segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21902: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (8): Cenas de um carnaval em Bissau

Edifício do STM em Bissau

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), fala-nos do Carnaval de 1970 em Bissau:


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU

PEDAÇOS DA HISTÓRIA DA GUINÉ
 
8 - Cenas de um Carnaval em Bissau

Estávamos em 1970, o Carnaval estava à porta e, apesar da guerra, em Bissau sempre havia algumas comemorações desse período que antecedia, e ainda antecede, a Quaresma.

Em Bissau tudo era diferente e tinha sabor a saudades da santa terrinha, mas havia sempre foliões, dentro dos condicionalismos que se viviam.

No QG, mais propriamente na CCS, havia um jovem sempre bem disposto, sempre com uma graça na ponta da língua, mas afinal de contas teria as suas razões para não se sentir assim tão bem. Constava que teria vindo de Angola, “premiado” com algum castigo, e andaria por ali à espera que os eventuais problemas tivessem solução. Era o Jóia, como era conhecido em todo o lado.

Assim, o Jóia, que era mesmo uma Jóia no trato do dia a dia, nesse dia de Carnaval resolveu vestir-se à Fula, embrulhou-se nuns lençóis, e lá foi até à cidade brincar e confraternizar com os amigos que tinha e eram muitos.

Mas o Jóia, amigo do seu amigo, nunca desperdiçava uma cerveja, de preferência das bazucas, e lá foi correndo todos os pontos de interesse de Bissau, a começar pelo Santos,  logo à saída da porta de armas de Santa Luzia, desde o Império, passando pelo Benfica, desde a Solmar até ao Solar do Dez, ao Portugal e ao Internacional, ao Zé da Amura, ao Bento, até que chegou ao novel Pelicano, cheio que nem um ovo dada a novidade daquele novo estabelecimento de dois pisos e com belas vistas sobre a Avenida Marginal e Ponte Cais de Bissau.

Porém, nessa confusão de gente, o Jóia, terá dado um encosto a um camarada à civil, que não gostou da brincadeira e o terá mimoseado com alguns murros e o Jóia, naquela circunstância não deixou cair a sua honra de combatente pelo que desatou, rapidamente, parte dos lençóis respondendo com as suas mãos à dita pessoa à civil que terá ficado deitado no chão do café.

Entretanto o Jóia terá dado mais umas voltas pela cidade mas regressou ao Quartel General onde já tinha recado para no outro dia se apresentar ao Comandante. Era a vida.

E o Jóia lá foi no outro dia ouvir o Comandante que lhe terá perguntado se sabia quem era a pessoa a quem tinha dado um sova no dia anterior. Claro que o Jóia não sabia,  ao que o Comandante lhe disse que o outro camarada era um Alferes paraquedista. Então aí o Jóia não se calou e terá respondido ao Comandante: 

- Não me diga,  meu Comandante. Se aquele era um Alferes paraquedista, eu vou lá acima e derreto o Batalhão todo.

O Comandante já teria falado com o médico da Companhia e o Jóia foi encaminhada para a Psiquiatria do HM 241. Chegou lá e a primeira coisa que terá feito, foi dar um murro no tampo de vidro da secretária do Médico, vidro esse se partiu em mil bocados.

Resumindo, passados poucos dias, o Jóia tinha regressado à Metrópole e corria por lá a notícia que os processos tinham sido arquivados e o Jóia passado à vida civil ainda durante a Quaresma.

Apesar de tudo, nesse ano o Carnaval foi a salvação do Jóia que andava por ali esquecido.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2018 > Guiné 63/74 - P18838: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (7): Recordações do STM/CTIG

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21901: A Nossa Marinha (3): a LFG Orion, "o melhor restaurante de Bissau", às quintas-feiras, em 1969/71, sem esquecer a tertúlia que, depois do jantar, se reunia na casa do célebre metereologista Anthímio de Azevedo [José Pardete Ferreira (1940-2021), autor de "O Paparratos"]



Guiné > Bissau > c. 1973/74 > "Dos poucos momentos que passei em Bissau... Junto às LFG Orion, Lira e Argos (da esquerda para a direita)"

Foto (e legenda): © J. Casimiro Carvalho (2017). Todos os direitos reservados [. Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No seu romance "O Paparratos" (a história do soldado 'comando' Gabriel, de alcunha Paparratos, e do alferes miliciano médico João Peckoff, aliás, um "alter ego" do autor), o nosso camarada e membro da Tabanca Grande, José Pardete Ferreira,  que nos deixou, há um mês, faz uma referência implícita ao NRP LFG [Lancha de Fiscalização Grande] Orion, como um dos pontos "obrigatórios" do roteiro gastronómico de Bissau no seu tempo.

Recorde-se que, depois do CAOP, em Teixeira Pinto, de que foi o médico entre fevereiro e junho de 1969 (cinco meses), foi colocado no serviço de cirurgia do HM [Hospital Militar] 241, em Bissau (1969/71).

No final do seu serviço no Hospital, João Peckoff [leia-se: José Pardete], procurava ter em Bissau "uma vida de sociedade tão normal quanto possível" (p. 49). Como fazia amizades com  facilidade, tormou-se "presença assíduia nos habituais jantares das quintas-feiras, que tinham lugar na Base Naval [ao lado do cais do Pingjguiti],  que eram destinados aos oficiais de Marinha e seus familiares, sediados  em Bissau ou de visita, e a militares de outras Armas e mesmo a civis,  com o estatuto de convidados" (p. 50).

E aqui o autor faz uma homenagem à hospitalidade da LFG [Orión} e do seu comandante (no romance, Freitas de Sousa, leia-se Faria dos Santos], "um gentleman" (sic) , e evoca  poeticamente os "tons vermelhos vivos de sangue, atenuados  com fins de tarde cálidos e embalados de cinzento numa LFG acostada ao Cais do Pidjiguiti, durante o jantar a bordo, com mais dois ou três amigos" (p. 50).

2. Sabemos que se trata(va) da Oríon (**), de acordo com uma mensagem que o José Pardete Ferreira nos mandou, em 2011, juntamente com uma letra de fado, a do "Fado da Oríon" , que ele dedicou aos  camaradas da Marinha, e em especial à malta da LFG Orion, e que nós já reproduzimos em dois postes  (*).

(...) Caro Luís, o prometido é devido:

O Fado da Orion foi escrito em Homenagem ao Comandante [Alberto Augusto] Faria dos Santos [, entretanto falecido em 1986, ex-1º ten, comandou o NRP Orion, 1968/70].

A LFG {Orion] passou mais de um ano acostada ao molhe do Pi(n)djiguiti porque tinha cedido à [LFG] Batarda um dos motores.

Quando o recebeu de volta ou ele foi substituído por um novo, já não posso precisar, fez uma viagem experimental e de contrabando "a acreditar nos praticantes da má-língua" e, de seguida, foi o navio almirante da ida a Conacri [, Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970], sob o Comando de Faria dos Santos, mais tarde Comandante do porto e, em seguida, Governador Civil de Aveiro.

Poeta e grande amigo, recebia a jantar e bem um pequeno número de amigos na torre, onde, no final, a poesia expulsava o álcool.

Ele foi, igualmente, a nossa chave de acesso à Base Naval de Bissau onde, às quintas-feiras, havia jantar melhorado e aberto a convidados. (...)

 
Fado da 'Orion' (excerto)

Tristes noites de Bissau,
Neste clima tão mau,
Passá-las não há maneira,
Sem comer arroz, galinha.
Ou então ir à "Marinha"
Aos "jantares da quinta-feira"!

