terça-feira, 7 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22522: Fichas de unidades (19): A CCAÇ 423, a última companhia a deslocar-se para o sul (São João) por terra, em maio de 1963 (António Abrantes)



António Abrantes, hoje e ontem



Data - 7 set 2021 12:22  
Assunto - Última Companhia a deslocar-se por terra para o sul da Guiné.

A CCaç 423 foi a última Companhia a deslocar-se para o sul da Guiné por via terrestre, tendo saído de Bissau em 7 de Maio de 1963, logo de manhã, e passado por Nhacra, onde na época acabava a estrada alcatroada e chegado a Mansoa.

Aí efectuou a primeira paragem, seguindo por estrada de terra (não havia outra) e com uma poeira infernal chegámos a Mansabá, onde numa serração abandonada, vi recibos de pagamento diário ao pessoal de um escudo e um escudo e cinquenta (!).

Chegados a Bafatá para almoçar (já tarde), estávamos irreconhecíveis.  Banho rápido, almoço e siga que se faz tarde... rumo a Aldeia Formosa, hoje Quebo, passando a ponte do Saltinho, única ponte digna desse nome, as outras, mais pequenas, eram compostas por umas travessas com umas tábuas ao longo da ponte e em que era preciso acertar com os rodados das viaturas, o que nem sempre acontecia, e quando eu reclamava o condutor dizia: "o que quer, meu alferes, eu tirei a carta com um Jipão brasileiro".

No dia seguinte, 8 de Maio, partimos para Buba, onde chegámos já de noite, não sem antes sofrermos a primeira emboscada, perto de Buba, no depois "célebre cruzamento de Buba", pela quantidade de emboscadas sofridas pelas NT, a ponto de não haver uma única árvore que não tivesse um palmo sem o impacto de uma bala nossa ou do IN. 

Nessa primeira emboscada estivemos cerca de 15 a 20 minutos (que pareceram horas) parados em zona de fogo, valendo-nos o facto de o IN estarmos abrigados em buracos e, dado o nosso potencial de fogo, (aqui já iam duas Companhias, suponho que era a C CAÇ 413), não saíam dos abrigos e ao dispararem as balas passavam por cima de nós, de um lado e do outro, ficando nós como que num túnel. 

Mesmo assim uma granada caiu na minha GMC, dois soldados ao meu lado, e o militar que a apanhou nos joelhos, deitou-a e ...ela explodiu fazendo abanar a viatura. O soldado que teve a granada nos joelhos, teve então consciência do que havia sucedido e desmaiou, tendo o furriel enfermeiro, vindo de outra viatura, prestar-lhe a devida assistência. 

Entretanto o fogo inimigo parara, mas o mato começou a arder junto às viaturas e então ouvia-se, no meio da escuridão: "filho da puta chega à frente", sem sabermos que não podíamos avançar porque a autometralhadora caíra num buraco feito pelo IN e tapado com ramos de árvore e terra e não conseguia sair.

Poucos minutos depois chegámos a Buba, onde a GMC ardeu e houve que retirá-la para uma extremidade do aquartelamento junto ao rio, e não pegar fogo às outras viaturas. Com a confusão gerada o Comandante da Companhia de Buba teve receio que o IN atacasse o aquartelamento e mandou-nos reforçar a segurança, mas... nada aconteceu.

No dia 10 de Maio seguimos viagem por Fulacunda Bianga (onde eu mais tarde, a 2 de Julho,  sofri uma emboscada debaixo de uma chuvada como só há na GUINÉ, e no dia seguinte a primeira mina, no regresso a São João). 

Seguiu-se Brandão e depois Nova Sintra e em cujo trajecto, feito quase todo a pé, retirámos dezenas de abatizes, embora a Força Aérea nos tenha informado que eram 22 (!). Sofremos a segunda emboscada e alguns tiros esporádicos ao retirar algumas árvores.

Na zona de Brandão  já não tínhamos água e recorremos a um charco e água coada por um lenço, só para molhar a boca. O dia estava no fim e embora perto do nosso destino, São João, havia ainda muitas árvores a retirar e em Nova Sintra desviámos para Tite por esta estrada estar desempedida.

Aí, em Tite, recebi ordem para ir, no outro dia, de barco desde o Enxusé (cais a alguns quilómetros de Tite), com o meu pelotão reforçado e metade dos cozinheiros, desembarcar em São João, onde uma Companhia não tinha conseguido fazê-lo, e ter lá uma refeição quente para o pessoal que ia por terra.

Ao que eu perguntei: "Qual o cozinheiro que corto ao meio?!", uma vez que eram 3 por um ter sido evacuado para Bissau, com um tiro no cu, na realidade numa nádega. Pretendia com isso ganhar tempo e provar que era uma Ordem mal dada. 

Efectivamente pouco depois chegou uma mensagem-rádio de Bissau, a dizer que ía a Companhia toda de barco. De facto, em 13 de Maio, a Companhia seguiu para o Enxudé, onde embarcou na draga Geba (soube algum tempo depois que esta tinha sacos de cimento a tapar buracos no casco, os quais serviam também de lastro), passou ao largo de Bissau e de tarde seguiu para Bolama.

Como devido à mare e à carga que levava não podia passar na chamada "coroa de Bolama", entre as ilhas e o continente, (mais tarde fiquei lá num barco, a seco, aguardando nova maré) foi por fora, ou seja, em mar aberto, tendo apanhado um temporal incrivel, a ponto do piloto ter dito que em 20 anos de Guiné nunca apanhara nada assim. Pensou-se em lancar uma ou duas viaturas ao mar mas ainda bem que não se fez, pois suponho que com o balanço iria tudo ao fundo.

Noite escura (13 para 14 de Maio), temporal, a época das chuvas começava a 15, havia quem não sabendo rezar, pedia a outros para o ensinarem... Com o amanhecer chegamos a Bolama, ou melhor entre Bolama e São João, almocámos (os oficiais) no NRP Vouga, ali fundeado,  e planeámos com os fuzileiros o desembarque, passámos para uma lancha de desembarque e com os fuzileiros e a proteccão de dois avioes da FAP, suponho que T6, desembarcámos em São João  (tipo desembarque na Normandia) sem um único tiro,  tirando partido do efeito surpresa.

Um grande abraco
A. R. Abrantes

Obs. Peço desculpa mas o meu IPad na parte final teve problemas.


2. Comentário do editor LG:

Temos 14 referências à CCAÇ 423.  Depois do ex-alf mil António Abrantes (n.º 748), entrou para a Tabanca Grande o fur mil Gonçalo Inocentes (Matheos), com o n.º 810. De rendição individual, esteve  depois CCAV 488 / BCAV 490 (tendo passado por Bissau, Bolama, S. João, Jabadá e Jumbembem, entre 8 de abril de 1964 e 14 de agosto e 1965).

 A CCAÇ 423, "independente", é uma das primeiras subunidades a ser mobilizada para a Guiné: pertencia ao RI 15, partiu em 16/4/1963 e regressou, dois anos depois, em 29/4/1965. Esteve em São João e em Tite, mas também em Jabadá (1 grupo de combate). O comandante era o cap inf Nuno Gonçalves dos Santos Basto Machado.

