gratidão e amizade do
JFSilva
Cart 1689


Memórias boas da minha guerra



Uma breve apresentação do III volume

Este não foi somente mais um convívio semanal dos Combatentes, na Tabanca de Matosinhos. Não! Desta vez, um grupo de resistentes à chuva, ao vento, ao frio e às maleitas que sobrecarregam a “peste grisalha”, esta “peste” apareceu cheia de vitalidade, disposta a proporcionar um convívio (ainda) mais espectacular.
O livro, este livro, foi o mote e o pretexto. Como habitual motivo de “críticas” e elogios, desta vez, deu aso a várias intervenções brilhantes, todas elas merecedoras do aplauso e da simpatia da tertúlia.

O “Restaurante Milho Rei” foi forçado a mudar de nome. Agora é o “Restaurante Espigueiro”. De resto, tudo continua na mesma. A boa comida, o bom serviço e a “nossa” sala privada, continuam lá ao nosso dispor. E que bem, se está ali!


Logo que o Manel começou a recolher os pratos, terminando, assim, a sua função de portadores de belas sardinhas, lulas grelhadas ou bacalhau à Narcisa, o Régulo da Tabanca Pequena, Eduardo Moutinho Santos, sacrificou algum do seu hipotecado tempo para mais uma intervenção causídica. Manifestou a sua satisfação pela continuidade da Tabanca Pequena e por mais este evento, de cariz cultural. Lembrou que o autor é da casa e que, além disso, a sua obra é merecedora do apreço de todos os camaradas ex-combatentes.


Para não sacrificar mais as figuras habituais neste tipo de evento, foi o próprio autor a explanar um pouco do conteúdo e a razão de ser de mais este III volume. E foi assim que destacou, de forma cronológica, algumas das suas histórias:

- Pág 33 – “A santidade do Santos”: um noivo que, em situações de grande perigo em Angola, prometeu casar com uma prostituta e que, afinal, veio a ser muito feliz;
- Pág 49 – “O rapaz do sorriso parvo”: que, tendo saído dos agrestes arrabaldes de Vieira do Minho, confessava estar a viver, na Guiné, os melhores tempos da sua vida;
- Pág 117 a 145 – “Os 4 Mohamed”: Quatro retratos vividos entre os gilas da Guiné, os comerciantes da Mauritânia, os migrantes de Marrocos e os corticeiros de Stª Maria da Feira;
- Pág 155 – “Zé Manel dos Cabritos”, que além das referências “invejosas” e pouco abonatórias dos seus “amigos”, retrata também a simpatia do saudoso amigo Sô’p’ssor Peixoto, culminada com a oferta do melhor cabrito pelo pai do seu pior aluno, na festa do Cordeirinho;
- Pág 171 – “O Arturinho do Bonjardim”, que passou a vida ligado, desde criança, ao ambiente do “negócio das carnes” e aos seus amigos de cariz genuinamente tripeiro;
- Pág 191 – O “Poeta da Régua”, um grande camarada que nos enche de orgulho e que aproveitamos para homenagear.
- Pág 207 – O “Clube Cabuca”, que também é uma homenagem a um grupo de militares que, apesar das agruras da guerra, desenvolveu louváveis acções de cariz social;
- Pág 221 – “O Herói do Maiombe”, que satiriza a evolução do “Herói” Joãozinho, um dos primeiros a zarpar para Angola e que culmina na festa da sua chegada, com a incompetente matança de um porco;
- Pág 229 – “Madrinha de guerra e amor”, que é uma lindíssima história de amor, onde a Cinderela faz sapatos;
- Pág 243 – “Religiosos de primeira e crentes de 2ª” - são testemunhos autobiográficos de uma infância carente;
- Pág 301 a 321 – São reflexos actuais do nosso passado de ex-combatentes
- “Gostaria de lhe chamar pai”, a história de Maria do Carmo Ferreira, filha de um camarada marinheiro que ela nunca descobriu;
- “Nosso fim está próximo”, alerta para a inevitável e acelerada “involução” da nossa existência;
- “Amor à Pátria”, a situação real dos ex-combatentes, que vivem esquecidos e abandonados pelos poderes instalados após o 25/A.