Às vezes um Comandante,
Bom amigo, bem falante,
Obriga uma pessoa,
Com uma grande bebedeira,
Pensar que o Ilhéu do Rei
Fica em frente de Lisboa.

Refrão

Ser marinheiro
De "LFG' no estaleiro,
Sem motores nem cantineiro,
Junto ao cais sem navegar,
E esperando,
A comissão foi passando,
Ai!, os amigos engrossando,
Com o Geba a embalar. (...)


[Nota do autor: 1ª parte e refrão escritos em Bissau em Novembro de 1970; 2ª parte,  escrita em Setúbal na madrugada de 15 de Dezembro de 1997. Para ser cantado com a Música do "Fado do Cacilheiro" do Maestro Carlos Dias).


3. Voltando ao romance "O Paparratos" e à figura do nosso doutor, João Pekoff:

(...) "O senhor comandante, entre outras qualidades, tinha a de receber bem, fazendo jus à fama da Marinha de Guerra Portuguesa" (p. 50).

 Por outro lado, "gostava imensamente de poesia e a tertúlia que entretanto se fundara em casa do António Almeida [, leia-se Anthímio de Azevedo  (Ponta Delgada, 1926- Lisboa, 2014). o famoso metereologista da Rádio Televisão Portuguesa, na altura, diretor do Serviço de Metereologia da Guiné, entre 1967 e 1971,] (...) tornou.se uma alternativa ao doce balançar no navio e à vista  do Ilhéu de Rei" (p. 50).

A casa de Anthímio de Azevedo era "local de reunião quase obrigatório após o jantar" [no navio], transformando-se num espaço de liberdade onde se dizia poesia, se falava da guerra e das últimas operações no mato, bem como da crueza da vida e da morte no Hospital,  reviam-se comissões de serviço anteriores, partilhava-se  projectos para o futuro, etc.

4. Quando o nosso doutor sentia necessidade de sair do ambiente da tropa, tinha em Bissau outras, poucas, alternativas:

"Um balaio de ostras com um molho feito com sumo de limão e piri-piri, acompanahado com umas cervejitas, aqui ou ali, ou ocasionalmente um jantar num dos poucos  restaurantes que havia, como por exemplo o Solar dos 10, satisfaziam-lhe os apetites, espirituais e físicos" (p. 50).  

Este restaurante seria pertença a um setubalense, que se tornou também comandante dos bombeiros de Bissau. Opinião do autor: "Durante muito tempo foi o Tavares Rico de Bissau" (p. 51). E terá sido no Solar dos 10 que o José Pardete Ferreira, o criador literário do Paparratos e do João Pekoff,  apresentou um dia, "numa noite de festa da malta do Hospital", na despedida de um colega, o Fado da Orion (*).

No roteiro gastronómico de Bissau, aponta-se ainda "a sala de jantar da Pensão Portugal, ou casas de pessoas tornadas suas conhecidas" (p. 51).

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8966: Blogpoesia (163): Fado da 'Orion' (José Pardete Ferreira)

Vd. também o poste de 2 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9129: O nosso fad...ário (4): O Fado da Orion (J. Pardete Ferreira, ex-Alf Mil Médico, 1969/71)

Guiné 61/74 - P21900: In Memoriam (394): João Domingues da Rocha Cupido, ex-Cap Mil Art, CMDT da CCAÇ 2753 - "Os Barões do K3" (Guiné, 1970/72) (José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753)

IN MEMORIAM

Ex-Cap Mil Art João Domingues da Rocha Cupido
CMDT da CCAÇ 2753/BII 17/CTIG 1970/72



1. Mensagem do nosso camarada José Carvalho, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 (Brá, Bironque, Madina Fula, Saliquinhedim e Mansabá, 1970/72), com data de 10 de Fevereiro de 2021 com a notícia do falecimento do ex-Cap Mil Art João Domingues da Rocha Cupido, Comandante d'Os Barões do K3.

Caro camarada e Amigo Luís,

Hoje, é com tristeza que venho informar, todos os que privaram ou que conheceram, o João da Domingues da Rocha Cupido, ex-Cap Mil Art, Comandante dos Barões do K3, que nos deixou para sempre, muito recentemente, nos últimos dias de Janeiro.

Mantendo contactos com o João Cupido, conhecia a existência de alguns problema de saúde que enfrentava, tendo-me informado em meados de Janeiro, que estava no Centro de Reabilitação da Tocha, por necessitar de cuidados de fisioterapia.

Sempre que falávamos e uma vez mais neste último telefonema, manifestava o enorme desejo de concretizarmos a realização de mais um almoço, com alguns ”Barões”, na sua Mira, que se adiava desde o inicio da pandemia, também pelos frequentes internamentos no Hospital de Coimbra, durante o ultimo ano. Lamentavelmente jamais se realizará!

O João Cupido foi o grande Comandante, que fazia por passar despercebidas essas funções, sendo tão-somente o camarada mais velho, mais experiente e com todas as responsabilidades, naquela fantástica companhia de jovens.

Respeitado e admirado por todos os seus subordinados, jamais presenciei qualquer posicionamento de autoritarismo, sendo um excelente dialogante e contemporizador nas mais difíceis situações.

À Família e amigos apresento as minhas sentidas condolências.

Envio em anexo duas fotografias, onde o João Cupido está, tiradas em Angra do Heroísmo, poucas semanas depois da sua chegada, para tomar conta da CCAÇ 2753.

Muita força para os tempos actuais e muita saúde, é o que eu desejo para todos.

Abraço do
José Carvalho


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Angra do Heroísmo, berço da CCAÇ 2753

Em Abril de 1970, em Angra de Heroísmo, no campo de futebol da cidade, uma equipa de oficiais mobilizados do BII17.

Na foto, doze oficiais milicianos (dois Capitães e dez Aspirantes) e um oficial do quadro.
Em pé a partir do lado esquerdo: Carlos Oliveira, Fernandes, Cap. Mil. Cav. Calvão Silva, Cap. de Inf. Sérgio Crespo, Cândido Pereira, Cap. Mil. Art. João Cupido, Santos, Vítor Junqueira. À frente: Costa, José Carvalho, ?, Sousa Pinto, Jorge França. Este último seria mais tarde meu colega na Escola Superior de Medicina Veterinária – Lisboa – onde também se licenciou.


Em Janeiro de 1970, naquela unidade foram incorporados os recrutas, que deram origem a três Companhias Independentes de Caçadores, tendo duas como destino a Guiné (CCaç  2753 e 2754) e uma Moçambique, CCaç 2755.

Nesse inicio de ano chegou ao BII 17 uma dúzia de Aspirantes a Oficiais Milicianos, que tinham saído de Mafra, duas semanas antes e que enquadraram as referidas companhias.


Os oficiais que inicialmente enquadraram a CCAÇ 2753, junto de uma peça de artilharia, na Fortaleza de São João Batista, também referida como a fortaleza do Monte Brasil. Construída no século XVI, pelo Rei Filipe I de Portugal, Filipe II de Espanha.

Em Março de 1970, os Aspirantes a Oficiais Milicianos, Vítor Junqueira, José Carvalho, Cândido Pereira e Sebastião Sousa Pinto. Ao centro Cap. Mil. Art. João Domingos da Rocha Cupido

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2. Nota do editor:

Em nome da tertúlia e dos editores deste Blogue, deixámos à família do nosso camarada João Domingues da Rocha Cupido, os mais sentidos votos de pesar, entensivos à "família" dos Barões do K3.

