sábado, 12 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23071: Os nossos seres, saberes e lazeres (495): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (41): Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2021:

Queridos amigos,
Passei vezes sem conta por Cernache, lembranças para visitas e satisfação da curiosidade nunca foram satisfeitas. A Empresa de Viação Cernache era uma lembrança da minha infância, a minha mãe levou-me na Rodarte para ver as amendoeiras em flor, em 1952, no Algarve e um ano depois viajamos na Empresa de Viação Cernache para Tomar. Como era professora primária, tudo era explicadinho, o itinerário não só até Tomar, o autocarro não se confinaria a Cernache, seguiria até às Beiras, naquele tempo era a rota obrigatória, o quadro só mudou quando apareceu a ponte sobre o Zêzere, então os expressos utilizavam a A23 e o IC8, a importância rodoviária de Cernache decresceu. Passei férias durante anos na Foz do Arelho onde na sala de jantar havia um quadro enorme de Túllio Victorino, o meu padrinho falou-me deste pintor elogiando a sua obra, daí o acicate em querer visitar o ateliê, desta vez não consegui mas um dia acontecerá. O Real Colégio das Missões é uma referência obrigatória para quem estuda as missões em África, alguns padres guineenses vieram estudar a Cernache e um dia que possa visitar a biblioteca hei de perguntar o que nela consta do primeiro sábio guineense de origem africana, o meu muito estimado Padre Marcelino Marques de Barros. Aqui ficam recordações, as primevas, da chegada a Cernache, haverá algumas mais, e depois vou vacinar-me na Sertã e visitar algo que provavelmente vos irá empolgar.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (41):
Em Cernache do Bonjardim e na Sertã, no dia em que aqui recebi a segunda dose da vacina (1)

Mário Beja Santos

Ao amanhecer de 9 de julho, parto de um lugarejo de Tomar com destino à Sertã, é dia da segunda dose da vacina. Organizei a viagem de modo a estar pelas dez horas na Junta de Freguesia e visitar o ateliê do pintor Túllio Victorino, o Seminário das Missões e o que foi a Empresa de Viação Cernache, de que guardo lembranças da infância. A que propósito o pintor Túllio Victorino? Passei férias numa casa alugada pelos meus padrinhos na Foz do Arelho, era a antiga colónia de férias do Colégio Moderno. Na ampla sala de jantar, o meu padrinho colocara um imponente quadro a óleo, a Praça dos Restauradores debaixo de chuviscos, o cinema Éden iluminado, o padrão aos heróis da Restauração numa semiobscuridade, impressionante obra-de-arte, hesitava entre o neoimpressionismo e o naturalismo. O meu padrinho esclareceu-me: “É do Túllio Victorino, excelente artista, não é Malhoa nem Silva Porto, mas anda perto”. Foram anos a fio a contemplar este quadro. E sempre que passava por Cernache, bem curioso com esta construção de 1910, compósita, com laivos de arabescos, telhados de beiral, azulejos moçárabes, janelas com laivos medievais, prometia a mim mesmo uma visita que jamais se efetuou. Apresentei-me na Junta de Freguesia, recebi uma obra sobre Cernache de Bonjardim e a informação de que o ateliê estava em obras. Comecei a digressão por Cernache olhando este revivalismo do princípio do século XX, os arcos em ferradura, e olhei demoradamente a estrutura de ferro e o janelão do salão. Túllio Victorino residiu aqui até 1969, o edifício entrou em degradação, a Câmara Municipal transformou-o no “Espaço Cultural Túllio Victorino”, em 2008.

Nora à volta do Espaço Cultural Túllio Victorino
Quadro a óleo de Túlio Victorino
Retrato de Túlio Victorino
Irresistível não fotografar este estreito caminho entre duas ruas, em Cernache do Bonjardim

Bati à porta do Seminário das Missões, houvera conversa telefónica com alguém que se revelara prestável, marcou-se dia e hora para visitar o antigo Real Colégio das Missões Ultramarinas, mandado edificar em 1791 e com a finalidade de preparar sacerdotes para o Grão-Priorado do Crato. No início do século XIX, Mariana de Áustria dotou-o com uma renda para formar padres para a China. O colégio foi encerrado em 1834 e reabriu em 1855 com a função de preparar pessoal missionário para os territórios ultramarinos do Padroado – assim surgiu o Colégio das Missões Ultramarinas. Segue-se a reviravolta de 1911, instala-se aqui um Liceu Colonial e depois o Instituto das Missões Coloniais. Em 1926, o edifício foi restituído aos seus antigos possuidores e em 1930 o seminário passou a integrar a Sociedade Missionária da Boa-Nova. Aqui se formaram centenas de sacerdotes, daqui saíram doze futuros bispos. Venho na mira de me ofuscar com a impressionante biblioteca e a sala das ciências. Quem me recebe nada sabe do telefonema anterior, o padre ecónomo está ausente, a informação é de que tanto a biblioteca como a sala das ciências estão em obras. Paciência, recebe-se permissão para fotografar a boa azulejaria, o claustro e lápides que recordam as missões ultramarinas e quem deu a vida por elas. Dia virá em que poderei aqui vir contemplar esta biblioteca com cerca de 7300 obras, há aqui mesmo um exemplar do dicionário em “Ambrosie Calepini”, que traduz uma palavra em dez línguas, e se possível aproveitarei para ir à sala das ciências para ver como se ensinava os missionários em tempos antigos.

Enquanto percorro estas instalações, penso nos documentos que tive a possibilidade de ler que governadores coloniais enviaram para aqui jovens para se formarem, inevitavelmente veio-me à mente o nome do Padre Marcelino Marques de Barros, que foi Vigário-geral da Guiné, e é seguramente o primeiro sábio guineense, já tem sido alvo de estudos, bom seria que a Guiné-Bissau tratasse a sua memória como património incontornável, saiu das suas mãos o primeiro dicionário de português e crioulo guineense, levantou histórias e tradições, sabe-se lá se se passeou neste claustro com que agora me despeço, ainda vamos continuar a falar de missionários, sigo depois para a antiga Empresa de Viação Cernache e depois a vacina e depois muitas coisas mais há para visitar na Sertã.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23051: Os nossos seres, saberes e lazeres (494): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (40): Os esplendorosos jardins do Palácio dos Marqueses de Fronteira (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23070: Parabéns a você (2046): Sargento Ajudante Ref da GNR, Manuel Luís R. Sousa, ex-Soldado At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72 (Jumbembém, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de Março de 2022 > Guiné 61/74 - P23067: Parabéns a você (2045): Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Bissau, 1965/67)

sexta-feira, 11 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23069: Fotos à procura de... uma legenda (163): Uma imagem relativamente rara, esta, de uma cançonetista, de minissaia, a atuar em Jabadá, por volta de 1969/70


Guiné > Região de Quínara > Sector de Tite > Jabadá  > CCAV 2484 (1969/70) >  Uma cantora actuando para as nossas tropas, numa iniciativa seguramente do Movimento Nacional Feminino. Foto do Manuel Antunes, ex-sold cond auto, CCAV 2484, Os Dragões de Jabadá (*)


1. É uma foto relativamente rara, que nos enviou o Manuel Antunes, dos "Dragões de Jabadá" (*).  Os espectáculos, em quartéis do mato, realizados pelo Movimento Nacional Feminino, com cançonetistas da metrópole, relativamente conhecidos, como a Flobela Queiroz,  não estão bem documentados no nosso blogue. 