O Arménio Dias aproveitou para realçar a homenagem ao Poeta da Régua, ali presente a seu lado, e apelou para mais convívios deste género.



O conhecidíssimo tabanqueiro José Teixeira, Homem Grande nesta ONG, muito dedicado à solidariedade, em especial aos irmãos Guineenses, sentiu a oportunidade de dizer um dos seus bons poemas dedicados à Guerra do Ultramar.

Promessas de paz

Prometem-me a paz das armas
Que calam armas, matando pessoas,
E eu quero encontrar apenas a paz do pão,
Para matar a fome a quem estende a mão.
E construir em cada momento
A paz da solidariedade - Da fraternidade
E do perdão
Prometem-me a paz das armas
Que calam armas, espalhando a dor,
E eu quero encontrar apenas a paz do amor.
Para espalhar no mundo a esperança
Que o enche de afectos - De abraços,
E de bonança.
Prometem-me a paz das armas
E as armas trazem mais armas
Enchendo o mundo de sofrimento.
E eu quero encontrar apenas a paz do entendimento,
Construída no diálogo e compreensão - Estas são as armas
Que transformam as balas em pão

O Francisco Baptista, de quem se espera sempre excelentes textos, confessou que se sentiu na obrigação de colaborar neste evento, muito pela amizade que o liga ao autor. Sacou de uma folha A4 e pediu que a lessem por estar a sentir algumas dificuldades visuais. E foi com grande eloquência e excelente dicção que vimos, ouvimos e sentimos mais uma bela peça literária do Francisco Baptista.


Amigos e Camaradas

As nossas vidas são tempos de paz e de guerra. Tolstoi, o grande escritor russo escreveu “Guerra e Paz”, um romance imortal. O José Ferreira continua a escrever e este ano editou o 3.º Volume das Memórias Boas da Minha Guerra. Na vida civil como na vida militar por cá ou na Guiné viveu tempos de paz e de guerra como todos nós e sabe narrá-los com a arte de um escritor e de um bom contador de estórias.
Analisa e descreve com pormenor as características físicas e psicológicas das suas personagens.
Os vários Mohameds e há tantos no norte de África e na Arábia, mais do que Silvas em Portugal e no Brasil, retratam bem a hospitalidade, a cortesia, o respeito pela palavra dada e pelas normas da religião islâmica. O Mohamed de Vila da Feira com menos qualidades que os demais, parece ter-se convertido ao Islão, por interesse carnal, para poder casar com várias mulheres. O herói de Maiombe, esse Morcãozinho, faz-me lembrar um camarada com quem estive em Buba, muito medroso, melhor dito, um cagão, sempre na cauda do pelotão, que hoje fala de grandes feitos guerreiros e quando se reúne a companhia, com uma voz tonitruante põe em sentido todos os velhos camaradas para recordar os nossos mortos, com um minuto de silêncio.
Sobre as estórias do Zé Manuel dos Cabritos, gerou-se uma grande controvérsia, entre os Bandalhos e outros camaradas sobre a sua veracidade. Pessoalmente nunca achei o Zé Manuel com cara de ladrão e quanto a mim a mula transexual é pura invenção do escritor, pois é de todo inverosímil que uma aldeia transmontana, erigisse uma estátua ao seu animal doméstico mais bravio e traiçoeiro, ainda por cima machorro (infértil)
Na página 22, ao falar da relação do alferes e da Jeni escreve: “é certo que ele já andava esfomeado, porém quando se apercebeu de todas as curvas firmes daquele corpo seco e fresco, quando sentiu as suas carícias, a sua pela macia ficou irremediavelmente preso à Bajuda”.
Esta descrição tem uma carga erótica delicada e agradável.
Quando fala das putas usa o calão adequado que era usado entre os seus clientes, militares ou civis.
Para ilustrar a beleza feminina, (pág. 109) a Joan Collins surge, com todo o esplendor da sua juventude, numa nudez quase total que realça as curvas suaves e salientes do seu corpo perfeito, numa pose erótica que entusiasmou milhões de homens, num ano em que foi capa da revista Playboy e visitou os soldados americanos no Vietname, para lhes levantar o moral.