Terá sido a primeira a conhecer o pesadelo das minas A/C e dos fornilhos.

Fichas de unidades > Companhia de Caçadores n.º 423 (**)

Identificação: CCaç 423
Unidade Mob: RI 15 - Tomar
Cmdt: Cap Inf Nuno Gonçalves dos Santos Basto Machado
Divisa: -
Partida: Embarque em 16Abr63; desembarque em 22Abr63 | Regresso: Embarque em 29Abr65

Síntese da Actividade Operacional

Após o desembarque, foi atribuída, por um curto período, em reforço do BCaç 236, a fim de colaborar na segurança e protecção das instalações e das populações da área de Bissau, até à chegada da CCaç 526.

Na sequência de uma série de acções ofensivas desencadeadas pelo BCaç 237 na área Jabadá-Gã Chiquinho, em fins de Abr63, seguiu, em 07Mai63, por Bafatá-Xitole-Bambadinca-Fulacunda, para ocupar a povoação de S. João, que atingiu em 6Mai63, correspondendo à criação do respectivo subsector, na zona de acção do referido BCaç 237.

De 01 a 27Jun63, tomou ainda parte em operações sob controlo operacional do BCaç 356, realizadas na região de Iusse (Quínara), em conjunto com outras subunidades, nomeadamente na Op Seta.

Em 24Abr65, foi rendida, por troca, pela CCav 677, tendo seguido para Tite, onde permaneceu temporariamente até chegada da CCaç 797, após o que recolheu em 29Abr65 a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Não tem História da Unidade.

Fonte: Excerto de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 7.º Volume - Fichas das Unidades: Tomo II - Guiné - 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2002, pág. 318

Guiné 61/74 - P22521: Ser solidário (239): Para as crianças deslocadas em Moçambique, a Escola é uma primeira casa - Uma iniciativa da Helpo - Organização Não Governamental para o Desenvolvimento (Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil)



1. Mensagem do nosso camarada Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manut da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), com data de 6 de Setembro de 2021:

Boa noite
Venho por este meio partilhar com os meus contactos, a campanha que está a decorrer, numa parceria Helpo-Pingo Doce, de apoio às crianças no norte de Moçambique, como abaixo se pormenoriza.

Grato pela vossa solidariedade.
Manuel Gonçalves


Para as crianças deslocadas, a escola é uma primeira casa. No norte de Moçambique, 400 mil crianças ficaram sem casa, mas não têm que ficar sem escola. De 1 a 13 de setembro, compre um vale numa loja Pingo Doce e ajude na educação destas crianças.
Helpo - O nosso mundo é humano - Organização Não Governamental para o Desenvolvimento
Depois da entrega de kits de sobrevivência e das visitas domiciliárias, voltámos a encontrar-nos com as primeiras 330 famílias em Cabo Delgado, desta vez para entregar um kit casa e kit roupa por família.
Temos vindo a apostar na qualidade de ensino, formação, manutenção das escolinhas, atividades comunitárias, criação de atividades de geração de rendimento, que contribuem para a autossustentabilidade dos centros.
47 alunos deslocados internos de Impire já não terão de percorrer 10km a pé para chegar à escola.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22314: Ser solidário (238): Ainda é possível fazer, até ao fim do mês, a consignação do IRS a favor da ONGD "Ajuda Amiga", NIPC 508617910, de que é presidente da direção o nosso camarada e amigo Carlos Fortunato, ajudando assim a finalizar a contrução da escola de Nhenque, Bissorã, que deve entrar em funcionamento no ano lectivo de 2021/22

Guiné 61/74 - P22520: Memória dos lugares (426): Paço, União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo, Lourinhã, inaugura o seu monumento aos antigos combatentes (46 no total estiveram presentes nos vários teatros de operações do séc. XX, da I Grande Guerra à Guerra do Ultramar)


Lourinhã > União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo >Paço > 29 de Agosto de 2021 > Inauguração do Monumento aos Combatentes > Na imagem, o representante da comissão local que esteve na origem deste projeto, Tito Franco Caetano. Outras intervenções: D. Rui Valério, bispo das Forças Armadas e Segurança, presidente da junta de freguesia, Zita Silva,
  vice-presidente da Liga dos Combatentes, maj gen Fernando Aguda, e presidente do município da Lourinhã, João Duarte.

(Fotograma obtido do vídeo da 102FMTV - Peniche, com a devida vénia.)


1. Mensagem do nosso camarada e amigo Joaquim da Silva Jorge, régulo da Tabanca de Ferrel / Peniche, ex-alf mil, CCAÇ 616, Empada, 1964/66, BCAÇ 619, Catió, 1964/66),

Data - segunda, 23/08/2021, 11:42


Assunto - Inauguração do monumento dos combatentes do lugar do Paço

Caro Amigo Luís Graça

Bom dia.

No próximo domingo, dia 29, vai ser inaugurado o monumento aos ex-combatentes
do lugar do Paço. O lugar do Paço tem a característica de pertencer a duas Juntas de
Freguesia, a dois concelhos e a dois distritos. 

O nosso amigo Tito Caetano é o chefe de tabanca lá do sítio. Esta obra é de iniciativa dele. Até o projeto foi ele que o fez.

As cerimónias serão da parte da tarde. Ainda hoje espero falar com ele e depois
mando-te o programa.
Um abraço,

2. Comentário do editor LG:

Joaquim, não me foi possível lá estar. Mas vi a notícia, nas redes sociais, Foi um evento com alguma pompa e circunstância e bastante participação popular.

Parabéns ao Tito Franco Caetano e demais boas gentes do Paço, terra que pertence à União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo, mas "onde já não passo há anos"... Não sabia, por exemplo, que se está estender para o concelho de Peniche. 

Li a notícia no jornal "Alvorada" (, com data de 12 de agosto último), que reproduzo com a devida vénia:

(...) A Comissão Pró-Monumento aos Militares do Paço, que estiveram nas frentes de guerra no século XX, agendaram para o próximo dia 29 de Agosto a inauguração de um memorial, a realizar nesta localidade da União das Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo. O programa do evento tem início marcado para as 15h00 com a recepção às entidades oficiais, seguindo-se, pelas 15h30, uma cerimónia religiosa que incluirá missa campal no adro da Igreja do Paço em honra dos militares falecidos. A inauguração do memorial está marcada para as 16h45. Recorde-se que esta inauguração esteve agendada para 25 de Julho, mas devido aos constrangimentos causados pela pandemia de Covid-19, foi adiada.

Segundo explicou ao ALVORADA Tito Franco Caetano, membro da comissão, o memorial está instalado no Largo da Igreja, ficando também junto do edifício da escola primária, “tendo bem perto os lavadouros públicos, num espaço bonito, bem arranjado e de muito simbolismo para a população”. 