A única exceção é o Conjunto Académico João Paulo, que tem vários referências no blogue (**). Mas os seus elementos, originalmente estudantes, estavam a cumprir o serviço militar. 

Facto desconhecido para muitos dos nossos leitores, foi a Cecília Supico Pinto  quem "conseguiu que os músicos do 'Conjunto João Paulo' cumprissem o serviço militar actuando no mato em digressões pelas 'províncias' ", revelação feita na sua biografia, escrita por Sílvia Espírito Santo ("Cecília Espírito Santo,o rosto do Movimento Nacional Feminino, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008, pp. 144). 

Ela sabia, de resto, da experiência norte-americana na II Guerra Mundial, da importância que podia ter, sobre o moral das tropas em África, as atividades de natureza lúdica, como os espetáculos musicais ao vivo, feitos por artistas em voga, vindos da metrópole. 

Não sabemos quem era a artista (vd. foto supra) que está de costas, a atuar em Jabadá, c. 1969/70. Talvez algum leitor a consiga identificar e sobretudo queira comentar, "acrescentando uma legenda à foto" (***).

Houve muito boa gente, do mundo do espectáculo, incluindo a Amália Rodrigues, que colaborou com o Movimento Nacional Feminino, quer na edição dos famosos discos de Natal (1971 e 1973), quer participando inclusive em digressões pelos quartéis do mato ou em concertos na metrópole para angariação de fundos.

Além dos músicos do Conjunto Académico João Paulo, talvez o caso mais conhecido terá sido o da cançonetista (e actriz)  Florbela Queiroz.

A Florbela Queiroz (nascida em Lisboa, em 1943) não sei se passou pela Guiné, mas diz ela que andou no mato 8 meses, em 1967 e 1968. "Nunca fui tão respeitada por toda a gente. Eu era nova, tinha 21 anos, era uma miúda gira, e andava lá no mato no meio dos soldados, comi da ração deles. Foi a época em que mais me realizei" (cit. por Sílvia Espírito Santo - "Cecília Supico Pinto: o rosto do Movimento Nacional Feminino". Lisboa, A Esfera do Livro, 2008, pág. 144).




O João Paulo Agrela, ao centro, o fundador do grupo. Está fardado, e era furriel, tendo morrido em 23/4/2007, mas o elemento mais conhecido do grande público era o vocalista Sérgio Borges (1943-2011).


Guiné > Zona leste > Geba > CART 1690 > 24 de agosto de 1968 > O conjunto musical João Paulo em digressão pela Guiné... Tal como no caso de  outros artistas populares na época, como a Florbela Queiroz, a digressão à  Guiné do Conjunto Académico João Paulo era uma  iniciativa do Movimento Nacional Feminino (MNF). Este  conjunto fez digressões também por Angola e Moçambique, durante a guerra colonial, além de países estrangeiros como os EUA. (Por exemplo, um ano depois, estavam em Moçambique a atuar para o BART 2838, 1968/70).

Foto (e legenda): © Alfredo Reis (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas dfa Guiné] (*)

2. Relativamente ao Conjunto Académico João Paulo... Foram fundadores do grupo, madeirense, pioneiro da música "rock" em Portugal (a par de Os Sheiks, Os Conchas, Chinchilas, Duo Ouro Negro, Quarteto 1111 e Demónios Negros, entre outros) os seguintes elementos:   

(i) João Paulo Agrela (1942-2007) (teclas);
(ii) Carlos Alberto Lomelino Gomes (guitarra) falecido no Funchal em 2020);
(iii) Rui Brazão (guitarra ritmo);
(iv) Ângelo Moura (baixo);
(v) José Gualberto (bateria, falecido em 2004);
(vi) e Sérgio Borges (1943-2011) (vocalista).  

Não sabemos se todos estes participaram nesta digressão à Guiné, em 1968 ou se estavam na altura a cumprir o serviço militar na Guiné... Três ou quatro elementos do grupo passaram pelo EPI (Mafra), onde fizeram a recruta, no turno de setembro de 1966... Como se vê, dois anos depois  ainda estavam na tropa... Do tempo de Mafra, ficou a canção (pouco conhecida) O Salto (disponível no You Tube).

O grupo extingiu-se em princípios da década de 1970.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 10 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23066: Tabanca Grande (531): Manuel Antunes, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484 - "Dragões de Jabadá" (Jabadá, 1969/70)... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 858

(**) Vd., por exemplo, 

25 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15406: (Ex)citações (302): O conjunto João Paulo, em 1968, em Susana... No fim do concerto apanhámos com umas valentes morteiradas (Domingos Santos, ex-fur mil, CCAÇ 1684, Susana e Varela, 1967/69)

22 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15395: (Ex)citações (300): (i) Conheci de perto, em Alhandra, o Conjunto Académico João Paulo... Ouvi-os ensaiar vezes sem conta... Fiquei farto... Mesmo assim preferia-os a eles a ter que ouvir, até à exaustão, nos "rangers", em 1966, o "Sambinho Chato" e o "Et Maintenant" (Mário Gaspar); (ii) link com a canção "O Salto" (EPI, Mafra, 1966) (Inácio Silva)

21 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15389: (Ex)citações (299): Atuação do Conjunto Académico João Paulo, no "600", em Bissau, em abril de 1968 (Manuel Coelho, ex-mil trms, CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894, Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23068: Notas de leitura (1427): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Para quem pretende estudar ou aprofundar conhecimentos sobre o pensamento, a ideologia, as qualidades de liderança de Amílcar Cabral, este punhado de intervenções feitas num Seminário de Quadros, que decorreu em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969, é uma excelente oportunidade até pelo leque de temas contemplados. Revela-se um comunicador de primeiríssima água, não se desvia dos temas mais polémicos como a unidade e luta, trata-o como vital para pôr termo ao colonialismo na Guiné e Cabo Verde, não ilude igualmente a base leninista que orienta a sua ideia de Partido, democracia revolucionária sim mas de acordo com a fidelidade aos princípios do Partido que ele consagrou com um grupo de fiéis, que igualmente não o contestam. Em poucos dias, e com vigor notável, desfia temas, conta histórias, motiva, insiste na tecla do combate ao oportunismo e aos corruptos. Quando se lê e relê esta sua obra é mesmo de questionar se para além dos estudiosos não devia ser tratado como um manual político indispensável pelo PAIGC atual.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (2/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral do Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. 

