segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23733: Louvores e condecorações (13): O Batalhão de Caçadores Paraquedistas (BCP 12), condecorado em 10 de abril de 1968, com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe


BCP 12, composto pelas CCP 121, 122 e 123. Imagem da página do Facebook do nosso camarada Victor Tavares [ex-1º cabo paraquedista, CCP 121/ BCP 12, BA 12,  Bissalanca, 1972/74; tem mais de 45 referências no nosso blogue ]:


Decreto 48328, de 10 de Abril

Corpo emitente: Presidência do Conselho - Secretaria de Estado da Aeronáutica
Fonte: Diário do Governo n.º 86/1968, Série I de 1968-04-10.
Data: 1968-04-10
  
Sumário. Condecora o Batalhão de Caçadores Pára-Quedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe.

Texto do documento > Decreto 48328

O Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12, aquartelado na Guiné, apesar da sua recente constituição, rapidamente se impôs como uma unidade de elite, agressiva, corajosa e audaz, com um notável espírito de corpo e apurada técnica na contrassubversão. 

A intensa atividade operacional que vem desenvolvendo é verdadeiramente notável, traduzindo-se em inúmeras operações, desde operações com larga duração, como, por exemplo, a «Operação Marabunta», em que durante cerca de um mês atuou permanentemente fora dos seus aquartelamentos,  e que foi um exemplo de tenacidade, espírito de sacrifício e apurada técnica, até a rápidos golpes de mão, em que com duros contactos infligiu pesadas perdas em material e pessoal ao inimigo, como, por exemplo, na «Operação Trovão», em que capturou cerca de 5 t de material de guerra, e a «Operação Ciclone II», em que aniquilou completamente um bigrupo inimigo, eliminando cerca de 40 dos seus elementos e aprisionando os restantes 19, todos armados.

Recentemente o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 atuou com brilhantes resultados em zonas onde já há largo tempo não havia acções da nossa parte, tendo-se especialmente distinguido no Cantanhez, no Como e no Quitafine.

A par das suas ações de força de intervenção, tem ainda sabido captar simpatias entre a população civil, exercendo uma notável ação psicológica junto dela, com resultados muito vantajosos para a luta contra a subversão que ali se trava.

Por tudo o que fica exposto, o Batalhão tem-se destacado, através dos seus oficiais, sargentos e praças, que formam um grupo equilibrado e homogéneo, exemplo da tropa de intervenção como uma verdadeira unidade de elite, contribuindo, de maneira decisiva, para a viragem da situação no Sul da província, honrando assim as forças paraquedistas e tendo da sua atuação na província, considerada brilhante e altamente honrosa, resultando prestígio para a Força Aérea e admiração e reconhecimento das outras forças armadas, pelo que merece ser apontado como exemplo.

Usando da faculdade conferida pelo n.º 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Governo decreta e eu promulgo o seguinte:

Artigo único. 

É condecorado o Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12 com a Medalha de Cruz de Guerra de 1.ª classe, por satisfazer às condições referidas no artigo 13.º do Decreto 35667, de 28 de Maio de 1946.

Publique-se e cumpra-se como nele se contém. 

Paços do Governo da República, 10 de Abril de 1968. - AMÉRICO DEUS RODRIGUES THOMAZ - António de Oliveira Salazar - Manuel Gomes de Araújo - Joaquim Moreira da Silva Cunha - Fernando Alberto de Oliveira.

Para ser publicado no Boletim Oficial da Guiné. - J. da Silva Cunha.

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Nota do editor:

domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

Guiné 61/74 - P23731: (In)citações (225): As questões éticas nos cuidados de saúde (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ



AS QUESTÕES ÉTICAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE

adão cruz

Com este título, AS QUESTÕES ÉTICAS NOS CUIDADOS DE SAÚDE, recebi em tempos um texto enviado pelo Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, solicitando a discussão do documento, a fim de que ele pudesse constituir um instrumento útil de reflexão.

Na altura, li e reli o texto com toda a atenção. Reconheço e aprovo os valores fundamentais que constituem o seu núcleo, mas não me parece que ele tenha uma significativa repercussão na consciência de médicos e de outros agentes de saúde. Como parte da população pertencente aos mais diversos sectores profissionais e sociais, uma boa parte de nós, médicos e outro pessoal de saúde, não tem a formação exigida para exercer uma verdadeira Ética em Saúde. Uma grande falha no ensino da medicina, capaz de comprometer seriamente o ensino da vida. A ética nasce e desenvolve-se dentro de cada um de nós à medida que a vamos aprendendo, apreendendo e vivenciando. Por isso, não me parece fácil haver uma reflexão séria sobre a nobreza dos ideais médicos, de forma a poder entender-se que “O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se, por esse facto, à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do Ser Humano”.

Isto não é um mandamento do código da estrada, nem uma alínea do articulado de qualquer lei. Este Artigo 26.º do Código de Deontologia Médica implica, antes de tudo, que o médico e outros profissionais de saúde tenham bem estruturado na sua natureza e na sua formação um rigoroso respeito por eles próprios, e reconheçam a sua dignidade como pedra fundamental da vida e da profissão. De outra forma, todos os códigos são letra morta e só servem para enfeitar. Dito por outras palavras, todo o ser humano deveria ser global e estruturalmente bem formado, mas especialmente quando lhe é destinada a nobre e digna missão de lutar pela vida dos outros. Uma boa parte da humanidade, ao invés de humanizar as leis, infelizmente vai-as subvertendo no dia a dia, ao tecer a corda cada vez mais forte com que enforca cada vez melhor os mais fracos. A este fenómeno podem não ser alheios os profissionais de saúde e a medicina, quer no que diz respeito à competência, quer no que diz respeito ao empenhamento, à verdade e à honestidade dos meios e processos inerentes a toda a sua vida clínica.

Considero e sempre considerei a Ciência o verdadeiro caminho do conhecimento. Mas a ciência pode ser e é muitas vezes uma eufemística boa fada da humanidade, criada para apoio dos fracos, passando rapidamente a suporte dos poderosos. Com todo o potencial que a envolve, é fácil atraiçoar os projectos humanitários e o seu histórico bom-senso, quando em vez de construtiva se torna factor degradante da vida humana. Mas o perigo não está na ciência. Está na perversão da ciência perante os apetites dos poderes. E também pode estar, infelizmente, na perversão da sua filha mais dilecta, mais séria e mais virgem, a Ciência Médica. De nada servem palavras e comportamentos formais e enformados, inertes, nascidos da adaptação e do conformismo, despidos da inquietação, do revolver da inteligência, do poder do pensamento e do questionamento da consciência.

Na minha maneira de ver, ser médico obriga a um especial dimensionamento da existência à escala da vida, da vida à escala da saúde, da saúde à escala da Justiça, da Justiça à escala do mundo. A visão universal da vida aponta para o núcleo activo das interacções multifactoriais da existência, o qual exige a presença de uma política humana que torne possível uma ciência humana, base indispensável do progresso e da justiça. Podem chamar utopia a tudo isto. Mas o remexer do que em nós existe de sério, o soprar do pó que cobre as nossas consciências e o desenraizar das nossas hipocrisias mostram-nos que, sem utopias, todo o ser humano se torna mais permeável à desumanização e à irracionalidade. E todos os que pensam e lutam sabem que “a utopia é a injúria ordinária que os medíocres atiram a todos os ideais”.

