domingo, 6 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21616: Memórias cruzadas: relembrando os 24 enfermeiros do exército condecorados com Cruz de Guerra no CTIG (Jorge Araújo) - Parte IV


Foto 1 – Assistência a ferido em combate. Imagem incluída no livro «Golpes de Mãos – Memórias de Guerra», do camarada José Eduardo Rodrigues Oliveira [JERO], ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 675 (1964-66) – P9562, com a devida vénia.



Foto 2 – Zona Leste > Sector L5 > Galomaro > CCS/BCAÇ 3872 (1971/1974). O enfermeiro Catroga prestando à população civil cuidados de enfermagem comunitária. Foto do álbum de Juvenal Amado – P11764, com a devida vénia.



Foto 3 – O 1.º Cabo Enf Silva assistindo o seu camarada fur mil Jorge Fontinha, da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto; 1970/72) após ter sofrido uma entorse, durante uma Operação a Balangarez, local situado entre Teixeira Pinto e Cacheu. Foto do álbum de Jorge Fontinha – P7026, com a devida vénia.




O nosso coeditor Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo; tem cerca de 270 referências no nosso blogue. 


MEMÓRIAS CRUZADAS

NAS "MATAS" DA GUINÉ (1963-1974):

RELEMBRANDO OS QUE, POR MISSÃO, TINHAM DE CUIDAR DAS FERIDAS CORPOREAS PROVOCADAS PELA METRALHA DA GUERRA COLONIAL: «OS ENFERMEIROS»

OS CONTEXTOS DOS "FACTOS E FEITOS" EM CAMPANHA DOS VINTE E QUATRO CONDECORADOS DO EXÉRCITO COM "CRUZ DE GUERRA", DA ESPECIALIDADE "ENFERMAGEM"

PARTE IV

 

 

► Continuação do P21504 (III) (01.11.20) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Através da consulta e análise do vasto espólio documental produzido pela geração dos ex-combatentes, que não pára de aumentar em cada dia das nossas vias – e ainda bem, digo eu (dizemos nós!) –, visando contribuir para a reconstrução do puzzle da memória colectiva da «Guerra Colonial / Guerra do Ultramar / Guerra de África», em particular a da Guiné [CTIG], continuamos a partilhar, no seio da «Tabanca Grande», os resultados obtidos nas «Memórias Cruzadas» implícitas no tema em título e subtítulo.


Para além do enunciado supra, enquanto objecto da investigação, com o tema em apreço procura-se valorizar o importante papel desempenhado pelos nossos camaradas da "saúde militar" (e igualmente no apoio a civis e população local) – médicos e enfermeiros/as (por exemplo a da foto 2) – na nobre missão de socorrer todos os que deles necessitassem, quer em situação de combate (por exemplo a da foto 1), quer noutras ocasiões de menor risco de vida (medicina geral), mas sempre a merecerem atenção e cuidados especiais (por exemplo a da foto 3).


Considerando a dimensão global da presente investigação, esta teve de ser dividida em partes, onde procuramos descrever cada um dos contextos da "missão", analisando "factos" e "feitos" (os encontrados na literatura) dos seus actores directos "especialistas de enfermagem", que viram ser-lhes atribuída uma condecoração com «Cruz de Guerra», maioritariamente de 3.ª e 4.ª Classe. Para esse efeito, a principal fonte de consulta/informação foi a documentação oficial do Estado-Maior do Exército, elaborada pela Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974).


2.   - OS "CASOS" DO ESTUDO


De acordo com a coleta de dados da pesquisa, os "casos do estudo" totalizaram vinte e quatro militares condecorados, no CTIG (1963/1974), com a «Cruz de Guerra» pertencentes aos «Serviços de Saúde Militar», três dos quais a «Título Póstumo», distinção justificada por "actos em combate", conforme consta no quadro nominal elaborado por ordem cronológica e divulgado no primeiro fragmento – P21404.


Neste quarto fragmento analisaremos mais dois "casos", o último de 1965 e o primeiro de 1966, onde se recuperam mais algumas memórias, sempre dramáticas quando estamos perante situações irreversíveis, como é a da morte.


3.   - OS CONTEXTOS DOS "FEITOS" EM CAMPANHA DOS MILITARES DO EXÉRCITO CONDECORADOS COM "CRUZ DE GUERRA", NO CTIG (1963-1974), DA ESPECIALIDADE DE "ENFERMAGEM" - (n=24)

 

3.7     - LUÍS PEREIRA JORGE, 1.º CABO AUXILIAR DE ENFERMEIRO DA CCAÇ 1418, CONDECORADO COM A CRUZ DE GUERRA DE 4.ª CLASSE 


A sétima ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 4.ª Classe - a quarta e última das distinções contabilizadas durante o ano de 1965 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título, durante a «Operação Perseguição», realizada em 09 de Setembro de 1965 (5.ª feira), na zona de Búgula – Badã, na região de Bula (infografia abaixo), quando o grupo de combate de que fazia parte foi emboscado.


► Histórico

 


◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração


▬ O.S. n.º 82, de 06 de Outubro de 1965, do BCAÇ 1856:


"Agraciado com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe, nos termos do artigo 12.º do Regulamento da Medalha Militar, aprovado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946: O 1.º Cabo, auxiliar de enfermeiro, n.º 1204/64, Luís Pereira Jorge, da Companhia de Caçadores 1418 [CCAÇ 1418] – Batalhão de Caçadores 1856, Regimento de Infantaria n.º 1".


● Transcrição do louvor que originou a condecoração:



"Louvado, pelo Exmo. Comandante do BCAÇ 1856, o 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, n.º 1204/64, Luís Pereira Jorge, pelo seu meritório comportamento no decorrer da «Operação Perseguição» [09Set65], quando o grupo de combate de que fazia parte foi emboscado.


Tendo sido ferido no início, pelo rebentamento de uma granada de mão lançada pelo In, que de imediato arremessou outra que caiu na posição por si ocupada, teve ainda a calma necessária, extraordinária presença de espírito e sangue-frio, para a devolver para o local de onde havia sido lançada, a qual então rebentou, ao mesmo tempo que abriu fogo com a sua arma, nessa direcção, tendo atingido dois elementos In ali acoitados e que se puseram em fuga.


Debaixo de fogo e a rastejar, foi então tratar o seu comandante de Pelotão e em seguida um outro camarada gravemente ferido, indo depois ocupar novamente o seu posto na linha de fogo.


Já durante o trajecto para o aquartelamento mais próximo, distante cerca de 5 km, foi ele ainda quem ajudou a transportar às costas um seu camarada mais gravemente ferido, só aceitando transferi-lo para outro militar, quando já extremamente cansado, devido aos seus próprios ferimentos, se viu obrigado a tal." (CECA; 5.º Vol.; p 185).


CONTEXTUALIZAÇÃO DA OCORRÊNCIA


Para contextualização da ocorrência, que esteve na base da condecoração do 1.º Cabo enfermeiro, Luís Pereira Jorge, socorremo-nos das fontes oficiais (CECA, 6.º Vol.; p. 335), onde consta:


 "Em cumprimento da Directiva Operacional, no Sector Oeste, as NT desenvolveram intensa actividade operacional realizando, entre outras, as operações - «Perseguição»: em 09Set65. O IN emboscou as forças do BCAV 790 [no caso a CCAÇ 1418], próximo de Búgula, causando 6 feridos e sofrendo 2 mortos."


3.7.1    - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAÇADORES 1418, BISSAU - BULA - BURUNTUMA - CAMAJABÁ - RIO CAIUM – FÁ MANDINGA


Mobilizado pelo Regimento de Infantaria 1 [RI 1], da Amadora, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Caçadores 1418 [CCAÇ 1418], a terceira unidade de quadrícula do BCAÇ 1856, do Cmdt TCor Inf António de Anunciação Marques Lopes, embarcou em Lisboa em 31 de Julho de 1965, sábado, a bordo do N/M Niassa, sob o comando do Capitão de Infantaria António Fernando Pinto de Oliveira, tendo desembarcado em Bissau a 6 de Agosto, 6.ª feira.