De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Após a calorosa saudação proferida e analisada a situação da luta ao tempo, fez questão de, nem sempre com uma inteira frontalidade, de ir direito ao tema polémico da unidade e luta. Paulatinamente, começa por discretear sobre o conceito de unidade e de luta, observa os termos da distinção da divisão em Cabo Verde e na Guiné, filosofa dizendo que a luta é uma condição normal de todos os seres do mundo, bem conhecedor de que não podia falar de idênticos parâmetros de colonialismo para a Guiné e para Cabo Verde, enunciou a fragmentação étnica guineense, a natureza da propriedade em Cabo Verde e disse que nenhum movimento que se tenha afirmado só a favor da Guiné ou só a favor de Cabo Verde tinha progredido. Deu o exemplo de um caso de unidade africana, a Tanzânia, resultado da união da Tanganica com o Zanzibar, mas não aludiu a todas as tentativas de unidade até então falhadas.

E então declarou: 

“Não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso”.

E como fosse necessário um exemplo bem-sucedido do valor da unidade, referiu que na primeira fornada de gente que fora para a cadeia havia guineenses e cabo-verdianos juntos. Adiantou que o PAIGC não podia aceitar a independência da Guiné sem Cabo Verde. E a questão de unidade e luta ficou arrumada. 

Debruçou-se seguidamente sobre os problemas de organização, recordou os dados da realidade geográfica, da realidade económica, social e cultural. Relendo estes textos décadas depois de que foram proferidas, é extremamente difícil acreditar que a plateia assimilasse os conceitos que iam exclusivamente na cabeça do líder, era ciência infusa, aquela plateia era constituída por jovens que não ignoravam o passado, o peso das hierarquias, a natureza do colonialismo com a sua ponta de lança de quadros cabo-verdianos, por vezes muito mais cruéis e incontestavelmente racistas comparativamente com o branco. 

Mas Cabral urdira estes tópicos com engenho e arte, de forma abreviada, tinha um discurso exaltador na manga que veio imediatamente, dirigiu-se aos melhores filhos do povo, à honestidade, à verdade, à responsabilidade, pontuando de vez em quando com “os melhores filhos da nossa terra é que devem dirigir o nosso partido e o nosso povo”.

E lançou alguns tópicos de modernidade para a força revolucionária de que ele era mentor:

“Há alguns camaradas homens que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, que soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso e que a força do nosso Partido vale mais na medida em que as nossas mulheres se empenharem para o dirigirem também”

Também criticou a mentalidade daqueles que não davam oportunidades aos jovens para assumirem mais responsabilidade, e uma vez mais advertiu que o oportunismo era uma séria ameaça para a vida do PAIGC: 

“No nosso meio, há também oportunistas que, sabendo que a nossa direção exige, para dirigir, os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer ao máximo os seus responsáveis, para estes os proporem como dirigentes ou como responsáveis. Temos de ter cuidado com isso, temos de os desmascarar, de os combater”

Era o sinal de que estava aberta a guerra ao carreirismo, aos ambiciosos, à gente mesquinha, à bajulice.E espantoso comunicador como sempre se mostrou, foi buscar uma história para rematar o tema que versava:

“Há um filme de que nunca me esqueço, porque foi uma grande lição para mim. Era a respeito de um rapazinho que foi educado num colégio de padres e que acreditava muito em milagres. Não conhecia nada da vida, porque fizera a sua vida no colégio e saiu de lá homem, com vinte e um anos. Todas as injustiças que ele verificava eram um mal; não entendia que, de um lado havia a miséria, gente que sofre, do outro, os ricos.

Mas ele conseguiu encontrar uma pomba que fazia milagres. E então, porque o seu pensamento estava ligado ao sofrimento dos outros, resolveu fazer tudo para ajudar os outros, para não haver fome, nem frio, para todos terem casas para morar, e cada um realizar os seus desejos; ele não pensava em si mesmo, mas pedia à pomba para fazer milagres para os outros. A pomba aparecia-lhe e sentava-se na sua mão. Ele dizia ‘Pomba, dá casas para aqueles pobres’, e apareciam as casas com tudo dentro. ‘Dá comida àqueles famintos’, e aparecia a comida, boa comida. Chegava mesmo a chamar as pessoas para perguntar o que é que queriam e pedia à pomba para lhes dar.

Até que, um dia, arranjou uma namorada e sentou-se com ela. A namorada pedia-lhe uma coisa e ele dava. Outras pessoas também pediam, mas ele já não tinha tempo, agora era tudo para a namorada.
Repentinamente, a pomba voou e foi-se embora. Acabaram-se os milagres e tudo o que ele tinha feito como milagre tornou a desaparecer. Mesmo com a pomba na mão, os milagres acabaram. Ele já não podia fazer nada pelos outros, porque só pensava na sua ‘badjuda’, na sua barriga.

Esta é uma grande lição.

Na medida em que formos capazes de pensar nos nossos problemas comuns, nos problemas do nosso povo, da nossa gente, pondo no devido nível e, se necessário, sacrificando os nossos interesses pessoais, seremos capazes de fazer milagres.

Assim devem ser todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido, ao serviço da liberdade, e do progresso do nosso povo”
.

E mudou de azimute, perguntando: contra quem está o nosso povo a lutar, para responder que os filhos do mato e agora combatentes não deviam esquecer, por um momento que fosse, o maior respeito e a maior dedicação pelas populações, a começar pelas áreas libertadas. 

“Tudo quanto se possa fazer para tirar a confiança da população em nós, castigando a população, mostrando falta de consideração por ela, roubando os seus bens, abusando dos seus filhos, constitui o maior crime que um camarada combatente ou responsável pode fazer, prejudicando o nosso Partido, prejudicando o futuro e o presente da nossa terra. É melhor sermos poucos, mas incapazes de fazer qualquer mal que seja à população da nossa terra, do que sermos muitos, mas com gente capaz de fazer mal”.

E deixou bem sublinhado que a luta era contra o imperialismo e os seus agentes e as forças materiais ou ideias que pudessem levantar-se no caminho da liberdade, caso dos procedimentos que pudessem prejudicar a imagem de verdade e rigor do PAIGC.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23055: Notas de leitura (1426): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23067: Parabéns a você (2045): Joaquim Sequeira, ex-1.º Cabo Canalizador do BENG 447 (Bissau, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Março de 2022 > Guiné 61/74 - P23063: Parabéns a você (2044): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

quinta-feira, 10 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23066: Tabanca Grande (531): Manuel Antunes, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484 - "Dragões de Jabadá" (Jabadá, 1969/70)... Senta-se à sombra do nosso poilão, no lugar nº 858

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, Manuel Antunes[*], ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70), com data de 6 de Março de 2022:

Caro camarada Carlos Vinhal:

Dizias que eram  precisos mais alguns dados para aderir ao blogue dos camaradas.