Este ex-combatente referiu que o monumento pretende perpetuar os militares do Paço que participaram na I Guerra Mundial, passando pela invasão pela Índia à antiga colónia portuguesa e terminando com a Guerra do Ultramar. Estes teatros de operações militares contaram com o envolvimento de um total de 46 militares da povoação lourinhanense.

Este monumento é, segundo Tito Franco Caetano, um projecto da sociedade civil, que o desenhou e concebeu na sua totalidade, “mas quando colocado junto dos responsáveis da Freguesia e do Município, no caso da presidente da União de Freguesias de São Bartolomeu dos Galegos e Moledo e do presidente da Câmara Municipal da Lourinhã, pela sua dignidade e conceito, obteve o seu apoio no imediato”, enalteceu o responsável. (...)

Um vídeo da 102 FMTV - Peniche, de 4'16'', disponível no You Tube, mostra o essencial do evento que contou com a presença do bispo das Forças Armadas e Segurança, D. Rui Valério, e representantes das autoridades civis e militares, bem como dos antigos combatentes do Paço, ainda vivos.

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Nota do editor:

Último poste da série > 1 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22502: Memória dos lugares (425): Mafra, EPI, março de 1967: desfilando com o meu pelotão, o 1.º, da 1.ª Companhia de Instrução do COM, após o juramento de bandeira (Eduardo Moutinho Santos, advogado, Porto)

Guiné 61/74 - P22519: Notas de leitura (1379): Índice e contracapa da obra "Os Números da Guerra de África", de Pedro Marquês de Sousa (Guerra e Paz Editores, 2021, 384 pp.): "Vale a pena ler"! (A. Marques Lopes, cor art ref, DFA))







Índice e contracapa da da 
obra "Os Números da Guerra de África", de Pedro Marquês de Sousa (Guerra e Paz Editores, 2021, 384 pp.), a ser lançada em Lisboa no próximo dia 9, quinta-feira  (*)


1. Mensagem de A.Marques Lopes  Cor Art DFA, 
na reforma, ex-Alf Mil Art da CART 1690,
Geba, e CCAÇ 3, Barro (1967/68), membro sénior da Tabanca Grande, com 250 referências no blogue:


Data - 30/08/2021, 22:58
 

Assunto - Os Números da Guerra de África
 

Vale bem a pena ler! (14,40 € pelo correio). Seguem imagens da contracapa e índice. Abraços.


2. Comentário do editor LG:

António, não queres acrescentar mais uns tantos parágrafos para ser publicado como "nota de leitura", com o teu nome ? Há muito que não nos dás essa honra... Boa contiinuação do verão ou do que resta dele. Luís
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Notas do editor:

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22518: Notas de leitura (1378): José Jamanca, Ussumane Baldé, o eterno retorno dos meus bravos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
São coisas da vida, uma mudança de casa obriga a mexer em papéis e é neste insano guardar ou deitar fora que se atiça a memória, num contexto quase improvável, tudo se julgava já no seu devido lugar, o caso da correspondência que se entregou ao camarada Luís Graça, não se conhecia melhor prova de confiança e dedicação ao entrar de corpo inteiro no blogue. E aqui se fazem desabafos e se pede fraternalmente desculpa por alguma lamechice nesta polvorosa de recordações, cada um tem direito às suas, o absurdo (ou talvez não) é como elas estão tão vivas, pois a dedicação a tais pessoas, mesmo enviesada pelos alcatruzes da vida, foi e é plena.

Um abraço do
Mário



José Jamanca, Ussumane Baldé, o eterno retorno dos meus bravos

Beja Santos

Tudo começou com uma mudança de trastes, sai-se de uma casa e entra-se noutra, parece que nasce uma nova ordem, o que estava emparelhado pede agora uma outra configuração. Com a estante dos livros, é relativamente simples: o que está a mais, o que não se voltará a ler, é para oferecer, o resto aproxima-se entre a Literatura, a Arte, a História e tudo o mais. O pior são os papéis, as pastas de plástico com notas de viagem, até bilhetes de entrada em museus ou concertos, programas disto e daquilo, há que rasoirar, não se pode acumular tudo e portanto há que selecionar o que irremediavelmente vai para o lixo e aquilo que tem valor estimativo ou até mesmo sacramental, está metido na pele, deve conservar-se até ao último dia das nossas vidas, justifica a nossa presença, tem a ver com a nossa memória.

É nisto que se encontram papéis que já deviam estar noutros sítios, noutras mãos, coisas da Guiné, que falam alto de afetos, de gente desaparecida. Uma carta de Cherno Suane, o guarda-costas de alfero, o irmão que quis vir para Lisboa, que aqui trabalhou numa loja de eletrodomésticos, vivia no Largo de São Paulo, bem perto do Cais do Sodré. Desaparecido, uma terrível doença do foro respiratório liquidou-o em lume brando.

Cherno Suane.

Uma carta garatujada de Mamadu Camará, o 221, um turbulento Dom João que arranjava problemas na tabanca Mandinga, sempre endividado, a cobiçar os sapatos de alfero, a pedir adiantamentos, um soldado destimidíssimo, foi incorporado na 2.ª Companhia de Comandos, em Salancaur um tiro desfez-lhe um calcanhar, tudo se tentou até se chegar à amputação da perna. Vive entre a Pontinha e várias casas em Belfast, como ele diz, vai visitar os netos cor café com leite. Deve ser um tique irlandês, em qualquer estação do ano anda de gravata e colete, o que vemos aqui com pé firme no capim já não existe, temos agora um gentleman, um avô bondoso, de cabelo integralmente branco.

Mamadu Camará.

Entre folhas desirmanadas, solta-se esta fotografia do José Jamanca, uma saudade larvar toma-me por inteiro, regresso a Missirá, regulado do Cuor, em agosto de 1968, depois de Albino Amadu Baldé, o sargento que de facto comandava o pelotão de milícias n.º 101, quem falava o melhor português era Mamadu Baldé, o 86, que tinha vindo quase um ano a Lisboa, fazer cirurgia a um braço metralhado, e José Jamanca, que estudara numa escola missionária, com aproveitamento excecional. Exprimia-se soltando as sílabas todas, oferecendo-se para dar aulas aos meninos de Missirá, ainda na falta de professor, por decisão própria seguia à frente do nosso alfero, tal como aconteceu naquele dia de dezembro de 1968, em Chicri, num súbito encontro com uma coluna que vinha de Madina. Adorava conversar, queria continuar os seus estudos. Um dia partiu, rescindira o seu contrato como milícia. E anos depois, bateu à porta de alfero, em Lisboa. Tirara um curso de eletricista em Leningrado, trabalho em Lisboa não lhe faltava, explicava minuciosamente o que fazia e pediu ao alfero para passear com ele pela cidade. Os anos passaram, veio anunciar que estava tuberculoso, não queria ir tratar-se sem despedir-se, foi um encontro memorável, duas memórias ao desafio, e neste preciso instante estou a vê-lo a caminhar com uma bolsa de pano a tiracolo, com andar pausado, pés em sandálias de plástico, sorri-me em Mato de Cão, chove copiosamente, viemos sem poncho, tem que se estar naquele ponto alto na observação, não se preocupe, alfero, depois vem aí o sol, tudo seca, e vamos comer as laranjas de Canturé. É uma saudade imensa, ter consciência de uma dedicação que não se tratou por igual, registar este olhar com o seu pequeno estrabismo no olho direito que em nada compromete a força de caráter que salta da imagem. Fotografia que andava desviada, José Jamanca vai ficar no meu escritório para me lembrar a qualquer instante a verdadeira cor da amizade.