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23679: (In)citações (224): Um copinho de Filosofia (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

sábado, 22 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23730: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte IV: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte"...Valeu pela prestação dos nossos "camarigos" Giselda e Miguel Pessoa (Carlos Vinhal / Luís Graça / Hélder Sousa / Morais Silva / Joaquim Mexia Alves / Manuel Resende / António J. Pereira da Costa / Joaquim Costa / Jorge Ferreira)

 

Sic Notícias > Primeiro Jornal > Grande Reportagem > "Despojos de Guerra", 3.º Episódio: O Corredor da Morte (31' ) > 20 de outubro de 2022 > Miguel Pessoa e Giselda Antunes: fotogramas do "trailer" (2' 37'') (Com a devida vénia...) 


1. Seleção de comentários dos nossos leitores (*)

(i) Carlos Vinhal:


"Neste episódio, Giselda revela os processos de salvamento e conta como era recolher soldados feridos em territórios controlados pelas forças inimigas."

Esta expressão não será da autoria da nossa querida Enfermeira Paraquedista Giselda. Uma coisa era um "território" onde o conflito acontecia, outra seria um "território controlado" pelas forças inimigas.

Estas séries documentais são feitas para consumo do grande público, aquele que não esteve "lá", portanto nelas cabe tudo, incluindo imagens que não têm nada a ver com o que "lá" se passou.

Este episódio foi o que mais me interessou particularmente porque nele intervieram duas pessoas que muito prezo e que viveram a guerra nas suas vertentes mais duras. A Giselda porque viu e lidou de perto com o sofrimento e a morte de camaradas combatentes, e o Miguel, ele próprio uma vítima de armas poderosas, numa altura em que a guerra assumia um ponto de não retorno.

Uma coisa ficou por dizer é que o Miguel Pessoa voltou a voar nos céus da Guiné apesar do grande susto que apanhou em Março de 1973, quando o seu Fiat foi derrubado.

Muito obrigado a ambos porque muito lhes devemos enquanto infantes.

21 de outubro de 2022 às 15:15

(ii) Luís Graça:

Carlos, estamos de acordo: há sempre "questões terminológicas" nestes trabalhos de jornalistas que são "leigos" nestas matérias, eles e elas: é uma geração que nem sequer fez a tropa, muito menos pôs os pés na Guiné do nosso tempo... Ainda bem para eles, que são muito mais novos do que nós...

Confesso que dou de barato estes erros ou imprecisões... Mas nós temos a obrigação de pugnar pelo rigor... De qualquer modo, é preciso perceber que o estilo destes programas de "grande reportagem", para mais em televisão, não admitem demasiadas legendas, notas de rodapé e muto menos "explicadores" em voz "off record"... Isto não é uma aula ou uma conferência..., é um programa de televisão.

Se entares em pormenores "demasiado técnicos" (como o uso do napalm, que foi explicitamente falado pelo Miguel, e que precisava de ser "conteztualizado"; ou o funcionamento do míssil Strela), estás feito: o programa não capta a atenção do telespectador... Não te esqueças que estamos em "horário nobre", em competição com outras estações, e a Sic Motícias não é a RTP 2 ou o Canal História...

De qualquer modo, fizeste bem em lembrar que o nosso Miguel Pessoa teve que "voltar para o castigo", depois de recuperação no "resort" do Hospital Militar Principal, em Lisboa... É ele que que nos conta na sua apresentação à Tabanca c Grande, no já longínquo ano de 2009 (ainda escrevíamos todos Strella com dois ll):

(...) "Cumpri a comissão na Guiné no período de 18NOV72 a 14AGO74, com um intervalo passado em Lisboa (entre 7ABR73 e início de AGO73) para recuperar das mazelas sofridas quando da minha ejecção de Fiat G91, depois de atingido por um SAM-7 Strella durante um apoio de fogo ao aquartelamento do Guileje." (...)

21 de outubro de 2022 às 16:08

(iii) Hélder Sousa:

Pois sim senhor, um conjunto de circunstâncias favoráveis permitiram-me ver este episódio.

E, é verdade, também reparei em imprecisões, imagens de outros locais que não a Guiné, expressões menos acertadas ou carecendo de explicação mas, e há sempre um "mas", posso dizer que gostei bastante.

E gostei, logo à cabeça, pela serenidade dos depoimentos dos nossos camaradas e amigos, sem alardes de heroísmo, sem fanfarronices, sem vitimização. Tudo com sobriedade e até, em alguns momentos, com a revelação de situações dramáticas referidas como se "não fosse nada".

Gostei também porque, embora de forma abreviada, ficaram alguns tópicos para que, quem quiser, possa aprofundar e conhecer melhor aqueles tempos, aqueles locais, aquelas situações.

O proverbial humor do Miguel está bem retratado na forma brincalhona como se dirige à Enfermeira Giselda sobre a "temperatura da água" aquando do seu (dela) resgate da DO. A forma com a Giselda relatou o "embate" com a triste realidade com a "dar a mão" ao moribundo é realmente cativante.

Também poderia ser motivo para mais e melhores explicações a advertência/conselho que o Sr. Tenente-Coronel Brito deu ao Miguel de que não estava ali para medalhas mas para ajudar aqueles 40 mil que "lá em baixo" precisavam de ajuda.

Por fim, devo dizer que o "saldo" do episódio é positivo e que deixa margem para continuidade.

21 de outubro de 2022 às 16:56

(iv) Morais Silva:

Independentemente das imprecisões ou erros, o importante foi que a Sofia Pinto Coelho deu à luz um impressivo retrato do sofrimento de muitos e da abnegação, coragem e solidariedade de muitos outros.

Das enfermeiras páras guardo a imagem de prontidão e cuidado com que recolheram os meus feridos e os conduziram para lugar seguro no HM 241 considerado no mato como passaporte para a sobrevivência.

Com os pilotaços, só tenho dívidas, tantas foram as vezes que me apoiaram, eficazmente e sem delongas, quer em evacuações quer em apoio de fogos.

Para a minha camarada Giselda vai um abraço de muita estima e reconhecimento do, agora velho, capitão de Gadamael 1970-72. Para o Miguel Pessoa, meu contemporâneo na AM que não na Guiné, vai um grande abraço e o desejo de muita saúde.

Gostei de vê-los e rever a história incrível de que são protagonistas.

21 de outubro de 2022 às 18:14

(v) Joaquim Mexia Alves:

Valeu pela grande, sincera e emotiva prestação da Giselda e do Miguel, queridos amigos. O resto teve o enviesamento habitual com a profusão de imagens de Amílcar Cabral a contar mentiras e imagens de bombardeamento de napalm em sítios que não são a Guiné e a velha conversa dos territórios libertados e da supremacia aérea

Parabéns à Giselda e ao Miguel pelo seu contributo cheio de sensatez, bom senso, e verdadeiro

21 de outubro de 2022 às 20:25

(vi) Manuel Resende:

Comento só para dar um abraço ao Miguel e Giselda. Gostei muito de vos ver e ouvir. Andava ansioso pelo dia 20.

Não sabia que voltaste a voar para ir ver onde estava a Giselda, no acidente. Pelo menos percebi isso.

Já sabia a tua estória, do Marcelino da Mata a dizer "sou eu, o Marcelino", contado pelo próprio Marcelino, e igual com a tua versão.