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21888: In Memoriam (393): Marcelino da Mata (1940 -2021), ingloriamente morto por tiro traiçoeiro da Covid-19 (Ramiro Jesus, ex-fur mil 'comando', 35ª CCmds, Teixeira Pinto, Bula e Bissau, 1971/73; Manuel Resende, régulo de A Magnífica Tabanca da Linha)

Guiné 61/74 - P21899: Blogues da nossa blogosfera (149): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (59): Palavras e poesia


Do Blogue Jardim das Delícias, do Dr. Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), com a devida vénia, reproduzimos esta publicação da sua autoria.


UM GESTO DE SILÊNCIO

ADÃO CRUZ
© ADÃO CRUZ

Todos nós temos os nossos desertos
pequenos ou grandes
e todos nós temos os nossos labirintos
grandes ou pequenos
simples ou complexos.
Os caminhos e os percursos
entre os nossos desertos e os nossos labirintos
mais rectos ou mais sinuosos
são ao fim e ao cabo os caminhos da nossa vida.
E esses caminhos são feitos predominantemente de silêncio.
A grande força da nossa vida reside no silêncio
o silêncio das nossas meditações
das nossas reflexões
das nossas decisões
dos nossos segredos e intimidades
dos nossos medos e coragens
dos nossos sonhos e entusiasmos
das nossas alegrias
das nossas mágoas e frustrações.
O silêncio é a primeira voz que um homem ouve
quando está dentro de si.
O silêncio é o respirar do nosso íntimo
a dialéctica da nossa personalidade
o único espaço onde a mentira não cabe.
O silêncio é o relógio oculto e secreto das nossas horas.
Nós somos a nossa própria teia
e só o silêncio nos deixa ver e separar
os emaranhados fios que a tecem.
A mágica sensatez do silêncio
é o fio-de-prumo da nossa calibração.
São imensas as verdades que podemos conhecer
só por ficarmos estendidos a pensar calmamente
porque as verdades estão em nós
e só o silêncio nos permite desvendá-las.
Tantas vezes o silêncio tem vontade de fugir
e necessidade de gritar…
de gritar as verdades que descobre
mas como o silêncio não tem palavra de se ouvir
vai enformando os mais variados actos da vida
os gestos e as artes da vida que só nele vivem.
Assim nascem assim se criam e se desdobram
todas as nossas inúmeras expressões vivenciais
que mais não são do que as vozes ampliadas
dos nossos próprios silêncios.

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Nota do editor

Último poste da série de 31 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21830: Blogues da nossa blogosfera (148): Jardim das Delícias, blogue do nosso camarada Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 (58): Palavras e poesia

Guiné 61/74 - P21898: Pequenas histórias dos Mais de Nova Sintra (Carlos Barros, ex-fur mil at art, 2ª C/BART 6520/72, 1972/74) (18): Saia uma "rolada" para o jantar...



Fonte: In: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 16.


1. Mais uma pequena história do Carlos Barros:

(i) ex-fur mil, 2ª C/BART 6520/72 (Bolama, Bissau, Tite, Nova Sintra, Gampará, 1972/74), "Os Mais de Nova Sintra", os últimos a ocupar o aquartelamento de Nova Sintra antes da sua transferência para o PAIGC em 17/7/1974;

(ii) membro da Tabanca Grande nº 815, tem 2 dezenas de referências

 

A “rolada"…

por Carlos Barros


Os soldados do 3º grupo de combate de Nova Sintra andavam sempre com apetite, já que as refeições habituais não passavam de arroz com salsichas, de feijão ou de massa meada, esparguete, cortada…-, o que originava uma certa saturação alimentar.

Um dia o furriel Barros,disse para o seu grupo de combate:

- Amanhã, vamos ter uma comida especial a acompanhar a refeição habitual , vinda da cantina!

Levantou-se uma “auréola “ de volumosa expectativa entre os soldados presentes…

O Barros, numa tarde muita abrasadora, com o sol a queimar a pele, pegou na sua arma de pressão e foi caçar para junto de um pequeno riacho onde as rolas costumavam beber. Uns arbustos propiciava o esconderijo ideal para o Barros caçar, camuflando-se no meio dos seus ramos e das poucas folhas existentes naqueles ressequidos arbustos

As rolas começaram a chegar e o furriel ia disparando , abatendo várias dessas aves e, ao fim de duas horas, o Barros tinha oito rolas bem gordinhas e não prolongou a caçada porque temia que alguma vara de javalis viesse beber e com a arma de pressão pouca hipótese teria de se defender, desses perigosos e agressivos animais.

Regressou ao quartel, falou, ”clandestinamente, com os soldados Domingos Oliveira , Cruz, Pedralva, Serra e Lurdes para depenarem as rolas e as fritassem numa cozinha improvisada da caserna.

A missão dos “cozinheiros de algibeira” foi cumprida e o óleo da frigideira, esta emprestada pelo cozinheiro Rochinha, foi guardado numa garrafa de cerveja, para uma futura “investida”!

Ao jantar, o Domingos Oliveira , veio com uma improvisada e enfarruscada, panela com as rolas fritinhas e foi o delírio entre os soldados que nunca imaginaram ter aquele petisco tão saboroso, naquele ambiente de tanta penúria gastronómica.

Com o furriel Barros, a promessa feita, era promessa cumprida!...

A sorte do furriel Barros foi não ter aparecido, junto ao “riacho”, um javali sequioso caso contrário, a promessa não seria respeitada…


Nova Sintra 1974

Ex-furriel Miliciano Barros-

Bart 6520/2ª CART (1972/74)

“Os Mais de Nova Sintra”

Esposende 2 de fevereiro de 2021
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Guiné 61/74 - P21897: Blogpoesia (719): "A fome"; "Casa da Tripa" e "O silêncio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. A habitual colaboração semanal do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) com estes belíssimos poemas, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante esta semana:


A fome

Condenação ou não, o homem tem de ganhar seu pão com o suor de seu rosto.
A fome obriga o homem a trabalhar se quer manter sua vida acesa.
Motor da vida impele o homem a se levantar da cama cada dia,
Com chuva ou sol,
Para ganhar seu pão e o de seus descendentes.
Quem não o fizer será só um parasita.
Como o verme que vive no húmus.
Foi essa a vontade do Criador de tudo quanto existe.

Ouvindo Schubert
8h59m
Jlmg


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Casa da Tripa

Um casarão fidalgo.
Um palácio comprado com dinheiro das rendas senhoriais das quintas.
Uma alameda empedrada de camélias multicolores
Ligava-o à estrada nacional.
Uma grande quinta arrendada a um lavrador rendeiro
Abastecia-o de vinho e de pão.
Era gente oriunda de Trás-os-Montes.
Quem lá vivia agora era uma descendente, com seus quatro filhos.
Dois pares.
A dona Efigénia. Viúva.
Muito dedicada ao serviço da Capela de Pedra Maria.
Ainda bastante viçosa.
Cantava e tocava órgão na capela.
O abade da freguesia era um convidado habitual lá de casa.
Apoiava-a e era apoiado.
Era bonito vê-la, toda de preto, vir pela alameda sob latadas,
Pelas trazeiras do palacete,
Dirigida a Pedra Maria.
Foi minha madrinha de crisma, aos 11 anos.
Éramos dois fãs um do outro.


Berlim, 10 de Fevereiro de 2021
10h10m

Jmg


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O silêncio

Ninguém gosta do silêncio.
Ninguém gosta de se ouvir.
Nossos medos. Nossos temores e complexos
Afloram à superfície.
Aquela voz implacável.
Não desculpa o próprio dono.
Censura o que está errado,
Mas louva o que está certo.
Uma campainha alerta.
Toca ao mais pequeno dislate.


