sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21537: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2020:

Queridos amigos,
Annette Cantinaux está eufórica nas suas férias do Natal português, o seu apaixonado põe-a a viajar em vários transportes, não falta o elétrico 28, desta feita começaram na Basílica da Estrela, já viram a árvore de Natal do Terreiro do Paço, banquetearam-se com o bife da Portugália, ela não esconde o seu assombro por aquela casa forrada de estantes e quadros de toda a espécie, onde até se corre alguns riscos de tropeçar em pilhas de livros. Tem tido enormes surpresas, muitos daqueles trastes vieram da Feira da Ladra de Bruxelas, ela está neste momento a folhear um álbum que diz por fora Vilar Formoso, Lisboa, Fátima, Coimbra, boas fotografias, quase sempre mostrando um jovem com ar decidido, ela até ficou muito impressionada com a fotografia do Rossio naquele ano de 1951, parece o mesmo que eu já vi, disse para si. Annette não resistiu a perguntar porque é que tu juntas isto a estas coisas, um tanto seraficamente ele respondeu-lhe que quer estar rodeado de boas memórias na velhice. Estamos a 24, nessa noite virão os filhos de Paulo e respetivos cônjuges, um amigo que é pintor surrealista, um guineense e um vizinho nonagenário que não tem família, como comunicarão logo se vê, o mais fácil será o guineense Abudu Soncó pôr à prova o seu francês, a felicidade do encontro virá por acaso e para glória do nascimento do Deus Menino.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Très chère Josephine, não pude infelizmente despedir-me de ti antes de partir para Lisboa, sei que estás em Mariemont a passar as férias de Natal com os teus pais, cheguei a Lisboa um pouco antes das festas, o Paulo tem-me proporcionado passeios encantadores pela cidade, por razões profissionais já aqui tinha vindo três vezes, mas sempre de raspão, tu sabes o que é a vida de intérprete, desembarcamos com um dossiê debaixo do braço e uma mala de viagem com rodas, toma-se um táxi para o hotel, horas depois estamos atrás de uma cabine de interpretação, por vezes há a deferência em convidar-nos para jantar, o dia seguinte poderá ser a mesma coisa, excecionalmente podemos ter um dia por nossa conta, às vezes consigo programar ficar mais um dia para bisbilhotar o local, com Lisboa não tem sido o caso e daí o fascínio de calcorrear uma cidade com o meu amoroso a dar-me a mão.
O Paulo queria que eu visse a animação natalícia no centro da cidade, mas antes levou-me a uma basílica gigantesca, chamada Estrela, confesso-te que não me impressionou muito aquela arquitetura sobredimensionada, mas íamos ali por outro motivo, o Paulo queria-me mostrar um presépio que saíra das mãos de um barrista de génio, retive o nome Machado de Castro. O postal que tenho para te mandar é eloquente na humanização das figuras, no equilíbrio das formas e na transparência da espiritualidade. De há muito afastada da prática religiosa, ali fiquei especada e, para minha surpresa, desfiei orações que aprendera em casa dos meus pais adotivos. E seguimos para a Baixa, num elétrico que desceu e subiu por ruas apertadas, muito comércio, quase à moda antiga, e assim chegámos a uma praça dedicada ao poeta nacional, Camões. Descemos uma rua cheia de bulício, em dado momento Paulo segurou-me o braço e entrámos numa ourivesaria, com interior requintado, julguei que estava na Praça Vandôme, qualquer coisa semelhante à loja Cartier, o Paulo pediu para vir anéis de senhora, nada de brilhantes, pérolas ou diamantes, perguntou por engastes de safiras ou esmeraldas. Obsequiosa, a funcionária foi tirando peças de umas vitrinas e expô-las num pano de veludo na minha frente. “Annette, escolhe o que te der mais prazer, a partir de agora és a minha noiva comprometida”. Apanhada de chofre, não pude reter a emoção, há muito tempo que não andava tanto a pé, trouxera uns ícones gregos para presentear o Paulo, coisas simples, mas um dia ele quis entrar numa loja do Grand Sablon dedicada à Arte Sacra e vi como os seus olhos brilhavam de contemplar a iconografia oriental. Escolhi uma peça, ajeitava-se perfeitamente ao meu dedo anelar esquerdo, só tremia a pensar no preço, ele falava em escudos, passou um cheque, nem me atrevi a perguntar o montante da joia. A funcionária entregou-me uma caixa, olhei-o com ternura e ele não fez mais nada, beijou-me ali mesmo, passou-me as mãos pelo cabelo, beijou-me delicadamente a mão, os funcionários da ourivesaria mantinham-se impávidos, estas cenas apaixonadas devem fazer parte da profissão.
Presépio de Machado de Castro, Basílica da Estrela
Ícone grego, século XVIII
Ourivesaria Aliança, Rua Garrett, Lisboa

À saída da ourivesaria, apanhámos um táxi, percebi que o Paulo deu como destino a Feira da Ladra, fiquei a saber que ela funciona às terças-feiras e aos sábados, ao contrário da Place du Jeu de Balle que é diária, se bem que seja mais pujante aos sábados e domingos. Apeados, o Paulo quis-me mostrar em primeiro lugar o exterior e o vestíbulo do Panteão Nacional, um monumento barroco que creio que a cúpula só foi concluída há umas décadas atrás, as dimensões são impressionantes e fiquei assombrada com a beleza dos mármores, predominam os róseos bem inseridos na pedra branca. E entrámos na feira, verifiquei que o Paulo conhece alguns dos vendedores, fomos para uma enorme bancada de livros e quinquilharia, imagina tu que até encontrei um volume com o teatro completo de Albert Camus, edição da Gallimard, em muito bom estado, paguei uma quantia irrisória, o Paulo fez as suas compras, livros e peças de porcelana. Aproximava-se a hora do almoço e ele disse-me que íamos almoçar o bife da Portugália, lá fomos para uma cervejaria enorme e deliciei-me com uma peça macia de carne, um molho muito gostoso, embebi aos bocadinhos um pão inteiro, com batatas fritas também saborosas, seguiu-se um pudim flan e um café à moda portuguesa.
Um aspeto parcial do Panteão Nacional
A Feira da Ladra com vista para o Panteão Nacional e o rio Tejo ao fundo

Precisava de descansar, voltamos para casa. Ainda não te dei pormenores da decoração, as paredes estão forradas de alto a baixo com uma variedade de obras de que eu não consigo ainda ter o elemento de ligação, são quadros a óleo, gravuras e serigrafias, sanguíneas e carvões, aguarelas, desenhos de toda a espécie, fotografias, tapeçaria, pelos cantos as esculturas em madeira ou mesas a abarrotar de livros, livros em cima dos sofás e das cadeiras, também predomina o tema religioso, perguntei o que é que estava a ver e ele falou-me em registos, um deles impressionou-me muito, tinha uma imagem do que me parecia um santo, o Paulo explicou-me que era o Senhor Santo Cristo dos Milagres, uma imagem reduzida a um tronco, a decoração era impressionante, metia escamas de peixe, recortes de papel colorido, pérolas, tecidos acetinados. O Paulo sossegava-me, está descansada, quando vieres viver para cá grande parte destas coisas vai para casa dos meus filhos, pretendo que tu organizes um espaço que dê alegria de viver, onde sintas intimidade e não dependente da organização que fui dando ao meu ambiente.
A casa tem uma bela varanda, um balcão cheio de vasos e um armário onde ele guarda coisas, abriu esse armário e mostrou-me uma quantidade enorme de copos dizendo que os ia oferecer a uma organização que angaria fundos para ações de filantropia. Aí descansámos e o Paulo deu-me conta de como pretende organizar a Consoada. E explicou-me que a Consoada é para ele o momento dominante do Natal, é a festa do júbilo pela vinda do Menino, os entes-queridos devem estar juntos e saborear os alimentos da festa. Foi buscar um livro e mostrou-me o prato de bacalhau destinado à noite de 24. “Chama-se Bacalhau à Baltar, depois de uma primeira demolha meto-o em leite, no dia seguinte aqueço azeite com alhos e meto o bacalhau guarnecido com pão ralado, vai ao forno até tostar, é acompanhado por legumes salteados. E falou-me que já encomendara um conjunto de doces tradicionais, o bolo rei, as broas (tinha saudades das broas de milho, eram frequentes quando Portugal era um país muito pobre, praticamente desapareceram), compra também iguarias de que os filhos gostam, caso do bolo de amêndoa com gila e a siricaia.
Fizemos uma refeição ligeira, o Paulo tinha feito uma sopa de curgete com batata e muitos coentros, eu tinha trazido queijos, acabámos a beber uma taça de chocolate e o Paulo propôs uma saída, ir ver o Terreiro do Paço à noite. Confesso que teria preferido ficar em casa, mas ele fez-me o convite com uma expressão tão feliz, percebi perfeitamente que eu estava intimamente associada àquele passeio que disse logo que sim. E fiquei felicíssima, naquela noite escura, naquela ampla praça reconstruída como sala de entrada de Lisboa depois do Terramoto de 1755, uma praça cheia de harmonia, tens o Tejo a marulhar ali bem perto, aqui funcionavam ainda alguns departamentos do Estado, mas a razão de ser da visita era uma esplendorosa e policromática árvore de Natal, eu sentia-me tão feliz, tão agradecida às pancadas do destino, àquele momento em que um senhor desconhecido me pedira para almoçar comigo na hora do almoço para me pedir apoio para um romance em que a guerra da Guiné seria o eixo central, acedi e decisão mais feliz não podia ter tomado, já passo dos 50 anos e pareço uma garota apaixonada pronta a ressurgir e a acreditar que a felicidade nos dá sempre uma nova oportunidade quando estamos disponíveis.
A árvore de Natal no Terreiro do Paço