Continuação de boa saúde para ambos e a ver se em Janeiro nos encontramos. Abraços,  Miguel e Giselda

21 de outubro de 2022 às 23:54


(vii) António J. Pereira da Costa:

Foi um mau programa de TV e, por ele poderemos avaliar os outros que, se calhar não conhecemos tão bem por se terem passados noutros TO...

Faço coro com o Mexia Alves: "Valeu pela grande, sincera e emotiva prestação da Giselda e do Miguel, queridos amigos".

Estou farto das imprecisões e de tudo do resto de que o Helder Valério fala (imagens de outros locais que não a Guiné, expressões erradas ou carecendo de explicação).

Como se diz às vezes "se não sabes jogar à bola porque não vais aprender? Mas não é assim! Estes "programas" mal feitos não são inocentes...

Enfim é a TV que temos. Que se escuda num trailleur demasiado longo e com numa ficha técnica final que nunca mais acaba. Ainda não entendi porque é que os noticiários têm que durar mais de hora...

Não se esqueçam que são estes "programas" que ainda por cima chegam atrasados vários anos, que vão ficar em arquivo e que futuramente farão fé, perante as "novas gerações eventualmente interessadas".

Já foi aqui perguntado: "O que querem os ex-combatentes?" Várias vezes a resposta foi "Respeito!" Programas construídos assim, passados mais de um ano depois de gravados, não são uma prova de respeito. Não sou adepto de que vale mais assim do que nada. E ficar agradecido - como os pobrezinhos - também não fico.

22 de outubro de 2022 às 11:26

(viii) Joaquim Costa:

Para quem não esteve lá,  “come” tudo como se fosse real e passado na Guiné, nomeadamente a injeção do piloto Pessoa.

Para os ex-combatentes é uma fraude. Como já alguém disse: Merecíamos mais respeito.
Ou melhor, o Pessoa e a Giselda mereciam mais respeito.

Acredito que a reportagem acaba por dar uma imagem aproximada do que foi o "annus horribilis"  de 1973, aproveitando imagens reais mas descontextualizadas. Tivessem o cuidado de visitar o nosso blogue e tudo seria mais real… e mais barato.

Quanto ao facto de dar voz, também, ao outro lado, não obstante sabermos como funciona a propaganda na guerra, ouvir só um lado, não seria sério, nem honesto… nem democrático. Ninguém é detentor de toda a verdade. Já nos basta as Coreias, Chinas, Rússias, etc.

Ficam as excelentes prestações dos nossos Maiores: Giselda e Pessoa. Contudo sou da opinião que é melhor isto que nada
 
22 de outubro de 2022 às 12:13

(ix) Jorge Ferreira:

(membro da Tabanca da Linha e da Tabanca Grande, ex-al mil, 3ª CCAÇ, Nova Lamego, Buruntuma e Blama, 1961/63):

(comemtário no Facebook da Tabanaca Grander)

Magnifico contributo para as actuais gerações se aperceberem do que foram as vicissitudes dos "então" jovens de 60/70.

Faço minha a frase "estas séries documentais são feitas para consumo do grande público".

Grato aos depoimentos dos Camaradas Giselda/Miguel Pessoa.
22 de outubro de 2022 às 12:48
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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 21 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23727: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte III: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte" ou.... "Uma história de amor improvável em tempos de guerra" (protagonizada por Miguel Pessoa e Giselda Antunes)

Guiné 61/74 - P23729: Os nossos seres, saberes e lazeres (534): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 11 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Estou de abalada, com o coração contrito, regresso a Lisboa com pouca trouxa, são imensas as saudades daquele tempo em que punha ao ombro um saco com as vitualhas pedidas pelas filhas e havia um saco de livros, cheguei a entrar no avião com quadros emoldurados, um deles com 1,20m de altura, as hospedeiras ficaram fulas, agora é um trolley com os artigos da sobrevivência, venho emocionado por esta viagem, pelos amigos reencontrados e pelas conversas que tivemos lembrando os que partiram, deu para lembrar versos do meu querido amigo Ruy Cinatti: "Hei de habitar no coração de certos que me amaram; / Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam; / Irremediavelmente... / Para sempre." Porque do prazer de viajar há esta doce alegria de termos um porto de abrigo, gente que habita no meu coração, e eu neles, para sempre. Por isso, logo que possa, regresso a esta região nórdica dos meus afetos.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (73):
Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia – 11


Mário Beja Santos

Despeço-me com lágrimas, a nossa amizade é enorme, confio plenamente que nos encontraremos em breve, aqui ou em Lisboa, mas não escondo que estou pronto para regressar, não tenho medo da chuva, do frio, da neve, dos dias curtos, levanto-me como as galinhas, pespego-me em frente do Palácio da Justiça, mais não seja para ver o que está em obras, se não chove nem se prevê ventania irei percorrer a minha feira da ladra, sempre à espera de um achado de valor incalculável, para a minha sensibilidade, deambulo por Marolles ou desço aos grandes boulevards, é aqui que estão os últimos alfarrabistas; ou posso lançar-me, através do Sablon em direção às instituições comunitárias, anda sempre comigo a lista de pequenos museus que eu tanto aprecio, como Charlier ou o Constantin-Meunier; ou pode passar-me pela cabeça, na Gare Central apanhar um comboio que me deixa em Malines, ou então numa outra direção, Liège; há sempre o passeio pelos jardins, basta pensar na floresta de Soignes, há os percursos à Arte Nova, há bairros que se fazem perfeitamente a pé, sempre para mirar as fachadas ou entrar em lojas de coisas em segunda mão, como Ixelles ou Saint-Gilles.
Fecho os olhos, é uma recapitulação em ziguezague, sem ordem, de coisas que vi, por dentro ou por fora. Fiquei a conhecer melhor as cidades-jardim de Watermael-Boitsfort, confesso, vivendo eu mais tempo na região de Logis que Floréal tem mais garridice, não tem aquele ar soturno daqueles tons verdes, nos meses da invernia. Os guias que me acompanharam reconheceram que aquelas cores levantam o espírito. São estas as primeiras três imagens que vos deixo.
Por uso e costume, não ponho imagens com gente familiar ou amiga. Esta visita não representava só o retorno às normalidades de um passado com que eu e amigos sempre tratamos com deferência, estamos agora a viver o chamado novo normal, o espectro da pandemia não desapareceu, mas estamos mais afoitos, a despeito de se saber que entrámos numa guerra económica mundial, com severas consequências para o chamado trem de vida. Esta minha amiga e eu próprio preiteamos a perda de alguém que estava no topo dos nossos afetos. E quando visitámos Villa Empain, estávamos com o astral elevado, e pedi uma fotografia encenada à minha querida Ika Vazvasoff. Não sei se a viatura era do senhor barão e milionário, o que importa é a alegria da Ika, um dos pontos mais marcantes desta viagem.
Por vezes as paredes de Bruxelas falam, registam memórias e formas subtis de aproveitamento de materiais que, embora tenham perdido o sentido do todo ou da homogeneidade, conservam uma enorme beleza. Alguém embutiu nesta parede azulejos Delft, deviam ter perdido préstimo, ganhou a parede com este invulgar património à vista.
É uma das atrações permanentes, a boa convivência dos belgas nas esplanadas que me levam a gostar de fazer sempre a pé estes percursos, em dias ensolarados, quem vive em Bruxelas vem conversas debaixo dos toldos ou sem estes, se se trata de um ensoleiramento de feição, é uma convivência esplendente, gosto destas pessoas que conversam sem gritar, não há para ali espavento, é sempre o espelho da bonomia, a marca de água dos belgas.
Quando, há cerca de 40 anos, comecei a vir com uma cerca regularidade a Bruxelas, impunha-se o edifício dos Halles de Saint-Géry, um velho mercado do peixe, que conheci soturno e abandonado, depois vi obras de cima a baixo, e quando visitei este património renovado deslumbrei-me com a sageza do multiusos: área de exposições (e que belas exposições lá vi, lembro a arquitetura dos anos 1950, coincidente com a exposição de 1958), ateliês didáticos relacionados com a promoção ambiental, venda de publicações a preços módicos relacionadas com a história de Bruxelas, uma acolhedora sala de convívio com serviço de bar e café, é um prazer visitar Saint-Géry, fica numa área onde pespontam hotéis baratuchos, da minha conveniência. Era fatal esta visita, de saudade e boa memória.
Outro edifício que conheci ao abandono foi o Old England, também tivemos um em Lisboa, muitos anos depois, e após uma excelente intervenção, aqui se prantou o Museu dos Instrumentos Musicais, onde é possível ouvir pequenos concertos de música de câmara ou recitais a solo a preços módicos, é uma impressionante obra da arquitetura de ferro, percorro lentamente o passeio, passo pelo espaço que foi a Livraria das Ciências, agora um estabelecimento de roupa fina, olho as montras daquela que foi a loja de discos melhor equipada, agora aqui se vendem cristais, mais a baixo havia a Galeria Tempera, aqui adquiri algumas obras, também mudou de ramo, há muitos estabelecimentos fechados, a pandemia alterou substancialmente a lógica do comércio, tinha que fazer este percurso, inevitável na romagem de saudade.
Museu dos Instrumentos Musicais, antigo Old England, perto da Place Royale