3.7.2   
- SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAÇ 1418


Após o seu desembarque, a CCAÇ 1418 ficou colocada em Bissau durante quinze dias como subunidade de intervenção e reserva do Comando-Chefe, tendo seguido, em 21Ago65 para Bula, a fim de realizar uma instrução de adaptação operacional sob a orientação do BCAV 790 [28Abr65-08Fev67; do TCor Cav Henrique Alves Calado], e seguidamente reforçar este Batalhão em acções realizadas nas regiões de Naga, Inquida e Choquemone, entre outras.


Até 20Out65, continuou depois a ser atribuída em reforço de outros batalhões, com vista à realização de diversas acções na região do Jol, em reforço do BCAÇ 1858 [24Ago65-03Mai67; do TCor Inf Manuel Ferreira Nobre Silva], de 05 a 18Nov65. Na região de Gussará-Manhau, em reforço do BART 645, de 16 a 23Dez65. 


Nas regiões de Naga e Biambe, em reforço do BCAV 790, de 2 a 16Jan66 e novamente de 12 a 26Mar66. Na região do Morés, em reforço do BCAÇ 1857 [06Ago65-03Mai67; do TCor Inf José Manuel Ferreira de Lemos], de 13 a 23Fev66, onde tomou parte na «Operação Castor» [em 20Fev66], um golpe-de-mão à base central do Morés bem-sucedido, já que foi capturada elevada quantidade de armamento e outro material.

 


Deslocada seguidamente para Buruntuma, a CCAÇ 1418 assumiu, em 08Mai66, a responsabilidade do respectivo subsector, em substituição da CCAV 703 [24Jul64-14Mai66; do Cap Cav Fernando Manuel dos Santos Barrigas Lacerda], ficando integrada no dispositivo e manobra do seu batalhão [BCAÇ 1856], tendo destacada uma secção para Camajabá e, a partir de 21Set66, um Gr Comb para a ponte do Rio Caium. 


Em 03Abr67, foi rendida no subsector de Buruntuma pela CCAÇ 1588 [04Ago66-09Mai68; do Cap Inf Álvaro de Bastos Miranda] e seguiu para Fá Mandinga, onde substituiu, temporariamente, a CCAÇ 1589 [04Ago66-09Mai68; do Cap Inf Henrique Vítor Guimarães Peres Brandão] na função de reserva do Agr1980. Em 09Abr67, seguiu para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso à metrópole, o qual teve lugar a 18 do mesmo mês, a bordo do N/M «UÍGE».


Para além da quantidade de armamento capturado na base do Morés, como a imagem acima testemunha, no decurso da «Operação Castor» [Op Castor] ocorreu, também, entre outras, a morte de Simão António Mendes, responsável da área da saúde do C.I.R.N. [, e que depois da independênicai daráb o nome ao Hospital Nacional de Bissau].


Este acontecimento é divulgado a partir da base central (Morés), em comunicado manuscrito por Chico Té [Francisco Mendes], que abaixo se reproduz, com o seguinte teor:


"No dia 20 de Fevereiro [de 1966] o inimigo [NT] apoiado por 8 caçadores [caça-bombardeiros T-6?] invadiu a Base Central [Morés]. O combate durou 6 horas de tempo, teve como resultado a retirada em debandada inimiga que caiu em 3 (três) emboscadas sucessivas [CCAÇ 1418; fazendo fé no depoimento do camarada Rui Silva - P3806 - que diz: "o êxito da operação deve-se em grande parte à táctica usada. O papel da CCAÇ 1418 ao servir de isco foi preponderante. Mostrou-se, foi detectada pelo inimigo e então este convergiu para o trajecto daquela. Soubemos que esta Companhia se continuasse a avançar, o que não era preciso, tinha 7 (sete) emboscadas inimigas já montadas"].


O comunicado acrescenta que "o inimigo [NT] não podendo realizar o plano, reforçou a aviação. Com o fim de bombardear a base, onde os nossos camaradas de armas anti-aéreas deram uma grande prova de coragem, não os deixando realizar o plano. Depois de duas horas de combate, só conseguiram lançar uma bomba dentro da Base, causando a morte de 3 camaradas entre os quais o responsável da saúde do C.I.R.N, Simão António Mendes. Dois aviões foram atingidos pelo fogo da D.C.K. [metralhadora pesada de 14.5 mm]. Região Óio, Zona Morés, Base Central."




Citação: (s.d.), "Comunicado [Região 3]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40720

 

3.8   - JOÃO VIEIRA DE MELO, 1.º CABO AUXILIAR DE ENFERMEIRO DA CCAV 1485, CONDECORADO A TÍTULO PÓSTUMO COM A CRUZ DE GUERRA DE 4.ª CLASSE 


A oitava ocorrência a merecer a atribuição de uma condecoração (a título póstumo) a um elemento dos «Serviços de Saúde» do Exército, esta com medalha de «Cruz de Guerra» de 4.ª Classe - a primeira de oito distinções contabilizadas durante o ano de 1966 - teve origem no desempenho tido pelo militar em título, durante a «Operação Falcão II», realizada em 13 de Fevereiro de 1966 (domingo), na região da mata de Cassum, Susana (infografia abaixo), quando os grupos de combate da CCAV 1483 e CCAV 1485, da qual fazia parte, foram emboscados.


► Histórico



◙ Fundamentos relevantes para a atribuição da Condecoração


▬ O.S. n.º 19, de 12 de Maio de 1966, do QG/CTIG:


"Condecorado com a Cruz de Guerra de 4.ª Classe, nos termos do artigo 12.º do Regulamento da Medalha Militar, aprovado pelo Decreto n.º 35667, de 28 de Maio de 1946, por despacho do Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, de 11 de Maio de 1966: O 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, João Vieira Melo, da Companhia de Cavalaria 1485 [CCAV 1485] – Batalhão de Cavalaria 790, Regimento de Infantaria n.º 7, a título póstumo."


● Transcrição do louvor que originou a condecoração:


"Louvo, a título póstumo, o 1.º Cabo auxiliar de enfermeiro, n.º 06235965, João Vieira de Melo, da CCAV 1485, pelo seu comportamento notável revelado no decorrer da «Operação Falcão II», levada a efeito em 13 de Fevereiro de 1966.


Atingido com certa gravidade numa fase inicial do combate, não hesitou em arrastar-se para o local onde o fogo In era mais intenso, por saber que naquela zona havia outros feridos que necessitavam de receber tratamento. Veio a ser atingido mortalmente quando prestava assistência aos seus camaradas.


Demonstrou excepcional espírito de abnegação e camaradagem, extraordinárias qualidades de coragem, sangue-frio, calma e serena energia debaixo de fogo, tornando-se credor do respeito e admiração dos seus camaradas e superiores e digno de ser apontado como exemplo." (CECA; 5.º Vol.; p. 310).



CONTEXTUALIZAÇÃO DA OCORRÊNCIA


Para contextualização da ocorrência que esteve na base da condecoração do 1.º Cabo enfermeiro João Vieira de Melo, socorremo-nos das fontes oficiais (CECA, 6.º Vol.; p. 335), e da obra de Mário Leitão «Heróis Limianos da Guerra do Ultramar», onde consta:


"Em 13 de Fevereiro de 1966, domingo, realizou-se a «Operação Falcão II», que contou com forças da CCAV 1485 e alguns elementos da CCAV 1483 [26Out65-27Jul67; do Cap Cav José Olímpio Caiado Costa Gomes], com a missão de explorar notícias que referiam a existência de um acampamento na área de Cassum/Susana. Ao aproximarem-se da orla da mata de Cassum, o In desencadeou sobre as NT intenso tiroteio. As NT reagiram, mantendo-se nas posições durante 3 (três) horas, ao fim das quais o PVC deu ordem para retirar. Protegidas pela FA, as NT retrocederam, perseguidas ainda por alguns guerrilheiros. Foram causados ao In dois mortos e outras baixas prováveis. As NT sofreram dois mortos e seis feridos, três dos quais vieram a falecer posteriormente depois de terem sido heli-evacuados para o HM 241, em Bissau. No caso do João Vieira de Melo, este veio a falecer no HMP (Estrela, Lisboa) em 20Fev66. Era natural da Ribeira, uma das trinta e nove freguesias do Município de Ponte de Lima."