Caminhamos para o Natal, assentou-se que vai haver uma manhã de passeio cultural, a tarde é para preparar a Consoada. Outra grande surpresa. Ali para os lados do Castelo de S. Jorge está uma igreja um tanto escurecida na fachada, mas ele tinha organizado uma visita, imagina tu o nome da Igreja, do Menino de Deus, que ternura, está praticamente adossada às muralhas do castelo, é opulenta no seu barroquismo em que a pedra fria contrasta com os elementos pictóricos e a decoração das capelas, o teto é magnífico e o altar de uma enorme riqueza. Foi um bom princípio de manhã de um turismo inesperado, hoje não se trabalha em Portugal, até ao dia 26 ou 27 a vida será a meio gás, mas foi-nos proporcionado este passeio, sinto-me muito agradecida. No regresso a casa, o Paulo já me comunicou que vai fazer uma açorda de gambas, novamente muitos coentros, e uma salada de frutas, impõe-se a sobriedade, as pratalhadas do Natal vão aparecer durante a tarde. Falei-lhe na Baixela Germain, tinha ouvido dizer que a existente no património português era de uma enorme riqueza. Está na minha agenda, Annette, não regressarás a Bruxelas sem ver os Painéis de São Vicente, a Custódia de Belém, a Arte Nanban e a Baixela Germain, para além do nosso Bosch, que não tem rival.
Voilá, Josephine, o inacreditável aconteceu, a minha vida tem um novo sal, este homem não esconde um profundo afeto e sei que digo uma banalidade, amigas íntimas como somos espero que saibas que estou preparada para viver um grande amor, desta vez agarro as golas do destino com as duas mãos. Beijo-te com a maior amizade do mundo, conto ver-te em meados de janeiro, tens que saber ao pormenor o que foram estas férias de Natal e como a minha vida é um sonho.
Igreja do Menino de Deus
Baixela Germain, Museu Nacional de Arte Antiga

(continua
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21521: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (26): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P21536: Parabéns a você (1891): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil Art da CART 6250 (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21530: Parabéns a você (1890): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3494 (Guiné, 1971/74)

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21535: (Ex)citações (378): Talvez por causa de Madina do Boé... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR, CCS / BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da  autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 9 de Novembro de 2020:


TALVEZ POR CAUSA DE MADINA DO BOÉ

Talvez como consequência do abandono de Madina do Boé e o grande espaço de progressão que ficou livre até à zona de Galomaro, resultou em 5 mortos no local e mais 3 em consequência dos ferimentos, em emboscada feita à CCS/BCAÇ 2912 nas Duas Fontes em Outubro de 1971.

A CCAÇ 3491 - Dulombi - Fevereiro de 1972

Logo no período de transição teve um encontro de frente durante uma patrulha com IN, do qual só por milagre não resultaram baixas, mas cantis e casacos furados por balas, foram vários tal a violência de parte a parte.

CCAÇ 3489 - Cancolim - 1972/73

Depois seguiu-se Cancolim. Já depois de duas flagelações, a 2 de Março de 1972, Cancolim foi fortemente atacada com morteiros 82 mm tendo daí resultado a morte dos seguinte camaradas:

José António Paulo - 1.º Cabo Atirador - natural de Mirandela.
João Amado - Soldado Aux. Cozinheiro - natural de Carvide - Leiria.
Domingos do Espírito Santo Moreno - Soldado Atirador - natural de Macedo de Cavaleiros.

No final de 1972 a CCAÇ 3489 tinha 60 operacionais.

Não ficou por aí e, assim, morreram ainda em combate, alguns já em 1973:

António Martinho Vaz - Soldado Atirador - natural de Grijó da Parada - Bragança
Álvaro Geraldes Delgado Ferrão - Soldado Ap Morteiro -natural de Silvares - Fundão
Domingos Moreira da Rocha Peixoto - Soldado Atirador - natural de Alto da Vila - Duas Igrejas - Paredes
Califo Baldé - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá
Samba Seide - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá

Juntamos a este numero duas deserções (um capitão e um alferes) e a captura do Soldado António Manuel Rodrigues, que veio a fugir do cativeiro para o Saltinho já nós estávamos para embarcar para a Metrópole.

CCAÇ 3490 - Saltinho - 1972

Armandino da Silva Ribeiro - Alf Mil Inf - natural de Magueija - Lamego
Francisco de Oliveira dos Santos - Fur Mil Inf - natural de Ovar
Sérgio da Costa Pinto Rebelo - 1.º Cabo Ap Metralhadora - Vila Chã de São Roque - Oliveira de Azeméis
António Ferreira [da Cunha] - 1.º Cabo Radiotelegrafista - Cedofeita - Porto
Bernardino Ramos de Oliveira - Soldado Atirador - Pedroso - V. N. de Gaia
António Marques Pereira - Soldado Atirador - Fátima - V. N. de Ourém
António de Moura Moreira - Soldado Atirador - S. Cosme - Gondomar
Zózimo de Azevedo - Soldado Atirador - Alpendurada - Marco de Canaveses
António Oliveira Azevedo - Soldado - Moreira - Maia (**)
Demba Jau - Soldado Milícia - Cossé - Bafatá
Adulai Bari - Soldado Milícia - Pate Gibel - Galomaro - Bafatá
Serifo Baldé - Assalariado - Saltinho - Bafatá

Juntar o soldado António Baptista feito prisioneiro, bem como os diversos feridos com mais ou menor gravidade.

CCS/BCAÇ 3872 - 1972/73

Manuel Ribeiro Teixeira - 1.º Cabo Rec e Inf - natural Cimo da Vila - Varziela - Felgueiras - Vítima de mina antipessoal na estrada do Saltinho.
Mamassaliu Baldé - Soldado Milícia - natural de Cossé - Bafatá
Mama Samba Embaló - natural de Cossé
Ila Bari - Soldado Milícia - natural de Campata - Nossa Senhora da Graça - Bafatá
Alberto Araújo da Mota - Alf Mil TRMS - natural de Curral - Pico de Regalados - Vila Verde - Evacuado com hepatite, morre 2 dias depois em Bissau. 

Antes tinha sido evacuado o Soldado Radiomontador Carlos Filipe e aos 20 meses de comissão é igualmente evacuado com a mesma maleita o Alferes da ferrugem Amadeu.

Para fechar o ano de 1972 foi a CCS/BCAÇ 3872 violentamente atacada ao arame no dia 1 de Dezembro.

Em 1973 uma mina na estrada do Dulombi destrói Unimog e fere gravemente o meu camarada Falé que é evacuado e já não volta.

De referir o aparecimento de minas na estrada do Dulombi e ataques em Bangacia, Campata e Cansamba, tudo na região das Duas Fontes (entre 6 e 9 km de Galomaro).

Posteriormente a CCS bem como Cancolim foram reforçados com pelotões de Dulombi em retracção, que também reforçam operacionalmente Nova Lamego. Fomos também ajudados com grupos de intervenção independentes bem como com Paraquedistas.

Tendo o meu batalhão chegado à Guiné na véspera de Natal de 1971, a sua partida só se viria a efectivar em 28 de Março de 1974. Escrevo isto para situar o período das minhas narrativas e assim dar a perspectiva da alteração e da intensidade da guerra a que estivemos sujeitos. A violência, bem como o equipamento utilizado contra nós, foram assim sendo alterados de região para região.

