sábado, 22 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23728: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IV: Infância e adolescência


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bafatá > 15 de Dezembro de 2009 > 17h543 > Um das nossas conhecidas ruas de Bafatá, já ao entardecer... Foto do João Graça, músico e médico, 40 anos depois do foto da mesma artéria tirada pelo Jorge Tavares, a seguir reproduzida.

Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados    [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Guiné > Bafatá > 1968 > Guiné > Bafatá > 1968> Foto do ex-furriel mil radiomontador Jorge Tavares, CCS/ BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70). (No livro, a foto é erradamente atribuída ao Humberto Reis, pág. 17).

Reconstituição feita pelo ex-fur mil op esp Humberto Reis, da CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71): "Esta é (era) rua principal (alcatroada, como todas as demais) da doce e tranquila Bafatá, com as suas casas de arquitectura tipicamente colonial; ao fundo era o mercado e cortava-se à direita, para a piscina; na primeira à direita, ficava o restaurante A Transmontana; do lado esquerdo, no início da foto, ficava a casa do Administrador e os CTT; a meio, a rua era cortada pela estrada que ligava a Geba".

Legenda do Amadu Bailo Jaló: "Rua de Bafatá. Do lado direito, junto ao carro estacionado, era a casa do Chico Paulo, um comerciante europeu; a casa a seguir, pintada de branco, era de um libanês, Assad, one trabalhava o meu pai (in: Amadu Bailo Jaló -  - p. 17)

Foto: © Jorge Tavares (2005) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


 

Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015)


1. Continuamos a reproduzir, aqui no nosso blogue, alguns excertos do livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. 

Em rigor, o livro (escrito na primeira pessoa, portanto autobiográfico) deveria ter como segundo autor, o nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf  mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966),  que fez generosa e demoradamente as funções de "copydesk".

Como temos sublinhado, o livro, publicado em 2010, está esquecido, a edição está há muito esgotada, mas o Amadu Djaló continua na nossa memória e nos nossos corações.  Basta ler alguns comentários recentes dos nossos leitores.


(i) Carlos Silva:

(...) Convivi muito de perto com o Amadu Djaló, pois encontrava-o quase diariamente em Bissau II / Rossio onde sempre trocávamos uns "dedos de conversa ". O Amadu era um homem calmo, honesto, bom conversador. Contribuí para o seu livro com várias fotos a pedido do nosso amigo e camarada Virgínio Briote que estão publicadas no seu interior e a contracapa é de um slide meu que o Virgínio gostou muito. Estive no lançamento do livro que foi nas caves do Museu Militar. Paz à sua alma. (...) 

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)
 
(ii) António Graça de Abreu:

(...) Maravilhas estes textos do Amadu Djaló (...) Que nos valha, falar a sério, perto do coração, o Amadu Djaló, na sua e nossa, tão precária e inesquecível Guiné.(...)  

16 de outubro de 2022 às 12:48 (*)

(...) Palavras justas e sentidas do Amadu Djaló. Ainda tive o gosto de o conhecer e de lhe dar um grande abraço. Homem superior. Não o esqueço. (...) 

23 de setembro de 2022 às 01:59 (***)


(iii) Lucinda Aranha:

(...) Pelos vistos, o nosso Amadu, que conheceu o meu pai em Farim,  era muito namoradeiro. Não perdia tempo. (...)

20 de outubro de 2022 às 20:31 (*)

(iv) José Botelho Colaço: 

(...) Conheci o Amadu,  tenho o livro com autógrafo do prórprio, encontrei-me com ele algumas vezes, mas havia um inicio de um novo trabalho do Virgínio   [o II volume],só que o Amadu deixou de ter condições  [de saúde ].para o prosseguir. Pergunto ao amigo Virgínio será que esse pequeno esboço não tem algo de interesse principalmente para a nossa geração que possa ser publicado?  (...)  

5 de outubro de 2022 às 16:53 (**)

(v) Tabanca Grande Luís Graça:

(...) Sim, o Virgínio começou a trabalhar com o Amadu no II Volume (memórias do "exílio": Senegal, Portugal)...Só ele pode esclarecer em que ponto ficou o trabalho... Em princípio havia um manuscrito, original, sobre o qual os dois trabalharam em conjunto. Foi uma feliz parceria!... Nunca teríamos o livro publicado (o Volume I) sem a infinita paciência, generosidade e competência do Virgínio. (...)

6 de outubro de 2022 às 11:05 (**)

 (...) O que o nosso Amadu Djaló deve ter consultado em 1961, em Catió, foi um "mouro" ou "muru", um vidente... O seu antigo colega de escola Djá (que o tentou aliciar para o PAIGC) seria um vidente, alguém com "poderes mágicos" capaz de adivinhar o futuro e dar conselhos em matéria de saúde, amores, dinheiro, profissão... Proliferam em todos os tempos e sociedades... Em Portugal, há muitos de origem africana e brasileira... Parece que hoje na Guiné-Bissau se usa mais o termo "pauteiro" (do crioulo, "pautéru") para designar  vidente ou mágico. (...)
 