José Jamanca.

E por fim a mais esquecida das cartas, veio de Ussumane Baldé, o 104, o meu soldado prussiano, quando abordado empertigava-se, punha-se em posição rígida, os braços colados às pernas, as mãos com os dedos todos fechados, ao princípio parecia que falava a medo ou que se sentia atemorizado, com os anos a tensão diminuiu, confiava na fraternidade, fora permanente a camaradagem. A carta vem datada de perto do Natal de 1991, talvez mesmo no dia em que nosso alfero regressara a Portugal depois de uma cooperação cheia de vicissitudes, com êxitos e desastres. Ussumane fala do querido pai, da confiança que ganhara nos anos de tropa em comum, pede para vir trabalhar em Portugal, tinha perdido os seus documentos, como se fosse necessário envia-me o número mecanográfico 820332/66, estivera também na 2.ª Companhia de Comandos, manda referências de todos os seus documentos e pede a este seu querido pai que satisfaça o pedido daquele filho, pede resposta urgente, que nunca chegou.

Uma nota final. Quando, em 2010, combinei com Fodé Dahaba a viagem ao Cuor para me despedir dos meus soldados, ao chegar a Bambadinca fez-se um exame de quem fora abordado ou faltara abordar. E vieram os disparos brutais: Mamadu Silá morrera há pouco tempo, outros havia que viviam longe e não tinham dinheiro para tal viagem. E Ussumane, vive ainda no Cossé? Ao lado de Fodé estava Sadjo Seidi, outro dos bravos, a viver em Ponta Coli, entre o Xime e Amedalai, e sussurrou: morreu súbito, de paludismo, o ano passado, falava muito em ti.

É este o meu eterno retorno, a despeito de pensar ter todos os papéis arrumados e a carga emocional em ordem, há sempre estes imprevistos, na arrumação dos trastes todos os bravos, ou quase, reaparecem, têm este precioso condão de trazer ânimo ao presente pois se lembra que foram anos intensos e ali se lançou à terra uma semente de camaradagem para esta memória de longo porte, sempre a pedir mais água, os troncos das árvores sobem até às nuvens. E ponto final.

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22513: Nota de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P22517: Facebook...ando (65): "Deu-me muito prazer preencher, com as minhas palavras sentidas, as duzentas e dezoito páginas, do meu livro, Um Caminho de Quatro Passos, a ser apresentado, sábado, dia 11, às 11h00, na Tabanca dos Melros (António Carvalho, Medas, Gondomar)


António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008 (*), autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas).

(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho. 

Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade ! Não me compreenderão os leitores que vivem numa cidade, mesmo que seja a sua cidade natal, onde o espaço de freguesia já há muito se sumiu diluído pela profusão de ruas avessas a fronteiras, onde muitos cidadãos nem sabem a que freguesia pertencem.  (...)

Quando se trata de uma reforma do Estado, que não altere de imediato os ordenados, as pensões, os impostos ou o preço dos bens essenciais, os cidadãos não costumam protestar de forma massiva e persistente. Foi o que aconteceu no caso da agregação das freguesias, apesar de se terem organizado algumas manifestações junto da Assembleia da República e, em muitos casos, os então titulares dos cargos autárquicos terem interposto providências cautelares contra a deliberação arbitrária do Estado, como foi o caso desta minha freguesia de Medas. (...)

Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214) (Excertos selecionados por LG., com a devida vénia ao autor).




O MEU LIVRO: "UM CAMINHO DE QUATRO PASSOS"


Facebook > António Carvalho, 23 de agosto às 22:29 (**) 

No próximo dia 11 de Setembro apresentarei o meu livro, pelas 11 horas, na Quinta dos Choupos - Choupal dos Melros, Rua de Cabanas nº 177, na freguesia de Fânzeres, Gondomar.

Não sei se agradará a muitos ou a poucos, mas deu-me muito prazer preencher, com as minhas palavras sentidas,  as suas duzentas e dezoito páginas, por onde espelho uma parte significativa do meu caminho percorrido desde a infância, nas Medas,  à passagem pelo Colégio da Mealhada, do longo percurso pelo serviço militar até ao encontro forçado e esforçado com os mosquitos e as ferroadas da guerra da Guiné, não deixando, inevitavelmente, de abordar, ainda que ao de leve, o longo período ao serviço da Junta de Freguesia de Medas. 

Uma parte notável do livro é dedicada à caracterização das Medas, desde o último quarto do século XIX aos anos sessenta do século XX.

Por hoje dispenso-me de mais pormenores, sob pena de saciar, antecipadamente, a apetência dos eventuais leitores.

Nota adicional: quem desejar reservar almoço que ocorrerá no mesmo local, logo a seguir à cerimónia da apresentação, deve contactar o serviço do restaurante através dos números 224890622 ou 919677859.

Actualização: uma vez que não indiquei o preço do livro, refiro agora que o mesmo é de 15,00 Euros.

Nova actualização: por uma questão de boa organização do serviço, pede a gerência do Choupal dos Melros que quem desejar almoçar, após a cerimónia de apresentação do livro, deverá fazer a marcação , através dos números indicados no texto publicado acima, até ao dia 8 de Setembro, cujo custo unitário será de 20,00 Euros.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 13 de setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3200: Tabanca Grande (86): António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)

(**) Último poste da série > 16 de junho de 2021 > Guiné 61/74 - P22287: Facebok...ando (64): O transporte de gado vivo: embarque de vacas no porto fluvial de Bambadinca, em 1973 (João Lourenço, ex-alf mil, cmtd PINT, Cufar, 1973/74)

domingo, 5 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22516: Tabanca da Diáspora Lusófona (18): Lembrando, há 20 anos, o ataque às Torres Gémeas... E anunciando a minha primeira saída pós-pandémica à Eslovénia e a Portugal (João Crisóstomo, Nova Iorque)


1. Mensagem de João Crisóstomo, membro da nossa Tabanca Grande, com mais de 160 referências no blogue, a viver em Queens, Nova Iorque, ativista social, régulo da Tabanca da Diáspora Lusófona, ex-alf mil inf, CCAÇ CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67):


Data - sábado, 4/09, 15:26 

Assunto - 11 de setembro... e um abraço


Caro Luís Graça,

Há dias ao telefone disse-te que ainda não tinha coragem de viajar de avião e por isso um abraço mesmo real teria de esperar mais uns tempos. Mas depois de ter falado contigo fiz outros telefonemas; alguns dos meus amigos a quem eu fazia estarem aqui,  responderam-me nos seus móveis de Portugal; a minha filha e meu neto também não hesitaram em pegar o avião,  estão lá agora ; e de toda a parte a pergunta é sempre a mesma: "quando é que vens cá"? Mas se a vontade de ir era grande , a minha cobardia era ainda maior .