Sou natural de Duas Igrejas, Miranda do Douro e ainda sei falar mirandês.

Vai fazer 51 anos dia 8 de setembro de 2022 que emigrei para o Canadá,  cidade Toronto.

PS: -  Foi um primo meu, que também esteve na Guiné entre 1970 e 1971, que me deu o email dos camaradas. Que Deus vos dê muita saúde e muitos anos de vida pelo bom trabalho que estais a fazer, que gosto muito de ler.

Um abraço do camarada
Manuel Antunes
Condutor Auto da CCAV 2484
Jabadá - Guiné, 1969/70


Jabadá - Sector S1 - Tite - Manuel Antunes rodeado de crianças
Jabadá- Sector S1 - Tite - Manuel Antunes num posto de sentinela
Jabadá - Sector S1 - Tite - Quartel e ao fundo o Rio Geba
Jabadá - Sector S1 - Tite - No tempo das chuvas, Manuel Antunes junto do seu Unimog
Jabadá - Sector 1 - Tite - Manuel Antunes com alguns camaradas e meninos da tabanca
Jabadá - Sector 1 - Tite - Manuel Antunes com os seus camaradas condutores e viaturas
Jabadá - Sector 1 - Tite - Manuel Antunes e camaradas

Jabadá - Sector 1 - Tite - Uma cantora actuando para as tropas
Jabadá - Sector S1 - Tite - Quartel e ao fundo o Rio Geba
Toronto - Canadá - Manuel Antunes na actualidade, novo membro da Tabanca Grande, nº 859

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2. Comentário do coeditor CV:

Caro Manuel Antunes, bem-vindo à nossa tertúlia.

És mais um dos camaradas que rumou às Américas. Deixaste Duas Igrejas em 1971, rumo ao Novo Mundo, onde esperamos te encontres bem. Sei por um amigo e vizinho que os portugueses são muito considerados tanto no Canadá como nos Estados Unidos da América. Portugal está muito bem representado pelos nossos emigrantes, na esmagadora maioria bons profissionais, especialmente os mais novos, agora habilitados com cursos superiores.

Em boa hora decidiste aderir à nossa Tabanca Grande, enviando logo nas duas primeiras mensagens as fotos publicadas hoje e no poste anterior. Passas a ter o nº 858. 

Continuamos receptivos a outras que tenhas contigo, assim como a estórias que nos queiras contar. Só te peço que não nos escrevas em letra  maiúscula porque nos obrigas a passar tudo a letras minúsculas, excepto os inícios das frases.

Em jeito de despedida, deixo-te em nome dos editores e da tertúlia em geral, um abraço e os votos da melhor saúde.

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Notas do editor

[*] - Vd poste de 9 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23062: O nosso livro de visitas (215): Manuel Antunes, radicado em Toronto - Canadá, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70)

Último poste da série de 12 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22900: Tabanca Grande (530): José Carlos Rocha da Silva, ex-Fur Mil Inf da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4518/73 (Dulombi e Nova Lamego, 1974) que se senta no lugar 857 da nossa tertúlia

Guiné 61/74 - P23065: (In)citações (196): Bissau, Safim e Nhacra: havia ir e voltar... (Victor Costa / Virgílio Teixeira /Carlos Pinheiro / José Colaço)


Guiné 61/74 > Região de Bissau > CCS/BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) > 11 de março de 1968 > Safim > O alf mil SAM Virgílio Teixeira, na esplanada... da "Marisqueira de Safim". Em Safim, havia um cruzamento: para norte,   seguia-se para João Landim e Bula; para leste e nordeste, seguia-se para Nhacra e Mansoa. De Bissau a Nacra, eram pouco mais de 20 km, e daqui até Mansoa mais uns trinta... De Bissau a Safim, por Bissalanca, também seriam uns 20 km...


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Bissalanca > BA 12 >  c. 1973/74 > O Eduardo Jorge Ferreira, alf mil da Polícia Aérea, à porta dos seus aposentos, pronto para partir para Nhacra, para comer umas ostras, à civil, de sandálias, e com capacete de segurança, conduzindo a sua motorizada, de 50 cm3 (?), Yahama, matrícula G5907, e levando à boleia o seu amigo Jorge Pinto, alf mil, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74)...

Pormenor digno de registo: o Jorge Pinto, também à civil, de sapatinho de vela, meiinha branca, leva um capacete de segurança pouco ortodoxo: um capacete, branco, da polícia aérea... A ideia só podia ser do nosso saudoso Eduardo Jorge Ferreira (1952-2019), um homem prático e desenrascado...

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do Victor Costa ao poste P23058 (*)

(i) (...) Nunca deixei nenhuma missão a meio e não é agora que irei começar, isto para vos dizer que irei responder a todas as questões colocadas em todos os comentários e em particular ao Luís Graça ou a outros comentários que possam chegar. Eu só preciso de tempo para o fazer. Posso desde já responder ao camarada Valdemar Silva por ser aquele que coloca menos questões.

No tempo em que estive com a CCaç 4541/72 e até Agosto 74,  os autocarros da A. Brites Palma e os táxis que faziam serviço de Bissau para Safim e vice-versa nunca tiveram segurânça por não ser necessário. 

De vez em quando um táxi até trazia meninas de Bissau para satisfazer necessidades fisiológicas do pessoal. Isto quer dizer que nas operações que fazíamos não brincávamos. Serviço é serviço e conhaque é conhaque e isto foi uma das coisas que me orgulho ter aprendido com os "velhos", levávmos as coisas muito a sério.

Irei também enviar mais fotografias sobre Safim, João Landim Porto e outros locais acompanhadas de mensagens.


(ii) (...) Os camaradas Virgílio Teixeira e Carlos Pinheiro em conjunto não podiam ser mais precisos para caracterizar aquilo a que chamo a "marisqueira de Safim", o que demonstra que eram clientes assíduos, mas o primeiro não foi preciso na placa de informação rodoviária localizada 200 m mais a Norte. 

Trata-se das 3 placas,  cujas fotas foram publicadas em 6/3/2022 (**):  a do lado esquerdo João Landim 8 Km, com seta à esquerda e por baixo Porto e na parte central a placa Bula e uma seta à esquerda. Do lado direito da placa Ensalma 5 km com seta à direita. Se consultarem o Mapa no Google ainda existe no local a citada "marisqueira" mas não deve restar nada do edifício antigo.

No mês de Julho de 1974 iniciámos uma operação contínua de controlo e revista de todas as viaturas e civis que entravam e saiam de Bissau, em que todas as viaturas eram obrigadas a parar. Instalamos uma tenda de campanha junto à Base Aérea nº 12, em Bissalanca, precisamente ao lado dos caças Fiat G 91. 