 


Como complemento da narrativa oficial, recuperámos o excelente trabalho de pesquisa biográfico, "dos quarenta e cinco rapazes limianos que morreram ao serviço de Portugal nos três teatros operacionais, para além de mais oito em território continental", dado à estampa pelo camarada Mário Leitão no livro acima identificado, onde é descrito o contexto da ocorrência em análise.


Da biografia referente ao 1.º Cabo João Vieira Melo, reproduzimos: 


[…] "Pouco antes de completar quatro meses de comissão, o 1.º Cabo Melo fez parte de dois grupos de combate que a sua unidade enviou para a "Operação Falcão II", iniciada nos primeiros minutos do dia 13 de Fevereiro de 1966, na área de Susana, onde o inimigo construíra um forte acampamento com abrigos contra morteiros e aviação, na orla de uma mata em Cassum. Um soldado atravessou o rio a nado transportando a corda que, uma vez esticada, serviria para a travessia do restante pessoal, que terminou às duas da manhã. Dessas forças faziam parte vários elementos da CCAV 1483. O numeroso grupo inimigo que os emboscou possuía um morteiro 82, uma ou duas metralhadoras pesadas e inúmeras pistolas-metralhadoras e espingardas automáticas, que causaram 5 mortos e 3 feridos às nossas tropas". […] 


"As nossas tropas aguentaram o combate durante três horas, esquivaram-se aos vários fogos de capim incendiado pelo IN, mas tiveram de retirar para proceder à evacuação dos feridos e porque grande número de armas estavam encravadas e o número de munições era reduzido. A ordem foi dada pelo PVC, e a Força Aérea assegurou a protecção, pois vários elementos In iniciaram a sua perseguição". […] (Op. cit., pp.142-143).


Segue o quadro das baixas em combate registadas durante a «Operação Falcão II». É de mencionar o facto de que os corpos dos dois primeiros nomes não puderam ser recuperados. (CECA; 8.º Vol.; pp 174-176).


Nota: Sobre este tema, consultar: P17180 e P17307.





3.8.1    - SUBSÍDIO HISTÓRICO DA COMPANHIA DE CAVALARIA 1485

= BISSAU - BINAR - BULA - INGORÉ - SUSANA - PELUNDO - BIAMBE - ENCHEIA


Mobilizado pelo Regimento de Cavalaria 7 [RC 7], em Lisboa, para cumprir a sua missão ultramarina no CTIG, a Companhia de Cavalaria 1485 [CCAV 1485], independente, embarcou em Lisboa em 20 de Outubro de 1965, 4.ª feira, a bordo do N/M «NIASSA», sob o comando do Capitão de Cavalaria Luís Manuel Lemos Alves, tendo desembarcado em Bissau seis dias depois.


3.8.2 - SÍNTESE DA ACTIVIDADE OPERACIONAL DA CCAV 1485


Após a sua chegada, a CCAV 1485 ficou instalada em Bissau tendo sido atribuída ao BCAÇ 1857 [06Ago65-03Mai67; do TCor Inf José Manuel Ferreira de Lemos], a fim de substituir a CCAÇ 1419 [06Ago65-03Mai67; do Cap Mil Inf António dos Santos Alexandre] na segurança e protecção das instalações e das populações da área tendo, cumulativamente, destacada os seus Grs Comb, por períodos variáveis, para adaptação operacional e reforço das guarnições locais de Binar, Bula e Ingoré, e empenhamento em operações efectuadas no sector do BCAV 790.


Em 01Dez65, foi colocada em Bula em reforço do BCAV 790 [28Abr65-08Fev67; do TCor Cav Henrique Alves Calado], sendo deslocada em 05Dez65 para Susana, onde assumiu a responsabilidade de um subsector, criado por agravamento da situação na zona e retirado ao subsector de São Domingos, a fim de actuar na contra-penetração e interdição da fronteira norte (Senegal).


Entretanto, cedeu também dois Grs Comb para reforço das guarnições locais de Ingoré, de 08Dez65 a 08Ago66 [oito meses] e Pelundo, de 09Dez65 a 17Abr66 [quatro meses]. Em 15Abr66, o subsector temporário de Susana foi extinto, voltando a ser incluído no subsector de São Domingos, tendo os efectivos da subunidade sido deslocados para Bula, entre 11 e 17Abr66.


Em 18Abr66, a CCAV 1485 deslocou-se para Binar, a fim de tomar parte na «Operação Arranque» [20-21Abr66], com vista à ocupação e instalação em Biambe, de cujo subsector assumiu a responsabilidade em 20Abr66, continuando integrada no dispositivo e manobra do BCAV 790.

 

Quanto à manobra desenvolvida pelas unidades participantes na ocupação de Biambe, e posterior instalação do respectivo aquartelamento, missão atribuída à CCAV 1485, creio que o livro de Manuel Costa Lobo, «Biambe e os Biambenses - História de um sítio em tempo de Guerra (1966/1974)» (capa ao lado), delas fará, certamente, referência (ainda que não o possa confirmar por não o ter lido).  

 

Em 31Ago66, a sua zona de acção foi alargada da área de Encheia, para onde, em 30Out66, foi destacado um Gr Comb, em substituição de idêntico efectivo da CCAÇ 816 [26Mai65-08Fev67; do Cap Inf Luís Fernando Gonçalves Riquito]. 


Em 06Jun67, a CCAV 1485 foi rendida, por troca, no subsector de Biambe pela CART 1688 [01Mai67-02Mar69; do Cap Art Damasceno Maurício Loureiro Borges], sendo colocada em Bissau, onde veio a substituir esta subunidade no dispositivo e manobra do BART 1904 [18Jan67-31Out68; do TCor Art Fernando da Silva Branco], com vista à segurança e protecção das instalações e das populações da área. Em 25Jul67, foi substituída no sector de Bissau pela CCAV 1748 [25Jul67-07Jun69; do Cap Mil Inf Emílio Augusto Pires], a fim de efectuar o embarque de regresso ao continente, viagem iniciada em 27Jul67 a bordo do N/M «UÍGE».

Continua…

► Fontes consultadas:


Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 5.º Volume; Condecorações Militares Atribuídas; Tomo II; Cruz de Guerra, 1962-1965; Lisboa (1991).


Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição, Lisboa (2002).


Ø  Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro 1; 1.ª edição, Lisboa (2001).

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino, agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

04Nov2020

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série > 

Guiné 61/74 - P21615: Blogpoesia (709): "O bem que faz", "A vida é uma lição" e "Se deu certo", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


O bem que faz

O bem que faz
Uma palavra fugaz.
Um jesto atento.
A cada um que passa,
Pode causar a falta que sente
E preenchê-lo de paz.
Todos temos horas carentes.
Como a chuvinha que veio
Na hora seca de sede.
Pode reacender para sempre
A esperança que se suponha perdida.
Por isso, sempre se perde e se ganha,
Se nega ou se dê
A quem à nossa porta bater.


Ouvindo Schubert

Berlim, 1 de Dezembro de 2020
11h21m
Jlmg


********************

A vida é uma lição

Nossos erros são a aprendizagem.
Quem os desperdiça despreza a vida
E as lições que ela nos dá.
Eles são nosso caminho
Que os pés aprendem bem.
Não importa voltar para trás.
É maior o bem que o que custa.
Para é perder tempo.
Para ganhar há que perder.
Não haveria grandes obras
Se seus autores tivessem desistido.
Não importa o tempo que falta.
Enquanto há vida há que viver.