Entretanto a Vilma, mais afoita,  já tinha decidido ir à Eslovénia… e a mim não me apetecia mesmo nada ficar aqui sozinho…

Olha, para não te fazer perder mais tempo...já compramos bilhetes para Zagreb… ainda por cima na TAP… com escala por Lisboa. Depois da Eslovénia iremos dois dias a Paris onde temos bons amigos que não quero deixar de ver. E daí iremos passar pelo menos umas duas semanas em Portugal.

Ainda não sei as datas certas que tudo agora é feito “ em cima dois joelhos” . Mas conta connosco em princípios de Outubro. E podes avisar os nosso comuns amigos e camaradas que "vou ficar zangado" se não me for dada a possibilidade de lhes apertar bem as costelas…

Mas antes disso quero falar-te de um outro encontro muito importante para mim:
como sabes o nosso querido camarada e  amigo Valdemar Queiroz diz não estar em condições de saúde para se deslocar a algum encontro . E eu gostava mesmo de o ir ver e dar-lhe um grande abraço. 

Acabo de falar com ele ao telefone ( falamos frequentemente) e combinei com ele o seguinte: como eu vou fazer escala em Lisboa e vou ter a tarde do dia 14 de Setembro livre, vai ser essa a ocasião para o ir ver. Em princípio o Rui Chamusco vai-nos esperar ao aeroporto e leva-nos ao Valdemar em Agualva-Cacém. E se o Rui não puder fazê-lo , outra solução haverá, nem que seja um taxi…

Lembrei-me de te dar a conhecer isto, para o caso de haver mais alguém que queira fazer uma visita ao Valdemar nessa altura, uma vez que ele não pode deslocar-se a algum outro encontro que venha a acontecer. Não foram os teus problemas de locomoção, e eu estaria a convidar-te ou a desafiar-te para ires também. Vou tentar contactar o João Ferreira, filho do nosso saudoso Eduardo. Como ele vive em Lisboa, quem sabe possa e queira vir connosco...

Deixei ao Valdemar decidir  onde e como nos vamos encontrar, e logo que receba instruções dele eu informo-te. OK?

Entretanto aproxima-se o 20º aniversário do atentado às torres gémeas e com ele imagens, memórias e experiências desses dia e dias seguintes . Se por um lado "lembrar um mau passado para que se não repita” pode ser benéfico, mais vantagens ainda podem advir duma atitude de "esquecer o negativo e salientar o positivo” .

 Pois como vou esquecer o medo, o silêncio quase sepulcral que se apoderou de todos os nova-iorquinos nesta ocasião?  Recordo-me de tomar o “subway”, cada um olhando para o vizinho do lado receoso de que algum deles fosse um terrrorista suicida, que rumores desses não faltavam e não havia ninguém que dissesse uma palavra; as situações aflitivas,  especialmente nos arredores das torres,  de não se poder respirar fundo, obrigando-nos a uso de lenços e máscaras; as cenas dantescas dos escombros e da espessa camada de cinza que cobria toda a zona… se não posso esquecer tudo isto eu quase me esforço para lembrar antes boas memórias como foram as visitas de amigos que nessa altura aqui vieram: a do Sr. Bispo de Leiria/Fátima, Dom Serafim Ferreira que fez questão de, acompanhados dos dirigentes da “Blue Army “ carregando uma imagem da Senhora de Fátima, fez questão de visitar o “ground zero”; ou o Oscar Mascarenhas, nessa altura editor do “Diário de Notícias”, a quem sem esperar servi de cicerone e desenrasquei: é que a cidade por motivos e segurança tinha imposto as maiores restrições de entrada em toda a parte, incluindo a jornalistas que se apresentassem sem especiais autorizações emitidas para cada caso, especialmente jornalistas estrangeiros. 

O Oscar não tinha tido tempo de arranjar esse documento e sentia-se frustrado ter vindo a Nova Iorque para nada. Foi então que me lembrei de experimentar usar um cartão que me tinha sido emitido pelas Nãções Unidas na ocasião da preparação da Exposição "Visas for Life”, a cuja direcção eu tinha pertencido; e com ele tinha tido fácil acesso a toda a parte. Foi remédio santo: a apresentação desse cartão deu-me a mim e ao Oscar imediata entrada em toda a parte, para surpresa do Oscar que me creditava com conhecimentos muito maiores em Nova Iorque do que eu jamais tive.

Se são estas as memórias que sempre me vêm, mas há uma memória muito especial que me ficou para sempre:

Era dia de eleições. Vivia já no endereço actual em Queens, nos arredores de Nova Iorque,  e tinha decidido tirar o dia de folga para, além de votar , tratar de vários assuntos relacionados com a minha nova residência. Minha filha já estava a viver em Nova Iorque e minha esposa estava com ela nesse dia. As notícias e imagens do que se estava a passar deixaram-me duplamente aflito pois o meu filho trabalhava na altura no “ Goldman Sacks”, situado bem perto do Word Trade Center.

Se esse dia nos marcou a todos, que razões não faltaram, eu lembro esse dia também com muito orgulho. Aponta-se , muito apropriadamente, a abnegação, coragem e heroísmo dos bombeiros, polícias e e tantos outros que, mesmo conscientes dos perigos, e quem sabe de outros que podiam ainda estar para acontecer, sem pestanejar puseram todos os receios de lado e voaram ao local. Todos eles foram heróis; e muitos deles pagaram o seu heroísmo de acorrer e salvar vidas com a sua própria vida, como foi o caso do frade franciscano, Michael Judge, capelão dos bombeiros duma unidade no meio da cidade, a primeira vítima conhecida de entre os que acorreram ao local.

Mas, certos do heroísmo de todos eles cujas profissões os levaram ao local, outros casos de heroísmo sucederam, pouco mencionados: houve casos de altruísmo que pelo que mostram e inspiram merecem ser sempre lembrados e jamais esquecidos. Falo do heroísmo daqueles que em vez de seguirem o natural instinto de sobrevivência de fugir imediatamente para longe, se lembraram de que no local havia gente a necessitar da ajuda, gente mesmo desconhecida , cuja vida ou morte dependia talvez da bondade e coragem de outros. O meu filho, e segundo ele me contou depois ele, não foi o único, foi um destes.

Meu filho estava já no escritório quando o ataque às torres gémeas começou. Alertados, todos os que se encontravam no seu edifício foram instruidos para descerem ao abrigo subterrâneo , na base desse edifício. Entretanto eu estava em minha casa sem saber o que fazer; mas cedo eu recebia um telefonema dele: “ Pai , sei que deves estar preocupado, mas não há razão para isso. Encontro-me no abrigo subterrâneo do prédio do “Goldman Sacks” e temos água e víveres por muito tempo para todos nós; portanto não te preocupes comigo, que está tudo certo.”