Berlim, 12 de Fevereiro de 2021
19h12m
Jlmg

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Nota do editor

Último poste da série de7 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21863: Blogpoesia (718): "O que vai dentro"; "A seiva do mar" e "Suicídio", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21896: Os nossos seres, saberes e lazeres (437): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6): A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Diz o anexim que o que é bom nem sempre dura, ensina a experiência que assim é, felizmente que regressámos desta viagem com vontade de a continuar, talvez noutra estação do ano, por aqui andámos com a prudência que exigia o tempo de pandemia, guardando imagens que vão do castelo às igrejas, das livrarias aos museus, cirandou-se pelos arredores, desde as Caldas da Rainha até Peniche, contemplou-se o mar, aqui por definição com densa neblina e de ondas bravias, a intimidar os banhistas. Assentou-se em grupo que há muita coisa que merece ser revista, talvez com outra luz, põe-se a hipótese de se regressar na primavera e por ali andar, entre o Santuário do Senhor Jesus da Pedra, um dos ícones barrocos de Óbidos, percorrer as muralhas, já que a cerca é tão bela e dá um pleno desfrute dos telhados do casario, visitar a pousada e as livrarias, está prometido e por isso se sugere a quem nos lê e que não conheça devidamente este sítio que o ponha na agenda, ele é merecedor da visita de todos nós.

Um abraço do
Mário


Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (6):
A despedida de Óbidos, regresso a Lisboa


Mário Beja Santos

É nosso desejo aproveitar o princípio da tarde fazendo um périplo rápido por algumas das riquezas que mais nos impressionaram em igrejas, livrarias, museus, o castelo e a sua espantosa cerca. Fomos diretos ao Museu Municipal tentar ver com outros olhos a bela pintura de Josefa d’Óbidos, mas não só, o museu conserva no seu acervo outras preciosidades. Coisa curiosa, terá sido outrora este espaço Paço do Concelho como se lê no livro Linha do Oeste: “De pequena casa, onde apenas cabiam duas arcas, uma mesa e um banco, este local de audiências dos juízes medievais da vila e de reunião da vereação substituído nas assembleias magnas pelo próprio adro da igreja que lhe ficava em frente, veio a dar lugar no século XVI a um edifício de maiores dimensões e de maior dignidade arquitectónica localizado, ao que tudo indica, no espaço hoje preenchido pelo Museu de Óbidos”. São alguns dos vestígios artísticos do seu passado fluorescente que aqui se conservam. Falando da arte da pintura entre os séculos XVI e XVII, Vítor Serrão, o indiscutível especialista no Maneirismo, recorda que o conjunto de pintura dos séculos XVI e XVII se distribui por diversas igrejas, conventos, palácios, museus e demais coleções públicas e privadas da região estremenha definida pelos concelhos Caldas da Rainha, Óbidos, Alcobaça e Peniche, constitui sem dúvida (em termos plásticos, documentais, iconográficos e históricos, pela diversidade de testemunhos, estilos e épocas) um dos mais interessantes do nosso país. Não se pode cingir toda esta arte a Josefa d’Óbidos, há Diogo Teixeira, Belchior de Matos e mesmo Baltazar Gomes Figueira, não podendo ser esquecido André Reinoso. Vamos ver algumas dessas preciosidades.
Vale a pena dar de novo a palavra a Vítor Serrão: “A paleta de Josefa é sempre peculiar, saborosa, inventiva e acesa de sensibilidade: o seu cromatismo é cálido, sensual e luminoso, o claro-escuro é assaz correto na transposição de zonas de sombra e nas gradações de luz esbatida, e as ingenuidades de debuxo das figuras dilui-se no preciosismo da decoração garrida e barroca com que se envolve”. Reconheça-se como estas naturezas-mortas são primorosas, não são?
Já se disse que este museu foi anteriormente a residência do pintor Eduardo Malta, um retratista muito procurado no seu tempo. Aqui se mostra o retrato da sua mulher, guardo dele a recordação de um grande desenhador, como se sabe os artistas preferem o quadro a óleo por razões financeiras, muitos deles não escondem que a sua paixão passa pelo desenho. Malta aceitou encomendas oficiais, uma delas foi a Exposição Colonial do Porto de 1934. Aqui se mostram dois desenhos de traço inatacável, consegue deslumbrar-nos pela captação da pose, a dimensão do porte, tudo com pequenos recursos de um lápis que viaja a dar formas ou a sublinhar aqueles aspetos que ele considera que devem ser o foco da nossa atenção, ainda hoje contemplo com prazer desenhos como estes.
A mulher de Eduardo Malta
Régulo Mamadu Sissé, desenho de Eduardo Malta
Abdulai Sissé, filho do régulo, desenho de Eduardo Malta

Há no centro da vila o Museu Abílio de Mattos e Silva, dele já falámos, foi um cenógrafo muito procurado e pintor atraído pela escola modernista. Há obras suas no Museu Municipal de Óbidos, vila que ele tanto apreciava, fez uma doação dos seus trabalhos, merecem ser vistos.
Quadro de Abílio Mattos e Silva

Saímos do museu e vamos cirandar pelo castelo e cerca, é impressionante pelas suas linhas majestosas, lembremo-nos que por aqui andaram romanos e que o primeiro rei de Portugal apostou em Óbidos como lugar defensivo, exigências da Reconquista, a mourama costumava fazer razias, havia que lhes fazer frente, passou o perigo e ficou o testemunho eloquente desses tempos agitados, a vila está pejada de vestígios de tão importante passado, e não deixou de nos sensibilizar aquele símbolo gravado à porta de uma igreja que não soubemos interpretar mas não deve estar ali por acaso, Óbidos sofreu imenso com o terramoto de 1755, houve muitíssima reconstrução e aproveitou-se para novos embelezamentos, as fachadas das igrejas também foram revistas, de onde este símbolo deve ter importante significado, senão teria sido apagado nos trabalhos de restauro.
E pronto, disse-se adeus a Óbidos, há muito para recordar e todos apostam num regresso, quanto mais cedo melhor. Feita a despedida, pesarosa, segue-se para Peniche, vamos amesendar. Nada de perdas de tempo, todos clamam por uma boa pratada de peixe, aqui o mar é fértil em substância dessa natureza. E é a caminho de uma casa de pasto já conhecida que se olha para uma parede, digamos que na correnteza de um conjunto de prédios de arquitetura desenxabida se encontra este vestígio do passado, o posto de despacho da Alfândega de Lisboa, com as armas reais, é pena que num contexto de prédio expectante, oxalá na pior das hipóteses estas pedras de um tempo impressivo para Peniche vão parar a um museu. É coisa estranha, mas acontece com frequência, acabarmos uma viagem a deplorar o desprezo dos homens pelos importantes símbolos de um passado que nos marcam a um lugar. Terminou a viagem mas aqui se deixa um grito à navegação.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21859: Os nossos seres, saberes e lazeres (436): Andar a um certo vapor na Linha do Oeste (5): A despedida de Óbidos, em breve regresso (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21895: O cruzeiro das nossas vidas (29): Recordando o dia 22 de Julho de 1967, no N/M Timor (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Despedida no Cais de Alcântara


1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) com data de 10 de Fevereiro de 2021 com a recordação do sem embarque para a Guiné em 22 de Julho de 1967:



RECORDAÇÕES

Olhando para os longínquos 22 de Julho de 1967, recordo o cais, a imponência do navio Timor, imponência sim, já que alguns soldados nunca tinham visto um navio, que os levaria para terra africanas, mais precisamente para a Guiné.

Recordo que chagados ao cais de embarque de Alcântara, seriam 10 horas da manhã, uma multidão nos esperava gritando, gesticulando e choramingando, braços estendidos em diracção dos seus entes queridos, meninos e moços feitos soldados à pressa. 