Estas são algumas das estórias reais, fictícias, verosímeis, inventadas, com humor, ironia, erotismo, sentimento, humanidade, guerra e paz. As outras, que não refiro são melhores. São as Memórias Boas da Guerra do José Ferreira. 
Camarada continua a escrever, escrever é viver e ajudar a viver os outros.

Francisco Baptista

E quando tudo fazia crer que se tinha atingido um bom final das intervenções, o ilustre camarada Leite Rodrigues resolveu acrescentar algumas palavras. Para além dos elogios em apreço à obra do autor, referiu momentos de realce vividos por si, no famigerado teatro de guerra, onde foi ferido, e outros de onde destacou a perda filha de 14 anos que tanto o marcou, Foi com bastante comoção que encerrou a sua intervenção esforçando-se por dizer o poema camoniano, levado até ao fim, em coro pelos camaradas presentes


“Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou".


Seguidamente foi gratificante ver a actuação do conjunto musical Os Periquitos da Tabanca de Matosinhos, que nos brindou com um vasto repertório de canções do nosso tempo e de outras chamadas de intervenção.


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20331: Convívios (909): XXXI Encontro de Confraternização Anual da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), em Alenquer, no passado dia 9 de Novembro de 2019... Ou a usura do tempo... (José Colaço)

Guiné 61/74 - P20336: Blogoterapia (293): Neuro II - Quarto 7 - Cama 14, ou as camas por que passamos ao longo da nossa vida (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 5 de Novembro de 2019:


NEURO II - QUARTO 7 - CAMA 14

O passado visita-nos, toma-se consciência do que fizemos e do que não fizemos. De  algumas coisas nos arrependemos, de outras temos pena de não ter feito de outra forma ou de ir mais além. No presente vivemos como se não tivéssemos muito tempo. Correr já não é opção, assim caminhamos para o futuro incerto, desejando ter ainda acesso ao que de bom a vida nos dá.

E que de bom tem mesmo, quando o simples é vedado a muitos camaradas quando a saúde os abandonou? Quando necessitam do carinho da família e vigilância, quando são remetidos para instituições, tantas vezes cansadas de ver degradação física e psíquica, e reagem como um cilindro, que vai calcando, ignorando os apelos de quem precisa de ir à casa de banho, ou tão simplesmente limpar os óculos? Os zeladores também têm preocupações familiares, como o dinheiro, com as condições de trabalho, por vezes são vilipendiados pelos utentes, mas não seria de mais vestirem o fato branco, pôr o seu melhor sorriso e com palavras de conforto, animarem um bocadinho a vida dos que estão a seu cargo ainda que por breves horas no seu turno.

Esta introdução um bocado sombria, deve-se ao apelo desesperado e de raiva, de um nosso camarada que sofre (ELA[1]) de abandono ao ponto de pedir que Deus o leve. Como dizer a um camarada neste sofrimento, que espere os impossíveis dias melhores, uma vez que só pode piorar?

O físico Stephen William Hawking, talvez o mais famoso doente com "ELA", que apesar da sua enfermidade viveu até aos 76 anos.

O que me leva a escrever hoje é uma coisa tão comum e tão banal que é uma cama. Todos nascemos numa, dormimos em várias ao longo da vida e a grande maioria em tempo de paz, também morrerá numa. Quando era criança, a minha cama como normal para a época era cheia de camisas de milho, por vezes com restos de tarolos à mistura, um dia de festa quando a minha mãe abrindo portas e janelas remexia a palha, que triplicava de altura e como garoto era uma brincadeira ficar enterrado no monte, que hoje traria alergias e renites alérgicas à maioria de garotos, que nem os ares condicionados aguentam. No nosso tempo passaria por vulgar constipação, com ameaças de que andássemos à chuva levávamos o tratamento profiláctico à base de uns tabefes.
Mas o meu pai homem atento às coisas modernas e simplificadas, logo trocou a palha por sumaúma e assim acabaram-se as comichões. Mais tarde passamos ao máximo da modernidade ao alcance dos nossos bolsos com os de esponja e por aí ficámos por muitos anos.