Esta operação contava,  além da secção que eu comandava, também com a participação de dois elementos da Polícia de Segurança Pública de Bissau. Num desses dias um condutor civil cabo-verdiano que circulava na direcção Bissau-Safim,  não parou à nossa ordem e abalroou um elemento nativo da PSP. 

Imediatamente corremos para o condutor da viatura e dei-lhe ordem para sair com as mãos bem levantadas. Começou a gesticular, eu puxei a culatra atrás e dei-lhe ordem de prisão, entretanto o outro elemento da PSP  aproximou-se e meteu-lhe as algemas. 

Chamámos a ambulância e a ramona e lá seguiram os dois para Bissau. No dia seguinte comuniquei para à PSP  para saber do estado de saúde do agente, entretanto falecido de noite. Nunca mais soube o que aconteceu ao preso, nem se houve posterior investigação, eu limitei-me a fazer o relatório.

Entretanto a CCaç 4541/73 com o fim da comissão regressa à Metrópole e eu em Setembro sou colocado na CCS do QG em Bissau até ao meu regresso em Outubro de 1974. Bissau foi uma cidade segura durante o tempo que lá estive. Constava no entanto que haviam alguns problemas entre a nossa tropa pelo controle do Pilão, o Bairro das meninas, mas não era nada comigo.

Havia muito trânsito de viaturas militares em Safim, quer de Bissau para Nhacra ou Cumeré, quer de Bissau para Bula e vice-versa, era a artéria principal de ligação ao interior da Guiné e nunca senti insegurança até Safim e mesmo até João Landim Porto. 

Mas todos os dias em particular à noite eram realizadas patrulhas no mato e nas bolanhas circundantes desta estrada com objectivos definidos pelo Comando. Um Unimog 404 deixava a secção perto da estrada ou se a picada fosse minimamente segura deixava-nos mais no interior, a operação da noite durava em média 6 horas, a pé até ao objectivo e depois regressavámos ao ponto de partida e aqui não havia facilidades, porque era isto que nos dava segurança. 

Contactos com o PAIGC, zero!, apenas o grito das hienas. Do rio Mansoa para Norte as operações eram executadas pelo nosso Destacamento de João Landim Norte que se estendia até às imediações de Bula, onde também estive. Aqui a segurança das Jangadas na travessia do Rio era feita nós e uma LDM da Marinha. Ao fim de um mês com os "velhos", já me sentia seguro e as coisas tornavam-se mais fáceis.

Desloquei-me várias vezes a Bissau á livraria do Sr. Manuel Moreira em Benfica, penso que era perto do Palácio do Governador, para comprar livros e jornais, ia ao Café Ronda, onde gostava de apreciar o bater dos tacões das botas na marcha do render da Guarda para o palácio do Governador feita pela PM ao longo da avenida, tive conhecimento do rebentamento da granada que neste café provocou um morto e 63 feridos, mas não era coisa que nos tirasse o sono e fui ao café Pelicano perto do quartel da PM na Amura. 

Em Bissau, só senti alguma apreensão em meados de Março quando visitei com meu amigo fur mil  José Bilhau,  penso que dos Piratas do Guileje (CCAC 8350), amigos seus no hospital e vi pela primeira vez os seus camaradas a esfregar os dedos das mãos nos braços, pernas e tronco e ver o ferro a sair do corpo,mas isto era no Hospital e este à data estava bastante preenchido. 

Numa das minhas últimas deslocações a Bissau e de regresso a Safim apanhei um táxi um Peugeot 404, estabeleci conversa com o condutor um cabo-verdiano que me garantiu que os efectivos do PAIGC rondava os 7.500 homens, ouvi, calei, mas não acreditei. Em Safim os transportes A. Brites Palma funcionaram antes e depois do 25 de Abril. (...)


Guiné > Carta geral da província (1961) > Escala 1/500 mil > Bissau e povoaçõs a norte: Safim, Landinm, Bula; Nhacra, Mansoa, Mansabá...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2018)



 2. Outros comentários  ao poste P23058 (*)
 
(i) Virgílio Teixeira:

(...) Victor Costa, uma saudação especial pelo tema deste poste, pois sou um amante quer de Safim, Nhacra, João Landim, etc.

Nos anos de 67-68-69, fui lá muitas vezes, tantas quanto as minhas idas a Bissau, com a minha motorizada, não parava, por vezes acompanhado, a maioria sozinho. Ia à procura de mariscos em Safim, e à piscina do quartel de Nhacra. Depois era a aventura e conhecer novos sítios.

"Marisqueira de Safim", assim com este nome, não havia, era uma esplanada, café, cervejaria e servia uns petiscos para quem passava. Ficava perto do cruzamento e das marcas das estradas para João Landim e Mansoa / Nhacra. Tenho imensas saudades desses momentos, o pior era o regresso, na maioria das vezes já noite, e com uns copitos a mais.

Quanto ao assunto do Poste, e quanto à mensagem do amigo Lobo, não se preocupe pois não é só a idade e a memória. Na minha modesta opinião, e tanto quando me lembro, e somos dos mesmos anos, 68 e 69, nunca vi semelhantes viaturas tipo "ambulância", parecem-me da 2ª guerra mundial.

Por isso posso quase afirmar que não existiam no meu tempo estes autocarros. Podem ser posteriores, mas parece-me mais pós-independência.

Não reconheço nem as viaturas nem os lugares aqui ilustrados, lamento mas não é por falta de memória, se existiam passaram-me ao largo.

Quanto a segurança, nunca pensei no assunto, apesar de tantos quilómetros através do mato, em especial entre Bissalanca e Safim. Depois disso não sei nada.

Podem consultar as minhas fotos aqui publicadas nos meus postes. E quem puder acrescentar mais alguma coisa, que o faça, pois eram locais lendários. (...)

(ii) (...) Relembro aqui para quem já não se lembra ou não viu os postes, a minha narrativa do dia em que sonhei que tinha de ir de motorizada de Bissau até Mansabá, nem sabia onde ficava, era a seguir a Mansoa.

Depois de ir a uns banhos à piscina, encho o depósito da Peugeot, por vinte e cinco tostões, e vou para a estrada a caminho de Mansoa, mas a viagem foi curta, pois uma patrulha militar, teve de me identificar, pois eu ia à civil, eu não tinha documentos mas disse-lhes que era Alferes Mil do BCaç 1933, que estava nessa época em S. Domingos, e depois de pormenores que não me lembro, não me deixaram passar, e lá voltei desolado...

Com certeza se continuava a viagem nem chegava a Mansoa,  muito menos a Mansabá (**).  Era uma miragem, uma loucura, maluca da idade, e já tinha uns 25 ou 26 anos, que ficavam mais curtos com os copitos que nunca faltavam.

Um dia se melhorar da minha saúde, ainda me meto no jipe que tenho lá à minha disposição, com motorista privativo, e faço a vontade ao meu amigo do HOtel Coimbra, que teima em me ver lá... e vou até Mansab!... Até posso morrer por lá, é uma terra que ficou na alma, para sempre.