Respirei fundo e agora aliviado decidi sair de casa e ir para a grande artéria de Queens Boulevard, esperando o seu regresso. Tudo parado, não havia transportes e quando lá cheguei esta artéria parecia já um rio de grosso caudal, que se alongava tão longe quanto a vista podia alcançar, de gente que de Nova Iorque a pé voltava para suas casas.

Esperei e esperei . E todo o dia não chegou. Chegou a noite e voltei a casa . Meu filho só voltou no dia seguinte. Logo que lhes foi dado autorização para deixarem o abrigo, em vez de voltar para casa ele decidiu dirigir-se ao local do atentado que eram agora os escombros das torres. Aí começou a acartar garrafões de água que dava aos bombeiros e a todos os que dessa ajuda necessitavam. A certa altura a polícia decidiu mandar embora todos os civis, mas ele, pretendendo acatar e seguir as instruções recebidas, logo voltava carregando garrafões. Nesta e noutras tarefas de que me falou na altura mas que agora prefere não falar mas esquecer, passou toda a noite. Só se decidiu a voltar a casa quando exausto não se podia aguentar mais em pé.

O meu filho insiste agora em não falar de tudo isto, e muito menos de relatar à imprensa as suas vivências desse dia. É que ele ficou muito aborrecido mesmo nessa altura quando notícias na imprensa falaram que ele se dirigiu às torres , "depois de ter saido dos escombros". situação em que nunca se encontrou.

Meu filho não se considera um herói pelo que fez. Mas eu não tenho dúvidas em assumir para mim o orgulho de ter um filho assim.

João Crisóstomo, Nova Iorque (*)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P22515: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XIII: Antóno Madeira Montez Júnior (Santarém,1885 - França, CEP, 1918), cap inf


António Madeira Montez Júnior (1885 - 1918)


Nome:  António Madeira Montez Júnior

Posto: Capitão de Infantaria

Naturalidade:  Santarém

Data de nascimento:  27 de Dezembro de 1885

Incorporação:  1903 na Escola do Exército (nº 132 do Corpo de Alunos)

Unidade;  4º Grupo de Metralhadoras, 5º Grupo de Metralhadoras

Condecorações: Cruz de Guerra de 3ª classe

TO da morte em combate:  França (CEP)

Data de Embarque: 24 de Dezembro de 1916

Data da morte:  9 de Abril de 1918

Sepultura:  França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte:  Faleceu em combate devido a ferimentos provocados por fogos alemães.




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa 

Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de setembro de  2021 > Guiné 61/74 - P22512: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XII: Alfredo Ambrósio Ferreira (Vila Real, 1893 - França, CEP, 1918), alf inf

Guiné 61/74 - P22514: Parabéns a você (1989): José Marcelino Martins, ex-Fur Mil TRMS Inf da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70)

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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22509: Parabéns a você (1988): Armor Pires Mota, ex-Alf Mil Cav da CCAV 488/BCAV 490 (Mansoa, Bafatá e Jumbembem, 1963/65); José Câmara, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56 (Brá, Mata dos Madeiros, Bassarel e Tite, 1971/73) e Torcato Mendonça, ex-Alf Mil Art da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69)

sábado, 4 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22513: Notas de leitura (1377): Jorge Monteiro Alves: “No mato ninguém morre em versão John Wayne: Guiné, o Vietname português” (Lisboa, Livros Horizonte, 2021, 191 pp.) – Parte II (Luís Graça)

1. O
"making of" deste livro já terá, seguramente,  mais de seis anos. Em 10 de agosto de 2015, o Jorge Monteiro Alves mandou-me um mail, pedindo a indispensável colaboração do blogue:
 
(...) "Caro Senhor Luís Graça;

Em colaboração com a editora Verso da História, estou a finalizar um livro sobre o TC Marcelino da Mata, tendo como pano de fundo o conflito na antiga Guiné Portuguesa.

O seu blogue contém relatos muito interessantes sobre a matéria e o senhor dispõe igualmente de uma extensa lista de contactos. O trabalho que estou a elaborar, já em fase de finalização, carece de três ou quatro testemunhos de antigos combatentes que tenham privado ou combatido com o TC Marcelino.

Poderá o senhor Luís Graça fazer o favor de me fornecer alguns nomes e respectivos contactos (telefónico ou via e-mail, preferencialmente da região de Lisboa, onde resido) que me permitam atingir o que proponho? (...)"

Esta mensagem foi de novo colocada, como comentário, no poste P823, em 8/10/2015 6:03 da tarde. da I série do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.


2. Para além do seu nº de telemóvel, o Jorge Monteiro Alves deu-me uma extensa lista de nomes com quem  gostaria de poder falar, entre eles, alguns alguns antigos militares dos Comandos do CTIG, tais como o Virgínio Briote, o João Parreira, o Mário Dias, o Vassalo Miranda, e outros.  Dissemos-lhe que gostaríamos de saber algo nais sobre o autor. Respondeu-nos logo a seguir, reproduzimos um excerto:
 
(...) Boa tarde, Luís Graça

Antes de mais, obrigado pela sua amável resposta.

Em relação a conhecer algo mais sobre mim, posso dizer-lhe que tenho 55 anos e, como depreende devido à minha idade, felizmente não fiz a guerra do Ultramar. Cumpri o serviço militar como alferes miliciano na EPAM (nos "padeiros" do Lumiar), mas esse, tal como muitos de vós, foi apenas de carácter obrigatório.

Profissionalmente, fui jornalista do JN durante 25 anos e fui editor de Política Internacional, tendo no desempenho dessas funções andado nove anos a cobrir as guerras da ex-Jugoslávia, da Croácia à Bósnia e ao Kosovo. Para mim, chegou-me de guerra, de angústias e medo. Posteriormente, fui jornalista do jornal Público.

Actualmente trabalho como autor e revisor para editoras como a Presença, entre outras. Sou autor dos livros "Nunca Passes Além do Drina" (basicamente sobre as guerras na ex-Jugoslávia), "Carmencita" (um pequeno romance de carácter iconoclasta do século XVIII) e "A Generala" (um romance do início do século XIX sobre as Invasões Francesas).

Relativamente ao trabalho que estou a fazer sobre o TC Marcelino, permita-me que lhe faça o seguinte enquadramento – tenho o maior respeito pelos ex-combatentes, designadamente pelo TC Marcelino. Politicamente, poderá definir-me como um livre-pensador. O facto de estar a tentar encontrar ex-combatentes que privaram com o TC Marcelino penso que demonstra o esforço em recolher depoimentos que tornem esta biografia o mais factual possível. O trabalho em si está praticamente concluído, embora faltem limar algumas arestas.

Já tentei mais do que uma vez contactar o TC Marcelino, mas este infelizmente nunca respondeu. Tentei igualmente recolher o depoimento do Cor 'Comando' Folques, mas também este não respondeu.

A Verso da História, que vai editar esta obra, já elaborou múltiplos trabalhos sobre a Guerra Colonial, tendo contado com a colaboração de múltiplos ex-combatentes para a elaboração, por exemplo, de "Os Anos da Guerra Colonial" (não participei neste trabalho).