Para que este amor a Bruxelas se entranhasse, procurei estudar a sua história, conhecer o seu património, percorrer as suas comunas, fazer passeios para me sentir cativado pela Arte Nova, o modernismo, mas também as belezas naturais, a floresta, de beleza ímpar. E há que conhecer os cafés, os cem museus, as bibliotecas, procurar conhecer os edifícios da praça icónica, a Grand Place, os alfarrabistas, as igrejas. Com o passar do tempo, cheguei a viajar e usufruir do Dia do Património, foi assim que visitei o templo maçónico, o interior dos teatros, as velhas cristalarias, as beguinas, consolidadas as amizades havia as visitas aos museus comunais, como o de Ixelles. Como a escolha era enorme, e há muitos anos que não punha lá os pés fui visitar o Museu Constantin-Meunier, um pintor-escultor com renome (1831-1905). O ateliê do artista foi transformado em museu, interessou-se imenso pelo universo do trabalho, é marcadamente realista e os seus trabalhos em bronze são tidos como obras-primas. Mas para além das esculturas, há igualmente desenhos e aguarelas deste grande mestre. Foi a minha escolha, não estou nada arrependido.
Imagem do Museu Constantin-Meunier, em Ixelles

Nós dizemos “ver Braga por um canudo”, resolvi despedir-me da Grand Place com o máximo de discrição, como se tivesse ali de passagem, vivesse ou trabalhasse ali perto, parecia uma olhadela ocasional, no íntimo apeteceu-me dizer até breve, guardo Bruxelas no meu coração.
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Notas do editor:

Poste anterior de 15 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23712: Os nossos seres, saberes e lazeres (532): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (72): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 10 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 18 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23718: Os nossos seres, saberes e lazeres (533): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (5)

Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 17h543 > Um das nossas conhecidas ruas de Bafatá, já ao entardecer... Foto do João Graça, músico e médico, 40 anos depois do foto da mesma artéria tirada pelo Jorge Tavares, a seguir reproduzida.

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados    [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Bafatá > 1968 > Guiné > Bafatá > 1968> Foto do ex-furriel mil radiomontador Jorge Tavares, CCS/ BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70). (No livro, a foto é erradamente atribuída ao Humberto Reis, pág. 17).

Reconstituição feita pelo ex-fur mil op esp Humberto Reis, da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71): "Esta é (era) rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial; ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina; na primeira à direita, ficava o restaurante A Transmontana; do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT; a meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba".

Legenda do Amadu Bailo Jaló: "Rua de Bafatá. Do lado direito, junto ao carro estacionado, era a casa do Chico Paulo, um comerciante europeu; a casa a seguir, pintada de branco, era de um libanês, Assad, one trabalhava o meu pai (in: Amadu Bailo Jaló -  - p. 17)

Foto: © Jorge Tavares (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


 

Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)


1. Continuamos a reproduzir, aqui no nosso blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk".

Como temos sublinhado, o livro, publicado em 2010, está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações.  Basta ler alguns comentários recentes dos nossos leitores.


(i) Carlos Silva:

(...) Convivi muito de perto com o Amadu Djaló, pois encontrava-o quase diariamente em Bissau II / Rossio onde sempre trocávamos uns "dedos de conversa ". O Amadu era um homem calmo, honesto, bom conversador. Contribuí para o seu livro com várias fotos a pedido do nosso amigo e camarada Virgínio Briote que estão publicadas no seu interior e a contracapa é de um slide meu que o Virgínio gostou muito. Estive no lançamento do livro que foi nas caves do Museu Militar. Paz à sua alma. (...) 

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)
 
(ii) António Graça de Abreu:

(...) Maravilhas estes textos do Amadu Djaló (...) Que nos valha, falar a sério, perto do coração, o Amadu Djaló, na sua e nossa, tão precária e inesquecível Guiné.(...)  

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)

(...) Palavras justas e sentidas do Amadu Djaló. Ainda tive o gosto de o conhecer e de lhe dar um grande abraço. Homem superior. Não o esqueço. (...) 

23 de setembro de 2022 às 01:59 (***)


(iii) Lucinda Aranha:

(...) Pelos vistos, o nosso Amadu, que conheceu o meu pai em Farim,  era muito namoradeiro. Não perdia tempo. (...)

20 de outubro de 2022 às 20:31 (*)

(iv) José Botelho Colaço: 

(...) Conheci o Amadu,  tenho o livro com autógrafo do prórprio, encontrei-me com ele algumas vezes, mas havia um inicio de um novo trabalho do Virgínio   [o II volume],só que o Amadu deixou de ter condições  [de saúde ].para o prosseguir. Pergunto ao amigo Virgínio será que esse pequeno esboço não tem algo de interesse principalmente para a nossa geração que possa ser publicado?  (...)  

5 de outubro de 2022 às 16:53 (**)

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Sim, o Virgínio começou a trabalhar com o Amadu no II Volume (memórias do "exílio": Senegal, Portugal)...Só ele pode esclarecer em que ponto ficou o trabalho... Em princípio havia um manuscrito, original, sobre o qual os dois trabalharam em conjunto. Foi uma feliz parceria!... Nunca teríamos o livro publicado (o Volume I) sem a infinita paciência, generosidade e competência do Virgínio. (...)

6 de outubro de 2022 às 11:05 (**)

 (...) O que o nosso Amadu Djaló deve ter consultado em 1961, em Catió, foi um "mouro" ou "muru", um vidente... O seu antigo colega de escola Djá (que o tentou aliciar para o PAIGC) seria um vidente, alguém com "poderes mágicos" capaz de adivinhar o futuro e dar conselhos em matéria de saúde, amores, dinheiro, profissão... Proliferam em todos os tempos e sociedades... Em Portugal, há muitos de origem africana e brasileira... Parece que hoje na Guiné-Bissau se usa mais o termo "pauteiro" (do crioulo, "pautéru") para designar  vidente ou mágico. (...)
 