Perdoem estes comentários de quem já não bate bem... da mona!... São quase 80 anos!  (...)

Carlos Pinheiro:

(...) Estive 25 meses em Bissau e só me lembro das camionetas do Costa mas não sei para onde iam. Eram camionetas já com certa idade e algumas deviam ter o chassis empenado. A malta até dizia que camionetas do Costa "suma a cachorro de rabo de lado"...

Só fui uma vez a Safim. Tinha três dias de Guiné, tina ido em rendição individual para o BCAÇ 1911, mas nunca o cheguei a conhecer, era dia de Todos os Santos de 1968 e foi um camarada da Companhia de Transportes, que me arranjou cama lá na sua Companhia porque nos Adidos não havia nada, para além da confusão geral, e que me levou a Safim onde eu paguei o petisco, ainda com patacão da Metrópole, em agradecimento ao facto de ele me ter arranjado uma cama. 

Gostei do petisco, uns camarões, umas ostras, que eu nunca tinha comido e fiquei freguês sempre que podia e até um bocado de leitão aparaceu. A cerveja já não me lembro a marca mas estava fresca e escorregava bem. 

Foi nesse dia que houve um acidente grave com uma companhia que tinha ido comigo no Uíge, perto de Bula, por ter rebentado uma granada de bazuca em cima duma GMC da CT que já estava carregada de pessoal. Vi passar perto de uma dezena de helicópteros e com três dias de Guiné comecei logo a aperceber-me da situação. Nunca cheguei a saber se houve mortos, mas feridos foram imensos. 

Gostei do petisco mas nunca mais voltei a Safim. Para mim a fronteira era BA 12, em Bissalanca.  (...)


José Botelho Colaço:


(i) (...) Obrigado, Victor Costa, pelas fotos dos autocarros da empresa A. Brites Palma, é precisamente este modelo de autocarro que está gravado na minha mente de 1964/65. 

Quanto aos camaradas dizerem que a memória pifou,  talvez não... O que aconteceu foi que á medida que as malhas da guerra foram apertando,  os colonos deixaram de ter o seu papel activo e quase de certeza estes autocarros deixaram de circular,  por isso os camaradas não se lembram de os ver. 

Eu recordo de ver em Bafatá, ao lado do café do tio Bento, a carcaça de um autocarro abandonado, deste modelo. 

Resumindo, antes da Guerra, estes autocarros ciculavam em grande parte do território da Guiné, que se foram confinando com o rebentar e evoluir da guerra. 

A memória que eu tenho do dono da A. Brites Palma era um homem de baixa estatura,  já com os anos a pesarem sobre si mas um poligolota em vários dialetos na lingua nativa.

(ii) (...) Que a memória vai pifando não há dúvidas mas é devido á idade, é mais a doença da anosognosia do que a Alzheimer. Obrigado, 

Victor Costa,  por me avivares e confirmares tudo aquilo que guardo em memória e escritos pessoais.

O que me parece é que o sector de Bissau se manteve quase igual ou com pequeníssimas alterações pelo que nos contas durante o tempo que durou a guerra. Exemplo,  em 1964/65 até á jangada do João Landin ou via Nhacra era praticamente zona livre,  viajava-se sem qualquer problema, mas para Mansoaa também se ia mas já era uma pequena aventura e só durante o dia. No Pilão á noite só os mais aventureiros e alguma segurança. Quanto aos transportes em Bissau,  total acordo confirmas tudo o que guardo em memória.  (...) (***)

__________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 5 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18287: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XIV: o dia em que eu queria ir de motorizada, de Bissau a Mansoa... e a Mansabá!

Guiné 61/74 - P23064: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXIII: Manuel Augusto Farinha da Silva, ten inf (Lisboa, 1892 - França, CEP,1918)


Manuel Augusto Farinha da Silva (1892 - 1918)


Nome:  Manuel Augusto Farinha da Silva

Posto: Tenente de Infantaria

Naturalidade: Lisboa

Data de nascimento: 17 de Abril de 1892

Incorporação: 1909 na Escola do Exército (nº 157 do Corpo de Alunos)

Unidade: 3º Grupo de Metralhadoras, Regimento de Infantaria n.º 13

Condecorações: Cruz de Guerra de 2ª classe (a título póstumo)

TO da morte em combate: França (CEP)

Data de Embarque: 22 de Abril de 1917

Data da morte: 10 de Abril de 1918

Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l'Avoué

Circunstâncias da morte:  No combate de 9 de Abril de 1918, sob intensa barragem de fogos da artilharia alemã e, apesar de ferido com gravidade, comandou o reposicionamento das suas metralhadoras, recusando assistência sanitária enquanto daquela decisão não informou pessoalmente o seu Comandante de Grupo. Evacuado para o Hospital nº 58 (Inglês) faleceu no mesmo dia.




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 22 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23015: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXII: Luis Gonzaga do Carmo Pereira Ribeiro, cap inf (Viana do Castelo, 1885 - França, CEP, 1918)

Guiné 61/74 - P23063: Parabéns a você (2044): Joaquim Cruz, ex-Soldado CAR da CCS/BCAÇ 4512/72 e BENG 447 (Farim e Bissau, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 de Março de 2022 > Guiné 61/74 - P23056: Parabéns a você (2043): Cor Art Ref DFA António Marques Lopes, ex-Alf Mil Art da CART 1690/BART 1914 (Geba, Banjara e Cantacunda, 1967/69)

quarta-feira, 9 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23062: O nosso livro de visitas (215): Manuel Antunes, radicado em Toronto - Canadá, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Antunes, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 2484/BCAV 2867 (Jabadá, 1969/70), com data de 20 de Fevereiro de 2022:

Sou:
Manuel Antunes,
Soldado Condutor Auto
Companhia de Cavalaria 2484 - "Dragões de Jabadá"
Sector de Tite

Um abraço para todos os camaradas
Toronto - Canadá



********************

2. Mensagem enviada pelos editores ao nosso camarada em 28 de Fevereiro de 2022:

Caro camarada de armas Manuel Antunes
Pelo envio das tuas fotos, supomos que queres aderir à tertúlia do nosso Blogue, o que muito nos aprás.
Por favor, para que te possamos apresentar devidamente, manda-nos uma foto tua actual.

Esperando que estejas bem nesse bonito país, deixamos-te um abraço e votos de boa saúde.
Carlos

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22601: O nosso livro de visitas (214): Luís Sequeira, filho do nosso camarada Manuel Dias Sequeira, ex-1.º Cabo do Pel Mort 979 (Buba, 1964/66), falecido em 2008

Guiné 61/74 - P23061: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XII: Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo

 



Ilustrações ( (pp. 69-71) do mestre Augusto Trigo, pai da pintura guineense e grande ilustrador, 
a sua obra é uma referência
 



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga


1. Transcrição das págs. 69-71 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)



J. Carlos M. Fortunato 

Lendas e contos da Guiné-Bissau



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



Conto - O hipopótamo dá boleia ao lobo
(pp.  69-71)



O lobo (hiena) queria atravessar o rio, mas não podia porque este tinha muita água. Então foi pedir ajuda ao hipopótamo, para este o levar para o outro lado do rio.