Resta-me mais uma vez agradecer-lhe a amabilidade da sua resposta e com certeza que autorizo que coloque o tal post no seu blogue. Fico à sua inteira disposição ou de qualquer ex-combatente caso me queira conhecer para tomarmos um café na zona de Lisboa (eu moro em Santo Amaro de Oeiras) antes de prestarem qualquer declaração sobre o TC Marcelino e a guerra na ex-Guiné Portuguesa.

Mais uma vez obrigado e um abraço,

Jorge Monteiro Alves


3. Mostrei disponibilidade para ajudar o autor a completar o seu livro. No dia 15 de agosto de 2015, às 20:35, escrevi-lhe o seguinte;

Jorge:

Vi o seu mail, estou de férias, mas vou procurar responder ao seu pedido... Gostaria de saber algo mais sobre a sua pessoa, presumo que seja jornalista. Gostaria inclusive, se mo autorizar, de publicar um poste no nosso blogue de modo a poder contactar com mais ex-combatentes, que passaram pelo TO da Guiné, e que conheceram o Marcelino, como homem e como militar.

Um dos dos nomes, incontornáveis, é do ex-alf mil 'comando' Virgínio Briote, comandante do grupo Diabólicos, a que o então 1º cabo Marcelino pertenceu, por volta de 1965/66.... Vou-lhe dar conhecimento do seu pedido de colaboração, Ele é um dos nossos colaboradores mais ativos. Outros camaradas desse tempo a que envio esta mensagem são o Mário Dias e o João Parreira... Os três moram na região de Lisboa...

Mas há mais camaradas e amigos do Marcelino, por exemplo os camaradas da Tabanca da Linha que o Marcelino costuma frequentar: cito três, os animadores da Tabanca da Linha, Jorge Rosales, José Manuel Matos Dinis, Manuel Resende...

Outros nomes que referiu, nomeadamente guineenses, já não estão infelizmenetentre nós...Casos do João Bacar Jaló e do Saiegh (que eu conheci pessoalmente na Guiné, na 1ª Companhia de Comandos, em Fá Mandinga e em Bambadinca)... 

Sobre o Marcelino, não tenho qualquer informação relevante a dar-lhe, já que nunca o conheci na época em que estive no TO da Guiné (1969/71)... Só o conheço, e mal, de dois ou três convívios na Tabanca da Linha. Em todo o caso, há mais de 3 dezenas de referências ao Marcelino da Mata, no nosso blogue (que já existe há 11 anos).

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/Marcelino%20da%20Mata

Desejo-lhe boa sorte na elaboração e publicação do seu trabalho. Espero que contribua, tal como o nosso blogue, para preservar e partilhar as memórias de uma época complexa mas historiograficamente rica como foi aquela em se desenrolou a guerra, na Guiné, entre 1961 e 1974.

Sabia, por alto, que havia alguém a trabalhar numa biografia do Marcelino, por informação do próprio. Espero que a obra, a publicar, nos honre a todos, e não seja uma mera hagiografia. O Marcelino merece um trabalho isento, bem documentado e intelectualmente honesto. O desafio é grande, mas os riscos também, e o maior deles é sempre a "ideologia" (qualquer que seja o seu quadrante ou matriz) que enviesa a recolha, o tratamento e a interpretação dos dados. Desejo boa sorte e ofereço-lhe as páginas do blogue para levar a bom porto o seu projeto.

Dou ainda conhecimento deste mail aos meus camaradas Mário Beja Santos, Jorge Cabral e Miguel Pessoa (outra fonte privilegiada que deve procurar contactar).

Saudações bloguísticas. Luís Graça


4. Em 25 de junho de 2020 começou a 

Marcelino da Mata 
(Ponta Nova, Guiné, 1940 
- Amadora,
 2021)
circular pelas redes sociais um texto, em pdf, com 171 pp., da autoria de Jorge Monteiro Alves, com o título "O último soldado do Império". O José Torres fez-mo-lo chegar por email com a seguinte nota: "Aqui vai a história do combatente Marcelino da Mata".

O texto começava assim:

(...) O tenente-coronel comando Marcelino da Mata fez mais de mil missões de combate na Guiné. Das matas do Morés ao Corredor da Morte, passando pelo Senegal e por Conacri Apesar de este livro pretender ser uma singela homenagem ao tenentecoronel Marcelino da Mata e, por inerência, aos Comandos e a todos os soldados Portugueses obrigados a abandonar as suas aldeias, vilas e cidades para irem perder lá longe a inocência, quantas vezes a vida, o autor não pretende, de forma alguma, fazer a apologia da guerra, mas tão-só traçar o retrato possível de uma página da História de Portugal. (...)

E terminava assim:

(...)  Hoje, tantos anos volvidos, o tenente-coronel Marcelino da Mata olha com alguma amargura para o presente. Sente-se esquecido e injustiçado. Também ele perdeu duas pátrias. Mas daquilo que sente mais saudades é dos seus companheiros, traídos pela bandeira verde-rubra à qual tanto deram e que jazem hoje esquecidos numa vala qualquer nas matas da Guiné. (...)

Eu descomhecia esta versão. Depois da morte do Marcelino (em 11 de fevereiro de 2021), falámos ao telefone uns tempos depois. O Jorge Alves falou-me do seu projecto literário, em "stand by",  e das suas dúvidas sobre a oportunidade da publicação do livro em cima do luto. 

Incentivei-o a não desistir, sugerindo-lhe que desse mais atenção ao contexto histórico em que viveu o nosso camarada luso-guineense. Foi o que ele fez, aumentando e melhorando o texto que, entretanto, saiu publicado, sob a chancela de outra editora, a Livros Horizonte, em julho passado, com outro título, mas com os mesmos 15 capítulos e mais duas dezenas de páginas.(*)

A nova versão começa assim (cap I, pág. 17):

(...) Portugal teve o seu Vietname na Guiné. li, ao longo de 11 anos, num território do tamanho do Alentejo, morreram mais de três mil soldados portugueses, vítimas de um adversário temível e de um clima impiedoso. Muitos mais ficaram estropiados e com feridas na alma para toda a vida. Lutaram em condições pavorosas e, apesar de tudo, muitos foram além do que exigia o dever. De entre estes, um distinguiu-se dos demais, Foi, como quase todos, para a tropa porque  a isso o obrigaram. Ali aprendeu o ifício da guerra. Depois ficou porque goatou do que fazia. O seu nome ? Marcelino da Mata. (...)

 E termina assim (cap XV, pág.191):

(...)  Muitos anos volvidos, já no fim da vida, o tenente-coronel Marcelino da Mata olhava com alguma amargura para o que o rodeava. Sentia-se injustiçado. Havia até quem o acusasse de não passar de um criminoso de guerra. Também ele perdera duas pátrias. Mas daquilo que sentia mais saudades era do mato e dos seus companheiros, traídos pela bandeira verde-rubra à qual tanto deram e que jaziam esquecidos numa vala qualquer nas matas da Guiné. (...)