23 de setembro de 2022 às 12:08  (***)


2. Vamos reproduzir um excerto (ou melhor, dois) em que o Amadu fala dos seus primeiros anos de vida, entre 1940 (o ano em que nasceu) e meados dos anos 50 (em que empreendeu a sua primeira grande viagem, até ao país vizinho, a Guiné Conacri, terra dos seus pais, e onde se inicia no comércio ambulante). E depois até a idade, 21 anos, 1962, em que foi para a tropa, fazendo a recruta no CIM de Bolama (**).

Neste primeiro excerto, que publicamos hoje,  podemos ler a notável  descrição, em estilo oral africano,  que ele faz das suas andanças pelo território vizinho, ainda colónia francesa (até 1958), longe dos pais e em plena adolescência, com os seus 13/14 anos. Andou um ano e tal fora de casa, trabalhando com o irmão mais velho. Não tivemos coragem de cortar nada desta prosa saborosa...

Embora nos interesse sobretudo a história da sua vida militar, é importante conhecer  alguma coisa da infância, adolescência e juventudade do Amadu Djaló, para se perceber melhor a sua decisão de se alistar na tropa portuguesa, antes de completar os 22 anos (**). 

Futa-fula, muçulmano praticante, frequentou também, além da escola corânica, a escola católica de Bafatá onde conheceu o missionário italiano do PIME, Arturo Biasutti, e aprendeu a gostar de jogar à bola. Esta experiência, digamos ecuménica, teve seguramenet reflexos positivos na sua formação como homem e na sua conduta na guerra.

Neste primeiro excerto, vamos ver o jovem Amadau, com apenas 13 anos, em princípios de 1954, partir com o irmão mais velho para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe; viagem de nove dias, a pé, que o marcou na sua adolescência; o irmão levava uma série de carregadores com mercadorias (roupas) para vender em Boké.

Um ano e tal depois (!), em novembro de 1955, regressa à terra natal,  Bafatá, numa viagem longa, novamente a pé. Aos 16 anos vai conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.

Verenos depois como, desde muito jovem, ele  luta para  ganhar algum dinheiro e ser independente:  organiza, por exemplo,  bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobra as entradas; as meninas de então chamavam ao Amadu o Mari Velo (ou Mari Belo, como me parece mais lógico, podendo haver aqui uma gralha de transcrição do parte do "copydesk": o Amadu tricava os b pelos v...)..

Mas seguindo o resumo curricular que o Virgínio Briote (foto à direita)  fez do seu amigo e camarada (vd. anexos do livro, pp. 287/288), o  Amadu, enquanto não é incorporado, vai trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá; estávamos em 1958. 

Nos princípios de janeiro do ano seguinte, regressa a Bafatá; como sabe ler e escrever, é chamado para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quer dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente, e consegue abrir uma banca para vender srtigos no mercado de Bafatá.

Mas a incorporação está à porta, como já vimos (**):  recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, é alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama...

Já agora, ficam suamariamente, mais alguns factos relevantes da sua vida militar: depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim... Vai regressar à CCS/QG, depois vem os Comandos de 1964 a 1966, volta à CCS/QG, depois o BCav 757, BCaç 1877, BCav 1905 e BCaç 2856, todos sediados em Bafatá...

Em meados de julho de 1969, é transferido para a 15ª CCmds, seguindo-se então a 1ª CCmds Africanos, o BCmds da Guiné e a CCaç 21 (sediada em Bambadinca) até ao 25 de Abril de 1974.

E promovido a 1º cabo em 1 de janeiro de 1966 e louvado pelas atuações em operações nesse ano. É novamente louvado, em 1967, em Ordem de Serviço (OS) do BCaç 1877, de 30 de setembro de 1967, pelo seu comportamento em ações de combate  no período de 7 de janeiro a 24 de setembro de 1967.

É, entretanto, graduado em furriel em 6 de fevereiro de 1970 e em 2º sargento em 7 de novembro de 1971, tendo sido louvado pelas ações em que participou durante o ano de 1972. É ondecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973.

Segue-se a sua graduação  em alferes em 28 de junho de 1973. Pela sua atuação nas operações do ano de 1973 recebe novo louvor. Passa à disponibilidade em 1 de janeiro de 1975, devido à independência do território da Guiné: Mas aí começam os sobressaltos...

Em 1986 veio para Lisboa (depois de  se ter refugiado no Senegal, onde se estabelecera como comerciante). Em 2015 publica  o seu livro de memórias, gracas ao apoio do Virgínio Briote e da Associação de Comandos (capa  à direita). Morre em 15 de fevereiro de 2015, em Lisboa, no hospital militar,  aos 74 anos. (****)


Os primeiros anos da minha vida - Parte I: 
infância e adolescência (pp. 16-24)

por Amadu Bailo Djaló

Chamo-me Amadu Bailo Djaló, nasci em 10 de Novembro de 1940, em Bafatá, na freguesia da Nossa Senhora da Graça.

A minha família era da Guiné Francesa [1]. O meu pai, Tcherno Iaia Tata Djaló, nasceu em 1895, em Tata Fulamori, a meia dúzia de quilómetros de Piche, e a minha mãe, Ana Condé, que nasceu em 1904, era da vila de Boké.

O meu pai amava muito os seus filhos, era um homem que estou sempre a recordar. Trabalhou muitos anos como empregado de balcão numa loja de um libanês, de nome Assad.



Guiné-Bissau > s/l > s/d > Cerimónia do fanado. Fotos cedidas pelo autor, Ernst Schade [2] , reproduzidas no livro, nas pp. 18 e 19.

Os meus pais matricularam-nos, a mim e ao meu irmão mais velho,  na escola do Alcorão [3], que frequentei durante três anos. 

Em 1948 fui para o mato, com três irmãos e mais sete rapazitos para a circuncisão [4]. Ficámos num grande acampamento com um homem mais velho, que tomava conta de nós e que nos dava aulas de moral, lições de comportamento e como respeitar os mais velhos.

Dois meses depois regressámos a casa e passei a frequentar uma escola católica, mesmo em frente à nossa casa, onde jogávamos futebol com as bolas que os padres italianos nos emprestavam.

Havia lá um padre italiano, de nome [Arturo] Biazutti [e não Viazutti..., pág. 19] (*****), que gostava muito de mim, talvez por eu ter grande facilidade em decorar as orações. Hoje tenho pena de a ter frequentado só dois anos. O meu pai não me obrigava a ir e eu acabei por abandonar a escola.

Foi uma época que foi correndo feliz até 1954, quando o meu pai me deixou ir com o meu irmão mais velho a Boké, onde a minha mãe tinha família. (...)

Numa manhã desse ano  [de 1954],  parti de Bafatá, a pé, acompanhando o meu irmão Baba Galé Djaló, que levava três carregadores e as respectivas mulheres. Ia também connosco o nosso primo – irmão, Ussumane Indjai, a mulher dele e mais três carregadores, com grandes quantidades de camisolas pretas, então com muita procura na Guiné Francesa.