Quando fui para o CICA4, voltei a privar com a sumaúma que continha várias gerações de percevejos, que milagrosamente não me atacaram, já o meu amigo Sapateiro, ali da Calvaria de Porto Mós, fez com eles um contrato de exclusividade a fim de o só chatearem a ele, que dormia mesmo encostado a mim. Após muitas queixas selectivas, porque eles não atacavam todos, veio um belo dia que, tudo foi desmanchado e substituído por beliches acabados de pintar de verde, com limpíssimos também verdes colchões, que iriam levar algum tempo a ganhar inquilinos incómodos e malcheirosos. No tempo em que lá estive, não deu para constatar nada disto, e no RI6 do Porto, foi mais do mesmo, por ter por ali passado a modernidade da época.

Quando cheguei a Abrantes - RI2, aconteceu-me o impensável. Não tinha cama e passei a dormir à vez, na cama dos camaradas que estavam de serviço. Quando ele chegava eu procurava outra e ali ficava com sorte até de manhã. Como o frio apertava mandaram-me para Santa Margarida e aí por mais roupa de cama que requisitasse, o frio era tal que me fardava e deitava-me vestido.

Entretanto fui mobilizado e assim travei conhecimento com os beliches do Angra do Heroísmo, com os do Cumeré, e por fim cheguei a Galomaro onde a sobrelotação do quartel me obrigou a dormir numa grande tenda de campanha com um pano de tenda por baixo e o saco a servir de cabeceira. Nada que não tenha acontecido a milhares de camaradas. Por fim encontrei alojamento permanente, num abrigo habitado por uma mescla de camaradas das mais variadas especialidades, entre um dos morteiros 81 mm e da MG 42.

Galomaro - Dentro do abrigo, a partir da esquerda: Aljustrel, Ermesinde, Juvenal e Caramba

Finalmente, regressado em Abril de 74, em 79 passei da minha cama de solteiro para a de casado onde tenho sido constante e feliz.

Por desacatos do destino, pois não penso ter pecados dignos de castigo, fui parar ao hospital com uma doença rara, auto-imune, chamada Miastenia Gravis (que veio para ficar como a Toyota), onde pela primeira vez travei conhecimento com uma cama articulada. Estive onze dias hospitalizado, entrei junto com uma senhora com AVC, onde estava já um individuo com 61 anos com AVC isquémico, que saiu primeiro que eu e deu lugar a um jovem com 36 anos também acometido do mesmo, juntando-se assim aos vários casos espalhados pelo piso. Contei a história deveras apaixonante e corajosa do José Saúde, falei-lhe da associação de doentes dessa maleita e constatei, com os números de um AVC por cada quatro indivíduos.

Os alarme e sinais dos três F's

FACE, FORÇA e FALA, bem como a máxima importância de pedir ajuda dentro das primeiras duas horas em que começaram os sintomas e anomalias.

Por ultimo a forma como fui tratado e vi tratar. A excelência dos cuidados prestados por médicos, enfermeiras, auxiliares, de um sistema hospitalar cheio de deficiências e carências tão propaladas por bem intencionados e por muitos mais pelos mal intencionados, onde os profissionais fazem milagres com o que têm. O seu sorriso, carinho e palavra amiga, são parte das melhores recordações que guardarei para sempre.

Lembrei-me das campanhas muitas vezes mesquinhas e ignorantes, que contra o Serviço Nacional de Saúde fazem e querem acabar com ele. Meus camaradas e amigos é preciso defendê-lo por nós e pelas nossas famílias. A saúde e a liberdade só lhe damos valor quando as perdemos.

Já estou na minha cama felizmente.

Nota: - [1] - ELA - http://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/ela-esclerose-lateral-amiotrofica

Um abraço
Juvenal Amado
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Nota pessoal do editor CV:

Ao nosso camarada enfermo desejo a melhor qualidade de vida possível, dentro dos condicionalismos que esta terrível doença impõe.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20039: Blogoterapia (292): Os Impérios (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732)