Ouvindo "Liebestraum" de Lizt

Berlim, 3 de Novembro de 2020
18h27m
Jlmg


********************

Se deu certo

Se depois do esforço veio o resultado certo e bom,
Dá por bem empregado o tempo.
Aquilo que não custa a alcançar, depressa perde o valor e se despreza.
Tempo perdido e esforço.
Não é racional.
Viver é um privilégio.
É preciso merecê-lo.
Cada um tem seus talentos.
Daí vem a riqueza e a variedade.
Se, por cima, se se opera, com sentido de solidariedade,
Aí surge a nobreza de alma e a união.
A dignidade e nota específica do ser humano.
Com sentido do divino.


Berlim, 5 de Dezembro de 2020
8h36m
Jlmg

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Notas do editor:

Último poste de J. L. Mendes Gomes de 29 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21592: Blogpoesia (707): "Hecatombe de estrelas", "A Criação" e "A sobriedade dos gestos", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

Último poste da série de 1 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21600: Blogpoesia (708): Prosema "Novembro neste ano de pandemia" (Paulo Salgado, ex-Alf Mil Inf Op Esp)

Guiné 61/74 - P21614: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (13): O Elias Parafuso e o bolo de chantili


Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > 1972 > Entrada do quartel dos "Duros de Nova Sintra", a CART 2711 (1970/72). 

A CART 2771 foi para Nova Sintra em 8 de dezembro de 1970, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCAV 2765, assumindo logo a seguir a responsabilidade do respectivo subsector (Nova Sintra). Era comandada pelo cap art Vasco Prego Rosado Durão, daí talvez ter passado a chamar-se os "Duros de Nova Sintra. Pertencia ao BART 2924, sediado em Tite, Sector S1. Em 20 de agosto 72, foi rendida pela 2ª C/BArt 6520/72,


Foto: © Herlander Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mais uma pequena história do 

(i) ex-fur mil, defurriel mil, 2ª  C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974; 

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 16 referências no nosso blogue; vive em Esposende, é professor reformado.



O Elias Parafuso e o bolo de chantili

por Carlos Barros


Estavam os graduados a jantar na Messe, um arroz com salsichas, para variar (era quase sempre este prato…). Na mesa estavam vários furriéis: Barros, Elias, Mendonça, Ferreira, Sousa,  Gonçalves e no final do jantar havia um bolo de aniversário, já que um  desses  militares fazia anos e o Cozinheiro Bichas, com apoio do  Cunha,  fizeram um bolo cremoso e muito chantilizado….

Olhámos para esse “delicioso” bolo e ninguém teve apetite em comê-lo. O Barros fez então uma proposta:

 Quem me der 50 pesos,  atiro o bolo à cara do Parafuso [, furriel Elias, mecânico]!

Mal recolhidos 30 pesos e, quando menos se esperava, o Barros pega no bolo e atira-o contra a cara do infeliz Elias que ficou sem ver…

Passados segundos, todo besuntado, o Elias lá se recompôs, com um guardanapo limpou a cara e todos se riram pela ousadia do Barros. O  Ferreira não tinha dado o dinheiro que prometera  e só o daria  afiançava ele − caso o Barros  mandasse o resto do bolo que tinha sobrado, outra vez à cara do Elias…

Claro que este camarada não contava com o segundo ataque  e o Barros, quando ninguém esperava, mandou novamente o bolo ao nariz do Elias que ficou furioso e, com o rosto cheio de chantili, levantou-se para atacar o Barros…

Este,  ágil como uma pantera, com muita experiência no mato e bem preparado fisicamente,  fugiu do Elias, e, em plena escuridão, o Parafuso  correu  atrás dele e, com tanto azar, que  enfiou uma perna  num buraco do saneamento que estava destapado…

O azarento do Elias ficou K.-O. e aleijou-se no joelho esquerdo, ficando a mancar e,  deste modo,  estava acabada a perseguição ao Barros!

O Barros desapareceu na escuridão e não regressou à Messe porque o Elias Parafuso “vomitava fogo” mas já estava “entornado”,  como sempre…

No dia seguinte, os dois “beligerantes “ encontraram-se  na messe, ao pequeno almoço, com os ânimos serenados, nada aconteceu , foi um abraço fraterno em mais um dia passado, num ambiente de guerra, muito  “engraçado,”  sempre desgastante... 

Afinal, estas  peripécias mudavam um pouco a terrível rotina em que vivíamos.

Neste campeonato das festas de S. João que decorria na Metrópole, o resultado foi: Barros, 1;  Elias, 0… Enfim, pequenas histórias da Guiné...

Nova Sintra, 26 de junho  de 1973


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sábado, 5 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21613: Os nossos seres, saberes e lazeres (427): Na RDA, em fevereiro de 1987 (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Agosto de 2020:

Queridos amigos, 

Penso que o essencial desta viagem aproveitei cabalmente os apontamentos do meu bloco de notas. Nunca procurei desvendar a razão de fundo do honroso convite feito pelo Embaixador da RDA. Registou o que eu gostaria de ver e fiquei feliz pelas visitas culturais que fiz. Impressionou-me a reconstrução de Berlim e de Dresden, comparando a RDA com o que já vira na República Checa e na Bulgária, o nível de vida era muito superior, poder-se-ia dizer que havia um gosto duvidoso na habitação mas não havia nada relacionado com bairros de lata, passeando pelos mercados era enorme a variedade de frutas e legumes, e do que comi tudo tinha gosto. 

Sei que o anfitrião pretendeu que eu trouxesse uma mensagem positiva sobre as preocupações com a paz mundial e que pudesse dizer que a Alemanha de Leste era um estandarte de cultura. Agora que este meu bloco de notas vai para a reciclagem e que recordo aspetos completamente esquecidos da viagem de fevereiro de 1987, o que mais me impressiona é como em pouco mais de dois anos tudo se alterou no discurso e as expetativas dos alemães da RDA deram sinais bem distintos daqueles que o discurso oficial apregoava.

Um abraço do
Mário



Na RDA, em fevereiro de 1987 (6)

Mário Beja Santos

É o meu último dia útil em Berlim, amanhã, pela alvorada, serei recambiado para Lisboa, dou voltas à cabeça em que aeroporto fiz transbordo. 

Tudo vai começar, como habitualmente, ao romper da alva, recebi indicações de que entraremos no Ministério dos Negócios Estrangeiros pelas oito da manhã, vou receber os derradeiros ensinamentos sobre a RDA da paz e da cooperação, não me passa pela mente de que andará tudo à volta do papel dos Sociais-Democratas e da Acta Final de Helsínquia. 

Voltamos a uma década atrás, os meus oficiantes, são três, de fato assertoado, de gravatas de tons murchos, recebem-me numa sala bem iluminada, e o pontapé de saída passa pelas relações entre o Partido Socialista Unificado da Alemanha [PSUA] e o Partido Social-Democrata Alemão, da RFA. Fico a saber que o dito PSUA tinha, no início da década de 1970, boas relações com os finlandeses e os belgas. 

Cala-se um dos oficiantes e outro, com cara de muito poucos amigos, fala-me na decisão da NATO, muitos anos depois da Acta Final de Helsínquia (1975) de instalar mísseis Pershing II a pedido do Governo alemão, social-democrata e liberal. Os protestos foram muitos e diversificados, os movimentos pela paz estiveram muito ativos. Nenhum dos meus oficiantes irá ter o desplante de explicar que toda esta embrulhada começou com a decisão soviética de instalar mísseis intercontinentais balísticos SS-20 sem dar cavaco a ninguém, estava-se mesmo a ver a escalada de tensão que iriam provocar. Na continuação do discurso, o orador considerou que os Sociais-Democratas da RFA davam uma no cravo e outra na ferradura.