Em direcção à fronteira, a corta mato, a olhar para trás e a chorar, é assim que me lembro do início da viagem. Uma viagem muito longa, demorámos nove dias a chegar a Boké 
[hoje 5 horas, de carro, pela N3, cerca de 223 km. LG]- 

Durante o dia caminhávamos, à noite dormíamos em tabancas, onde nos deixavam passar a noite.

Em Boké tínhamos lá um tio, um irmão da nossa mãe, que não conhecíamos. Chegámos num dia à noite e passámo-la em casa de um homem que tinha uma mulher em Bafatá. De manhã, fomos para a praça, à procura do meu tio.

No passeio avistámos um homem, que fixou o olhar no meu irmão. Quando nos encontrámos deu a mão ao meu irmão e perguntou:

− Fula, de onde é?

− Da Guiné Portuguesa.

− De que parte?

− De Bafatá.

− Eu tenho uma irmã em Bafatá, chamada Ana Condé.

− É a nossa mãe  
− respondeu o meu irmão.

Era o meu tio, um homem alto, bonito, de cor clara. Agarrou-me na mão e levou-nos a casa dele. Apresentou-nos à família e aos vizinhos, que ficaram muito contentes por nos verem e terem notícias da família de Bafatá.

Os carregadores do meu irmão transportaram cerca de duas mil e quinhentas camisolas pretas. Levámo-las para Bofa, Doupurou, Colom, Mancunta, Colabui, Tamarance e Boké. Vendemos tudo o que levámos.

Eu estava na altura com cerca de 14 anos. Passado um mês, o meu irmão foi à Serra Leoa, comprar panos, lenços e contas, que passámos a vender nas ruas. Mas estes artigos não se vendiam como as camisolas e o meu irmão mandou-me com a mercadoria para a vender em Bintomodiá.

Dias depois fomos para a ilha de Baga e em fevereiro de 1954 regressámos a Bintomodiá. O meu irmão, que já estava em Boké, telefonou ao homem pedindo-lhe para comprar cola. Com o dinheiro que eu tinha juntado comprou 550 quilos de noz de cola e depois segui para Boké.

Acompanhado de Coto Bobo, três ou quatro quilómetros andados chegámos à estrada que ligava Conackry a Boké. Ficámos ali à espera de transporte e encontrámos um militar, que estava de férias, acompanhado de outro homem que lhe transportava a mala. Pouco tempo depois apareceu um jipe, com duas pessoas, um africano e um branco, que vinha a conduzir e que vim a saber depois que era americano. Pedimos boleia, o jipe parou e nós corremos para entrar. 

O americano disse logo que não podia levar três pessoas. O militar olhou para mim mas eu não quis saber de que assunto estavam a falar. Então, ele e o homem que o acompanhava saíram do jipe e fui só eu. Se soubesse não tinha ido, porque a boleia era só até Tamarance, que ficava a cerca de doze quilómetros de Boké. Eu não podia andar sozinho esses quilómetros todos, de noite, a pé, era ainda muito rapazito para uma viagem tão comprida.

Quando atingimos Tamarance, o americano parou o jipe e fez-me sinal para sair. E agora, onde é que eu estou? O sol estava a pôr-se, a noite ia cair não faltava muito. Condoído, talvez, por me deixar ali, o americano olhou para o relógio e fez um gesto para eu me sentar outra vez. Na minha ideia ele ia-me levar a Boké.

Pôs o jipe a andar e, passado pouco tempo, chegados a um monte, mandou-me descer e apontou com a mão uma tabanca ali em baixo. Agradeci-lhe e fiquei a ver o jipe desaparecer no meio do pó. Dirigi-me para a tabanca, onde à entrada das casas encontrei um homem com uma lata de mel.

− Mano, para onde vais 
  perguntei.

− Boké 
  respondeu.

− Eu também quero ir para lá, vamos juntos?

Disse que ficava essa noite na tabanca e que só ia para Boké na manhã do outro dia. Então, eu respondi-lhe que ia com ele.

Segui-o até uma grande morança, vedada com lascas de cana de bambu, com quatro palhotas, entrámos, vi as pessoas a cumprimentá-lo. Era muito conhecido ali, pensei. A certa altura, ouvi alguém perguntar-lhe para onde levava ele o rapazito.

 
−  Não sei de onde ele vem, disse que vai a Boké  − respondeu.

Aproveitei para dizer que vinha de Bintomodiá, que tinha apanhado boleia num jipe e pedi-lhes para me deixarem passar a noite com eles. O homem disse logo que não tinha vindo comigo, que só nos tínhamos encontrado na estrada.

O homem da tabanca mandou-me ir embora o mais depressa possível. Implorei-lhe, mas ele ameaçou-me com porrada, sempre a dizer alto, "vai-te embora, vai-te embora". Mantive-me sentado e quando o vi levantar a mão para me bater, levantei-me, abandonei a casa e fui para a estrada. Era noite, já estava muito escuro.

Fui a outra casa pedir para me deixarem dormir na varanda, mas responderam que fosse a casa do chefe da tabanca, que era o homem que tinha ameaçado bater-me. De casa em casa, a resposta foi sempre a mesma.

Atravessei uma ponte de ferro, para o outro lado, e dei com outra tabanca, onde só falavam sosso. Havia uma casa, um pouco afastada das outras, e, como não vi ninguém, entrei na varanda, que tinha uma maca. Pensei logo em aproveitá-la para dormir. Quando me sentei nela, a maca fez barulho e ouvi uma voz de homem a perguntar quem estava ali. Voltei a levantar-me, o barulho voltou a ouvir-se, a voz do homem também e eu saí dali sem dizer nada.

Vi a luz de um candeeiro a chegar, alumiou-me a cara, e uma voz perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer. Que queria descansar um pouco, respondi. Era um velhote, que também me mandou ir embora, a gritar alto que fosse para a estrada, que era lá que se pedia boleia, na casa dele não.

Agora o único plano que eu tinha era chorar alto, para as pessoas ouvirem e ficarem incomodadas. Eu chamava alto pela minha mãe, mas ninguém se aproximou ou quis saber de mim. Estive ali a chorar até já não ter mais lágrimas.

De um momento para o outro, ouvi o ruído de um carro a aproximar-se, corri para a ponte e pus-me no meio. O condutor teve que parar e eu pedi-lhe boleia para Boké. Reparou que eu tinha a camisa toda molhada e mandou-me entrar e sentar-me na cabine, entre ele e o outro homem que o acompanhava. Contei-lhes o que se tinha passado nessa noite, enquanto rumávamos para Boké. Deixou-me perto da casa do meu tio, onde encontrei o meu irmão.


Guiné > Bafatá > Mercado local > c. 1968/70 > Foto de Fernando Gouveia (publicado a preto e branco no livro, pág. 32)


Em novembro de 1955 regressámos a Bafatá, também a pé, com os carregadores, outra viagem que nunca mais tinha fim. Às dez horas de uma manhã, entrei na minha casa. 

Depois de matar as saudades dos meus pais e da minha família, fui ter com um santomense, o Carlos Espírito Santo Rafael, que tinha um negócio de venda de fruta e uma taberna ao lado. Trabalhava lá um irmão meu, numa grande horta, com cana-de-açúcar, goiaba, limoeiros, mangos, bananeiras e ananases.