O hipopótamo não gostava do lobo, porque este era malandro, e respondeu-lhe:

 Não tenho tempo, tenho que ir comer e depois vou descansar.

O lobo não desistiu, e pedia, pedia, sem parar:

 Tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência, ajuda com boleia, tem paciência…  – repetia o lobo sem parar.

O lobo não se calava e a cabeça do hipopótamo já não aguentava mais, e então disse:

– Está bem, vou levar-te para o outro lado nas minhas costas, mas se me fizeres mal, vais-te arrepender.

 Obrigado, obrigado  – disse  logo o lobo, ao mesmo tempo que se ria baixinho.

O hipopótamo desconfiou daquele risinho, mas pensou que talvez fosse porque o lobo estava contente.

E o lobo lá foi às costas do hipopótamo, até ao outro lado do rio.

Quando chegaram à outra margem, o lobo deu uma dentada no hipopótamo, arrancando-lhe um bocado de carne e fugiu rapidamente com ela na boca.

O hipopótamo ferido, lançou um grito de dor e de raiva:

 
  Aaarrgh!

O hipopótamo estava furioso, e zangado, mas ferido não podia correr atrás do lobo.

Algum tempo depois passou por ali uma lebre, que, ao ver o hipopótamo ferido, lhe perguntou o que tinha acontecido.

Ao saber da maldade do lobo, a lebre que também não gostava dele, disse:

 Esse lobo é mesmo muito mau! Eu vou-te ajudar. Eu vou trazer o lobo aqui. Fica aí deitado e finge que estás morto. Não te mexas!

A lebre foi para o mato e começou a tocar o bombolom (35), chamando todos os animais.

Quando estavam todos os animais reunidos a lebre disse:

 Está um hipopótamo morto na margem do rio, vamos comê-lo.

Ao ouvir isto, o lobo disse logo:

 
  Esse hipopótamo é meu, fui eu que o matei, e eu é que vou comê-lo.

Dito isto, o lobo correu para o local onde estava o hipopótamo, mas, quando se preparava para o comer, o hipopótamo abriu a sua grande boca e deu-lhe uma dentada.

E foi assim, que o lobo foi castigado pela sua maldade.

__________

Nota do autor:

(35) Bombolom - é um instrumento musical, que é tocado com dois paus, batendo-se num tronco de árvore ao qual foi retirado o seu interior, ficando com uma abertura em cima, de modo a servir de caixa de ressonância.


2. Como ajudar a "Ajuda Amiga"?

Caro/a leitor/a, podes ajudar a "Ajuda Amiga" (e mais concretamente o Projecto da Escola de Nhenque, que já foi inaugurada dia 8 deste mês, com pompa e circunstância), fazendo uma transferência, em dinheiro, para a Conta da Ajuda Amiga:

NIB 0036 0133 99100025138 26

IBAN PT50 0036 0133 99100025138 26

BIC MPIOPTP


Para saber mais, vê aqui o sítio da ONGD Ajuda Amiga:

http://www.ajudaamiga.com
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Guiné 61/74 - P23060: Historiografia da presença portuguesa em África (307): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (11) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É imprescindível ler toda a epistolografia de Honório Pereira Barreto para conhecer o patriota, que a despeito da indiferença dos seus superiores, contribuiu decisivamente para definir as fronteiras da Guiné, batendo-se com galhardia contra as autoridades francesas e britânicas, desvelando patranhas, recorrendo à ironia para pôr à mostra a grosseria de procedimentos de outros, enfim, cita-se aqui um documento fundamental em que conta, passo a passo, o que viveu em Cacheu, como procedeu para defender os interesses portugueses neste período crucial em que, em tenaz, franceses e britânicos procuraram pulverizar o que restava da Senegâmbia Portuguesa. Barreto impõe-se pelo brio, pelo bom-senso das medidas, pelas propostas mais ajustadas, pelo envio de cartas às autoridades francesas pondo-as a ridículo, tanto pela ignorância demonstrada como pela grosseria dos procedimentos. E avançamos em direção a 1879, altura que Senna Barcelos põe termo ao seu extraordinário e incontornável trabalho.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (11)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É de um indiscutível valor histórico esta epistolografia de Honório Pereira Barreto travada pelas autoridades francesas, percebe-se facilmente que não se pode investigar este período da colónia da Guiné sem ter em conta a documentação que sai do punho do Governador Barreto. Falando com o delegado francês em Selho, é polido quanto baste e exige a diplomacia, mas não escamoteia os factos, falando do assassínio de súbditos franceses que tinha sido praticado por gentes de Pacau:
“Creio que Vossa Senhoria estará plenamente convencido que os portugueses não concorreram, nem direta nem indiretamente, para tal desgraça. Não posso deixar de dizer a Vossa Senhoria quando em 1844, nós portugueses, estávamos em guerra nesse rio com os Balantas de Jatacunda, que também nos assassinaram e saquearam, os comerciantes de Selho não só levaram a tais gentios armas e munições de guerra, mas até lhe compraram uma canoa que eles tomaram aos portugueses. Vossa Senhoria quer estabelecer o princípio que os portugueses devem sofrer prejuízos para benefício dos franceses, e que estes, pelo contrário, devem-se aproveitar das perdas daqueles. Estas ideias não são deste século, nem da grande nação a que Vossa Senhoria pertence. A França é justa. Os portugueses, apesar do precedente que podiam apresentar, e que acima expus, não levam ao gentio de Pacau munições de guerra; apenas vão ali vender sal, como costumam há séculos; e Vossa Senhoria nenhum direito tem de impedir as nossas canoas de navegarem por todos os pontos do rio. Se Vossa Senhoria julga ter tal direito, não pode também recusar aos portugueses o mesmo direito, isto é, impedir que por Ziguinchor passem as embarcações francesas que vão para esse ponto do Selho. Se Vossa Senhoria, porém, quer abusar da força, há-de permitir-me que lhe diga que isso não é próprio do caráter generoso da nação francesa; nunca a força dá direito algum. Vossa Senhoria, falando do sangue europeu, parece fazer diferenças de raças, e mesmo usar de uma frisante ironia para com o delegado administrativo de Ziguinchor, que é de cor preta, mas que não cede a europeu algum em honra e dignidade. Não distingo cores, mas homens pelas suas qualidades boas ou más. Estou intimamente convencido que o ilustrado governo francês concede proteção a todos os seus súbditos, seja qual for a sua cor. Sinto realmente que Vossa Senhoria trate uma autoridade portuguesa com tão pouca consideração, que lhe dirija correspondência oficial num papel em que eu me envergonharia de escrever a um súbdito meu”.