Enquanto o alcance da nossa artilharia era ultrapassada largamente pelo o alcance da artilharia do PAIGC, também nos vimos privados da normal utilização de meios aéreos, pese a grande coragem com que os pilotos se forçaram a voar após serem confrontados com uma arma da qual ignoravam tudo, ou quase tudo.

E passo citar o TenGeneral António Martins de Matos no seu livro Voando Sobre Um Ninho De “Strelas”:

A guerra estava a entrar numa nova fase, nada de emboscadas e confrontos directos mas sim, de duelos de artilharia e seria de esperar o aparecimento de uma aviação rebelde/mercenária.

Duelos de artilharia? Interroga-se o autor. A grande maioria desses obuses  estavam no Sul, autênticos monos da II Guerra com alcance não superior a 14.000 metros. Na maioria dos quartéis da Guiné só tinham direito a morteiros 81 mm (4000 metros) e ainda 11 morteiros 105 mm espalhados por diversos sítios de alcance igual.

O PAIGC usava o 120 (5700 metros) depois haviam os foguetes 122 mm (20.000 metros) e a breve trecho emprestados por Sekou Touré, peças de 130 mm (27.000 metros) e enquanto a artilhara utilizada pela guerrilha só podia ser posta em causa pelo aparecimento da nossa força aérea. Estas últimas peças fariam fogo directamente do Senegal e da Guiné Conácri e sete dos nossos aquartelamentos ficariam assim debaixo de fogo.

Tudo isto para relembrar que aquela guerra era intensificada consoante interesse do PAIGC, uma fez que lhe chegavam abastecimentos cada vez de maior qualidade e quantidade, enquanto a nós há muito enfermávamos de uma penúria franciscana.

PS: Publico os nomes dos nossos mortos porque lembrá-los é honrá-los e é uma obrigação registar os nomes de quem na flor da idade nos deixou.

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O António Tavares que pertenceu à CCS do BCAÇ 2912, que nós fomos render, sobre a emboscada das Duas Fontes fez-me chegar a correcção sobre o numero de mortos e assim: 

Na emboscada morreram 5 militares e posteriormente três dos feridos que foram evacuados vieram a falecer em resultado dos ferimentos.

Os mortos foram oito e não seis como eu tinha inicialmente escrito.

Da parte do ex-Alf Mil Luís Dias, que chegou a comandar a companhia do Dulombi, chegaram-me estas informações mais precisas sobre a actividade operacional do Batalhão 3872.

CURIOSIDADES OU NOTAS SOBRE A NOSSA ZONA

Podemos verificar que os 4 quartéis do Batalhão sofreram 22 ataques/flagelações (CCS-1; CCAÇ 3489 - 12; CCAÇ 3490 - 0 e CCAÇ3491 - 9) e que as Tabancas das nossas populações em redor dos nossos aquartelamentos sofreram 23 ataques/flagelações, sendo que 9 deles foram contra populações indefesas e num acto de salteadores de estrada, o IN roubou dinheiro e bens a 16 elementos da população que transitavam na picada Saltinho-Galomaro.

BCAÇ 3872

FLAGELAÇÕES E ATAQUES AOS NOSSOS QUARTÉIS

CCAÇ 3489 - CANCOLIM

8 Flagelações em 1972 (1 delas c/ 3 mortos, 5 feridos graves e 5 feridos ligeiros)
2 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCAÇ 3490 – SALTINHO

Não sofreram quaisquer ataques ou flagelações durante a comissão

CACAÇ 3491 – DULOMBI

3 Flagelações em 1972
4 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCS - GALOMARO

1 Ataque/flagelação em 1972 c/1 IN morto confirmado e prováveis feridos IN

MINAS ACTIVADAS E DETECTADAS

Cancolim: Mina A/P reforçada accionada c/1 morto e 1 ferido+mina A/C accionada c/12 feridos graves, 1 ferido ligeiro e 2 feridos pop.+2 minas A/P levantadas
Saltinho: 3 minas A/C levantadas e 1 A/P levantada
Dulombi: 2 minas A/C levantadas e 2 minas A/P levantadas
Galomaro: 1 mina A/P reforçada accionada c/1 morto+1 mina A/C reforçada accionada c/1 ferido grave

EMBOSCADAS/CONTACTOS/FLAGELAÇÕES AUTO

CCAÇ 3489 - 1 contacto com o IN, após flagelação ao quartel, em 1972+1 emboscada aos milícias em Anambé, em 1973 c/2 mortos e 1 ferido
CCAÇ 3490 - 1 emboscada no Quirafo c/ 9 mortos+1 milícia e 2 civis+1 militar capturado. 1 emboscada c/feridos e mortos do IN+1 contacto do IN c/milícias de Cansamange
CCAÇ 3491 - Flagelação numa operação no Fiofioli+1 emboscada/contacto com 4 feridos ligeiros nossos e mortos do IN (s/confirmação de quantos, mas a rádio do PAIGC referiu que tínhamos tido 8 mortos e eles também tinha tido mortos+1 emboscada/flagelação junto à recolha de águas no Dulombi+2 flagelações a coluna de escolta e protecção na estrada Piche-Buruntuma.
CCS - Contacto entre forças milícias e o IN, após ataque a Campata c/elemento IN capturado.

ATAQUES A TABANCAS EM AUTO-DEFESA E TABANCAS INDEFESAS

- Tabanca indefesa de Bambadinca/Cancolim, em 25/1/72;
- Tabanca indefesa de Mali Bula/Galomaro, em 1/2/72;
- Tabanca de Umaro Cossé/Galomaro, c/2 feridos civis, em 7/12/72;
- Tabanca de Campata/Galomaro, em 20/6/72;
- Tabanca indefesa de Sinchã Mamadu/Saltinho, na mesma data de 20/6/72;
- Tabancas indefesas de Sana Jau e Bonere/Saltinho, em 30/6/72;
- Tabanca de Cassamange/Saltinho, em 15/7/72;
- Tabanca indefesa de Guerleer/Galomaro, c/ morte de 3 prisioneiros civis e 1 ferido grave, em 27/7/72;
- Tabanca de Patê Gibele/Galomaro c/ 1 sarg. milícia morto+1 ferido grave e 2 feridos ligeiros da pop., em 11/8/72;
- Tabanca de Anambé/Cancolim c/1 morto (CCAÇ 3489)+3 feridos também da mesma CCAÇ, que ali estava de reforço, em 5/9/72;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, c/3 feridos IN confirmados, em 20/9/72;
- Tabanca de indefesa de Bujo Fulpe/Galomaro, em 26/9/72;
- Tabanca ainda indefesa de Bangacia/Galomaro, com 1 milícia e 2 civis mortos, no mesmo dia (26/9/72);
- Tabanca de Dulô Gengele/Galomaro, com 3 mortos IN confirmados e 3 mortos civis (que tinham sido feitos prisioneiros antes do ataque e que foram abatidos+1 ferido grave e 1 ferido ligeiro dos milícias e 4 feridos graves da pop e 5 feridos ligeiros da pop., em 17/10/72;
- Tabanca indefesa de Sarancho/Galomaro, com 2 mortos civis e 2 feridos civis;
- Tabanca indefesa de Samba Cumbera/Galomaro, c/1 ferido grave da pop., em 13/11/72;
- Tabanca de Cansamange/Saltinho, 17/12/72;
- Picada Saltinho-Galomaro c/16 elementos da pop. capturados e roubados dos seus haveres (dinheiro), em 18/1/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, c/2 mortos civis+2 feridos civis+2 feridos milícias, em 1/2/73;
- Tabanca de Campata/Galomaro, c/5 mortos do IN e 1 capturado+3 mortos milícias e 3 mortos civis, em 16/3/73;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, em 14/5/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, em 18/9/73;
- Tabanca de Madina Bucô, em 20/1/74.

09 de Novembro de 2020 às 21:26
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Nota do editor

Último poste da série de17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21457: (Ex)citações (377): As visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21534: Armamento (11): Material apreendido ao PAIGC em 1972 e 1973, em Galomaro e Dulombi (Luís Dias, ex-alf mil, CCAÇ 3491, Dulombi e Galomaro, 1971/74)


Foto nº 1 > Mina A/C


Foto nº 2 > Tambor e fita de metralhadora ligeira Dectyarev RPD


Foto nº 3 >  Granadas de RPG 2 e RPg 7 e outro material


Foto nº 4 > Baionetas de Kalashnikov AK-47 e AK-47/51


Foto nº 5 >  Estilhaços de RPG 2 e de RPG 7

Fotos (e legendas): © Luís Dias (2020). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Luís Dias

1. Mensagem do Luís Dias[, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), o nosso especialista em armamento; tem mais de 8 dezenas de referências no nosso blogue]:

Date: sexta, 6/11/2020 à(s) 11:56
Subject: Material que pode ter interesse de museu

Caro Luís Graça

Atendendo ao teu pedido,  seleccionei um grupo de fotos que talvez aches interessantes, relativos às nossas actividades na Guiné.