O primeiro oficiante retoma a palavra, desta feita a melhoria de relações entre o PSUA e o SPD da RFA. Tudo terá começado no seminário internacional sobre Karl Marx, participaram dezoito partidos sociais-democratas, nenhum dos intervenientes pôs em causa a paz, houve aproximação de posições entre o Centro-Esquerda e a Esquerda. Em 1984, o nosso líder e o líder social-democrata Willy Brandt estiveram reunidos vários dias e assinaram um comunicado sobre a paz dizendo que nunca mais de terra alemã deveria partir qualquer guerra, tudo se devia fazer a favor da paz apesar das diferentes conceções do mundo. 

As delegações dos dois partidos têm-se reunido amiudadas vezes, debatem as discrepâncias ideológicas, as leis do desenvolvimento social, uns e outros mantêm posições firmes, nós somos a favor do Socialismo avançado, os Sociais-Democratas preconizam uma sociedade de bem-estar. Têm assinado declarações conjuntas sobre armas químicas e nucleares. Procuramos sensibilizar os Sociais-Democratas para a política de paz dos países socialistas, explicamos de quem parte a guerra, procuramos cativar as forças indecisas. 

É nesse momento que o terceiro oficiante sai do seu mutismo e me dá a saber, a mim, pobre mortal, que contam com a minha mensagem dada a importância de que gozo na opinião pública portuguesa, olho o dito senhor com a maior das estupefações, sim, o senhor tem acesso à rádio e televisão, é escritor e publicista, é uma personalidade pública, é a pessoa ideal para contar o que viu, o nosso desenvolvimento pacífico e desmonte as mentiras de que temos uma das mais tenebrosas polícias políticas do mundo, de que somos subservientes de Moscovo, atoardas miseráveis.  Nós distinguimo-nos por nos preocuparmos com o objetivo final de um socialismo de justiça e equidade, estamos na dianteira a procurar resolver as questões do desarmamento, queremos postos de trabalho para todos, queremos manter as melhores relações com todos os partidos Sociais-Democratas, temos infelizmente grandes diferendos com os gregos, italianos, franceses e portugueses. Mas somos realistas, sem os Sociais-Democratas não haverá paz na Europa. Pode transmitir isso a quem de direito: temos de encontrar um entendimento muito grande, não podemos ignorar os vinte milhões de militantes de Sociais-Democratas em todo o mundo. 

E depois remeteu-se ao silêncio. Quando eu já fechava o meu bloco de notas, o primeiro oficiante retomou a palavra, ia expressar o seu ponto de vista sobre a Internacional Socialista face à Guerra das Estrelas, os Sociais-Democratas não defendem este tenebroso projeto de Reagan, no Congresso de Albufeira condenaram os projetos da Guerra das Estrelas, mas aquelas decisões não são vinculativas. Bom seria que os Sociais-Democratas continuassem a manifestar o seu repúdio.

Caminha para o meio-dia, Petra Petersen olha para o relógio, terá sido o suficiente para que os três oficiantes entendessem que chegara o fim da missa.

Gerald já está ao volante, iremos almoçar a Potsdam, no regresso terei a liberdade de ter umas horas para comprar recordações e fico feliz quando Petra me informa de que esta noite vou a um concerto no Schauspielhaus, a sala de música mais requintada da Berlim Oriental, à cautela, antes de partirmos para Potsdam, vamos passar pela praça e ver as suas proporções harmónicas e dar uma vista de olhos à Igreja dos Huguenotes e à Igreja Francesa.

Ministério dos Negócios Estrangeiros da RDA, felizmente já demolido
Escadaria do Palácio de Sanssouci, Potsdam

Terei a felicidade de voltar mais duas vezes a este esplendor barroco, aqui Frederico II da Prússia, o Rei Soldado, que dizia que o alemão era a língua dos cavalos, palestrou com Voltaire, os cuidados com este monumento são inexcedíveis, a folha de ouro faisca por todos os lados, já vi muita escadaria graciosa, mas atenda-se ao lance desta, a sua perfeita integração num espaço cénico sem igual. 

Verei belezas aparentadas em palácios dos czares, esta tentativa de associação entre o passeio com sombra refrescante e fontes consoladoras em dias de canícula. Por aqui passeei muito contente e depois partimos para Cecilienhof, a residência em que os três vencedores da II Guerra Mundial decidiram a partilha da Alemanha, quando já estava aberta a janela para a tormenta da Guerra Fria. 

O interior guarda todas as memórias desse encontro e das decisões tomadas. Um daqueles dias em Berlim, em plena Alexanderplatz, vi chegar um contingente do Exército norte-americano e outro inglês, fiquei a saber que faz parte do protocolo de Potsdam haver visitas de contingentes soviéticos na Berlim Ocidental e de norte-americanos e ingleses na Berlim Oriental, não passava de uma ritualidade a que ninguém dava importância.
Cecilienhof, Potsdam
Os protagonistas da Conferência da Sanssouci: Churchill, Truman e Stalin
Schauspielhaus, Berlim


Voltamos a Berlim, está decidido que compras só no aeroporto, vou passarinhar pela cidade, ao meu ritmo, entrarei na Galeria Nacional, depois na Catedral de Santa Edwiges, tem um grupo coral de fama mundial, Herbert von Karajan gravou uma interpretação da 9.ª Sinfonia de Beethoven com este portentoso conjunto, vou cirandar pelas ruas laterais, o frio ainda aperta, em determinada altura avisto guardas numa baiuca, estamos perto do muro, e sigo para uma terra de ninguém, 

Potsdamer Platz, quem te viu e quem te vê, neste exato momento não passas de um terreno espetral, tudo se alterará radicalmente com a Berlim capital da Alemanha reunificada, aqui se espalharão edifícios arrojados, o laboratório arquitetónico mais experimental de toda a Europa passará por aqui. 

Regresso ao hotel, é hora da janta, imagine-se volto a comer aquela bela sopa russa que me alimentou em Königstein, devoro aquele pão preto fresco e apetitoso, com uma ligeira camada de manteiga, nada de trutas ou qualquer peixe insípido, toca de manducar um pedaço de joelho de porco, saborosíssimo, com batata cozida e couves, nada mais. 

Faço os últimos arranjos, sigo para o concerto, se a memória não me atraiçoa tudo começou com o poema do Êxtase, de Scriabin, seguiu-se o duplo Concerto para Violino e Violoncelo de Brahms, e aqui vem uma branca para a segunda parte, era uma daquelas sinfonias majestosas e líquidas, a execução foi fulgurante mas não retive lembrança, o que significa que não me tocou.

Passeio à volta da praça, que grande beleza, vou despedir-me da Porta de Brandeburgo, é aquela sensação de atmosfera de mundo fendido, vejo ao fundo, no extenso Tiergarten, a Coluna da Vitória, esta fronteira é uma aberração, sempre se circulou por aqui em todas as direções. Encolho os ombros, só posso deplorar a situação. Ligo o televisor no quarto, Peter O’Toole discute com Richard Burton em alemão no filme Beckett, baseado na peça de Jean Anouilh e dirigido por Peter Glenville, filme de 1964, que monstruosidade, massacrar uma obra modificando-lhe a língua, e por isso fico contente que esta tropelia não aconteça em Portugal.

Para não variar, é manhã cedo e sou levado ao aeroporto pela guia e o fiel condutor. Agradeço-lhes todas as gentilezas de que fui alvo, ainda me passou pela cabeça entregar discretamente uns dólares a cada um, seria uma indignidade. E caminho para o retorno.