Em Cacheu, em 27 de outubro de 1855, Barreto envia ofício confidencial ao Governador-Geral dando-lhe conta de como as coisas se processam em Ziguinchor, assim terminando: “Corre aqui a notícia que a França, reconhecendo os nossos direitos sobre Casamansa, prometeu abandonar os estabelecimentos que ali tem hoje. Se isso for verdade, fica a Guiné feliz, porque aquele rio exporta o dobro do que exportam os outros portos juntos”. Para Senna Barcelos, a situação era deprimente: “Pouco era o comércio da Guiné; os franceses no Casamansa e os ingleses em Bolama colocaram no mercado fazendas por preços tão baixos que os da indústria portuguesa não podiam competir”. Barreto era a figura central da política guineense, e assim se compreende como em 7 de junho de 1857 uma representação dos moradores de Bissau, incluindo oficiais militares, se dirigiu ao governo pedindo a recondução de Barreto no governo. Estamos na época em que o governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse em governo independente.

E Senna Barcelos conta-nos uma história rocambolesca:
“Em 10 de junho de 1856, tendo requerido o 2.º Sargento do Regimento de Lanceiros da Rainha, Venceslau de Andrade, para se averiguar se um seu tio de nome António Garcia de Andrade, de quem se dizia ter sido Governador de Cacheu e Comandante da Praça de Farim, era ou não vivo, foi mandado pedir informações a Honório Barreto que em 30 do mesmo mês respondeu: que nem o juiz Forâneo e nem o Administrador do Concelho de Cacheu souberam dar elementos para a informação exigida; que se houve engano no nome, este devia ser António José de Andrade, seu conhecido em Cacheu, e que faleceu em Farim, em 1842 ou 1843; este indivíduo viera degredado por toda a vida, com pena de morte se voltasse ao reino, constando que chegara a dar três voltas à forca, por crime de roubo; que chegara a Cacheu em 1833 ou 1834, assentou praça na companhia de 1.ª linha de Cacheu, onde foi promovido ao posto de sargento, e tendo dado a um certo governador um escravo de presente, este lhe rasgou a guia e o propôs então ao governador-geral para capitão de 2.ª linha de um dos redutos de Farim, passando depois a capitão-mor; que nunca fora governador de Cacheu mas sim comandante do presídio de Farim, o que é muito comum na Guiné”.

Continuam a fazer-se relatórios sobre a usurpação do Casamansa pelos franceses e Honório Pereira Barreto envia para o governador-geral um dos seus mais importantes relatos:
“Em 1829 cheguei eu a Cacheu vindo de receber em Lisboa uma mui limitada educação, porém, suficiente para poder avaliar e apreciar o procedimento das nossas autoridades em Cacheu. Notei que à indignidade e incapacidade dessas autoridades se devia o estado em que vim encontrar a pequena Cacheu. Bem se podia dizer que não havia governo porque não havia, nem quem entendesse o que era o governo, nem ao menos representasse o seu fantasma; porque o tempo era pouco para os empregados, incluindo o governador, ocuparem-se de um comércio, pois todos eram traficantes. O governador desse tempo andava na rua vestido indecentemente; passava dias a bordo dos pequenos navios estrangeiros de cabotagem que vão ali comerciar. Os estrangeiros tratavam e negociavam diretamente com os gentios tanto em Cacheu como em Ziguinchor. Pouca correspondência havia entre o Governador de Cacheu e o da Província. Para me resumir, direi que o governo de Cacheu era considerado uma aldeia de gentio independente. Em 1828 já os franceses haviam ocupado a ilha dos Mosquitos na embocadura do Casamansa: este facto tão significativo passou desapercebido em Ziguinchor e Cacheu; ninguém protestou nem disso deu parte. Tudo assim continuou até ao ano de 1834; fui nomeado Provedor de Cacheu, contava eu então 21 anos de idade. Os meus primeiros cuidados foram logo livrar o Concelho de Cacheu do domínio dos estrangeiros e da sujeição dos grumetes e dos gentios. Se tive aventura de obter o segundo objetivo, tive a desgraça, a grande desgraça, de ver os estrangeiros usurparem mais territórios nossos; obtive, contudo, tirar a esses estrangeiros toda a influência nos pontos ocupados por nós. Desde 1835 constou-me que os franceses iam ocupar um ponto ao sul da Gâmbia e que talvez escolhessem Casamansa. Tudo quanto um Provedor de Cacheu, enfim, um português, podia fazer, tudo fiz. Havia eu dado ordens muito terminantes para Ziguinchor para que se não tolerasse que os estrangeiros negociassem em outro ponto do Casamansa que não fosse Ziguinchor. O meu delegado cumprira esta ordem”.

É um documento memorável, peça obrigatória de consulta para quem pretende compreender o grande ecrã da questão do Casamansa. Descreve diligências, as suas idas a Ziguinchor, as cartas dirigidas ao governador-geral que não obtiveram resposta, a chegada dos franceses a Selho, Barreto protesta, pediu auxílio ao governador da Gâmbia, este respondeu que não era seu assunto. Barreto é nomeado Tenente-Coronel de 2.ª linha e então ironiza: “Apesar de o Ministro da Marinha haver declarado que eu era homem de cor, palavra esta que o redator ou editor escreveu em itálico; não há dúvida que o salutar prejuízo da cor, e porventura as conveniências políticas e sociais, exigiam que se fizesse tão interessante e imparcial declaração para serem devidamente apreciados tais serviços”.
A progressão francesa prossegue, a reação de Lisboa é sempre demorada e fraca. Barreto pede a demissão do governo em 1839 e diz no seu documento que teve o desgosto de ver destruído pelos seus sucessores tudo quanto havia feito, e diz sem rebuço: “Começaram logo a ter correspondência com os chefes franceses, em Selho, reconhecendo neles não só os títulos de comandantes que se arrogam mas o direito que julgam ter ao território. Mandaram retirar o destacamento que eu tinha posto em Gorm. O então Comandante de Ziguinchor, que é meu tio, cansado de participar ao Governador de Cacheu pactos, insultos e novas usurpações dos franceses, escreveu-me em 1844, narrando-me tudo, o abandono de Ziguinchor. Apesar de então nada ter com isso, pois era simpatia particular, vendo a apatia do governo fui a Ziguinchor, e à minha custa e em meu nome fiz e mandei fazer, com os chefes daqueles pontos, convenções, em que me cederam terreno, e ficava só reservado aos portugueses a navegação e comércio daqueles rios ou esteiros…”.

E continua a contar a história do Casamansa, desvela as mentiras de antecedentes da presença francesa no Casamansa e Senna Barcelos termina estas belas páginas revelando a carta que a Comissão Municipal de Bissau dirigiu a Barreto pedindo-lhe para não se retirar para Cacheu, a sua presença em Bissau era indispensável para o sossego público.


Continua
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)