Assim segue um grupo de "roncos" ou prendas"... do PAIGC.

Foto nº 1 > Mina A/C levantada na picada Dulombi-Galomaro, em Outubro de 1972; 

Foto nº 2 > Fita e tambor de metralhadora ligeira Dectyarev RPD, no calibre 7,62 x 45mm, apreendida num ataque a uma das tabancas da área de Galomaro, em 1973;

Foto nº 3 >  Material apreendido num contacto com o IN em Março de 1972, em Paiai Lemenei-Dulombi. 

Foto nº 4 > Baionetas de Kalashnikov AK-47 e AK-47/51, a primeira apreendida num ataque à tabanca de Campata- Galomaro e a outra, após contacto com o IN, na estrada Piche-Buruntuma, em 1973. 

Foto nº 5 >  Estilhaços de RPG 2 e de RPG 7, após flagelação ao aquartelamento do Dulombi, em 1972.

A seguir envio e-mail, com objectos da arte fula.

Abraço.
Luís Dias
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Nota do editor:

Último poste da séreie > 25 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21110: Armamento (10): As novas Armas Ligeiras para o Exército (Conclusão) (Luís Dias, ex-Alf Mil Inf)

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21533: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (11): O morcego e a cria, ou um "desastre.. da caça"


Capa do livro de: Ana Rainho e Cláudia Franco - Morcegos da Guiné-Bissau: um contributo para o seu conhecimento. Lisboa: Instituto de Conservação da Natureza, 2001, 86 pp., il. (Coleção Técnica) [Disponível aqui em formato pdf] (*) (Reproduzido com a devida vénia...)



Carlos Barros, Esposende


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros [, um de "Os Mais de Nova Sintra", 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; membro da Tabanca Grande nº 815, tem 14 referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado]


O morcego e a cria…

por Carlos Barros (**)


O Comando da 2ª Cart de Nova Sintra, escalou, mais uma vez, o 3º grupo de combate para garantir a segurança da estrada Tite-Enxudé, uma via de extrema importância  uma vez que garantia o acesso, por via marítima e fluvial, à cidade de Bissau, através da utilização de pequenas embarcações.

Numa 4ª feira, o furriel Barros estava descansado, devidamente armado, no seu posto de vigilância nesse percurso e, por sinal, entretinha-se a caçar alguns pássaros com a sua arma de pressão, no meio dos cajueiros.

Num cajueiro, amarrado a um ramo, encontrava-se um morcego e o Barros, decidiu dar-lhe um tiro já que nunca tinha visto ao perto um morcego.

Um tiro certeiro e passados segundos, esse animal cai no chão poeirento do posto de vigilância e, algo de imprevisível tinha acontecido: o morcego caiu morto e tinha uma cria junto de si e o destino da cria estava traçado…

O Barros estava amarelo e tremendamente arrependido por ter morto o morcego já que nunca suspeitou que existia uma cria em amamentação pois, se soubesse, jamais atiraria ao infeliz animal.

Um dia estragado, mais um “desastre” na caçada do Barros,  e este militar, como muitos outros, andava um “pouco apanhado” da guerra que transformava os homens em autênticos “animais irracionais”…

Se houvesse, na altura uma Associação Protectora dos Animais, o Barros assumiria a culpa e suportaria as consequência e digo isto, porque o furriel, em parte, recuperou das mazelas psíquicas que a atroz guerra provocou.

A partir desse momento, a arma de pressão entrou de féria durante muito tempo…

Nova Sintra, 1972

Barros

_____________

Notas do editor:

(*) Excertos: Considerações Finais (pp. 77/78)

(...) Uma das principais ameaças que recai sobre os morcegos do Oeste africano é a falta de estudos dirigidos à conservação. Nas últimas décadas, poucos trabalhos têm sido realizados nesta região, sendo assim difícil avaliar, não só a situação das populações de morcegos, mas também os verdadeiros factores de ameaça que recaem sobre estas espécies.

Não constituindo uma excepção, os trabalhos realizados até à data, na Guiné-Bissau, não permitem obviamente, avaliar o estado das populações de quirópteros aí presentes, de modo a determinar o seu estatuto de ameaça ou a sua tendência populacional. No entanto, da análise que nos é permitida fazer aos dados de que dispomos, evidenciam-se alguns pontos que merecem ser aqui ser referidos:

(i) Constata-se que a maioria dos quirópteros encontrados na Guiné-Bissau, são espécies florestais, que utilizam estas áreas para abrigo e alimentação. É também bastante evidente que este é o habitat mais (sobre) explorado no território. Num país onde a energia eléctrica se reduz à área da capital, e mesmo aí sofre frequentes interrupções, é fácil compreender o valor do carvão como fonte de energia. 

Agravando ainda mais esta situação, existe uma política de incentivo à exploração de madeira e procede-se à eliminação da floresta para dar lugar a campos agrícolas. Assim, este habitat, onde ocorre a maioria do quirópteros conhecidos para a Guiné-Bissau, sofre uma redução considerável e continuada que é bastante preocupante. Esta situação revela a necessidade urgente da tomada de medidas prementes para o controlo da destruição desregrada da floresta. 

A estratégia de controlo da desflorestação parece quase inevitavelmente passar pela recurso a energias alternativas, nomeadamente à energia solar. Um exemplo excepcional que vai de encontro a esta estratégia é o plano da IUCN (em implantação em 1998), de divulgação de fornos solares de alto rendimento, a qual deveria ser feita, não apenas em áreas protegidas, mas também a nível nacional.

(ii) A reconversão da floresta em arrozal já desde há muito se provou ineficaz, já que os anos de produtividade são muito reduzidos, sendo estes campos geralmente abandonados após um curto espaço de tempo. O acelerar da recuperação de muitos terrenos de cultura, com plantação de espécies pioneiras, seria outra estratégia a tomar, juntamente com prévia análise e controlo das áreas a desflorestar para a agricultura. 

Também se verifica a reconversão da floresta para plantações frutícolas, sobretudo de cajueiros, resultante de uma política de incentivo à produção, tendo em vista a exportação de frutos. Neste caso, dever-se-ia tentar utilizar os terrenos já previamente desflorestados, para esta actividade.

(iii) De salientar também que, para além das áreas florestais, as savanas do tipo Guineano, do Oeste Africano, são consideradas como centros de riqueza específica (...)  ao nível africano, o que confere uma responsabilidade acrescida na preservação deste habitat no território.

(iv) Ao nível de populações de morcegos, o reduzido número de capturas e a reduzida riqueza específica revelados nas ilhas de Bubaque e Orango, justificam o estudo da capacidade de migração de algumas das espécies aí presentes e assim averiguar a viabilidade das populações de morcegos insulares.

(v) Também as grutas do Boé, cuja importância a nível nacional é inegável, deveriam ser regularmente monitorizadas, para acompanhamento das colónias que as ocupam e controle atempado de potenciais ameaças. 

(vi) Da listagem de espécies obtida para a Guiné-Bissau, 8 espécies podem ser preliminarmente consideradas como prioritárias nos estudos a desenvolver, pelo estatuto que lhe é atribuído pela UICN a nível mundial, pela falta de confirmação da sua presença ou por se encontrarem no limiar da sua área de distribuição. 

Estas são: H. monstrosos, E. buetticoferi, C. afra, H. cyclops, H. abae, R. alcyone, R. denti, H. fuliginosus, E. guineensis, C. poensis e C. beatrix.  Os estudos a desenvolver deveriam ter como fim o desenvolvimento de planos de acção para estas espécies. 

Obviamente que todos estes pontos têm subjacente o reconhecimento político e popular da necessidade de conservação dos quirópteros. Os morcegos são raramente incluídos em políticas ambientais ou projectos educacionais, sendo por isso importante garantir que os políticos e decisores sejam totalmente esclarecidos sobre a importância dos morcegos e do seu papel nos ecossistemas africanos (...).