Eu não tinha qualquer familiar presente para se despedir, já o tinha feito uma semana antes. Foi arrepiante o que presenciei nesse dia, ver mães, pais, esposas, algumas já com filhos, num grito lancinante, com a voz embargada e rouca de tanto chamar pelo seu familiar, e acenando os lenços brancos da despedida até o navio desaparecer no horizonte.

Cerca das 12 horas entrou no cais a banda do Exército, sinal de que estavam prestes a começar as cerimónias de despedida das tropas em parada e o consequente embarque naquele monstro flutuante que nos esperava, não sem antes ser tocado o Hino Nacional.

N/M Timor

Às tantas o Timor, depois das escadas e amarras recolhidas, começa a navegar rio abaixo rumando em direcção ao oceano, aquele que para muitos era a primeira vez que viam, levando no seu bojo aqueles jovens rapazes já soldados.
Abel Santos a bordo do Timor

A viagem foi um suplício para a maioria, não foi o meu caso, o pessoal foi distribuído pelos porões, colocado em beliches num navio sem condições para transportar pessoas, a tal carne para canhão. Em relação à alimentação estamos conversados, e como sempre, as chefias tiveram outro tratamento. Ao fim de poucas horas de viagem, já havia camaradas com problemas de enjoo, o que foi provocando um cheiro nauseabundo e pestilento, embora a lavagem dos porões fosse feita em dias alternados.

Naquelas condições, ao fim de sete dias de viagem, pisámos terra firme da Guiné, depois de os batelões nos terem largado no cais onde o Timor não podia atracar.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21576: O cruzeiro das nossas vidas (28): A Síndrome dos Embarques (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Guiné 61/74 - P21894: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (7): "O Alberto", "O Sipaio" e "O expresso de Ilondé"


1. Continuação da publicação das memórias, em curtas estórias, do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74):



19 - O ALBERTO

Logo no início da nossa estadia no Ilondé começou diariamente a aparecer à entrada da nossa tenda o Alberto, um guineense de 12 ou 13 anos, humilde e educado, filho de uma das lavadeiras, residente naquela localidade, que sabia ler e escrever, o que lhe dava algum estatuto junto do pessoal pois funcionava como tradutor de crioulo que também nos ia ensinando.

A nossa tenda tinha 8 habitantes e todos gostavam do Alberto. O seu trabalho era reduzido, assentando na varredura diária do chão da tenda e um qualquer recado, a troco de um ou outro peso que lhe íamos dando e, por vezes, de algumas guloseimas que recebíamos de casa.

A esta distância tenho ideia que a nenhum de nós passou pela cabeça que o Alberto estaria feito com o inimigo. Contudo, hoje, acho estranho o seu relacionamento connosco tendo em conta que na localidade moravam dezenas de jovens da mesma idade de cuja existência apenas nos apercebíamos quando havia cinema no quartel. Assim ou assado, estimávamos o Alberto e procuramos sempre ajudá-lo, nomeadamente, fornecendo-lhe com a maior rapidez possível os resultados de cada jornada do campeonato nacional de futebol, disputado na Metrópole, que ele seguia religiosamente através de um caderninho onde apontava os jogos e os respetivos resultados.

Dada a abundância de roupa que não me servia para nada resolvi, um dia, dar umas calças ao Alberto. Ora, na época, os africanos eram muito vaidosos e extravagantes com o vestuário e a roupa tinha que ficar bem justa. Ao vestir as calças o Alberto disse logo que não as queria por serem demasiado largas. Agarrei no Alberto e nas calças e fui a Bissauzinho onde havia alfaiates de rua que logo ali ajustaram as calças ao gosto do cliente. Custou a brincadeira setenta pesos, tanto como pagava mensalmente à lavadeira, mas valeu a pena ver a alegria do Alberto.

Enfim, as coisas mudaram e nunca mais soube do Alberto. Oxalá a vida lhe tenha sorrido.


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20 - O SIPAIO

Era frequente sair a porta de armas, que ficava junto à estrada para Bissalanga ou Quinhamel, e fumar um cigarro debaixo de uma árvore onde alguns elementos da população se juntavam em amena cavaqueira, em crioulo, da qual pouco ou nada entendia.

Gostava daquela gente, que tinha tão pouco e vivia aparentemente feliz. Por razões culturais, que transcendiam o meu entendimento, a riqueza dos homens media-se pela quantidade de mulheres e de animais que possuíam. As mulheres eram consideradas como animais, avaliadas em cotejo com estes, e eram elas que angariavam os meios de sustento da família através do seu trabalho, fosse como lavadeiras fosse como domésticas.

Naquele dia, estava um grupo mais numeroso que o habitual e, entre eles, um sujeito vestido com uma farda que não conhecia e que, pensei, ser uma qualquer autoridade local que designei de sipaio (ou cipaio).

A certa altura, no decorrer da conversa, o tal sipaio afastou-se alguns metros e ajoelhou-se. Tal movimento despertou-me a atenção e pensei que o sujeito ia rezar, mesmo sem tapete. Um minuto depois vejo-o a remexer na terra, levantar-se, sacudir as calças, aproximar-se de novo do grupo e retomar a conversa. Afinal tinha estado a urinar.

Recordei então que, de facto, pelos caminhos da Guiné por onde tinha andado, nunca me apercebi da presença de dejetos humanos produzidos por esta gente e, testemunhando aquela atitude, percebi porquê.


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21 - O EXPRESSO DO ILONDÉ

Diariamente, uma pequena camioneta de passageiros que fazia a ligação Ilondé – Bissau estacionava na estrada, quase em frente à porta de armas.

Uma hora antes da partida, com um calor quase insuportável, já muitos passageiros estavam instalados nos respetivos lugares.

A carga mais volumosa ia no tejadilho a que se acedia por uma escada existente na traseira da camioneta.

Porém, o mais engraçado era o transporte dos animais, principalmente cabras, galinhas e porcos, que iam normalmente do lado da janela ao colo dos seus proprietários, sendo que as cabras se instalavam paulatinamente com o focinho de fora aguardando o arranque da viatura.

Pouco mais tarde, aparecia uma carrinha Toyota, de caixa aberta, que arrebanhava o resto do pessoal que não tivesse tido lugar na carreira normal e, uns em pé, junto à cabine, outros sentados, no chão da caixa, com os respetivos tarecos, lá partiam para Bissau.

Estou em crer que esta carrinha desempenhava a função de desdobramento.

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Nota do editor

Último poste da série de11 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21886: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (6): "A reunião", Os incêndios" e "O prostíbulo"

Guiné 61/74 - P21893: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira


Chaves > RI 19 > Os meus amigos de Chaves – Julgo ser o o 6,º da última fila


Chaves > Regimento de Infantaria n.º 19 > Para mim, foi um hotel de 4 estrelas


Chaves > Ponte romana, também conhecida como ponte de Trajano
 (c. fins séc. I / inícios séc. II)

 Fotos (e legendas): © Joaquim Costa  (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da publicação da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", da autoria de  Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):


 
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)

Parte II: A minha passagem pela maravilhosa cidade de Chaves depois do martírio de Tavira

  Chaves: Férias, O Estraga a Tábua...e o Forte de S. Francisco



Joaquim Costa


Depois de Tavira,  só mesmo Chaves para recuperar (boas águas, bons pasteis de carne e bom presunto...), física e mentalmente.  

Mas que boas férias.! A minha  única tarefa era dar instrução a um pelotão de mancebos, quase todos da região transmontana. Tudo muita boa gente,  a quem nunca conseguimos acertar o passo na marcha e muito menos sincronismo na ordem unida, de resto tudo bem…

Quando recebo a guia de marcha de Tavira para Chaves, pensei: "Bem!  Bom mesmo era fazer toda a nacional n.º 2, de Faro a Chaves, na minha (ou seja! do meu irmão) Zundap (estilo Che Guevara na sua poderosa)."

Mas, verdadeiramente radical foi fazer a viagem de comboio do Porto a Chaves (terra da Pedra Bolideira) (1) na admirável linha do Corgo, hoje desativad [., foto à esquerda]. 

Esta viagem só foi superada pela viagem que fiz na nacional n.º 222. no maravilhoso Douro Vinhateiro, com a minha Diane. (2)

Muitas histórias ouvi sobre a viagem de comboio do Porto para Chaves, em que os passageiros saltavam com este em andamento, iam apanhar umas uvas e, em andamento, voltavam a entrar. Constatei que a realidade superava as histórias que me tinham contado. As curvas e contracurvas quase que se tocavam passados uns quilómetros. Em dez quilómetros de  marcha na sinuosa linha avançava um na direção do destino.

Não obstante toda a informação recolhida sobre as peripécias da viagem, a surpresa foi avassaladora.

 Estava eu a saborear as belas paisagens e a respirar os puros ares, na plataforma do comboio (uma zona exterior estilo varandim),  quando o mesmo para no meio do nada, ouço um assobio, e de repente vejo-me rodeado de cabras por todos os lados. Uns quilómetros à frente, o comboio volta a parar, e, ao apito do pastor, de uma forma ordeira e organizada, o rebanho saiu, com um cumprimento efusivo da parte do revisor e do maquinista, denunciando estarmos na presença de passageiros habituais. Penso hoje que mais facilmente conseguiria sincronizar a marcha deste grupo do que o que tive à minha guarda no quartel de Chaves.

Contudo, sendo certo que nunca iria com estes homens para um  desfile militar, se pudesse escolher, era com certeza com esta gente que iria para a guerra. Gente simples, rija, com um coração do tamanho da Serra do Marão e capaz de tudo (mesmo de tudo!...) para defender um amigo.

Guardo com emoção a festa que estes maravilhosos homens fizeram aos três  graduados que lhe deram a instrução, pagando o jantar e oferecendo a cada um de nós uma lembrança. Foi um momento muito bonito e muito emotivo, particularmente para mim que já tinha recebido a mobilização para a Guiné bem como  guia de marcha para Estremoz.

Foi neste moderno e agradável quartel que tive o grato prazer de conhecer o pai do malogrado e excelente jogador de futebol do FCP,  Pavão, que teve morte súbita em pleno estádio das Antas no fatídico dia 16 de dezembro de 1973. (3).

Era sargento, excelente pessoa, mas rezava a história, no quartel e na cidade, sem grande jeito para os trabalhos manuais. Contava-se que um cão  rafeiro apareceu no quartel e logo foi adotado  por todos, desde o comandante ao soldado raso. Dado que o canino não tinha sitio para dormir e abrigar-se dos dias mais agrestes, foi decidido construir-lhe uma casota. Logo o bom sargento  se ofereceu para a tarefa, tendo sido feita uma coleta para comprar a madeira necessária para a obra.

O homem comprou a madeira e muniu-se das ferramentas necessárias, nas oficinas do quartel,  e dum projeto de casota elaborado por um habilidoso em desenho. Mede e volta a medir, corta aqui, corta ali, corta acolá, e montadas as peças nenhuma bateu certo com o projeto. Volta a medir a  cortar aqui,  a cortar ali e acolá, voltou a montar e ainda pior.

O comandante, que também tinha contribuído para a casota,  ao fim de uns dias, vendo que o cão continuava a dormir em todo o sítio manda chamar o sargento para saber da casa do cão. O sargento, muito constrangido, e à espera do pior, lá foi contando as peripécias da construção da dita casota acabando por confessar que nem tinha casota nem tinha tábuas. O bom comandante, dando uma grande gargalhada,  virou-se para o velho Sargento e diz-lhe: Áh! Homem do “diacho”, fizeste-me à tábua o que o diabo fez à “coisa”: para além de não construires a casota ainda me estragaste a tábua!...E assim nasce a alcunha do Sargento Neves – O estraga a tábua.

O Comandante do quartel era um bom homem, bonacheirão, preocupado com o bem estar de todos os seus homens… e até da mascote do quartel – o cão.  Fazia questão de manter o quartel, um lugar limpo e asseado, fosse as casernas o refeitório ou a parada.

Um dia, estava eu de sargento de dia ao quartel, vejo-o em altos berros, no meio da parada, a gesticular e a chamar por todo o pessoal de serviço. O primeiro a chegar fui eu, pelo que se vira para mim e me diz: 

  Você não está a ver que eu não consigo passar com este enorme tronco de árvore à minha frente! 

Eu  olhava para a frente do homem e não via tronco nenhum nem se quer um pequeno pau. O homem cada vez gesticulava e gritava mais,  pelo que temi que as minhas férias terminassem ali. Felizmente, um cabo já velhinho, chega perto de mim e diz-me: 

– Deixe  que eu resolvo.  

Vai ao chão e pega num fósforo, de madeira, que alguém inadvertidamente tinha deitado para o chão ao acender um cigarro... 

 Uff... –  disse eu para com os meus botões – nais  uma batalha ganha… siga a tropa...sigam as férias!


Chaves > Forte de São Francisco
Uma das tarefas que nos cabia, vai-se lá saber porquê (coisas da tropa!), era fazer guarda num forte em ruínas (forte de S. Francisco) (4) perto do quartel, todos os dias, estilo render da guarda à residência oficial da Rainha de Inglaterra... neste caso às lagartixas.

Dado o número reduzido de pessoal que aí fazia guarda e o recato do local, muitas histórias ouvi sobre as atividades noturnas que aí  tinham lugar.

Acabado de chegar ao quartel, fui escalado para comandar o pequeno grupo de homens (eu, um cabo miliciano e  cinco soldados), para ir render o grupo que  passou o dia e pernoutou no referido Forte de S. Francisco.

De manhã cedinho, depois de um bom pequeno almoço com pão sempre quentinho e muita manteiga a derreter-se no mesmo, formado o  grupo, lá fomos nós, todos catitas, a marchar até ao forte de S. Francisco.

Chegados à porta de armas, um soldado aparece ao portão, com um leve sorriso nos olhos brilhantes, e, baixinho diz-me ao ouvido: 

– O seu colega Ferreira pede  para aguardar só  uns segundos.

 Achei estranho, geralmente nestes casos já todo e pessoal costumava  estar à porta “mortinho” por se ir embora depois de 24 horas passadas naquele buraco. Aproximo-me mais um pouco do portão e vejo o Ferreira ainda a vestir as calças e uma loira  a esgueirar-se,  escondendo-se por trás dos soldados. Logo a seguir aparece  o Ferreira, com um sorriso de felicidade, com um malmequer bravio, colhido no forte, colocado na orelha e a cantarolar a celebre canção, hino do movimento hippie e do amor livre:  “Se vais a  San Francisco, leva flores no teu cabelo…”  

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Notas do autor:

(1)  Grande pedra, no caminho de Chaves a Bragança, que se move com um pequeno toque de um dedo.

(2) A Estrada Nacional 222 (EN 222) – considerada a estrada mais bonita do mundo - tem 226 km de extensão e liga o centro de Vila Nova de Gaia a Almendra, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, (todos deviam fazer, pelo menos uma vez, o caminho de Santiago e a Nacional Nº 222!)

 

Vista da EN 222 > Douro vinhateiro; De cortar a respiração. Bem disse Miguel Torga em S, Leonardo de Galafura: "um excesso da natureza"....