Resta comentar a última fotografia, é mistério que vou levar para a tumba, quando regressei ontem à noite do concerto tinha esta fotografia encostada à porta do quarto, ainda pensei em ir à receção, não sei se se tratava de uma mensagem ou de uma brincadeira. Veio comigo e aqui está o último mistério da minha viagem, não sei quem são estes militares e com toda a franqueza não sei o que hei-de fazer da fotografia. O mais importante é que eu estou pronto a refazer todo este passeio, a Alemanha para mim é um fascínio.
Gendarmenmarkt, onde a Igreja dos Huguenotes e a Igreja Francesa ombreiam o Schauspielhaus
Catedral de Santa Edwiges, Berlim
Uma das fotografias mais insólitas da minha vida
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Notas do editor:

Poste anterior de 28 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21589: Os nossos seres, saberes e lazeres (423): Na RDA, em fevereiro de 1987 (5) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 3 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21606: Os nossos seres, saberes e lazeres (426): Memórias de Paradela (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Guiné 61/74 - P21612: Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (3): O nosso Blogue em números: mais um número redondo de visualizações - 10.500.000 (dez milhões e quinhentos mil), "caçado" em 4 de Dezembro de 2020, às 20h38 (Jorge Araújo, coeditor)






O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger,CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo; tem 270 referências no nosso blogue; é autor de várias séries, a mais recente, "Memórias cruzadas"; passou boa parte do ano em Abu Dhabi onde trabalha a sua esposa, professora universitária; completou os 70 anos no passado dia 10 de novembro.


1. Mensagem do nosso coeditor Jorge Araújo, co data de ontem, às 22h26;

Caro Luís,
Boa noite.

Obrigado pelo teu contacto. Como sabes, ainda continuo activo na vida académica, realizando viagens semanais até Portimão, com pernoita de uma/duas noites, em função das minhas disciplinas e outras actividades de tutoria, nomeadamente projectos de investigação e intervenção, alguns deles com acompanhamento à distância, pelo que trago sempre TPC na mala, "coisa" que não é estranha/desconhecida para ti.

Quanto ao resto, é um dia de cada vez, procurando, por um lado, diminuir os riscos de contágio, e, por outro, manter alguma qualidade de vida, sobretudo mental. 

Deixa-me ainda agradecer-te por me teres feito recordar, no poste de apresentação de um novo membro da nossa «Tabanca» - o camarada Serra Vaz (*) - o ícone (memorial) da minha CART 3494, erigido há quarenta e sete anos no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, contexto onde, para além da missão militar, fui "engenheiro", "mestre d'obras", "pedreiro", e, ainda, "caçador", "pescador", "cozinheiro"...

Em suma, local de muitas memórias, com algumas tensões e outras tantas emoções, que dificilmente esqueceremos, porque fazem parte da nossa vida.

(...) Quanto à série das "Boas Festas", e sem prejuízo de, mais tarde, avançar com a minha mensagem, não sei se queres aproveitar a que anexo e que seria:

«Boas Festas 2020/21: Em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 - O nosso Blogue em números: mais um número redondo de visualizações - 10.500.000 (dez milhões e quinhentos mil), em 04 de Dezembro de 2020, às 20h38».

Fica bem, e até breve.

Bom fim-de-semana, com saúde.
Abraço, Jorge Araújo. 


O nosso blogue em números: Nº de visualizações de página desde 1 de junho 
a 1 de dezembro de 2020. Fonte: Blogger


2. Comentário do editor LG:

Obrigado, Jorge, pelas tuas e nossas contas... Se não erro, a tua útima caçada de um número redondo do contador do nosso blogue foi em abril de 2020. Caçaste os dez milhões de visualizações (*).

Estavas em  Abu Dhabi, onde foste de férias para visitar a tua "bajuda" e ficaste retido durante seis meses pela pandemia de Covid-19. Regressaste  há menos  de três meses, para retomares a tua vida cá... Ora,  nesse período de tempo (, "grosso modo", nos úlimos seis meses, de junho a novembro), tivemos cerca de 353 mil visualizações de página,  o que dá uma média diária de cerca de 1950, menos 100 do que a média do período de 16/11/2019 até 10/4/2020 (que foi de 2050). Ou seja, houve uma pequena quebra, imputável ao confinamento (. Alguns dos nossos visitantes, acediam ao blogue através do local de trabalho,)

Ao fim destes anos 16 anos e meio de existência  (vamos fazer 17 anos, daqui a pouco mais de 5 meses,  em 23/4/2021),  temos 12,3 milhões de visualizações (, contando com os 1,8 milhões do saldo anterior, ou seja de abril de 2004 a maio de 2010, altura em que o nosso contador passou a ser do nosso próprio servidor, o Blogger).

Obrigado, Jorge, em nome de toda a Tabanca Grande,  por esta tua "prendinha" natalícia (***). Obrigado, pela tua dedicação e empenho, enquanto autor e coeditor do nosso blogue.

E façamos votos para que, para o ano, ainda nos possamos reencontrar, vivos e com saúde, no próximo Encontro Nacional da Tabanca Grande... Se tudo correr bem, podemos apontar para o 3º trimestre de 2021, um ano e meio depois do início da pandemia de Covid-19!..  

Oxalá / Inshallah / Enxalé,  que Deus e os bons irãs nos protejam!...
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Notas do editor:


(***) Vd, postes anteriores da série:

4 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21609: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (2): "Tomé, o sonhador", um conto de Natal (Mário Gaspar, que cresceu entre operários e avieiros de Alhandra)

3 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21607: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (1): Da Lapónia sueca, um vídeo da comuna de Jokkmokk, centro cultural e político do povo sami, mostra-nos o seu histórico mercado de inverno, que se realiza todos os anos, desde 1605, com temperaturas a rondar os 25 graus negativos (José Belo, régulo da Tabanca da Lapónia)

Guiné 61/74 - P21611: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - XLVIII (e última) parte: Manuel António Casmarrinho Lopes Morais, major paraquedista, o último oficial QP a morrer na guerra de África, no TO de Moçambique, a 4 de agosto de 1974





1. Fim da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais, oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar,  guerra de África ou guerra colonial (, três designações correntes para o conflito que opôs o Estado Novo aos movimentos nacionalistas de Angola, Guiné e Moçambique), sem esqucer a Índia (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva [, foto atual acima], membro da nossa Tabanca Grande , tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

O primeiro poste foi publicado em 7 de janeiro de 2019 (**). O Morais Silva passou, entretanto, a integrar a nossa Tabanca Grande a partir de 7 de março de 2019 (***).

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 22 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21568: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLVII: Fernando José Santos Castelo, cap pilav (Guarda, 1941 - Moçambique, 1974)

(**) Vd. poste de 7 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19378: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte I: Apresentação

(...) Mensagem do cor inf ref Morais [da] Silva

Data: 16 de dezembro de 2018 11:59

Assunto: Biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975.

Caro Dr. Luís Graça

Anexo um documento que, finalmente, deu à luz em Novembro de 2018.

Trata-se da biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975.

Se entender de interesse dá-lo a conhecer no seu blog (que continuo a acompanhar) faça o favor de o publicar. (...)



(***) Vd. poste de 7 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19558: Tabanca Grande (473): António C. Morais da Silva, cor art ref, ex-cap art, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga e adjunto do COP 6 em Mansabá (em 1970) e cmdt da CCAÇ 2796 (Gadamael e Quinhamel, 1971/72)

(...) Comentário do editor Luís Graça:

(...) É uma pessoa que muito prezo, pela sua independência, frontalidade e exigência intelectual e moral. Nas "3 linhas curriculares" que lhe pedi, ele não mencionou, certamente por modéstia, a atribuição que lhe foi feita da Medalha de Prata de Serviços Distintos com Palma, pela sua brilhante e corajosa atuação no TO da Guiné, nomeadamente à frente da CCAÇ 2796, em Gadamael.(...) 