 Este deverá certamente ser o primeiro passo a dar na conservação dos morcegos na Guiné-Bissau. Refira-se por exemplo, a propósito de projectos educacionais, que, apesar de actualmente a situação não parecer particularmente gravosa, se deveriam também realizar algumas campanhas informais de esclarecimento dos proprietários das fruticulturas sobre a importância dos morcegos frugívoros, e do real impacto que estes têm sobre esta actividade, geralmente sobrestimada. (...)

[Revisão e fixação de texto para efeitos de edição neste blogue: LG]

(**) Último poste da série > 5  de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21517: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (10): Relembrando a morte, por acidente com um dilagrama, no CIM de Bolama, em 10/7/1972, do alf mil Carlos Figueiredo

Guiné 61/74 - P21532: Historiografia da presença portuguesa em África (238): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Trata-se de um curiosíssimo relato de uma viagem onde não faltam os ingredientes de um rei crudelíssimo, a surpresa da chegada de um branco, coisa nunca vista, quem o escreve é um francês de nome Max Astrié, que era vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Tudo se passou em 1879, a presença portuguesa confinava-se a Bolama no que toca aos Bijagós, a França não escondia o seu apetite em espartilhar a presença portuguesa na Senegâmbia. 

Max Astrié deslocava-se a pedido de um explorador lendário que queria intensificar os negócios na região. É um relato cheio de vivacidade, com algumas pitadas de sensualidade, feitiçaria e a descoberta das belezas inconfundíveis dos Bijagós. Uma belíssima descoberta, afianço-vos.

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (1)

Beja Santos

Folhear os primeiros anos do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa dá azo às mais deliciosas surpresas. No Boletim, 6.º Série, N.º1, de 1886, li e reli com enorme prazer a viagem à Ilha de Orango, o seu autor foi Max Astrié, Vice-Cônsul da Turquia em Bolama e Bissau. 

Sou responsável pela tradução livre, desde já me penitencio de alguma interpretação desaforada. Releva a forma clara, de pronta apreensão, deste relato surpreendente daquele que terá sido o primeiro branco a pisar o solo de Orango, a maior das ilhas do arquipélago dos Bijagós. 

É uma narrativa cativante, um texto digno de ombrear no que há de melhor de literatura de viagens do século XIX.
Primeira página do relato de Max Astrié

Vamos ao que ele escreve. 

O arquipélago dos Bijagós situa-se na costa ocidental de África, entre a Senegâmbia e a Serra Leoa, se bem que nas cartas escolares figura em face da Senegâmbia. As ilhas são mal conhecidas. Só a ilha de Bolama foi colonizada pelos portugueses, vai para dois séculos, e serviu durante muito tempo como entreposto do tráfico de escravos.

Aimé Olivier de Sanderval,
Visconde de Sanderval
Em 1878, encontrava-me em Bolama e recebi de Marselha, via Lisboa, o seguinte telegrama: ''Max Astrié aceita missão explorar arquipélago Bijagós? Caso afirmativo, vir Marselha''. 

Após uma semana de hesitações decidi-me a aceitar e um mês mais tarde embarquei para essa cidade. O telegrama que me fora enviado viera de Mr. Olivier, Visconde de Sanderval, ilustre viajante que tinha explorado, correndo os maiores perigos, grande parte do Futa Djalon. 

Era um homem de cerca de 45 anos, barba negra, olhar expressivo, másculo e enérgico. Falou-me com uma comunicação calorosa, acreditava que estas regiões eram muito auspiciosas para o futuro comercial da França. Cheio de confiança, embarquei em Bordéus em 20 de Outubro de 1878 num barco que irá naufragar, um mês mais tarde, nas costas americanas.

Contraí febre-amarela, estive dois meses em Rufisque (Senegal) e um mês ao largo de Bissau, desembarquei em Bolama em 1 de Fevereiro de 1879. Fiz os meus preparativos para começar as minhas explorações em Orango, e por dois motivos: é a mais importante do arquipélago; havia rumores que faziam tremer os mais decididos, pois dizia-se que os Bijagós das outras ilhas que se aventuravam a ir a Orango não regressavam – a ilha era governada pelo rei Oumpâné Caetano, que havia chegado ao poder pela força das armas, um déspota sempre pronto a praticar actos de crueldade. 

O navio austríaco encalhara meses antes nos bancos de areia da ilha. Toda a tripulação ficara detida e posta a ferros e só fora libertada pela intervenção do sobrinho do rei. Foi ciente destas situações que para ali embarquei em 5 de Fevereiro, era o único branco a bordo.

Na véspera, recebi do agente consular da França em Bolama a seguinte carta: “Caro Mr. Astrié – tomei conhecimento que tem intenção de se aventurar na ilha de Orango. Na minha qualidade de compatriota e amigo, creio ter o dever de o desaconselhar com toda a firmeza de tal projecto. Deve saber que o rei desta ilha se dá à prática de actos atrozes, como foi o caso de alguns marinheiros austríacos ali naufragados. Não se vá expor a perigos que lhe irão causar grandes prejuízos pessoais, que levem à necessidade da intervenção do governo francês. Os melhores cumprimentos, segue-se a assinatura”.

Esta missiva não me deteve. A minha decisão estava tomada e parti com o apoio solícito de toda a população. Quando nos aproximámos de Orango, distingui à volta uma grande fogueira uma dezena de negros que gesticulava com vivacidade e em direcção do nosso barco. 

Passámos toda a noite a questionar se estas demonstrações não escondiam quaisquer propósitos para impedir o nosso desembarque. Apesar disso, no dia seguinte, ao amanhecer, preparei o pequeno bote, distribuí armas por todos os meus acompanhantes e dirigi-me resoluto para a costa. Quando desembarcámos, chegou um grupo de negros, homens, mulheres e crianças que gritavam e nos lançavam olhares espantados. 

A palavra Toubaba era constante nos seus bramidos. Alguns estavam armados de azagaias. Ordenei aos meus acompanhantes que formássemos um grupo compacto e convidei o meu intérprete a parlamentar com os autóctones. Nesse momento, um negro aproximou-se de mim, saudou-me com a mão e voltando-se para o intérprete falou nestes termos: “Diz ao branco que a embarcação está assinalada deste ontem e o rei envia-me para lhe dizer que o convida a vir à tabanca” e fez sinal para o seguirmos.
Vista geral da Ilha de Orango
Pormenor do Parque Natural de Orango

A tabanca do rei ficava a cerca de quilómetro e meio. Durante o trajeto ia-se juntando mais gente. Alguns minutos depois, chegámos a um laranjal, no meio do qual estava a casa do rei, que não era mais do que uma casa circular composta de uma paliçada de bambus e com um teto de palha. O rei esperava-nos num alpendre, era uma espécie de peristilo informe onde habitualmente se praticava a justiça.

 Sua Majestade Oupâné estava sentada num escabelo em madeira. Era um homem de aproximadamente 35 anos, olhos penetrantes, nariz adunco, coberto com um pano que lhe cobria metade do corpo. Sinal característico: trazia na cabeça uma espécie de cartola, segundo o uso de todos os reis do arquipélago. Na sua coxa direita tinha uma ferida repugnante, supurando um pus esbranquiçado, indicativo de uma doença muito espalhada nos povos da costa ocidental de África. 

De vez em quando, o rei espremia esta fica asquerosa e limpava os dedos no seu ministro da justiça, que estava completamente nu. Ofereceu-nos escabelos onde nos sentámos. Muitos dos viajantes fantasistas têm o triste hábito de se apresentar dizendo que conversam directamente com os indígenas de que ignoram a língua, o que nos deixa supor que nunca tinham posto os pés no país de que falam. O meu intérprete, depois de conversar com o intérprete do rei, disse-me:

“Queira o Irã, o mais poderoso dos deuses, que tudo o que vou dizer seja a expressão da verdade. Não esquecerei que ao falar ele lê no fundo do meu coração e que ele sabe previamente se as minhas palavras estão de acordo com o meu pensamento. Queira o Irã que do teu lado não sejas mentiroso! Em breve, vou fazer um sacrifício a todos os deuses: fala, o que vens fazer a esta ilha?”. 

Todo o povo estava ávido por me ouvir, agrupara-se à nossa volta e eu via, não sem uma certa inquietação, o círculo fechar-se cada vez mais, eu sentia o odor nauseabundo que vinha daqueles corpos besuntados com óleo de palma rançoso, segundo o costume do país.

O rei provavelmente apercebeu-se, porque fez com o bastão que tinha na mão um gesto significativo e a multidão afastou-se uma dezena de metros. Fiz a Sua Majestade os presentes do uso: um lenço de fino algodão; uma faca para talhante; oito maços de tabaco em folha e um garrafão de aguardente. Depois, voltando-me para o meu intérprete, respondi nestes termos: 

“Diz ao rei que estou pronto a responder a todas as suas questões com sinceridade, porque os brancos em França não mentem nunca. Vim a Orango para fazer com ele comércio de coconote, amendoim e borracha. Trarei do meu lado, todos os produtos dos brancos, tais como a quina (planta para tingir), o tabaco e a aguardente”. 

À palavra aguardente, correu um prolongado murmúrio de aprovação na multidão. O rei ficou uns minutos sem responder; depois, voltou-se para o seu intérprete e disse com voz rouca: 

“Diz ao branco que compreendi todas as suas palavras. Iremos oferecer um sacrifício aos deuses e agiremos segundo a sua resposta”. 

E logo se retirou para sua casa após terem encarregado dois negros para cuidar de todos os pormenores da cerimónia.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21515: Historiografia da presença portuguesa em África (237): “Permanência": a última revista de propaganda imperial (Mário Beja Santos)

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21531: Casos: a verdade sobre... (14): as razões da retirada de Madina do Boé em 6 de fevereiro de 1969... Já oito meses antes, em 8 de junho de 1968, havia saído uma Directiva do Comando-Chefe da Guiné para a transferência da unidade ali estacionada, a CCAÇ 1790, comandada pelo cap inf José Aparício


Fotigrama nº 1


Fotograma nº 2

 

Fotograma nº 3


Fotograma nº 4


Fotograma nº 5

Fotogramas do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um vídeo. de menor duração (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué".  

O documentário (ou excertos) foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). 

O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado): é narrado em espanhol, tem subtítulos em espanhol, mas também pequenos diálogos em crioulo e em português (por ex., com o médico dr. Mário Pádua, angolano branco, oficial do exército português, de que desertou, tendo saído de Angola para se juntar mais tarde ao PAIGC). 

Possivelmente o documentário do You Tube baseia-se em grande parte na média metragem "Madina Boé", mas parece estar amputado da parte final, incuindo a ficha técnica. (Faltam-lhe cerca de 10').

Esta média metragem, "Madina Boé" (1968),  foi  financiado pelo Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográficas, de que o José Massip foi cofundador, e pela Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, África e América Latina. O documentário retrata a organização do  PAIGC na região do Boé, e o quotidiano dos seus guerrilheiros. O Boé
é considerado como "área libertada". 
 
O cineasta José Massip e o operador de câmara Dervis Pastor Espinosa  estiveram no Boé em março e abril de 1967,  pelo que as imagens do  ataque ao quartel de Madina do Boé em 10 de novembro de 1966 (, trágico para o PAIGC, com a morte de Domingos Ramos e outros militantes) só podem ser de arquivo e, nessa medida, são (ou podem parecer) um embuste: a verdade sobre o que se passou nesse dia trágico foi pura e simplesmente ignorada ou escamoteada.

Sabe-se que em março-abril de 1967,  a equipa cubana não filmou nenhuma cena de guerra, alegadamente por razões de segurança. As imagens de guerra que foram incorporadas no filme terão sido obtidas por outra equipa cubana, que estava no terreno em 10 de novembro de 1966, o que ainda está por esclarecer. (Já fizemos referência à operadora de câmara argentina Isabel Larguia, que estava ao lado do guineense Domingos Ramos e do cubano Ulises Estrada) (**)

O filme foi estreado entre nós no doclisboa'16, em 24 de outubro e 2016, às  15h30, na Cinemateca Nacional, Sala M. F. Ribeiro.  Sinopse que vinha no programa, e que não deixa de ser reveladora de alguma ingenuidade dos organizadores.

"Filmado nas áreas libertadas [sic] da Guiné-Bissau, durante a sua guerra de libertação de Portugal, o filme segue o Exército Popular para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, documentando a educação política dos combatentes, as técnicas de guerrilha e o treino físico."  

De resto, tanto Cuba como  PAIGC mantiveram inicialmente em segredo a "ajuda estrangeira" em conselheiros, médicos e combatentes cubanos... No filme não aparecem combatentes estrangeiros, a não ser o médico Mário Pádua, de costas (que diz no filme: "eu sou um médico português antifascista e anticolonialista"... e acrescenta: a guerra que aqui se trava não é do povo guineense contra o povo português mas contra um regime político fascista...)

O filme do José Massip foi várias vezes premiado (. nomeadamente em países do chamado bloco soviético), passou na televisão cubana mas não obteve grande entusiasmo  da crítica interna. Há cenas no filme que não terão agradado ao regime de Fidel Castro, Em contrapartida, foi muito útil à propaganda do PAIGC. Amílcar Cabral era hábil, a explorar, no plano mediático e diplomático, testemunhos como este que devem ter seduzido, por exemplo, os suecos do partido de Olof Palme.

 Legendas: 

Fotograma nº 1 > Amícar Cabral cambando o rio Corubal,  acenando para uma das margens.

Fotograma nº 2 > As colinas do Boé

Fotograma nº 3 > Aspecto do aquartelamento de Madina do Boé (que José Massip chama "base"), vista seguramente obtida de teleobjetiva: vê-se um militar português, junto a duas dificações de alvenaria, abrigos e valas protegidoes por bidões cheios de terra.

Fotograma nº 4 >  Aspeto parcial de Madina, com algumas moranças da milícia ou guias locais ao serviço do exército potuguês. Imagem obtida seguramente por uma teleobjetiva, a partir de uma colina.

Fotograma nº 5 > Disparo de canhão s/r contra Madina do Boé [ possivelmente em 1o de novembro de 1966]

Reprodução, edição e legendagem, com a devida vénia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Foto nº 1 > O Manuel Coelho, na margem direita do rio Corubal, montando segurança à travessia do Rio Corunal, em Cheche, que se fazia através de um  jangada. 



Foto nº 2 > O Manuel Coelho dentro da jangada com um guineense, que tanto pode ser milícia como militar do destacamento de Cheche... Ambos ajudam a segurar o cabo (ou a corda) ao longo do qual se desloca a jangada (que também tinha um pequeno motor auxiliar)...


Foto nº 3 > A jangada que se começa a deslocar da outra margem (Cheche), seguindo o cabo, esticado de um lado a outro... No ancoradouro, é visível uma segunda jangada.


Guiné > Região de Gabu > Sector de  Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, "Os Tufas" (Nova Lamego, Beli e Madina do Boé, 1966-68) > 1967 > 

 O Manuel Coelho, fur mil trms,  com uma secção, montando segurança à jangada que fazia a travessia do Rio Corubal em Cheche (Foro nº 1). Ou puxando a corda que ligava as duas margens e ajudava deslocar a jangada (que tinha um pequeno motor auxiliar) (Fotos nºs 2 e 3)... Uma operação rotineira, ao lomgo de anos, de permanência das NT em Madina do Boé, até ao fatídico dia 6 de fevereiro de 1969, o da retirada do aquartelamento de Madina do Boé e do destacamento de Cheche (Op Mabecos Bravios).

Fotos (e legendas): © Manuel Caldeira Coelho (2018). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Junho, 8 [1968] - Directiva do Comando-Chefe da Guiné para a transferência da unidade estacionada em Madina do Boé

Devido à sua localização, cercada de elevações de terreno {, as famosas "colinas do Boé", contrafortes do Futa Jalom, na Guiné-Conacri], Madina do Boé era considerada a Dien-Bien-Phu portuguesa-

A guarnição militar, uma companhia do Exército, reforçada com artilharia, era frequentemente atacada e vivia dentro de abrigos, sem capacidade para outra actividade  operacional que não fosse garantir o seu reabastecimento.

Não existia qualquer interesse operacional em manter ali uma guarnição, não existiam populações locais que fosse necessário enquadrar ou proteger, pelo que a manutenção de uma unidade em Madina do Boé resultava apenas do preconceito que sair podia ser visto como uma derrota.

A ordem de Spínola para abandonar a guarnição resultava da sua visão pragmática de fazer a guerra  e era reveladora do seu conceito de manobra, decididamente orientada para a conquista das populações. Abandonava terreno  desabitado e  libertava uma unidade que podia colocar numa zona de maior interesse.

In: Carlos de Matos  Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra colonial, vol 9: 1968 - Continuar o regime e o império. Matosinhos, QuidNovi, 2009, pp. 52-53.

[Nota do editor LG: a última companhia a guarnecer Madina do Boé, a CCAÇ 1790, não dispunha de artilharia p.d., mas apenas de morteiro 81 e canhão s/r, que são armas pesadas de infantaria]


2. Era também essa a opinião do comandante da Op Mabecos Bravios, destinada a assegurar a retirada de Madina do Boé, o cor inf Hélio Felgas [, do Comando de Agrupamento nº 2957, Bafatá, 1968/70], reformado com o posto de major general, e falecido em 2008.
 

O Paulo Raposo, ex-alf mil da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/70), membro da primeira hora da nossa Tabanca Grande, organizador do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo, em 2006, mandou-me, em devido tempo, uma fotocópia de um depoimento do então Brigadeiro Hélio Felgas, sobre a trágica retirada de Madina do Boé.

Se não erro,  esse depoimento terá sido escrito em 1995, a pedido dos "baixinhos de Dulombi", os ex-alf mil Rui Felício, Paulo Raposo, Jorge Rijo, Victor David e , e demais pessoal da CCAÇ 2405, a unidade que perdeu 17 homens na travessia do Rio Corubal, em Cheche, 6 de Fevereiro de 1969. Só o Rui Felício perdeu 11 homens do seu Grupo de Combate. (As restantes vítimas mortais, 29,  foram da CCAÇ 1790.)

Desse documento  ("A retirada de Madina do Boé", até então inédito, publicado por nós em 2008)(*), retiramos alguns excertos em que o Hélio Felgas avança com as razões que levaram à retirada de Madina do Boé (e, consequentemente, ao lançamento da Op Mabecos Bravios). 

Enfim, são mais dois contributos para se esclarecer a verdade que está por detrás da retirada de Madina do Boé, rapidamente transformada pela propaganda do PAIGC em  grande vitória militar... e "trunfo diplomático"  (***)
 
2. A retirada de Madina do Boé (excertos)


pelo Brigadeiro Hélio Felgas  (1995)

[Digitalização, fixação e revisão do texto e subtítulos: L.G.]


Todo o sudeste da Guiné, ao sul do rio Corubal, era uma região praticamente despovoada onde só havia dois postos administrativos: Beli e Madina do Boé.


(i) Um ponto sem valor estratégico

Já antes de, em 1968, eu ter assumido o comando do sector Leste [, Agrupamento nº 2957, com sede em Bafatá], Beli fora abandonado [, em 15 de julho de 1968]. O pelotão que aí se encontrava fora transferido para Madina, completando a companhia aí instalada [, CCAÇ 1790, comandanda pelo cap inf José Aparício].

Madina fica a cerca de 5 quilómetros da República da Guiné-Conacri. Não tinha qualquer população civil e só dispunha de um ou dois pequenos edifícios. Nem ruas tinha. Havia sido apenas uma minúscula tabanca (aldeia nativa), sem importância de qualquer espécie.

À medida que o PAIGC aumentava o seu poder de fogo com morteiros pesados e artilharia, os bombardeamentos e flagelações a Madina, executados em geral a partir do lado de lá da fronteira, passaram a ser quase diários.

Por isso a guarnição dormia em abrigos, escavados 4 ou 5 metros abaixo do nível do solo. Muitas vezes os bombardeamentos nada destruíam, caindo os obuses e granadas fora do perímetro do aquartelamento. Mas outras vezes causavam estragos e baixas que, em caso de necessidade, eram evacuadas de helicóptero para o hospital militar de Bissau.


(ii) A rotina dos bombardeamentos e flagelações

Apesar desta situação certamente pouco agradável, o moral da guarnição era levado. Lembro-me da primeira vez em que fui pernoitar a Madina. Pouco antes do anoitecer comecei a ouvir os soldados à porta dos seus abrigos gritando “Está na hora! Está na hora!”. 

O comandante da Companhia elucidou-me que era a altura de o PAIGC começar o usual bombardeamento e os homens já tomavam aquilo como uma brincadeira, habituados como estavam ao estrondo do rebentamento das granadas. Por acaso nesse dia as granadas só de madrugada caíram e não causaram baixas nem prejuízos.

Claro que a nossa guarnição respondia com morteiros e com canhão sem recuo e toda a gente estava sempre preparada para disparar a curta distância do arame farpado. Que eu saiba, porém, nunca o adversário tentou assaltar o aquartelamento.

Na manhã seguinte um destacamento saía do recinto e percorria os arredores procurando descobrir o local de onde teria sido feita a flagelação. Umas vezes tinha êxito e o local era cuidadosamente assinalado nas nossas cartas de tiro. Mas outras vezes nada se descobria pela simples razão de o bombardeamento ter sido feito a partir do território da Guiné-Conacri e os nossos militares cumprirem escrupulosamente a ordem que tinham de não atravessar a fronteira.

As viaturas da Companhia encontravam-se dispersas pela área do aquartelamento, em especial junto às árvores para melhor protecção. E até ao princípio de 1969 havia algum gado para consumo do pessoal. O último boi foi porém abatido por uma granada do PAIGC e a isso se referia com certo humor o relatório-rádio do comando local, confirmando assim o bom moral da unidade.

(iii) Missão: defender-se a si próprio!


De qualquer forma, tornou-se pouco a pouco evidente a inutilidade da presença de uma Companhia em Madina.

A tropa estava na Guiné para defender a população civil que nos era afecta, tentando suster o seu compulsivo aliciamento pelos guerrilheiros do PAIGC vindos do Senegal, a norte, ou da Guiné-Conacri, a sul e a leste. Procurava também evitar ou dificultar a penetração desses guerrilheiros em território então considerado nacional. E pretendia ainda impedir a destruição das estruturas económicas e administrativas: pontes, estradas, edifícios, etc.

Ora em Madina e em todo o sudeste guineense a sul do rio Corubal, não havia população alguma. Não havia estruturas de qualquer importância. E a fronteira era totalmente permeável em dezenas de quilómetros.

Então, se a tropa não estava a proteger qualquer ponte nem qualquer tabanca e não tinha a menor possibilidade de impedir penetrações territoriais, o que é que estava a fazer em Madina ?

A resposta era simples: a Companhia de Madina estava lá “para se defender a si própria”! Quando, afinal, fazia tanta falta em outros pontos da Guiné!

Por outro lado, ponderou-se também a possibilidade de o PAIGC aproveitar uma possível evacuação de Madina pelas nossas tropas, para declarar a região como “libertada”.

Mas isso podia o PAIGC fazer em qualquer outro ponto, do imenso sudeste guineense. Na zona de Beli, por exemplo, que nós abandonámos havia muito tempo e onde nunca íamos por falta de objectivo.

Aliás, mesmo com a Companhia em Madina, o PAIGC podia declarar o sudeste guineense uma “zona libertada” e até lá levar jornalistas estrangeiros, como parece que fez. (...) (*)




 
Major General Hélio Esteves Felgas (1920-2008): duas comissões na Guiné, um dos militares portugueses da sua geração mais condecorados, autor de dezenas de livros e artigos sobre a "luta contra o terrorismo", a guerra ultramarina... Comparou a Guiné ao Vietname. Também considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política... Foi, todavia, um crítico de Spínola que lhe terá roubado, entretanto, a ideia dos reordenamentos (aldeias estratégicas). Um oficial intelectualmente brilhante mas controverso, dizem alguns dos seus pares, mais novos.

Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, em 1970, foi passado compulsivamente à reserva, a seguir ao 25 de Abril de 1974. (Estava m Angola nessa altura; e sempre se considerou vítima de um saneamento político-militar.)

Foto gentilmente cedida pela filha, dra. Helena Felgas, advogada, colega e amiga do nosso camarada Jorge Cabral, e com quem estive no funeral do pai (*) (LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

25 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

24 de junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

(**) Vd. poste de 3 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21510: FAP (122): A batalha das Colinas de Boé, ou a tentativa (frustrada) dos cubanos de fazerem de Madina do Boé o seu pequeno Dien Bien Phu (Abril-julho de 1968) - Parte I (José Nico, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1968/70)

Guiné 61/74 - P21530: Parabéns a você (1890): António Garcia de Matos, ex-Alf Mil Inf MA da CCAÇ 2790 (Guiné, 1970/72) e Jorge Araújo, ex-Alf Mil Op Esp da CART 3494 (Guiné, 1971/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21527: Parabéns a você (1889): António da Costa Maria, ex-Fur Mil Cav do Esq Rec Fox 2640 (Guiné, 1969/71); António João Sampaio, ex-Alf Mil da CCAÇ 15 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAÇ 4942/72 (Guiné, 1973/74); Ernesto Ribeiro, ex-1.º Cabo At Art da CART 2339 (Guiné, 1968/69) e João José Alves Martins, ex-Alf Mil Art do BAC 1 (Guiné, 1967/70)

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21529: (D)o outro lado do combate (61): A chegada dos primeiros cubanos em abril de 1966, e o reforço da guerrilha no Boé, conforme carta de Amílcar Cabral para "Xido", o nome de guerra de Aristides Pereira

Guiné > Zona Leste > Região de Gabu >Setor de Boé > Madina do Boé > 1966 > Vista aérea do aquartelamento. Imagem reproduzida, sem menção da fonte, no Blogue do Fernando Gil > Moçambique para todas

Presume-se que a sua autoria seja de Jorge Monteiro (ex-capitão miliciano da CCAÇ 1416, Madina do Boé, 1965/67) ou de Manuel Domingues, membro da nossa Tabanca Grande, ex-alf mil da CCS/BCAÇ 1856, Nova Lamego, 1965/66 (autor do livro: "Uma campanha na Guiné, 1965/67").