Na altura, com cerca de 15 anos, comecei a trabalhar lá também. Carregava a cana para os carros e levava-a para a destilaria onde se fazia aguardente de cana. Entrava às sete da manhã, fazia um intervalo ao meio-dia para almoçar e retomava o trabalho das 14 até às 17h00 
 [nove horas e meia de trabalho por dia... LG]  

Ganhava 4 escudos por dia [1,94 euros a preços atuais... LG] , que recebia ao mês. Mas raramente recebia o mês inteiro. Quando nos via a urinar ou a mastigar um pedaço de cana, o patrão descontava-nos cinco dias ou 20 escudos [9,68 euros a preços atuais... LG] , por isso raramente recebíamos o mês inteiro. Trabalhei lá, na horta do Rafael, durante um ano, ou nem tanto.

Num dia em que fui visitar o meu pai na loja do Assad, na praça de Bafatá, encontrei um sobrinho do patrão do meu pai, chamado Salimo, que me convidou a ir com ele, trabalhar como capataz, numa obra que estavam a fazer no Gabu [5]. 

De junho de 1957 a janeiro de 1958 fui o capataz da obra, o meu trabalho era contar, ao princípio da manhã e da tarde, os trabalhadores que estavam presentes e entregar a lista do pessoal ao Salimo, para ele fazer os pagamentos todos os sábados.

A seguir ao regresso a Bafatá 
[, no início de 1958], o Salimo encarregou-me de entrar na campanha da mancarra [6]. Nesse tempo, era costume adiantar dinheiro aos agricultores e eu passei a ir numa camioneta, às tabancas cobrar as dívidas, receber a mancarra correspondente ao dinheiro ou ao arroz que tinha sido adiantado. A seguir pesávamos a mancarra e procedíamos aos acertos. 

Depois da campanha da mancarra começámos com a do óleo de palma e depois a do mel e da cera, trabalho este que durou até Junho de 1958.  Salimo queria que eu continuasse a trabalhar com ele mas decidi não ir. O dinheiro que estava a ganhar neste trabalho não compensava, qualquer jila [7] ganhava muito mais.

Voltei para casa e, em julho 
[de 1958],  fui trabalhar com o meu primo, Ussumane, que se dedicava ao negócio do gado. Comprava em Piche, Canquelifá, Buruntuma, Pirada e Paunca e depois levávamos o gado, a pé, para o vendermos em Bissau.

Para o que estava habituado ganhava muito dinheiro mas era um trabalho muito árduo. De Bafatá a Bissau, nunca demorávamos menos de dez dias.

__________

Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Os Fulas da região do Gabú são originários da antiga Guiné Francesa. Os Futa-Fulas vieram do Futa-Djalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Toro, Futa-Quebo…)

[2] Nota do editor: Ernst Schade (1949, Holanda), especialista em agricultura tropical, trabalhou durante cerca de 16 anos na Zâmbia, Zimbabué e Moçambique, com instituições governamentais e não-governamentais em programas de desenvolvimento rural. De 1989 até 1995 foi o representante em Moçambique da Organização Norueguesa “Save the Children”. Ernst é um amante da fotografia, agora a sua principal actividade. É representado pelas agências de fotografia Hollandse Hoogte (Holanda) e Panos Pictures (UK).

[3] Nota do editor: a religião seguida pelos Futa-Fulas é o Islamismo, herdado dos árabes, segundo as tradições escritas.

[4] Nota do editor: é aproximadamente entre os onze e os quinze anos que os rapazes Fulas vão ao “fanado”. No dia combinado entre as famílias e o “operador”, os jovens dirigem-se para o mato, onde são aguardados junto a uma árvore. Cada um leva uma pessoa, um amigo ou familiar (um irmão já circuncidado), para o segurar no momento da intervenção. Tiram as roupas e os corpos são cobertos com cinza. Os jovens dispõem-se numa grande roda, voltados para nascente e o “operador”, munido de uma navalha bem afiada, procede à circuncisão do prepúcio. O familiar ou amigo do jovem faz-lhe um penso, cuspindo um pouco da cola (que esteve a mastigar) sobre a ferida ou espalhando uma mistura de ervas e cola moída, após o que liga a ferida com uma tira de pano, em volta dos rins de forma a manter o pénis em posição horizontal. O penso é mudado ao fim de três dias e as lavagens são feitas com água a cair de uma determinada altura. 

Depois da cerimónia os jovens recolhem a uma barraca, onde permanecem trinta dias, sob a vigilância dos responsáveis. Durante este período recebem ensinamentos destinados a orientar-lhes o comportamento futuro, como membros da comunidade familiar ou da etnia. Dormem de costas enquanto a ferida não cicatriza e não lhes é permitido olhar para as mulheres ou raparigas nem tão pouco falar com pessoas estranhas à cerimónia. Durante o tempo que permanecem na barraca do “fanado”, a família prepara uma túnica de pano de cor branca ou azul e uns calções do mesmo tecido. No fim dos trinta dias regressam às suas casas, após o que se segue a festa da saída do “fanado”, aberta a toda a gente.

[5] Nova Lamego.

[
6] Amendoim.

[7] Vendedor ambulante.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

(**) Vd. poste de 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

(ªªª) Vd. poste de 22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

(****) Vd. poste de 22 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)

(*****) Deve tratar-se de Arturo Biasutti, que esteve vinte anos na Guiné, entre 1946 e 1966. Pertencia ao PIME (Instituto Pontifício para as Missões no Exterior). Vd. aqui algumas das suas publicações sobre a Guiné-Bissau:

BIASUTTI (Arturo), Venti anni in Guinea Portoghese (1946-1966). Ricordi personali e privati del padre Arturo Biasutti del PIME. Marino, Villa Scozzese (Italia), 1967. Policopiado.

BIASUTTI (Arturo), Vokabulari kriol-purtguîs (Esboço -. Proposta de Vocabulário).
Bafatá (Guiné-Bissau), 1982. (1ª edição). Segunda edição, com o mesmo título, Bubaque (Guiné-Bissau), 1987.

BIASUTTI (Arturo), Jisus nô Salbadur. Esta obra foi escrita com o pseudónimo de PA BIÀS. Bubaque (Missão Católica), 1972.

Fonte:  Vd. Dioceses da Guiné-Buissau > O que diferentes Missionários da Guiné-Bissau escreveram sobre a própria Guiné-Bissau, Por Fr. João Vicente, ofm

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23727: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte III: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte" ou.... "Uma história de amor improvável em tempos de guerra" (protagonizada por Miguel Pessoa e Giselda Antunes)



Sic Notícias > Primeiro Jornal > Grande Reportagem > "Despojos de Guerra", 3.º Episódio: O Corredor da Morte  (31' ) > 20 de outubro de 2022 > Miguel Pessoa e Giselda Antunes: fotogramas do "trailer" (2' 37'')  (Com a devida vénia...) (*)


1. Gostei da "prestação" dos nossos "camarigos" Miguel Pessoa e Giselda Antunes (, depois, Pessoa, por casamento com o Miguel)... O mesmo é dizer, tem mérito o trabalho da equipa da jornalista e realizadora Sofia Pinto Coelho, que os entrevistou, no Museu do Ar - Polo de Alverca, há cerca de um ano atrás. (Só agora, devido à pandemia e à guerra da Ucrânia, esta série foi para o ar, devendo ser exibido, no próximo dia 27, o 4.º e último episódio, dedicado ao tema dos "filhos do vento").

O Miguel e a Giselda foram protagonistas de uma história de guerra, já conhecida há muito dos leitores do nosso blogue, mas é bom que fique também  gravada, em programas televisivos como este, e que chegue ao grande público. 