Guiné 61/74 - P21610: Parabéns a você (1902): José Pereira, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 5 (Guiné, 1966/68) e Manuel Carvalho, ex-Fur Mil AP Inf da CCAÇ 2366 (Guiné, 1968/70)


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Nota do editor

Último poste da série de 2 de Dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21601: Parabéns a você (1901): Herlânder Simões, ex-Fur Mil Art da CART 2772 e CCAÇ 3477 (Guiné, 1972/74)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21609: Boas Festas 2020/21: em rede, ligados e solidários, uns com os outros, lutando contra a pandemia de Covid-19 (2): "Tomé, o sonhador", um conto de Natal (Mário Gaspar, que cresceu entre operários e avieiros de Alhandra)

 



Um conto de Natal, da autoria do nosso camarada Mário Gaspar, publicado em "O Olhar do Mocho", boletim da ACSSL - Associação Cultural e Social de Séniores de Lisboa, nº 64, ano 16, dezembro de 2020, p. 4. (*)

Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, "Os Zorbas" (Gadamael e Ganturé, 1967/68), é lapidador de diamantes reformado, foi fur mil

Nasceu na freguesia de Santa Maria, em Sintra, e foi no Antigo Edifício dos Bombeiros Voluntários de Sintra que foi à Inspecção, embora desde os três anos morasse em Alhandra: "Vila Industrial, foi aí que aprendi a ser Homem, embora tenha estudado no então famoso Externato Sousa Martins, em Vila Franca de Xira, desde os meus treze anos namorei com uma sueca, linda boneca, Ingrid Margaretha Gustavsom. Alhandra foi a minha Universidade. Tive como Professores Sábios Avieiros e os Operários." (**)

Recorde-se que a vila de Alhandra,no concelho de Vila Franca de Xira, estão ligados os nomes de grandes portugueses como Afonso de Albuquerque (Alhandra, 1452 -Goa, 1515), o médico Sousa Martins (Alhandra, 1843- Alhandra, 1897) (que o povo transformou em santo) ou o escritor Soeiro Pereira Gomes (Baião, 1909 - Lisboa, 1949), autor de "Esteiros" (1941) (obra ilustrada por Álvaro Cunhal, e dedicada aos "filhos dos homens que nunca foram meninos).

Nestes últimos nove meses, de pandemia de Covid-19, o Mário  tem sido também um dos nossos bons e fiéis companheiros, mandando-nos quase todos os dias emails, alimentando o nosso blogue com imenso material, desde poemas a vídeos, mesmo que muito desse material  não seja publicável, por razões editoriais: por exemplo, tudo o que é referente à atualidade política, social e cultural.

É também um exemplo, corajoso, de um camarada nosso que, apesar dos seus problemas de saúde, tem sabido reamar contra a maré e ensinar-nos a maneira como podemos envelhecer, de maneira activa, proativa, produtiva e saudável... A colaboração através da escrita, no nosso blogue ou em boletins como este, "O Olhar do Mocho", é apenas um dos muitos meios que estão à nossa mão. 

Um fratermo alfabravo para o Mário. Um Natal quentinho. Luís


(**) Vd. poste de 19 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20875: (Ex)citações (365): Os ex-combatentes, agora confinados por causa da pandemia de COVID-19... Hoje, como ontem, "presos"! (Mário Gaspar, ex-fur mil at inf, MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

Guiné 61/74 - P21608: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2020:
Queridos amigos,
Annette está de regresso a Bruxelas, atira-se ao trabalho, esse trabalho não é só profissional, trouxe de Lisboa documentos, cartas, aerogramas, folhas soltas e imagens correspondentes ao primeiro trimestre de 1969, tudo referente a Paulo Guilherme e a um tal regulado do Cuor, por quem ele sente uma paixão inextinguível.
Escrevendo a Paulo, Annette pergunta se a realidade não supera quase sempre a ficção, basta ler estes patrulhamentos, estas operações, a flagelação sobre Missirá e a dura resistência a que ela obrigou aqueles homens que juraram entre si que jamais se renderiam. Como o leitor verificará, esta regra do jogo de escrever para uma ficcionada mulher amada leva a que todo este estado amoroso acaba por absorver aquela estranhíssima proposta do tal português que fizera a Annette, inesperado encontro, ele disse-lhe que tinha imaginado um romance em que um português contaria a uma estrangeira toda a sua experiência numa guerra de que ela nunca tinha ouvido falar, de um país que é um pequeno ponto no mapa, a Guiné-Bissau, e que aquele encontro a pretexto do romance desaguara numa coisa séria, romance mais dentro do romance é pouco imaginável que possa vir a acontecer.
Deixemo-los nesta felicidade pois quem anda a mexer nos cordelinhos da prosódia também ganha em satisfação, à distância de mais de meio século ele sabe que o renascimento de Missirá foi um dos episódios determinantes da existência, aprendeu que há lutas que não se enjeitam, há causas que dão mais vida aos anos, e quanto mais as sentimos mais tempo vivemos, com dignidade e respeito por nós próprios.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (29): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorable Paulo, chegou o momento de te agradecer a minha primeira estadia em Lisboa, apreciei muito comovida o modo como me acolheste, bem como os teus entes queridos e amigos, é uma cidade magnífica, já a visitara duas vezes para conferências, primeiro quando Portugal aderiu à CEE e depois na presidência de 1992, fiquei impressionada nesta última com as mudanças, agora ainda fiquei mais, tu fizeste-me a grande surpresa de me levar ao Parque das Nações, é fascinante, acredito que toda aquela parte velha que vai até ao Terreiro do Paço sofrerá ao longo dos anos grandes benefícios, foi o que eu senti naquele longo passeio que demos no último dia do ano, regressei a casa cansadíssima, tu adoras andar a pé e eu acompanho-te entusiasmada com as tuas descrições, gostei mesmo muito de conhecer o Palácio do Duque de Lafões, imagine-se numa zona ainda relativamente degradada.

Tu tens muito bons amigos, e isso é consolador para nós os dois, sinto que tu és estimado e correspondido nos teus afetos. Aquela passagem de ano em casa da tua amiga Belmira Coutinho, a vermos os fogos de artifício, a comer as vossas iguarias e vir depois para a varanda com as doze passas e o copo de espumante foi mais um momento de felicidade, meti todas aquelas passas à boca a pensar no futuro promissor dos meus filhos e viver permanentemente ao pé de ti. Imagina que enquanto todo aquele fogo ribombava me veio ao espírito uma conversa havida com a minha mãe a propósito do meu pai que faleceu tão novo, seguramente que os sofrimentos a que foi sujeito durante a II Guerra pesaram muito. Depois dizia a minha mãe que recebera na véspera do casamento uma carta do seu noivo a confessar-lhe a adoração que sentia por ela, a exaltar os primores de caráter da noiva e que a frase final a marcara para sempre: “Se te couber um dia fechares os meus olhos no leito de morte, lembra-te que foram olhos que agradeceram os dons da vida em que estiveste como minha aliada permanente, olhos brilhantes de paixão, olhos que te seguiram para todo o lado com enlevo e admiração. E ao fechares os meus olhos tu terás para o resto da tua vida a grata lembrança que soubemos permanecer unidos pelo respeito e na plena fusão dos nossos projetos. E amanhã serás a mulher desse homem que em circunstância alguma abdicará da luminosidade da tua companhia”.

Pois regressei, procurei pôr em ordem o que trouxe de Lisboa, conversei com os filhos e organizei a semana de trabalho. Como é meu hábito, à noite organizo em parte todo o material que me envias, e desta vez trouxe debaixo do braço tudo quanto faltava para saber ao pormenor o primeiro trimestre da tua guerra em 1969. Aqui vai um resumo de tudo quanto pude captar.

A 1 de janeiro, a caminho de Finete e da missa na Capela de Bambadinca, encontras vestígios da passagem de elementos ligados à guerrilha. No dia seguinte regressas a Bambadinca para fazer um reconhecimento aéreo com o major de operações, descobres que a escassos quilómetros de Missirá há bolanhas cultivadas. Não perdes tempo, saem na madrugada seguinte e foram até à ponte do rio Gambiel que já escreveste dizendo é um sítios mais formosos do mundo. Caminham pela orla que separa os regulados do Cuor dos de Mansomine e Jaladu. Vocês foram avistados e logo fogueados com morteiros. Respondem ao fogo e um dos apontadores de bazuca fica ferido, não se sabe a dimensão da gravidade.