 Foto (e legenda): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2006).



Folha 1.1


Folha 1.2


Folha 2.1


Folha 2.2

Reprodução, com a devia vénia, de carta manuscrita, de Amilcar Cabral (, algures,) para Aristides Pereira ("Xido", em Conacri),  com data de 12/4/1966.

Fonte:

Portal: Casa Comum
Instituição: Fundação Mário Soares
Pasta: 07061.032.023
Assunto: Encontro com os camaradas do Gabu. Regresso ao Boé. Chegada dos cubanos. Instruções. Envio de bazucas chinesas para o Sul e Madina de Boé. Chegada de dois transístores aos Armazéns do Povo.
Remetente: Amílcar Cabral
Destinatário: Xido [Aristides Pereira]
Data: Terça, 12 de Abril de 1966
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral


Citação:
(1966), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35061 (2020-11-9)


1. Carta manuscrita de Amílcar Cabral para o Aristides Pereira (nome de guerra, "Xido"), composta por duas folhas que, para efeitos de revisão. fixação de texto e edição no nosso blogue, reproduzimos em quatro partes (Folhas 1.1., 1.2, 2.1 e 2.2].

É um documento que tem interesse para o conhecimento não só do homem que dirigia o PAIGC ( e que por exemplo fumava cigarros americanos da marca L & M) como dos seus planos para desenvolver e reforçar a guerrilha no Leste, nomeadamente na região de Gabu e no setor do Boé, com o apoio dos "internacionalistas cubanos" que acabavam de chegar a Conacri, em abril de 1966.

Reproduz-se o teor da carta, separando os parágrafos por assuntos ou áreas temáticas, Há, no entanto,  palavras ilegíveis, ou que nos suscitam dúvidas, sendo por isso seguidos de um [?]; noutros casos, são complementadas por "pistas nossas", nomeadamente alguns nomes de militantes do PAIGC, que estavam no mato, nas bases sitas ao longo da fronteira (Boké, Koundara ou Kundara, Kandiafara...).

Recorremos,por isso, à preciosa ajuda do nosso coeditor Jorge Araújo, autor da série "D)o outro lado do combate", para colmatar algumas lacunas...Ele conhece melhor do que ninguém, aqui na Tabanca Grande, o Arquivo Amílcar Cabral, e está familiarizado com a letra e o estilo epistelográfico do eng. Amílcar Cabral... Aqui para nós: isto dá muito trabalho, ler, rever e fixar um texto manuscrito como este...Estou grato ao Jorge pelas correções e melhorias que fez à primeira versão da nossa transcrição... LG


(i) Encontro com os "camaradas do Gabu" [Folha 1.1]

" 12.4.66 [,Terça feira]. Caro camarada Xido [, Aristides Pereira, também conhecido como Chido]: 

"Aproveito o regresso dos camiões [?] para para te enviar pelo Tegma [?, nome ilegível]  estas breves linhas.

"Cheguei há umas horas do encontro com os camaradas do Gabu. Parecem bem dispostos, Têm feito alguma coisa, mas têm feito pouco, a meu ver muito pouco para as possibilidades reais.

 "Tinha chegado aqui [, a base de  Koundara ?, ] ante-ontem vindo diretamente do leste do  [Rio]. Féfiné.  Aí, com o Domingos [Ramos], procedemos ao estudo da operação em geral e começou-se a fase preparatória. Vamos ver". [O rio Féfiné corre a norte e a leste de Béli, e a sudeste de Cabuca, é um afluente do Corubal.]

(ii) Regresso ao Boé e encontros com o Domingos Ramos [Folha 1.2]

"Devo regressar do Boé (leste do Féfiné), depois de amanhã, pois devo reservar o dia de amanhã a verifiar uns materiais. 

"Ao receberes esta [carta] já devo estar de novo com o Domingos [Ramos]  e companhia. Daí partirei para o outro lado do Boé [, o Boé Oriental, onde se inclui a tabanca Lugajole, junto à fronteira, nas proximidades da qual, numa colina,. à cota de 200, se terá realizado a cerimónia da declaração da independência, a 24/9/1973; Lugajole fica a 40 km de Madina do Boé, para leste: informação do nosso camarada Patrício Ribeiro, o português que melhor conhece o Boé.] "


(iii) Chegada dos cubanos [em abril  de 1966, chega a Conacri o grupo avançado de três artilheiros e dois médicos, comandado pelo tenente António Lahera Fonseca] [Folha 1.2 e 2.1]:


"Recebi a tua mensagem pelo Pinto [Eduardo Pinto, que estaria nessa altura em Koundara, na Guiné-Conavri, junto à fronteira, no nordeste ?]. 

"Se chegarem os amigos cubanos apenas 2 poderão vir ter comigo onde estiver. Os outros devem esperar por mim em Conacri, incluisve os médicos. Quando eu chegar de novo ao Boké [, a sul,], onde devo voltar antes do meu regresso a Conacri, os médicos poderão ir ter comigo aí. Mas só entrarão em funções  definitvas quando chegar o Luíz [Delgado ?]

(iv) Alojamento e alimentação dos  cubanos [Folha .2.1]

"Quanto ao alojamento, a ideia do [Hotel]  "Maison Blanche" parece-me boa, mas estuda bem a questão  da alimentação. Pelo menos para os médicos, não me parece que o hotel sirva mau. Mas resolve da melhor maneira em colaboração  com o Luiz Delgado."

(v) Granadas de bazucas chinesas [RPG], para o sul e para o Boé [Folha 2.1]


"Espero que o Mirandela [, barco da Casa Gouveia aprisionado pelo PAIGC, no início da luta armada] tenha chegado a Boké mas que o M[anuel] Azevedo tenha ido para tratar da arrumaçãp do material. 

"Faz o possível por mandar obuzes [,granadas,]  de bazucas [, RPG, ], chinesas para o Sul e para Madina Boé. Mete o Nfamara [Cassama ?] na linha de Kandara [, ou Kandiafara ?]. e o Tegma. [?, nome ilegível] para Boké

"O Pinto adoeceu hoje, mas espero que se restabeleça breve, pois faz muita falta no meio disto, Vamos ver".

(vi)  Material apanhado aos gilas ... e pedido de maços de cigarros L&M [Folhas 2.1 e 2.2]

"Vão umas mercadorias 'saisies' [sic, em francês, com aspas,  apanhadas] aos gilas [, sublinhado,]  , incusive 2 transistores. Essas coisas devem ficar aí intactas até eu voltar, Recomenda isso ao nosso Armazenista do Povo.

"Não te esqueças de mandar cigarros LM, porque já estou nos útimos maços. Mais uma dificuldade."

(vii) Instruções  e saudações finais [Folha 2.2]

"Quanto ao resto, espero que continuemos a cumprir o programa traçado, para podermos evitar as dificuldades que as chuvas causam,  

"Manda para Kundara 1 ou 2 máquinas de costura.

"O Marcelino [Constantino Costa?] recebeu aqui duzentos mil francos, no Domingo [10.04.66].

"Bom, com a cabeça e o calor que tenho, para hoje é tudo.

"Melhoras para ti e que a Lucette [de Andrade] esteja boa.. Diz à Ana Maria [, segunda mulher de Amílcar Cabral,] que espero carta dela. Saudações à Carla e para todos os camaradas. Tenho grandes esperanças neste programa. Abraça-te o velho camarada, [assinado, Amílcar.]"

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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20994: (D)o outro lado do combate (60): O ataque a Pirada em 15 de julho de 1963 (Jorge Araújo)