Um dia de gravações é resumido ou condensado em escassos 30 minutos. É o preço que se paga pela produção televisiva, que é caríssima. Podemos apontar alguns erros e falhas na narrativa e na escolha das imagens (à equipa faltou a asssessoria de especialistas em história militar e "air warfare": vejam-se as imagens da rampa fixa de lançamento do Strela, que o PAIGC não chegou a ter durante a guerra; ou o bombardeamento da aviação, com um tipo de avião e de bombas que a FAP não usava no TO da Guiné...). Mas o mais importante é o lugar de honra que, neste episódio, cabe a dois "camadas de armas", que representam algo mais do que eles próprios, 

Para além da sua história pessoal (e ambos passaram por situações muito dramáticas, duas das quais são aqui contadas e reconstituídas), para além dos seus destinos que acabaram por se cruzar, na guerra e no amor), o Miguel e a Giselda representam os nossos bravos pilotos e as nossas não menos corajosas e pioneiras enfermeiras paraquedistas. 

Miguel e Giselda, gostei de vos rever sob os "céus da Guiné", onde vocês deram o vosso  melhor na paz e na guerra. (E continuaram, depois de 1974, a servir a FAP e Portugal.)

Este é o comentário que faço, em cima do joelho, antes de ir para a minha sessão matinal de fisioterapia,  Prometo voltar ao episódio nº 3 da série "Despojos de Guerra", depois de rever o programa, que gravei. E deixo a porta aberto para os valiosos comentários dos nossos leitores..Mas,  por favor, não digam que o jornalismo português não se interessa pela "nossa" guerra... Ou que o trabalho dos jornalistas portuguesas sobre a "nossa" guerra, é sempre mau ou superficial ou trapalhão... Ou que há uma "pobreza franciscana" nos arquivos sobre a "nossa" guerra... Em suma, não digam sempre mal... 

PS1 - Convenhamos: o subtítulo pode  enviesar o sentido da história... De qualquer modo, as televisões, em concorrência feroz pelas audiências, precisam de títulos e subtítulos apelativos: "O corredor da morte" é um deles, mas na reportagem não se explica que raio de "corredor" era este, que passava por Guileje... onde o avião do Miguel foi atingido por um Strela em 25 de março de 1973... 

Quanto ao "subtítulo", "uma história de amor improvável em tempo de guerra", convenhamos, que é mais atrativo... Todo o mundo está cheio das imagens brutais da guerra que nos entra pela casa adentro, nos telejornais... O amor "humaniza" (?) ou "ameniza" a guerra... E, neste caso, também uma história de amor que dava um filme, como alguns de nós aqui já escreveram... Envolvendo dois seres humanos maravilhosos que foram militares, vestiram a mesma farda, honraram a mesma bandeira, e tinham (e continuam a ter)  além disso, mais outras coisas em comum, como muito bem explicou o Miguel: o sentido da lealdade, da solidariedade, da camaradagem... (e, eu já agora acrescento, o bom humor, a fina ironia, bem patente em duas ou três frases que ressaltam da entrevista: por exemplo, quando o "safado" do Miguel perguntou à "pobre" Giselda, que caiu o charco" da ilha do Colmo, em novembro de 1973,  quando o motor da DO-27  parou, e foi resgatada depois pela marinha, "se a água estava morninha"...).

Este episódio vale pela entrevista a estes nossos dois grandes "camarigos": um lisboeta, o Miguel, a outra, transmontana, a Giselda, da terra do grande poeta e contista Miguel Torga, São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás os Montes (ou o "Reino Maravilhoso")... Vá lá, Giselda, a jornalista não te trocou o nome (costumam chamar-te Gisela...).

Quanto ao Miguel Pessoa, "lisboeta"... Sei que ele é alfacinha, de gema, nascido na Penha de França. Mas que, aos dois anos, "djubi", foi levado para Portalegre. Tem, pois, na infância e adolescência, a vivência alentejana... Tal como o vinho, aqui o "chão", o "terroir", também importa... Enfim, sesculpem, Miguel e Giselda, estas "inconfidências", mas as vossas histórias de vida também nos "pertencem"...

PS2- Ao rever hoje a gravação que fiz do episódio nº 3 da série "Despojos de Guerra", vejo com agrado que na ficha técnica há o cuidado de citar as fontes utilizadas (imagens e vídeos) e de agradecer às pessoas, individuais e coletivas, que colaboram com a equipa que concebeu e realizou este trabalho. Entre outros nomes, registei: AD - Acção para o Desenvolvimento / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, Virgínio Briote, Ramiro Jesus, Luís Graça... 


2. "Despojos de Guerra",3ª Episódio: O Corredor da Morte  (31') > Sinopse

“Despojos de Guerra” revela histórias extraordinárias de espionagem, patriotismo, sobrevivência e romance tendo como pano de fundo a guerra colonial portuguesa em África (1961 a 1974).

Esta série documental é uma coprodução da Blablabla Media com a SIC, com o apoio à inovação audiovisual do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual, e pode ser vista no Jornal da Noite da SIC e na plataforma OPTO.

No episódio que será exibido durante o Jornal da Noite desta quinta-feira é contada a história de Miguel Pessoa, um dos milhares de portugueses enviados para o continente africano durante a guerra colonial.

O outrora piloto-aviador relata os primeiros momentos vividos em territórios inimigos e as primeiras impressões por ele sentidas. O cheiro, a temperatura e as primeiras palavras que ouviu quando chegou à Guiné-Bissau ainda estão bem presentes na sua memória.

"Você não está aqui para ganhar medalhas nenhumas, está aqui para ajudar os 40 mil indivíduos desgraçados que estão aí abandonados", cita Miguel Pessoa as palavras que lhe foram dirigidas por um tenente, 
assim que aterrou em solo africano. 

[Na realidade, tratava-se do tenente-coronel pilav José Fernando de Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, cujo Fiat G-91 viria também a ser abatido por um Strela três dias depois do do Miguel, em 28 de março de 1973; mas contrariamente ao Miguel, o Almeida Brito, seu comandante, não mais iria regressar à BA 12 para poder contar a história. O jornalista poderia ter pesquisado, com mais atenção, o nosso blogue.  LG].

Conta também a história que viria a mudar a sua vida, quando foi chamado para fazer o apoio de fogo ao aquartelamento de Guileje, no sul da Guiné Bissau [em 25 de março de 1973].

Nessa missão, a aeronave em que o piloto-aviador seguia foi atingido por fogo inimigo, o que o obrigou a ejetar-se do avião. Miguel conseguiu aterrar mas ficou inconsciente…

Quando os dois destinos se cruzam

Giselda Antunes tinha sido destacada para cumprir funções como enfermeira-paraquedista na guerra colonial. Neste episódio, Giselda revela os processos de salvamento e conta como era recolher soldados feridos em territórios controlados pelas forças inimigas. Um dos salvamentos iria mudar a sua vida para sempre.

O seu trajeto viria a cruzar-se com Miguel Pessoa, quando esta teve de socorrê-lo em território inimigo, tal como era sua função. Foi entre disparos e violência que surgiu uma história de amor, que pode conhecer esta quinta-feira no Jornal da Noite.



A Giselda Antunes (depois de 1974, quando se casou, Giselda Pessoa) tem cerca de 90 referências no nosso blogue. O Miguel Pessoa tem 226 referências. 
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Nota do editor: 

(*) Vd. postes anteriores;