Enquanto se fazem obras no arame farpado e anda por ali atarefado o alferes sapador (tu dizes chamar-se Mena Reis) com quem terás contencioso, ele pretende armadilhar locais acessíveis a crianças, descobre-se uma conjura de gente de Finete que se queixou de ti ao comandante, haveria milícias que se queixariam de maus-tratos e que não darias apoio à tabanca, privilegiando Missirá. Não foi precisa uma longa investigação para descobrires que por detrás da cabala estava o comandante da milícia, o vaidoso e pouco amigo do trabalho Bazilo Soncó. Escreves ao comandante do batalhão alertando-o para várias urgências, achavas que a vida militar do Cuor podia estar intimamente associada ao Enxalé, recordavas o estado degradado em que se encontravam os dois destacamentos de Missirá e Finete, mandaram-te teres paciência. Anotei o acervo de leituras que fizeste, as cartas enviadas e recebidas.

Pelas consequências havidas, reproduzi ao pormenor o que tu me mandaste sobre a primeira visita do General Spínola a Missirá, a sua rispidez contigo e também a do comandante de Bafatá. Ri perdidamente com aquele episódio em que o dito general falando aos soldados os chamava por “luz do mato” e um deles interpelou-o da seguinte maneira: “Comandante fala na luz do mato. Mas nunca falou no gerador. Gerador é que dá luz. Quanto traz gerador para Missirá?”. Serás punido com dois dias de prisão simples e assim impedido de teres férias, e ao mesmo tempo recebes o primeiro louvor dado por general considerando que a tua mentalidade ofensiva deve ser apontada como exemplo. Vão seguir-se vários patrulhamentos, cada vez mais próximos dos locais onde se fixa a guerrilha. Há aquela operação Andorra e também escrevi com pormenor o ataque de abelhas em que vocês corriam espavoridos por um lado e os guerrilheiros por outro. Registei aquela ameaça que tu recebeste de Mamadu Jaquité, irás ao seu encontro em 1991, ele era então comandante do Cumeré, transcrevi o teor da ameaça: “Tu não passas de um alferes de merda. Andas a chatear um povo que quer ser livre. Tu vais morrer ou eu ter vergonha de viver na minha pátria. Se quiseres desertar, tu vens cultivar a bolanha de Madina. O meu nome é Mamadu Jaquité”.

Vai seguir-se a terrível e desastrosa operação Anda Cá, antes durante um patrulhamento a Quebá Jilã vocês capturaram um jovem que seguirá na operação como guia. A narrativa que tu deixas do estado calamitoso de 300 homens depois da frustração da operação que é interrompida quando tu já avançavas para o objetivo de Madina é quase um quadro de horror, gente no maior sofrimento, a gritar por água e por tratamento dos pés feridos. Segue-se uma operação onde foste a um local chamado Mansambo, pela primeira vez tu entrarás no acampamento abandonado e segues para Bissau para extraíres uma cartilagem formada atrás do joelho direito que praticamente te impedia de andar, é comovente o teu encontro na enfermaria com Fodé Dahaba, não sei se alguém poderá escrever um quadro de dor parecido com o que tu nos dás. E comovente também o facto de o Fodé ter pedido a um enfermeiro para tu ficares numa cama ao lado da dele.

Encadeiam-se mais tragédias. Mal te consegues pôr em pé, vais ao Batalhão de Engenharia, numa localidade chamada Brá e consegues obter muitos materiais para as obras dos teus quartéis. Quando tens alta, a 20 de março e entregas a guia de marcha no Quartel-General, um sargento atira-te a seco uma mensagem há pouco recebida, Missirá fora na véspera atacada, pouco passava das nove da noite, e uma parte muito importante do quartel ou da povoação fica em cinzas. Em estado de estupor, regressas ao hospital militar, à procura de feridos, pois o relato incluía dois mortos, dois soldados feridos e seis civis hospitalizados. Encontras o régulo Malan Soncó numa enfermaria, foram-lhe extraídos estilhaços do peito. Como se fosse o acontecimento mais importante de toda aquela flagelação, o régulo insiste na notícia: “A tua morança desapareceu completamente, só ficaram os ferros da cama. Na tua ausência puseram lá uns cunhetes de granada que aumentaram a explosão. Prepara-te porque não vais encontrar nada”. Consegues, depois de muito insistires, um transporte que rapidamente te leva a Bambadinca e daqui a Missirá. Tu escreves que vai começar um dos momentos mais empolgantes da tua existência, decidiste que em tempo recorde Missirá será construída, disseste isto aos teus soldados e à população, não se pode ler o relato que te fizeram da resistência àquele formidável ataque sem sentir um tremor no corpo, aquela resistência durante horas, as munições já praticamente esgotadas, o pacto de sangue estabelecido entre os soldados, lutariam até ao fim, cada um ficaria com duas balas, se entretanto os guerrilheiros ousassem avançar, receberiam a penúltima bala, a última culminaria na morte do combatente, nunca se renderiam. E quando termina este primeiro trimestre tu dizes que Missirá está a renascer entre a lama e o cimento. É tudo isto que eu estou a coligir para tu depois forjares as tais cartas a que eu vou responder no que tu chamas o romance da Rua do Eclipse. Há momentos, meu adorado Paulo, em que eu me interrogo se de facto a realidade não é mais pujante que a ficção. Como é que foi possível tudo isto ter acontecido? Obviamente tenho lido como toda a gente livros sobre a II Guerra Mundial, aqui bem a sofremos com perseguições, penúria, prisões arbitrárias e até execuções. Há romances notáveis sobre a luta nos guetos, as batalhas na frente russa, as fugas audaciosas de prisioneiros, mas arrepia décadas depois, por causa de uma obstinação em querer ter um império contra os ventos da História, a tua geração ter sido forçada a participar nesta calamidade.

Interrompo por aqui esta narrativa para te contar que eu e vários colegas fomos convidados pela colega Nelly Alter a uma festa em sua casa, numa localidade chamada Saint-Marc, a poucos quilómetros de Namur, um acolhimento formidável e depois do repasto, que se realizou cedo, a Nelly sugeriu que fôssemos passear, não dentro de Namur mas para visitar duas localidades e monumentos que ela muito aprecia. São essas as imagens que te envio, para prazer dos teus olhos.

Renovo a minha gratidão de tudo quanto me ofereces. Hoje sinto-me muito otimista e nada melancólica. Percebi que balbuciavas quando me disseste na terceira semana do mês a reunião da tua Associação se realiza em Florença, acontece que tenho praticamente trabalho todos os dias este mês de janeiro, as instituições comunitárias já estão em pleno funcionamento e tu disseste-me que ainda tinhas quatro dias úteis de férias do ano anterior para gozar e que seriam integralmente passados comigo, em fevereiro. Vou amanhã mesmo falar com o responsável pelo meu calendário de trabalho e ver se é possível em ter uma semana em branco. Telefono-te imediatamente.

Ando com o teu anel, os colegas perguntam-me de onde vem, elogiam-no. “É presente do meu noivo, é anel para toda a vida”. Despeço-me com o maior carinho, com a muita saudade (que é portuguesa e belga), e com os votos de que janeiro passe depressa para eu te ter ao pé de mim, tua, Annette.

(continua)
Fogo de artifício na passagem de ano
Château de Spontin, Bélgica
Basilica Saint-Materne (Walcourt), Bélgica
Fodé Dahaba, a nossa grande perda na Operação Anda Cá
Operação na área do Xime, o Pel Caç Nat 52 participa, à direita António da Silva Queirós, também conhecido pelo 81, segue-se Ieró Baldé, 1.º guarda-costas de alfero, segue-se Serifo Candé, amigo de peito de alfero e o barbeiro Manuel Costa, hoje detentor do blogue A Nova Barbearia Costa, de onde se retirou esta imagem, com a devida vénia.
Festa do Natal de 1970 do Pel Caç Nat 52, imagem herética, como é possível aquele garrafão de vinho junto de bravos Fulas e Mandingas? Mistério insondável
Festa de Natal de 1969 na ponte do rio Undunduma, perto de Bambadinca
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21586: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória