sexta-feira, 23 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22128: 17.º aniversário do nosso blogue (1): Meu caro Luís Graça, tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer (João Crisóstomo, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 1439, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67)


1. Mensagem do nosso camarada João Crisóstomo, ex-Alf Mil, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67), com data de 20 de Abril de 2021:

Meu caro Luís Graça,

Tenho seguido como tantos outros camaradas o teu diário tratamento no Instituto de Oncologia. Se não te conhecesse ficaria admirado das tuas qualidades de homem completo, levado neste caso a um grau quase sublime.
Mas contigo e em ti todas as coisas extraordinárias são normais. Mais uma vez a tua vida e o teu exemplo são tremenda inspiração que para todos aqueles que tiveram/têm a data de te conhecer.

Pessoalmente, mesmo entre estes, eu me sinto um afortunado, pois quis o bom destino que além dos muitos elos que nos unem como camaradas da Guiné, se juntassem o facto de sermos vizinhos e termos como comuns amigos indivíduos também extraordinários que tanto têm enriquecido a nossa vida. Já hå muito nos tratamos como mano e irmão. Agora vejo com alegria grande que ao fim e ao cabo tu não és um mano e irmão apenas para mim e mais alguns: tu és um "querido mano" para todos os que têm o privilégio de te conhecer.

Sem intuitos de enaltecimentos ou de querer parecer bem fazendo-te elogios: Obrigado, meu querido mano, pelo que és. A tua vida a nível familiar e social é um exemplo fabuloso, uma verdadeira inspiração para todos nós. Pela tua vida, pelo teu trabalho, incluindo este blogue e tudo o que deste blogue resultou para benefício de cada um de nós, da história da Guiné, de Portugal e não só… de ti se pode com toda a verdade dizer “ porque deles é que reza a história”. Bem hajas!

Para ti e todos os teus, mas neste momento especialmente para ti, um apertado abraço, tão grande como a amizade que nos une

João, Nova Iorque


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PS: Para o caso de não teres visto, aproveito este para te mandar um artigo que acabei há momentos de ler no “Expresso curto”, escrito pela Cristina Figueiredo, editora de política da SIC, na rubrica "o que ando a ler".

Aqui está:

"Agora que se cumprem 60 anos sobre o início da longa e mortífera guerra colonial é boa altura para lembrar, sobretudo aos mais novos, o significado da palavra “Ultramar” para a geração dos seus avós.

A revista do Expresso trazia na semana passada um texto de Jorge Calado sobre as (poucas) fotografias públicas que há do conflito. Mas se faltam as fotos não faltam os livros. Um dos mais recentes é "Palco Sombrio", de Alice Caetano (Emporium Editora, setembro de 2020).
A ideia que preside à obra é original: dar um conteúdo improvável à expressão “teatro de guerra”, narrando um período do conflito nas colónias através do testemunho de um capitão miliciano que, coincidência aproveitada pela autora, também é encenador e ator.


Conheço bem o protagonista: Carlos Nery Gomes de Araújo é meu sogro (fica feita a declaração de interesses).

Foi, como tantos outros, mobilizado contra vontade para combater numa guerra em que não acreditava e de que não sabia se voltaria. Partiu para a Guiné, a bordo do Niassa, em maio de 1968, tinha 35 anos, um filho (o meu marido) com apenas um ano. Sem qualquer formação militar, a não ser o serviço militar obrigatório que cumprira 10 anos antes, foi treinado em Mafra “à pressão”, por quem pouco mais sabia do que ele. Foi no mato que aprendeu, a expensas próprias, como comandar homens, como reagir a ataques, como manter o sangue frio em situações que um técnico do Banco de Portugal, como ele, estava longe de imaginar ter de viver: “A primeira coisa que eu decidi naquela guerra é que não ia morrer ali. Decidi isto ainda antes de lá chegar e acho que foi essa decisão que me salvou. A mim e aos meus homens”.

Voltou intacto, com efeito, e sem ter perdido uma única das vidas humanas que tinha à sua responsabilidade.

Mais de meio século decorrido, uma escritora interessou-se por esta e outras histórias que compõem a sua biografia, indissociável do gosto pelo teatro, que não abandonou nem mesmo naqueles dois anos em África (terminou a sua comissão de serviço com uma encenação de “A Cantora Careca”, de Ionesco, em Bissau) e que continua a ser o seu “elixir da juventude”: aos (quase) 88 anos, é ator residente da Companhia Maior, em Lisboa, e prepara-se para subir mais uma vez ao palco (assim a pandemia o permita) no final do ano.

A sua vida, de facto, dava um livro. Alice Caetano teve essa presciência e em boa hora passou das musas… ao teatro".


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Comentário do co-editor CV:

Neste dia em que se vira mais uma página para um novo ano de existência, o 18º deste Blogue, não podemos deixar de cumprimentar, com uma vénia muito grande, o criador e mentor desta página, o nosso mano Luís Graça.
Embora ele e os seus colaboradores precisem já de uns suplementos vitamínicos, porque são já uns septuagenários cheiinhos de ferrugem, continuam animados e coesos para levar a sua missão o mais longe possível.

Ao Luís, quero desejar a melhor saúde. Presentemente está a precisar de uns retoques, mas no 18º aniversário estará já a cem por cento.

Aos nossos camaradas de armas, e aos nossos leitores em geral, desejo que continuem a acompanhar-nos nesta jornada que também inclui participação activa com o envio de textos e fotos.

Carlos Vinhal
Coeditor

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Notas do editor:

1 - Edição e inserção das imagens da responsabilidade do editor.

2 - Sobre a peça de teatro "A Cantora Careca", levada à cena em Bissau em 5 de Abril de 1970, vd. poste de:

4 DE SETEMBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P6935: A Cantora Careca, estreado em Bissau no dia 5 de Abril de 1970 (Carlos Nery)

3 - Neste dia de aniversário do nosso Blogue, vejam o Poste n.º 1 de:
23 de Abril de 2004 > Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22127: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Annette leva muito a peito a organização da comissão de Paulo Guilherme, mais, tem feito leituras sobre a história da Guiné-Bissau, aqui há uns tempos veio a Bruxelas uma comissão de guineenses para uma reunião de doadores, os senhores ficaram assarapantados quando uma intérprete deles se aproximou pedindo-lhes se era possível almoçarem juntos para eles a ajudarem a compreender certos aspetos da Geografia, da Etnologia, da tal guerra de libertação, que não se preocupassem com o rigor da exposição, ela estava a trabalhar para um romance e gostava muito de depoimentos de terceiros, pois quem estava a escrever o romance vivia com intensa paixão, a ela parecia-lhe demasiado, aquela paisagem era assim tão luxuriante, aquele verde tão denso, aquele território tão sulcado de água, a fauna e a flora tão espetaculares? E Annette depois contou esta conversa para Lisboa, os cinquentões estão mesmo em adoração, o romance enquanto ficção continua e dá força a este inesperado romance de amor em que se marcam os dias do calendário à espera de partir para Bruxelas, como se o repouso do guerreiro estivesse na incontornável Rua do Eclipse.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (49): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Annette, très adorée, depois de te ter escrito ontem fiquei a ruminar num conjunto de dados a que tu pedes clarificação, curiosa como és, não posso adiar as informações de que disponho, como cronista queres dispor de todos os elementos para respeitar a cronologia, eu já estou em Bambadinca, há que deixar solucionados os assuntos pendentes do Cuor. Fazes mais perguntas sobre Infali Soncó e Sambel Nhantá. Durante anos foi assunto que não me interessou. Até que regressei em 1990 à Guiné, descobri que o filho mais novo do régulo Malã, que era uma criancinha dos meus tempos de alferes de Missirá, era agora professor e mostrou interesse em conversar comigo. No ano seguinte, como já te disse, voltei uns bons meses com o estatuto de cooperante e então conversei muito com Abdurramane Serifo Soncó, hoje o meu querido irmão Abudu. Era então vivo o último filho sobrevivente de Infali, Alage Soaré Soncó que lhe contou a história do seu pai, aqui vai um resumo do apontamento que ele me entregou em janeiro de 1992. Infali era natural de Berrecolom (que significa Fonte de Pedra) da região do Gabú. À frente dos seus homens conquistou a região de Cumpone, em Boké, hoje na Guiné Conacri, aqui foi feito régulo. Viu-se permanentemente ameaçado pelos Fulas, era seu inimigo Alfa Iaia, de Conacri. Passados uns anos de ser régulo o seu tio Calonandim Mané, régulo do Cossé, região de Bafatá, que mantinha um pacto cordial com os portugueses, pediu-lhe apoio para conquistar o regulado do Cuor (nessa altura escrevia-se Kuôr), o régulo chamava-se Sabel Nhantá que vivia em Sansão. Infali e o seu tio cercaram a tabanca do régulo Sambel e ele fugiu. Os anciãos do local elegeram-no régulo e veio de Bolama o governador Lito Magalhães que o consagrou como régulo. Infali, depois do seu tio Calonandim ter sido morto no Enxalé por Balantas, foi vingar a sua morte, e impôs-se desde Enxalé até Porto Gole.

O régulo Infali envolveu-se numa grave questiúncula com um alferes português, chegou a estar transferido para a região de Fulacunda, voltou e revoltou-se contra os portugueses com o apoio de régulos da vizinhança do Cuor. Está aí a origem das campanhas de 1907-1908 para o derrubar, ele pretendia mais uma vez impedir a navegabilidade do Geba, seria um golpe muito duro nessa via comercial que se estendia até Geba, Fá e Ganjarra, últimos locais da presença portuguesa no interior da Guiné da época. Infali é afastado, substituído por Abdul Indjai, um colaborador muito estreito do capitão Teixeira Pinto, este também se mostrou desrespeitador da soberania portuguesa, foi afastado dos regulados do Oio e do Cuor e Infali perdoado.

Annette, eu lia livros que falavam de Sambel Nhantá, via mapas onde se falava de Sambel Nhantá e ninguém sabia dizer-me onde era esta povoação. Estava ainda no Cuor e um dia perguntei ao régulo Malam onde estavam sepultados os seus ancestrais e ele disse-me prontamente que estavam sepultados em Sansão, era esta a tabanca de Infali e do pai de Malam, Bacari. Fomos até lá, de facto havia umas estacas de pé, propus ao régulo que se pusesse tudo em ordem e deixámos cimentados os locais. Minha adorada Annette, creio que era esta a informação que tu me pedias sobre os Soncó. Enviei-te pelo correio o caderninho de apontamentos das minhas conversas com o irmão do régulo, o padre Lânsana, foi ele que me ensinou o nome das diferentes árvores, as caraterísticas das trovoadas e dos tornados, o nome correto dos legumes que são cultivados nas hortas dentro e fora das aldeias. Nesse caderninho também poderás verificar o tipo de compras que fazíamos nas despensas de Bambadinca, não havia legumes frescos, era tudo enlatados, verificarás que comprávamos esparguete e outras massas, salsichas e chouriço (era impraticável comprar fiambre, deteriorava-se rapidamente com aquele clima), arroz, um pouco de feijão e grão, conseguíamos com certa regularidade comprar batata e cebola e tinha muito bom bacalhau, barricas com pé de porco, latas de dobrada – no fundamental era isto. Não se podia beber água da fonte, bebíamos todos água engarrafada, recordo-me que era água Perrier e Evian. Daí a certa monotonia alimentar.

Estranhaste uma história que escrevi à minha irmã sobre um acidente bizarro que se passou na primeira emboscada noturna que fizemos em novembro, bem perto do aquartelamento de Bambadinca. Recordarás que Bambadinca foi flagelada em maio desse ano e que se criou um sistema defensivo que passava por montar emboscadas nos principais pontos de acesso, uns vindos da região de Mansambo, outros da região do Xime. Tu perguntas-me quem era este Arnaldo Lima, eu nunca te tinha falado neste furriel. É verdade que nunca o mencionei, era um homem sem escrúpulos, sempre a inventar dores de cabeça ou a pretextar problemas de ouvidos e dentes, para fazer estadias em Bissau. Era mais ausente do que presente, adoecia na véspera das operações, não gostava da contabilidade, alegava nada saber sobre construção ou reparação nos quartéis, chegava ao cúmulo de quando ia fazer patrulhamentos em Finete se ausentar para Bambadinca (ali era mais seguro…). O Lima era para todos nós um fardo, um amoral. Depois naquela noite fui com ele e vinte homens e passei algumas das horas mais insólitas da minha vida. Selecionámos uma força de sensivelmente 20 homens, marcámos a hora de saída do quartel, e começámos a caminhar em direção de Undunduma, era aí que se ia montar a emboscada. Ter-se-ia progredido um quilómetro em que só se ouviam as nossas passadas a esmagar o saibro e subitamente ouviu-se um urro medonho a atravessar a noite, deu prontamente para perceber que não estávamos a ser emboscados nem houvera mina. Fui logo para o local da gritaria e ali estava o Lima estatelado no chão a gemer, não consegui perceber logo o que se tinha passado até que Ussumane Baldé me chamou a atenção para o braço direito do Lima, fui ver e ele tinha o dedo mindinho dentro do tapa-chamas da G3. Não levávamos maqueiro, procurou-se remover o dedo, a gritaria não parava. O que acontecera fora simplesmente que ele escorregara e o mais improvável dos acidentes acontecera, ao cair meteu o dedo mindinho e da arma não saía. Para pôr termo àquela bulha, com toda a gente a dar palpites, regressámos prontamente ao quartel, por prudência retirei-lhe o carregador da arma, o grupo avançou para a enfermaria, o Lima sentado, o rosto desfigurado, o braço direito todo esticado com a arma em cima da marquesa, fui a correr chamar o médico, o meu querido amigo David Payne, de quem já te falei. O David entrou na enfermaria, olhou para o insólito da situação, o facto é que o dedo ia inchando e todas as tentativas para pôr o dedo cá fora falhavam. O David tudo tentava, o rosto inundado de suor, até pôs a hipótese de lhe cortar o dedo, o Lima aí levantou-se aos berros, que não, que estava pronto a aceitar todas as dores até se encontrar uma solução para manter o dedo inteiro. Entrou o alferes sapador, o Mena Reis olhou, saiu e voltou com umas varetas e começou a esgravatar à volta do tapa-chamas, o Lima insultou-o, o Mena Reis enfiou-lhe um estalo, vi jeitos do Lima afocinhar no chão com a G3, lá o endireitámos e pusemos braço e G3 na marquesa. Alguém mais inspirado lembrou-se do primeiro-cabo desempanador Alexandre, talvez ele tivesse uma boa resposta para este imbróglio. Estou a vê-lo entrar na enfermaria, alto e magricela, com um ar esgrouviado, avançou de olhos bem abertos para o Lima e para o seu braço e para a G3 e foi lesto a responder que a primeira coisa a fazer era desatarraxar o tapa-chamas, o Lima ainda ensaiou um impropério, o Alexandre não teve para os ajustes, segurou-lhe bem o braço, trazia com ele um outro ajudante que foi removendo lentamente a G3, operação morosa mas bem sucedida, o dedo tinha a falangeta quebrada, com fratura exposta, o David Payne deu-lhe um calmante, o Lima voltou a Bissau, era o local que ele mais apreciava para passar a sua comissão e nós voltámos para a emboscada na região de Undunduma. Annette, acredites ou não, um dedo mindinho pode enterrar-se dentro de uma espingarda, e é o cabo dos trabalhos salvar um dedo.

Trago-te agora talvez uma boa-nova. Recebi três convocatórias e duas delas têm a ver com reuniões em Bruxelas, melhor, há um seminário em Gand, um dia inteiro para falar dos novos desafios da automedicação, isto em representação da Confederação Europeia dos Sindicatos, dois dias em Bruxelas para a assembleia-geral da Associação Europeia dos Consumidores, precedida na véspera de uma audição promovida pelo Parlamento Europeu com o Comité dos Consumidores sobre matérias inerentes à regulamentação do rótulo ecológico e as alterações na legislação das viagens organizadas. Tudo isto vai acontecer na última semana de abril. Não podes imaginar a felicidade que sinto em voltar para ti. Até lá, tenho que trabalhar quase a dobrar, dar aulas suplementares, produzir papéis, o Gilles Jacquemain manda-me diariamente novos elementos para o nosso relatório. E estamos num período de trabalho aqui no Instituto do Consumidor, eu coordeno o Concurso Europeu do Jovem Consumidor, são muitos os contatos com as escolas, há muitos textos a traduzir e a enviar para estes estabelecimentos de ensino. Infelizmente são escassas as dezenas de inscrições, mas isto também vai significar deslocações para falar com os professores e com os alunos que estão envolvidos no concurso.

Os meus filhos andam bem, são estes novos tempos da precarização, é um mundo que nada tem a ver com aquele em que nós, então jovens adultos, nos lançávamos no trabalho, havia outras regras, outras seguranças, agora é tudo sorrisos numa cortesia abstrata, desalmada.

Telefono esta noite, e amanhã, e depois. A almoçar ou a jantar, sinto que às vezes era bom que tu ali estivesses para partilharmos a conversa com os outros convivas. Não descuro o que me propuseste de nos reformarmos mais cedo, por ora só vejo obstáculos, mas são tantos e tais os lenitivos de poder estar na tua companhia todos os dias, basta este pretexto das coisas da Guiné, basta esta atividade que desenvolvo com os meus colegas europeus e na minha participação associativa, e até mesmo como funcionário público, que me permite andar sempre em ânsias para viajar até Bruxelas e entregar-me a ti de alma e coração. Bisous, multiplicados por mil, minha inesquecível companheira e adorada mulherzinha, bien à toi, Paulo
Infali Soncó, régulo do Cuor, sentado no centro, durante conversações com tropas portuguesas
É um livro admirável, relata ao pormenor a campanha no Cuor para submeter Infali Soncó, em 1908
Bambadinca, ponte do rio Udunduma, fotografia do blogue
Uma imagem que não carece de comentários
Guiné Portuguesa, Bilhete postal, Pescadora (Papel). Edição: Agência-Geral do Ultramar.
Guiné Portuguesa, Postal Ilustrado, Rapaz Balanta (Bissau). Ed. Foto SERRA, Bissau
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22108: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (48): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22126: Fotos à procura de... uma legenda (148): acidente com a jangada do Cheche, no passado dia 21... (Patrício Ribeiro, Impar Lda, Bissau)












Guiné-Bissau > Região de Gabu > Rio Corubal > Cheche  [ou Ché-Ché] > 21 de abril de 2021 > Acidente com a jangada: queda de um camião ao rio, ao entrar na jangada, do lado de Béli.  Trânsito interrompido dos dois lados.


Fotos (e legenda): © Patrício Ribeiro (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Português, natural de Águeda (1947), criado e casado em Angola, com família no Huambo, antiga Nova Lisboa, ex-fuzileiro em Angola durante a guerra colonial, a viver na Guiné-Bissau desde meados dos anos 80 do séc. XX, fundador, sócio-gerente e director técnico da firma Impar, Lda.

Tem também uma "ponta", junto ao rio Vouga, Agueda, onde se refugiou agora, fugindo da pandemia de Covid-19: é o português que melhor conhece a Guiné e os guineenses, o último dos nossos africanistas: tem mais de uma centena de referências o nosso blogue; "irreformável"!, está à espera de receber a 2ª dose da vacina anti-Covid para voltar àquela terra verde-rubra que tem sido a sua paixão de uma vida.




1. Mensagem de Patrício Ribeiro:

Date: quinta, 22/04/2021 à(s) 20:13
Subject: Jangada do Ché che

Luís:

Só para informar que desde ontem, dia 21 de abril, a jangada do Ché Ché, não funciona. Caiu um camião ao rio, ao entrar na jangada, do lado de Béli. E como sabemos, a jangada continua a ter um cabo único, que a liga entre as margens.

Vão tentar rebocar o camião que está dentro do rio Corubal, com um camião mais forte e cabo de aço, para o lado de Canjadude [, a Norte]. Do lado do Boé [,a Sul], não há camiões com capacidade para o reboque, a fim de a jangada poder encostar à rampa do lado de Beli, e retirar as diversas viaturas, que se encontram retidas no Boé, para Nova Lamego.

Entre essas viaturas, está a da nossa equipa [, da Impar Lda,] , que vai dormir por alguns dias, na margem do rio ... Como estamos no "Jejum", só há comida à noite. Eles não levaram água, nem há rede de telefone, no Boé ... e como são todos balantas, lidam mal com a falta de bianda, durante o dia.

Se não for possível nos próximos dias a jangada funcionar, vão ter de dar a volta por Madina do Boé e Contabane, pela picada com muitos quilómetros , que se encontra em muito mau estado, e que eu conheço bem.

Não é necessário mandar nenhuma TV, porque já têm a notícia ... Ver a foto acima.

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com

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Nota do editor:

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22125: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (29): E por favor nem me enganem, são favas suadas, não são ervilhas, muito menos escalfadas... (Luís Graça)




Alfragide > 21 de abril de 2021 > "São favas suadas, senhor, não são ervilhas"... Segundo uma receita antiga da minha mãezinha, adoptada e apurada pela "chef" Alice..

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2021). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Ontem, confesso que pequei. Comi ao almoço um prato de favas suadas, um dos pratos do meu "top ten" gastronómico.  (Bem, senhora doutora dr, Ana Pimental, não foi bem um prato, foi um pratinho, juro pela minha rica saúde, de resto aí está a foto para o comprovar; mas sei que me vai puxar as orelhas na 3ª feira). Claro que, a seguir, "paguei as favas": não há crime sem castigo... Mas,  se não houvesse pecado na terra, a vida seria uma sensaboria (*)... 

O doente, submetido a radioterapia externa sobre a próstata, sabe que tem dois meses de amargura enquanto lá andar: tem que chegar ao IPO de manhã, "com o reto limpo e cheia a bexiga"... e deixar trabalhar a "radioterapia amiga" (**)... 

Além de beber muita "a(u)guinha da torneira", tem de "evitar" uma porrada de alimentos, nomeadamente os que provoquem obstipação e gases... A lista de proibições mata, logo à nascença, qualquer pobre candidato a pecador: pão branco (que, felizmente,  não gasto), cereais, amêndoas e nozes (de que sou fã), vegetais (ervilhas, feijões, couves, espargos, cebolas, alhos, e logo por azar favas, de que um perdido: como-as, só na época, mas uma meia dúzia de vezes); gorduras, fritos e  refogados: picantes, piripiri, pimentas de todas as cores (que também não gasto, as pimentas); mariscos (que adoro); fruta (laranja, limão, quivi, ananás, banana, morango, cereja, etc., etc.) (comia 4 peças de manhã, ao pequeno almoço, com iogurte natural, há 2 meses atrás); saladas (com tomate e azeitonas), e por aí fora...

Pior ainda: só "a(u)guinha", nada de bebidas alcoólicas,  muito menos cerveja e vinho branco (que é muito diurético)... E café, camarada, só três no máximo por dia (o que é um castigo para quem bebia seis).

Mas chega de desgraças: as favinhas suadas estavam - como eu hei de dizer ? - "queirosianas"... Mas a receita que o Jacinto, de "A Cidade e as Serras", provou e aprovou (, o "arrroz de favas", que fica  para a eternidade associado à Quinta de Tormes),  não tem nada a ver com as "favas suadas" da minha mãezinha, Maria da Graça, que era da Estremadura, e mais exatamente da Lourinhã....  A "chef" Alice, que é vizinha do Jacinto, adotou a receita e apurou-a. No Douro, não se faziam favas suadas no seu tempo de menina e moça, tal como não se comia lavagante ou arraia seca... e a sardinha era para três!).

Não sei se estas favas suadas são as melhores do mundo: de resto, meio mundo detesta favas... mas já pus no meu "testamento vital" uma das minhas últimas vontades (, não podem ser muitas, que não há tempo depois para cumpri-las todas): na véspera de eu morrer (, e oxálá seja num dia primaveril como o de ontem!), que me deem um prato de favas suadas!... 

E, por favor, não me enganem: são favas, e suadas, não são ervilhas, muito menos escalfadas. E têm que ser frescas, e descascadas uma hora antes... E se eu ainda puder ajudar (, o que deverá ser altamente improvável), sou eu que faço questão de descascar as favas... como sempre o fiz, com competência e paciência!... (Há quem goste de comer favas, mas não de as descascar.)

A cozinheira, essa, só pode ser a "chef" Alice, a quem também já pedi para, depois,  me mandar enterrar numa anta do meu país megalítico (***)... 

Enfim, espero (, mas, se calhar, é pedir demais à vida!),  poder ainda dizer, mesmo que seja baixinho, com a voz a sumir-se, antes de bater a bota: "Chita, as tuas favinhas souberam-me pela vida, como se dizia em Candoz... Ámen".

PS - A expressão "saber pela vida" , muito usada pelas gentes do Norte, e nomeadamente pelas mulheres, é deliciosa, e não se aplica só aos "comes & bebes"... Só encontro um equivalente na expressão do crioulo da Guiné, "manga di sabi".

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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22105: No céu não há disto... Comes & bebes: sugestões dos 'vagomestres' da Tabanca Grande (28): sável frito com açorda de ovas, à moda da "chef" Alice, inspirando-se na gastronomia de Vila Franca de Xira

(**) Vd. poste de 19 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22115: Manuscrito(s)(Luís Graça) (200): Soneto do paciente do IPO - Lisboa, dedicado à equipa da unidade 3 do serviço de radioterapia que cuida de ti com gentileza, humanidade e competência

(***) Vd. poste de 5 de setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10332: Blogpoesia (198): Uma estranha maneira de dizer adeus (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22124: Recortes de imprensa (116): a série Memórias da Guerra, que está a ser emitida esta semana, desde o dia 19, no Telejornal, da RTP

Memórias da Guerra. 


Há 60 anos começava um dos acontecimentos com mais impacto na História recente portuguesa: a guerra colonial.

Entre 1961 e 1974 foram mobilizados para Angola, Guiné e Moçambique mais de 1 milhão de militares.

"Memórias da Guerra" é uma série de reportagens sobre pessoas anónimas que tiveram as suas vidas atravessadas pela guerra colonial.

Créditos: Ana Luísa Rodrigues - Jornalista; Diogo Martins e Rui Cardoso - Imagem; Carlos Felgueiras e Sousa - Edição.

Fonte: RTP > Memórias da guerra (com a devida vénia...)


Memórias da Guerra.

[1] O primeiro contingente enviado para Angola

RTP, Telejornal, 19 de abril de 2021 (vídeo: 6' 36'') [Apareceu às 20:54]

Sinopse: 

Custódio Soeiro, natural de uma aldeia do concelho de Arouca, foi um dos soldados anónimos do primeiro contingente militar enviado para a Guerra Colonial em Angola.

Embarcou precisamente há 60 anos e foi nessa altura que a sua história pessoal se cruzou com a História de Portugal.

Esta é a primeira reportagem da série Memórias da Guerra, a emitir esta semana no Telejornal.

Memórias da Guerra. 

[2] As feridas físicas e o stress pós-traumático que persistem

RTP, Telejornal, 20 de abril de 2021 (vídeo: 5' 48'') [Apareceu às 20:45]

Sinopse: 

Os 13 anos de guerra colonial - em Angola, Guiné e Moçambique - provocaram cerca de 15 mil deficientes. Além das feridas físicas e motoras, há também 50 mil ex-combatentes a sofrer de stress pós-traumático. Muitos vivem ainda numa guerra que os acompanha para a vida.

https://www.rtp.pt/noticias/pais/memorias-da-guerra-as-feridas-fisicas-e-o-stress-pos-traumatico-que-persistem_v1313808

Memórias da Guerra. 

[3] As enfermeiras paraquedistas


RTP, Telejornal, 21 de abril de 2021 (vídeo: 5' 29'') [Apareceu às 20:50]

Sinopse:

A Guerra Colonial mobilizou mais de um milhão de militares, quase 90 por cento dos jovens portugueses. Na época, era raro encontrar famílias sem alguém na guerra ou que já tivesse cumprido comissões militares. Houve também mulheres no conflito.

Em África, enfermeiras paraquedistas. Em Portugal, muitas faziam as tarefas até aí feitas por homens.


[Foram entrevistadas as nossas amigas e camaradas da Tabanca Grande Maria Arminda Santos e Rosa Serra por sugestão nossa, feita à jornalista Ana Luisa Rodrigues que nos contactou há um mês com o seguinte pedido: 

 (...) "O meu nome é Ana Luisa Rodrigues e sou jornalista da RTP. Estou a preparar para o Telejornal da RTP1 algumas reportagens para meados de abril sobre os 60 anos da guerra colonial. Sei que dirige um dos mais antigos e visitados blogues sobre o tema e onde há muitos testemunhos e informação. Tendo isso em conta, gostaria de trocar algumas impressões consigo, é possivel?" (...)]

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Nota do editor:

Último poste da série > 19 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22116: Recortes de imprensa (115): Relembrando o nosso saudoso amigo e camarada de armas José Eduardo Reis Oliveira (JERO) (Jornal Público de 18 de Abril de 2021)


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22123: Historiografia da presença portuguesa em África (259): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
 
Se ainda subsistissem dúvidas quanto à ténue presença portuguesa na Guiné nesses anos de 1840, veja-se o mapa elaborado por Chelmicki, é perfeitamente claro que só entrámos  no interior da Guiné muito depois da Convenção Luso-Francesa de 1886. 

Atenda-se ao que Chelmicki escreve sobre o estado de degradação das fortalezas, praças e presídios, como tínhamos sido afastados dos rios Senegal e Gâmbia, como não havia agricultores, exclusivamente comerciantes no território. Reclama a vinda de colonos, que viessem da Holanda, da Suíça ou da Alemanha, que se trouxessem os degredados para trabalharem na agricultura, que construíssemos fortalezas ou fortins, e assim se dilatasse a fronteira marítima, que ocupássemos o arquipélago dos Bijagós...

Chelmicki não tem dúvidas, a Guiné devia ser uma colónia de exportação, ter café, arroz, anil, algodão, açúcar, bens preciosos para dar expediente às produções das nossas fábricas. Na Guiné estava tudo por fazer e a ameaça francesa no Casamansa crescia, de dia para dia.
 
Esta corografia cabo-verdiana é um daqueles relatos indispensáveis para se conhecer com mais rigor o que era a Guiné Portuguesa em meados do século XIX.

Um abraço do
Mário


A carta da Guiné Portuguesa, 1843

Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (1)

Mário Beja Santos

No cômputo dos relatos essenciais ainda da primeira metade do século XIX, relativamente à Guiné Portuguesa, seria imperdoável silenciarmos o trabalho rigoroso do então Tenente do Corpo de Engenheiros José Conrado Carlos de Chelmicki (1814 - 1890, na foto à esquerda), um polaco que decidiu vir para Portugal e embrenhar-se na causa liberal, apaixonou-se pelo estudo do Império, esta Corografia Cabo-Verdiana é prova provada. 

O tomo I foi editado em 1841, ao tomo II, publicado também em Lisboa em 1843, associou-se um brasileiro de ascendência alemã, também engenheiro militar, diplomata e historiador, Francisco Adolfo de Varnhagen.

Chelmicki, como é óbvio, centra o seu trabalho no arquipélago cabo-verdiano, a Senegâmbia era matéria residual. Traz, no entanto, observações muito peculiares, e as suas críticas revelam uma grande paixão por aqueles dois pontos de África. 

Começa por dizer que a costa da Guiné era para os antigos portugueses um espaço compreendido entre o Rio Senegal e a Serra Leoa. Faz um escorço histórico sobre a região continental, diz que no ano de 1446 Cadamosto e António de Nola fizeram uma segunda viagem para completar o descobrimento do rio Gâmbia. Foi nesta viagem que descobriram S. Filipe, Boavista e Maio, só depois é que reconheceram o Rio Gâmbia. Passaram pelo rio Casamansa, o Cabo Roxo, o rio de S. Domingos ou Cacheu e a boca do Rio Geba e ao regressar a Portugal ainda fizeram o reconhecimento de algumas ilhas dos Bijagós. 

Chelmicki atribui o estado de degradação a que chegou Cabo Verde e fundamentalmente a ruína em que estão os presídios e as povoações com presença portuguesa à administração dos reis Filipes. Segundo ele, ainda em 1650 o distrito da Guiné começava no rio Sanagá (Senegal) e ia até ao distrito da Serra Leoa, havendo povoações de portugueses nos rios de S. Domingos, Geba, Rio Grande e Rio Nuno, mas Portugal tinha perdido os melhores rios, caso do Senegal e Gâmbia. Procede à apresentação de um limitado roteiro desde o norte do Rio Casamansa até ao Cabo da Verga. Depois de uma descrição muito cuidada do Casamansa e do litoral da região dos Felupes, chega-se ao Rio Cacheu e Chelmicki dá-nos um belo apontamento, aqui fica uma nota:
 
“Vinte léguas acima da foz do Rio Cacheu ou de S. Domingos está a praça de Cacheu. Do Sul à primeira terra defronte de Bolor é a Mata de Putana, ponta cheia de arvoredo e é terra de Felupes. Daqui para Bissau há três caminhos. Primeiro, entre a terra dos Felupes e Papéis; segundo, por fora, pelo Canal das Caravelas ou pelo Canal das Âncoras; terceiro, partindo da Mata de Putana, passando pela terra dos Felupes até à Ponta das Cabaceiras”.
Ilustração do livro Corografia Cabo-verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, imagem da Vila da Praia

A Guiné Portuguesa estava dividida em dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu. Seguindo a sua situação geográfica, passa à descrição dos nossos presídios e pontas ali situados, no distrito de Cacheu destaca Zinguinchor, Cacheu, Bolor e Farim. No distrito de Bissau menciona a Fortaleza de S. José, Bolama, Ilha das Galinhas, Fá, Geba, Guinala e outras ilhas dos Bijagós. Entrando no que hoje classificaríamos como análise dos recursos, não perde a oportunidade para falar do estado em que se encontram os edifícios portugueses:
 
“Miseráveis fortins, que fora do alcance da sua artilharia não exercem influência nenhuma, e os portugueses estabelecidos preferem o ganho fácil nas trocas de géneros à nobre, honrada e já tão adiantada arte de cultivar a terra. A fazenda de D. Rosa de Cacheu, no Poilão do Leão, é a única que existe nos limites da Guiné Portuguesa”.

Sempre que pode, apela a quem o lê para que se intensifique a colonização dos brancos, que se divulgue a prosperidade da terra. Mas é muito duro nas suas observações, como escreve:

“Eis aqui o que nos resta depois de 400 anos de posse: miseráveis presídios, nenhuma indústria, falta de comércio e de cultura. E não podia deixar de chegar a este deplorável estado de ruína. Tudo, tanto nas ciências e artes, como nas administrações, não tendo melhoras, não tendo progressos, ficando estacionário, em breve é retrógrado. Portugal com os olhos fitos no novo hemisfério com a riqueza de minas, não se importou com as possessões africanas. Aquelas estão perdidas já para sempre, mas com estas que ainda existem na posse, Portugal em poucos anos, com boa administração, tornará a ganhar o seu antigo esplendor. Consideremos as possessões de Guiné como colónias comerciais e agrícolas. Elas estão em muito melhor situação que as inglesas e francesas. Cinco grandes rios, como o de Casamansa, S. Domingos, Geba, Rio Grande e Nuno, navegáveis muito para o interior, oferecem fáceis meios de comunicação, boas vias de comércio e uma fronteira natural de um país que facilmente se pode ocupar e converter para cultura de plantas indígenas, que nos fornecerão produtos que com tanta despesa e trabalho procuramos fora.

Ocupando as embocaduras destes rios com pequenos fortes, cuja construção muito pouco custará ao governo, em razão da sua utilidade, dilataremos a fronteira marítima desde o Rio de S. Pedro até ao Cabo da Verga, e proibindo de facto a exportação dos escravos de toda esta costa, os habitantes voltarão às pacíficas ocupações de agricultura. Os terrenos obtêm-se com facilidade dos indígenas: então devem ser repartidos em grandes sesmarias, a proprietários ricos, zelosos do bem público e inteligentes nos seus interesses. Mandem-se vir colonos da Holanda, Suíça e Alemanha, donde eles trarão a indústria e civilização, e aumentarão assim a população branca sem diminuirmos a do reino. Favorecendo o governo os açorianos, eles hão de preferir estabelecer-se aqui, e com trabalho, sabendo que o ganho é deles, enriquecer-se em pouco, do que servirem de escravos brancos aos brasileiros. A Guiné Portuguesa deve ser uma colónia de exportação de produtos agrícolas. 

O estado atual da Guiné é como na descoberta, ou pior ainda, pois sem haver nenhuns melhoramentos, vestígios de mão europeia. Tudo está por fazer. Assim, da imediata precisão, é ocupar o Ilhéu dos Mosquitos na foz do Casamansa como obter a cessão de Sedhiou, ponto que no mesmo rio ocuparam os franceses, violando os tratados inclusive o de 1814 feito em Paris, onde claramente se considera este rio de Casamansa como pertencente unicamente à Coroa Portuguesa. Simultaneamente, deve ocupar-se a embocadura do Rio Grande e Rio Nuno, formar um estabelecimento em Bolama e Ilha das Galinhas e pôr uma guarnição nos Ilhéus do Rei e em Bandim, como também no sítio chamado Poilão do Leão. Tomando nós solidez neste país, que obter-se-á por meio da agricultura, tendo a supremacia de facto, quem nos poderá proibir explorar estes tesouros de África?”

E termina assim:
 
“Eis a descrição geográfica da província das ilhas de Cabo Verde e costa da Guiné, no desgraçado estado em que está atualmente. Oxalá que o sábio Congresso Legislativo atenda como convém e é de esperar, à justa, mas triste e humilhante comparação que fez o Visconde Sá da Bandeira das nossas colónias com a do Cabo da Boa-Esperança, que tanto aumentou em riquezas e população branca”.

E a descrição prossegue, e é verdadeiramente interessante.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de Abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22102: Historiografia da presença portuguesa em África (258): Diogo Gomes, um navegador e diplomata do século XV, na publicação "Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais", edição do Ministério das Colónias, Junta de Investigações Coloniais, 1950 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)


Foto 1 > fonte: Citação:
 (1973), "II Congresso do PAIGC, na Frente Leste" [18 a 23 de Junho de 1973], Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44115, com a devida vénia.

 


Imagem de satélite do itinerário entre Boké e Gaoual, com 151 kms (google.com; hoje), localidades da República da Guiné, sinalizando-se, ainda, algumas das povoações da região do Boé (Boé, Béli e Lugajole) situadas no Sudeste do território da Guiné [GB].





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Tem cerca de 290 referências no nosso blogue.


 

GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

UM OUTRO OLHAR SOBRE O "LOCAL MISTERIOSO" DA PROCLAMAÇÃO SOLENE DO ESTADO DA GUINÉ-BISSAU, EM SETEMBRO DE 1973, EM PLENA ÉPOCA DAS CHUVAS

PARTE II

- AS PRIMEIRAS "ACÇÕES" E O ESTUDO DAS ACESSIBILIDADES ('CORREDORES') NA FRONTEIRA DO BOÉ, EM JUNHO DE 1964 -

 


► Continuação do P22106 (I) (15.04.21) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Conforme ficou expresso no P22106 (15Abr21), que serviu de lançamento do projecto de "reconstrução historiográfica do puzzle do Boé" e zonas limítrofes (a que for possível…), seria interessante poder encontrar provas factuais sobre a incógnita, a misteriosa, a obscura ou a enigmática localização onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», durante a qual teve lugar a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», assim como o da realização do «II Congresso», que legitimou o evento anterior. 


Enquanto tal não acontecer, estes dois factos continuam a ser considerados como "embustes históricos", por fazerem parte do "imaginário político e maquiavélico do PAIGC".


Porque nos documentos consultados, relativos ao desenrolar das duas cerimónias, não existem quaisquer referências à variável "clima" (ventos e chuva), o mesmo acontecendo nas imagens das curtíssimas e cirúrgicas reportagens fotográficas a que tivemos acesso, as suspeitas manter-se-ão inalteráveis, uma vez que ambas foram organizadas em "plena época das chuvas".



Por outro lado, ainda que tenhamos procedido à leitura das narrativas que constituem o vasto espólio existente no Blogue, com início no P3911, de 18Fev2009 (já lá vão doze anos!), o objectivo não é repeti-las, embora a elas possamos recorrer, sempre que necessário, como fonte primária de informação. 


O que está implícito neste "desafio de resiliência" é percorrer "outros (novos) caminhos, trilhos ou picadas da Região do Boé", ou com eles relacionados, sinalizados na análise hermenêutica dos documentos disponíveis nos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), aos quais se adicionam algumas "peças jornalísticas" apoiadas em factos relevantes, e na sua triangulação, por serem as únicas hipóteses que hoje dispomos, pois as outras, as do "terreno", já não são exequíveis.


Como primeiro exemplo do que acabámos de descrever, está o facto de no âmbito das "Comemorações do 42.º Aniversário da Independência da Guiné-Bissau" (1973-2015), o jornalista guineense (creio) Lassana Cassamá, correspondente da VOA – organização internacional de notícias multimédia dos EUA, ter referido que Teodora Inácia Gomes [foto 1], nascida em 13 de Setembro de 1944, em Empada, região de Quinara, militante e dirigente do PAIGC desde 13 de Junho de 1964, ter feito "parte das poucas pessoas que procuraram e encontraram o local da proclamação da Independência Nacional, entre Luís Cabral (1931-2009) e Nino Vieira (1939-2009).


Esta é, naturalmente, uma boa informação!


Fonte:

https://www.voaportugues.com/a/guine-bissau-assinala-42-anos-de-independencia/2972574.html



Depois da (mítica) "Madina do Boé" ter sido indicada como o local da (última) cerimónia, outros foram alvitrados como alternativa ao oficial, todos eles pertencentes à região do Boé, de que são exemplos: "Lugajole", "Vendu-Leidi", "Lela" ou "Malanta"…, como referido no P21554, de 17Nov2020. 


Será que, para além destas, poderemos encontrar outra (s) possibilidade (s)? É esse o objectivo de partida!


Para a sua concretização, foi/está definido um plano de estudo, estruturado por ordem cronológica, de modo a compreender as consequências da actividade operacional das forças beligerantes, e das suas estratégias, bem como das influências produzidas por estas na mobilidade dos diferentes agregados populacionais que foram afectados.


Assim, nesta parte dois, para começar, daremos a conhecer os objectivos das primeiras "acções" da guerrilha, elencadas por Amílcar Cabral, a que deu o nome de «Missão a Gaoual», a realizar em Junho de 1964 (ano e meio depois do início do conflito). 

Esta missão, atribuída a Armando Ramos, incluía a realização de vários estudos nas áreas de fronteira entre as duas Guinés, merecendo destaque, neste âmbito, os relacionados com as acessibilidades – "corredores" de passagem e circulação mais seguros – na região do Boé.


2.   - AS PRIMEIRAS ACÇÕES DA GUERRILHA NA REGIÃO DO BOÉ:

   - EM CADA UM DOS LADOS DA FRONTEIRA

2.1 - Missão a Gaoual


1. – Contacto com o Governador. Expor as razões da visita. Pedir-lhes todo o apoio, no quadro do que ficou estabelecido na reunião que o Secretário-geral teve com ele e outros responsáveis da República da Guiné no Ministério da Defesa Nacional e Segurança.


2. – Colher o maior número de informações em Gaoual mesmo sobre a situação no Boé.


3. – Visitar a fronteira, indo por Koumbia e Ngolé até Lela. De Lela ir a pé até Hancundi, na mata que está próximo da fronteira. Estudar as possibilidades da travessia do rio Féfiné-Senta. Estudar as condições da mata. Estudar o caminho a pé que vai de Lela à fronteira, entrando pelo Boé. Na volta ir a Pato-Kono, perto de Guidali e tomar, a pé ou de jeep, o caminho que segue para Fidibore e Kampoundiny, indo até à fronteira. Estudar esta zona.

 

 


 


Imagem de satélite da região do Boé, sinalizando-se, a vermelho, a linha de fronteira onde deveriam ser identificados os melhores locais para funcionarem como "corredores" ou "portas de entrada".


4. – Obter informações sobre a possibilidade de passagem, a pé ou de carro, entre Neteré (perto do Rio Féfiné) e Tiankouboye (perto de Madina do Boé).

5. – Durante a visita à fronteira, obter o maior número de informações sobre a situação no Boé, sobretudo no que se refere a Béli, Dinguiras, Madina, Dandum. Enviar para dentro do país um ou mais comissários informadores, se possível, os quais devem regressar com urgência, antes do fim da missão.

6. – Regressar a Gaoual. Contactar de novo o Governador e regressar a Conacri.

 


2.2 - Informações que interessa obter - concretamente


● No exterior


a) – Movimento de pessoas entre os dois lados. Se há gente do lado da República da Guiné que dá informação ao inimigo. Se há famílias que vivem dum lado e do outro da fronteira.

b) – Comércio entre os dois lados. Se há gilas que fazem vaivém constantes. Se a gente do lado da República da Guiné está interessada no comércio com a gente do nosso lado.

c) – Gente da nossa terra que vive do lado de cá, permanentemente, tanto em Gaoual como nas outras povoações próximas da fronteira. Ligações entre essa gente e a do interior.

d) – Onde estão os oportunistas. Quantos são exactamente (homens e mulheres). O que estão a fazer. Quem são os chefes.

e) – Se os habitantes das povoações próximas da fronteira, na República da Guiné, são ou não simpatizantes com a nossa luta. Se estão ou não predispostos a ajudar, em caso de necessidade.

  



f) – Possibilidades de alimentação na proximidade da fronteira. Se há arroz e outros alimentos de base.

g) – Natureza e estado das estradas, picadas e caminhos, na República da Guiné, perto da fronteira ou conduzindo à fronteira. Possibilidade real da passagem de jeep e de camião.

h) – Rios presentes no caminho e ao pé da fronteira. Possibilidades de os atravessar.

i) – Natureza do terreno (montes, vales, mato, floresta, etc.).

j) – Condições da mata de Lela [na República da Guiné]. Se é boa para instalar uma base de combatentes.


● Em relação ao interior:


a) – Se há tropas portuguesas no Boé e número exacto ou aproximado, armas de que dispõem, onde estão instaladas. Se fizeram fortes, trincheiras, etc..

b) – Quem é o chefe de Posto em Madina (nome, branco ou africano, etc.). Quem é a autoridade colonial em Béli e em Dandum.

c) – Se os chefes fulas são todos contra nós. Quais os que são contra nós: nome, importância, local onde vivem, posição do povo em relação a eles, etc.. Se as suas tabancas estão fortificadas.

d) – Se os chefes fulas têm armas e gente armada. Quantos homens, que espécies de armas, em que localidades.

e) – Se a jangada de Ché-Che que liga para o Gabú, está a funcionar ou não. Se há outras jangadas no rio Corubal, onde estão instaladas. Se há tropas (portugueses ou fulas) a defender a jangada.

  



Foto 2 > Região do Boé > Estrada (picada) de Ché-Che para Béli (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18862, com a devida vénia.


f) – Estado em que se encontra a estrada entre Contabane (perto do Saltinho) e Madina do Boé. Se a tropa portuguesa vigia ou anda nessa estrada.

g) – Estado da estrada entre Ché-Che (rio Corubal) e Béli e entre Ché-Che e Madina. Estado da estrada entre Béli e a fronteira (Vendu-Leidi). Estado da entrada entre Madina e a fronteira.

h) – Informações sobre número, armamento, presença de soldados africanos, etc., nas tropas inimigas estacionadas em Piche e Gabú-Sare (Nova Lamego).

i) – Possibilidades reais de travessia (onde e por que meios) do rio Féfiné no Boé.

 

 




Foto 3 > Região do Boé > Picada para Dandum (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18863, com a devida vénia.



j) – Situação alimentar no Boé. Se há arroz e outros alimentos de base (milho, milho preto, funcho, etc.). Se a população não tem falta de alimentos e de artigos de primeira necessidade (sal, fósforos, tabaco, açúcar, tecidos, etc.).

l) – Se há comerciantes europeus (ou africanos) em Madina, Béli e Dandum. Quem são e quantos são.

(m) – Situação Política – Se o povo está contente. Se sabe bem da luta. Se há gente que aprova a luta. Se a população paga impostos e a quem paga (aos chefes fulas, ao chefe do Posto?).

n) – Empregados e funcionários africanos no Boé. Quem são, qual a sua posição em relação ao Partido e a luta, estado da família, etc..

 



Fonte: Citação:
(1964), "Missão AR - Missão a Gaoual", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40180 com a devida vénia

(Continua… com outras análises) 

 ► Fontes consultadas:

Ø  (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.033.030. Título: Missão AR – Missão a Gaoual. Assunto: Instruções de Amílcar Cabral para Armando Ramos - Missão a Gaoual. Pontos que devem ser discutidos com o Governador de Gaoual e as informações que devem ser aí recolhidas. Missão de reconhecimento à fronteira com a Guiné-Conakry, exterior e interior (Boé). Declaração. Data: Quarta, 24 de Junho de 1964. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Nota de Amílcar Cabral: "Lucette: Arquivar". Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


Ø  (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 05248.000.048. Título: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste (?). Assunto: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste: Teodora Inácia Gomes, Arafam Mané, Silvino da Luz [Juvêncio Gomes], José Araújo, Bernardo Vieira (Nino), Aristides Pereira, Luís Cabral, Pedro Pires, Vasco Cabral, Carmen Pereira e Victor Saúde Maria. Data: Segunda, 18 de Junho de 1973 – Sexta, 22 de Junho de 1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

20Abr2021

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Nota do editor:


(*) Último poste da série > 15  de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)