(Continua) (**)
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Notas do editor:

(**) Último poste da série >  3 de setembro de 2021 > Guiné 61/74 - P22507: Notas e leitura (1376): "Posfácio" ao livro "Um caminho a quatro passos", de António Carvalho. Apresentação da obra na Tabanca dos Melros, Fânzeres, Gondomar, sábado, 11 de setembro, às 11 horas

Guiné 61/74 - P22512: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XII: Alfredo Ambrósio Ferreira (Vila Real, 1893 - França, CEP, 1918), alf inf

Alfredo Ambrósio Ferreira (1893 - 1918)


Nome:  Alfredo Ambrósio Ferreira

Posto; Alferes de Infantaria

Naturalidade: Vila Real

Data de nascimento:  7 de Setembro de 1893

Incorporação:  1916 na Escola de Guerra (nº 363 do Corpo de Alunos)

Unidade:  4ª Brigada de Infantaria, Regimento de Infantaria n.º 8

Condecorações:  Cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada (a título póstumo) | Cruz de Guerra de 2ª classe (a título póstumo) | Promoção a Tenente por distinção (a título póstumo)

TO da morte em combate:  França (CEP)

Data de Embarque:  20 de Junho de 1917

Data da morte: 9 de Abril de 1918

Sepultura: (?)

Circunstâncias da morte:  Na batalha de 9 de Abril, comandou o seu pelotão com valentia e acerto na 2ª linha, para onde recebera ordem para retirar, oferecendo tenaz resistência ao envolvimento inimigo eempenhando-se no combate com valentia até cair vitimado pelos fogos dos atacantes.


António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 15 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22457: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XI: Alberto Slva Matos, cap inf (Braga, 1879 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P22511: Os nossos seres, saberes e lazeres (466): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (14) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Agosto de 2021:

Queridos amigos,
Férias repartidas, pois claro, primeiro a Lourinhã, uma delícia com tempo ameno, e agora Sines, com toda a gente a dizer que era um agosto atípico, por mim ainda bem, calor esbraseante já o tive na Guiné, sabem bem as baforadas da ventania, as manhãs com alguma neblina, passear pelos areais sem a inclemência do sol. É sempre com satisfação que se regressa a Sines, abraçar os amigos, visitar uma livraria (A das Artes) que resiste graças a uma vontade indómita do Joaquim, percorrer o Centro das Artes, lembrar o Emmerico Nunes, percorrer aqueles areais escalvados, que fazem parte dos 340 quilómetros da estonteante Costa Vicentina. E regressar a Lisboa semi adormecida, ir ao encontro de novidades como o fechamento daquelas paredes sempre em chaga do Palácio Nacional da Ajuda viradas para a Calçada. Foram dois num: gostei da solução e admirei a exposição dedicada ao reinado de D. Maria II, museologia de talento, para, como diz a publicidade, mais tarde recordar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (14)

Mário Beja Santos

O concelho de Sines tem muitas paragens obrigatórias. A vila em si incita-nos a ir ao Centro de Artes, ao Centro Cultural Emmerico Nunes, há igrejas e capelas, de visitar a Igreja de Nossa Senhora da Salas é conhecer um belo monumento nacional, temos o panorâmico castelo com um museu municipal e a Casa Vasco da Gama, e depois as praias, um desfrute dentro da chamada Rota Vicentina, a costa do Sudoeste, bem aprazível para desportos náuticos e um duche de luz por fragas e penedias que avançam ao acaso para o mar, fazendo em recantos prainhas recatadas que há muito deixaram de ser solitárias. E há a Lagoa da Sancha, Porto Covo, a ilha e o Forte do Pessegueiro. Só que a criança que nos acompanha tem 10 anos e é de muito boa memória e diz à boca cheia “já vi isso tudo, quero nadar, fazer castelos na areia e passear muito”, e assim terá que ser. Enquanto a dita criança se diverte à grande, aqui se confirma como a Natureza é pródiga, ao fundo passam constantemente os chamados porta-contentores, têm aqui porto de abrigo estratégico, prepara-se um pôr-do-sol esplendoroso e à cautela mostra-se uma grande angular de praias frondosas, tesouro permanente desta Costa Vicentina.
O contraste entre a praia e o campo é de grande peso, estamos num lugar chamado Paiol, talvez a sete quilómetros de Sines, é facto que estamos em agosto, gozamos de dias amenos, mas este céu de fogo que anuncia o fim do dia é pura vitamina para nos lavar a alma.
Uma última visita ao Centro de Artes, antes, porém, ainda se visitou o porto de pesca, deu-se com o nariz na porta da Igreja Matriz, vasculharam-se alguns estabelecimentos comerciais de gosto Art Deco, caso de A Primorosa, teimava-se em registar uma escultura metálica que é de um santo de culto do visitante, Rui Chafes, há umas boas décadas se sente um claro fascínio por esta aparente ilusão de artefactos medievais que tem uma fácil leitura de códigos da contemporaneidade. E mesmo à saída fixou-se um recanto como espaço e conteúdo, isto é, como de uma organização do espaço os irmãos Aires Mateus, alguém que sabe da poda de museologia e museografia dispôs as peças e sentimos um hino à modernidade, a satisfação de dar hossanas às Belas-Artes, neste diálogo entre a Arquitetura e as Artes Plásticas.
Não há uma satisfatória despedida de Sines sem vir a este local onde consta que foi nado e criado Vasco da Gama, ao que parece houve querelas terríveis quando Gama veio das Índias e aqui quis ser vulto e construtor, meteu-se em discussões com a Ordem de Santiago e El-Rei não teve pelos ajustes, pô-lo fora da vila, jamais lhe passou pela cabeça que a querela deixava indiferente a posteridade e que o lugar do Gama era mesmo o Panteão. Porque o destino nos troca as voltas, só para nos lembrar que não há permanência no certo e seguro.
Chegara o tempo, no sempre acalmado mês de agosto em Lisboa, em ir bisbilhotar o fechamento do Palácio Nacional da Ajuda, do que já ouvira escárnio e risota. Pelo contrário, sinto primores de imaginação na solução encontrada, verso e reverso, habituei-me a décadas de ver para aqui umas paredes escalavradas de palácio, a indiciar um sintoma bem nacional de entradas de leão e saídas de sendeiro, a solução parece-me digna, e por isso andei a espiolhar de cima a baixo, despedi-me desta visita indo até ao Jardim das Damas (mais um belo espaço a carecer de intervenção) só para confirmar que o arrojo da contemporaneidade dialoga bem com aquele classicismo de fachada solene e aquelas costas viradas para a Calçada da Ajuda que pareciam leprosas. Mas o que seria de nós sem o escárnio e o maldizer? Posta a cogitação, vai-se visitar o esplendor da Corte, a exposição dedicada ao reinado da Senhora Dona Maria da Glória, iremos ver uma outra bela organização do espaço neste fasto palatino. Fica para a semana.
(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22493: Os nossos seres, saberes e lazeres (465): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (6) (Mário Beja Santos)