(3) Pavão, não de nascimento mas pela forma peculiar de jogar com os braços bem abertos.

(4) -  Utilizado como quartel general pelo general Soult no tempos das invasões francesas. Foi recentemente restaurada e recebe hoje um Hotel de 4 estrelas.

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Nota do editor:

Último poste da série > 3 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)


Guiné 61/74 - P21892: Parabéns a você (1932): Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21877: Parabéns a você (1931): José Brás, ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21891: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (3): O canhangulo

1. Lembremos a mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2021:

Meus caros amigos, combatentes.

O que vos mando é mais um capítulo do meu livro, para, caso entendam, o publicarem no nosso blog. Como é bastante volumoso poderá ser publicado de modo fatiado, admitindo até que algumas partes possam ser desinteressantes, logo não publicáveis.

Um abraço vos mando por esta via, com votos de saúde.
Carvalho de Mampatá.



3 - O CANHANGULO

O Samba era um soldado da milícia de Mampatá. Fazia parte do grupo de três ou quatro dezenas de civis armados da povoação, cuja missão principal era a defesa da população civil, perante um eventual ataque do inimigo. Todos eles tinham as suas famílias na localidade e ocupavam-se, paralelamente, dos seus afazeres, quase sempre, na cultura do arroz e do amendoim. Recebiam uma remuneração modesta do Exército Português, por participarem no esforço daquela guerra. Algumas vezes o dinheiro não lhes chegava até ao fim do mês, por isso, era frequente pedirem algum emprestado com a promessa de o devolverem, logo que voltassem a receber.

O Samba era um dos que me batiam à porta sempre que o mês se tornava mais longo que o dinheiro. Quando a importância era de valor muito residual fazia de conta que me esquecia, coisa que lhe agradava.
Da última vez tinha-me pedido setenta pesos, com a promessa de mos devolver, logo que recebesse, no fim desse mesmo mês. Passaram-se dias, semanas e até meses, e o Samba, sempre que o interpelava, respondia-me com aquela ingenuidade de quem acha que os prazos só são de cumprir quando se pode:
- Não pode ainda, eu tem filho doente, mulher está mal, espera mais.

Não tinha eu outro remédio, senão esperar.

Quase a acabar a minha comissão, já convencido que aquela dívida não seria mais cobrável, numa das minhas digressões pela tabanca, passei pela morança do Samba. Conversávamos do meu regresso a Lisboa, do fim da guerra, da revolução do 25 de Abril, abrigados pela sombra da cobertura de capim daquela casinha construída da forma mais primitiva que se possa imaginar, quando uma espingarda de fabrico artesanal, encostada a um canto me despertou a atenção. Pelo seu aspeto, coberta de poeira e um pouco desconchavada, não me pareceu que lhe merecesse muito apreço nem que lhe servisse de alguma coisa.
Para mim, aquele objeto ferrugento teria algum valor, se o mandasse restaurar por mãos habilitadas, quando regressasse às Medas. Mas era preciso que ele mo vendesse, coisa que me parecia muito provável quer pela amizade que havia entre nós quer por já não lhe servir de nada. Tomando-a nas mãos, como a mostrar-lhe o meu interesse por aquela arma inerte, perguntei-lhe se ma queria vender. Admirado pelo meu interesse numa arma que já não fazia fogo, agradado por me fazer feliz, como se me quisesse manifestar gratidão, recusou vender-ma, como se isso manchasse a nossa amizade.
- Se tu quer essa arma, leva ela pro Lisboa, eu não vendo, eu dá para ti.

Não tendo que lha pagar, sempre achei oportuno, declarar-lhe que, no mínimo, considerasse que já não me devia os setenta pesos, amortizados por aquele ato generoso e desprendido de sua parte. Só então, perante o seu ar de espanto, percebi que teria sido melhor não fazer referência à sua dívida, porque ele tinha-se desligado dela e só me pagaria num qualquer dia, se eu precisasse daquele dinheiro e a ele não fizesse falta.

Obrigado, amigo Samba, por me teres ensinado, que existem no mundo, outros paradigmas culturais, para além dos nossos conceitos ou preconceitos judaico-cristãos.
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21880: Projecto de livro autobiográfico, de António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) (2): Despejado na Guiné

Guiné 61/74 - P21890: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (39): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Fevereiro de 2021:

Queridos amigos,
Numa viagem de autocarro de Santarém para Lisboa, depois de cinco horas de aulas, e havendo que responder a várias questões postas por Annette, relacionada com episódios do quotidiano, praticamente silenciados a documentação que ele lhe envia, Paulo deu consigo a rememorar e simultaneamente a descobrir riquezas que a memória da guerra lhe tinha subtraído, era uma memória onde predominavam episódios bélicos, o torvelinho dos patrulhamentos, o interminável processo de reconstrução de Missirá e as melhorias de Finete.

 Afinal, em que termos ele fizera uma consistente relação de afeto e confiança com a gente da sua tropa? Fez um esforço, naquela viagem noturna de autocarro, uma luz se acendeu. As refeições tinham lugar na messe, naturalmente os arranchados eram os europeus. E deu-se o clique, a vigilância noturna nos postos de sentinela, podia ser antes do jantar ou na alta madrugada, sentava-se ao lado do vigilante em serviço, permutavam-se currículos, o que se tinha feito antes de andar para ali de armas na mão, o que se sonhava fazer depois, silencioso exercício em que se aprofundou a intimidade, antes de mais a confiança nesse alguém que os procurava como seres humanos, na sua identidade, na sua cultura e nesse aspeto assombroso que se desenvolveu depois da independência, a afabilidade.
 
Aqui se dá conta dessa memória recôndita que veio ao de cima na dita viagem de autocarro, e não só, também se fala nas vicissitudes do abastecimento, por pudor não se conta o muito que se ouviu em 
desabafos de arremedo de confessionário.
 
Aproximava-se a Páscoa, Paulo dá carta branca a Annette para organizar as delícias do reencontro. Tem sido sempre assim, ao longo de todo este amor à distância, e mal será se não foi assim, para estes dois sujeitos que estão permanentemente em palco e de quem nem suspeitamos como será o seu futuro.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (39): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon adorée Annette, escrevo-te um tanto à pressa, como bem sabes às segundas-feiras dou cinco horas de aulas em Santarém, vou praticamente a correr para a estação rodoviária, apanho o último autocarro para Lisboa, chego num afogadilho, tiro as coisas do frigorífico, meto no micro-ondas, janto cheio de apetite, pois almocei a correr num centro comercial ali perto, cerca de meia hora antes de começar a jornada da tarde. Aproveitei a viagem para ruminar o primeiro ano de comissão, já que tu concluíste todo o período de agosto de 1968 a agosto do ano seguinte. 

E súbito me ocorreu que nunca te falei num elemento importante que foi selando a minha amizade com as praças de Missirá e até com as milícias de Finete. Vejamos como. Vezes sem conta, pela noite fora, subia aos postos de vigia e conversava com quem estava de sentinela. Nunca me cansei deste tipo de comunicação. Explico porquê. Imagina um ponto alto, uma forma de guarita, telhada às três pancadas, suportada por fasquias de palmeira, constituída por bidons, um pequeno espaço que dá, quanto muito, para duas pessoas; para ali se sobe por uma escada tosca. Dava sinal da minha presença, subia e sentava-me ao lado da sentinela, a uma certa distância um petromax, um candeeiro que iluminava um ângulo da paisagem, sempre que subia ao posto ali ficava a contemplar a escuridão da mata, sempre à espera de ouvir uma hiena, e depois, conversava a ciciar, para dar proximidade ao meu interlocutor, contava-lhe o que fazia em Lisboa, falava-lhe da família, e com o passar do tempo a sentinela ia ganhando confiança, também me falava da sua família, do que ia fazer quando acabasse a guerra, foi nestes postos de sentinela que me ensinaram o que se planta na horta; quando se ceifa o capim para preparar o colmo das moranças; que Uam Sambu, mandinga do Oio, me descreveu a região altamente arborizada, e como era fácil ali se instalar a guerrilha, e como aquelas populações possuíam um elevado grau de espírito independente, nem Abdul Indjai, um mercenário que foi determinante nos êxitos do capitão Teixeira Pinto, os conseguiu fazer curvar; que Mamadu Baldé, o 86 da milícia, exprimindo-se num português próximo do imaculado, que passara quase dois anos nos hospitais de Lisboa a tratar braços e perna triturados à bala, me contava os seus passeios pela capital, não esquecera a Torre de Belém e visitara mesmo o Jardim Botânico Tropical, onde se lhe depararam bustos de guineenses; que Cibo Indjai, o mais indómito dos caçadores de porco do mato e de gazela, explicava que um caçador cheira o que o comum dos mortais não cheira na mata e lê na terra e no arvoredo o que o mais arguto e destemido guerrilheiro não sabe ler. Foi nestas vigilâncias, meu adorado amor, que se desenvolveu uma comunhão e confiança impossível de alcançar nas rotinas dos destacamentos, nos patrulhamentos que exigem uma severa concentração e absoluto silêncio, foi nesses postos de sentinela que procurei ler convicções, fidelidades, razões para lutar e para confiar em quem vinha de Portugal. Abençoadas noites de conversa, se pusesse em papel tudo quanto ouvi e quanto fui aprendendo, digo-te sem empáfia, tínhamos enciclopédia, um cacharolete da antropologia, etnologia, etnografia, história e algo mais. Há também o consultório sentimental, o ajudar a escrever aerogramas, ouvir desabafos… E, confesso-te, a prática de negligências que custaram caro. Tens aí o relato de um estimado furriel, um quase braço direito, fui descurando a sua exaustão, o seu definhamento. 

Um dia, imprevisivelmente, pegou numa espingarda, numa gritaria tresloucada, ameaçou abater quem não cumprisse as suas ordens, estava no meu abrigo a ver as contas da cantina e a preparar a escala do serviço noturno, saí na fornalha do sol, não eram mais do que três da tarde, e passei uma angustiante meia hora a avançar cautelosamente para ele, aquele homem vociferava, estridente ameaçava se eu desse mais um passo me abatia, procurei falar-lhe ao coração, e diante dele, num repelão, peguei-lhe na arma pela tapa-chamas, e no mesmo instante ele fletiu os joelhos e caiu redondo no chão. Foi evacuado, esteve em tratamento neuropsiquiátrico, demorou a recompor-se. E ainda hoje não sei qual foi a minha quota-parte de responsabilidade em não ter visto que ele se ia esgotando diante dos meus olhos.

E há episódios mil sobre a nossa alimentação. Lembras-te de te ter dito que os nossos abastecimentos eram altamente problemáticos, sobretudo na época das chuvas, mesmo dificultados quando as duas viaturas avariavam e fazíamos colunas de reabastecimento com sacos à cabeça, vasilhame nas mãos, pacotes de esparguete nos bolsos? Estive anos sem poder comer pé de porco, e temos uma receita em Portugal que eu tanto aprecio (é receita alentejana, pezinhos de coentrada), mas estivemos 47 dias confinados a barricas de pé de porco, acompanhado de feijão-verde enlatado, e quanto a bebidas havia leite achocolatado holandês e água Perrier ou de Evian, deu para não morrer de fome; foi na Guiné que comi o melhor bacalhau graúdo da Noruega, diga-se em abono da verdade. Quando acabávamos de comer, muitas vezes eu ficava deliciado a ver as crianças que auxiliavam na cozinha os nossos dois cozinheiros, Quebá Sissé e Umaru Baldé (este estudara no Senegal, insistia em servir-me com luva branca e ia-me chamar à morança em bom francês, que requinte!); comiam avidamente as sobras e uma vez fiquei assombrado a ver um dos miúdos a passar as mãos por dentro de um tacho e a dar as mãos a cheirar a outro, perguntei o que acontecera, e em toda a sua inocência a criança disse-me que gostava muito do cheiro do esparguete que não conheciam antes de chegar os brancos… 

As histórias multiplicam-se, meu adorado amor, desde as conversas em alta tensão com o chefe da tabanca que quase todos os dias me pedia uma coluna de reabastecimento ou me vinha informar existir uma caterva de doentes, as reuniões com o professor para avaliar a sua dedicação e que matérias estava a dar aos miúdos, que faziam uma parte dos seus estudos com o padre na escola corânica e a outra em regime estritamente secular, português, aritmética, umas ciências naturais aplicadas ao que as crianças viam no seu próprio meio, e o mesmo se passava com a geografia.

É uma questão de lembrança, estes temas aparecem avulsamente na minha correspondência e até nalgumas fotografias, entendi que esta obra de ficção não devia ser sobrecarregada com um tal tipo de impressões pessoais, os coletivos de Missirá e Finete parecem-me mais empolgantes. Até como tu podes ver, de julho a novembro sofremos flagelações, algumas delas muito estranhas, simples morteiradas, um bate-foge de quem parece limitar-se a fazer prova de vida e a demonstrar que ali vem quando lhe apetece, foram esses muito desgastantes, fui baixando a vigilância naquele rodopio de continuar as obras, mantendo a terrível cadência das idas a Mato de Cão, e assistindo impávido, impotente, à redução dos meus efetivos. 

Quando cheguei ao Cuor em agosto de 1968 era responsável por um pelotão de caçadores nativos e dois pelotões de milícias e mais alguns adventícios, cerca de 143 homens; um ano depois perdera quase 20% do efetivo inicial, iam-me tirando secções para novos destacamentos, sobretudo no Cossé. É provável que eu esteja a aliviar a minha consciência para decisões imprudentes que tomei, a mais grave delas foi a de, contrariando o apelo do motorista, ter-me posto na picada ao anoitecer naquele malfadado dia de outubro de 1969, de que em breve falaremos.

Estou completamente ensonado, prometo telefonar-te amanhã à hora do jantar, sei que estás em Bruxelas toda esta semana. Aproxima-se a Páscoa, o que significa que vou estar contigo, aproveitar as férias, amanhã já saberei o meu horário e vou imediatamente comprar o bilhete de ida e volta, se demoro custa-me os olhos da cara. Vivo sempre saudoso de ti, o que me vale é andar embalado de atividade em atividade, mas tal como tu já me começo a sentir desconfortado nesta casa onde tu não estás, mesmo que te dedique a minha escrita, a minha voz, o meu afeto, numa iluminação e num calor que iludem a nossa forçada distância. Bien à toi, Paulo
Rostos que Mamadu Baldé, o 86, nunca esqueceu, visitou-os no Jardim Botânico Tropical
Lavadeiras em Tombali, fotografia de João Sacôto, fico-lhe grato pela cedência
Estação liminigráfica de Ponta Varela, antes e durante a guerra
As ruínas da estação liminigráfica de Ponta Varela, em 2010
Caminhando num lamaçal, imagem retirada do blogue Guiné 1968/69, Recordações da Guerra, com a devida vénia
O bendito helicóptero, imagem retirada da Deutsche Welle, com a devida vénia
Uma pausa, mas a operação continua, imagem retirada de Roinesxxi, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de fevereiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21854: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (38): A funda que arremessa para o fundo da memória