23 de setembro de 2022 às 12:08  (***)


2. Vamos reproduzir um excerto (ou melhor, dois) em que o Amadu fala dos seus primeiros anos de vida, entre 1940 (o ano em que nasceu) e meados dos anos 50 (em que empreendeu a sua primeira grande viagem, até ao país vizinho, a Guiné Conacri, terra dos seus pais, e onde se inicia no comércio ambulante). E depois até a idade, 21 anos, 1962, em que foi para a tropa, fazendo a recruta no CIM de Bolama (**).

Neste primeiro excerto, que publicamos hoje,  podemos ler a notável  descrição, em estilo oral africano,  que ele faz das suas andanças pelo território vizinho, ainda colónia francesa (até 1958), longe dos pais e em plena adolescência, com os seus 13/14 anos. Andou um ano e tal fora de casa, trabalhando com o irmão mais velho. Não tivemos coragem de cortar nada desta prosa saborosa...

Embora nos interesse sobretudo a história da sua vida militar, é importante conhecer  alguma coisa da infância, adolescência e juventudade do Amadu Djaló, para se perceber melhor a sua decisão de se alistar na tropa portuguesa, antes de completar os 22 anos (**). 

Futa-fula, muçulmano praticante, frequentou também, além da escola corânica, a escola católica de Bafatá onde conheceu o missionário italiano do PIME, Arturo Biasutti, e aprendeu a gostar de jogar à bola. Esta experiência, digamos ecuménica, teve seguramenet reflexos positivos na sua formação como homem e na sua conduta na guerra.

Neste primeiro excerto, vamos ver o jovem Amadau, com apenas 13 anos, em princípios de 1954, partir com o irmão mais velho para Boké, para casa de um tio, de onde era natural a mãe; viagem de nove dias, a pé, que o marcou na sua adolescência; o irmão levava uma série de carregadores com mercadorias (roupas) para vender em Boké.

Um ano e tal depois (!), em novembro de 1955, regressa à terra natal,  Bafatá, numa viagem longa, novamente a pé. Aos 16 anos vai conheceu, pela primeira vez, Bissau e um ano depois Bolama.

Verenos depois como, desde muito jovem, ele  luta para  ganhar algum dinheiro e ser independente:  organiza, por exemplo,  bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobra as entradas; as meninas de então chamavam ao Amadu o Mari Velo (ou Mari Belo, como me parece mais lógico, podendo haver aqui uma gralha de transcrição do parte do "copydesk": o Amadu tricava os b pelos v...)..

Mas seguindo o resumo curricular que o Virgínio Briote (foto à direita)  fez do seu amigo e camarada (vd. anexos do livro, pp. 287/288), o  Amadu, enquanto não é incorporado, vai trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz, um pouco mais tarde em Bafatá; estávamos em 1958. 

Nos princípios de janeiro do ano seguinte, regressa a Bafatá; como sabe ler e escrever, é chamado para a campanha da mancarra. Aos 20 anos quer dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente, e consegue abrir uma banca para vender srtigos no mercado de Bafatá.

Mas a incorporação está à porta, como já vimos (**):  recenseado pelo concelho de Bafatá, sob o nº 21 em 1962, é alistado em 4 de janeiro de 1962, como voluntário, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama...

Já agora, ficam suamariamente, mais alguns factos relevantes da sua vida militar: depois da recruta em Bolama, segue-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim... Vai regressar à CCS/QG, depois vem os Comandos de 1964 a 1966, volta à CCS/QG, depois o BCav 757, BCaç 1877, BCav 1905 e BCaç 2856, todos sediados em Bafatá...

Em meados de julho de 1969, é transferido para a 15ª CCmds, seguindo-se então a 1ª CCmds Africanos, o BCmds da Guiné e a CCaç 21 (sediada em Bambadinca) até ao 25 de Abril de 1974.

E promovido a 1º cabo em 1 de janeiro de 1966 e louvado pelas atuações em operações nesse ano. É novamente louvado, em 1967, em Ordem de Serviço (OS) do BCaç 1877, de 30 de setembro de 1967, pelo seu comportamento em ações de combate  no período de 7 de janeiro a 24 de setembro de 1967.

É, entretanto, graduado em furriel em 6 de fevereiro de 1970 e em 2º sargento em 7 de novembro de 1971, tendo sido louvado pelas ações em que participou durante o ano de 1972. É ondecorado com a Medalha de Cruz de Guerra de 3ª Classe em 1973.

Segue-se a sua graduação  em alferes em 28 de junho de 1973. Pela sua atuação nas operações do ano de 1973 recebe novo louvor. Passa à disponibilidade em 1 de janeiro de 1975, devido à independência do território da Guiné: Mas aí começam os sobressaltos...

Em 1986 veio para Lisboa (depois de  se ter refugiado no Senegal, onde se estabelecera como comerciante). Em 2015 publica  o seu livro de memórias, gracas ao apoio do Virgínio Briote e da Associação de Comandos (capa  à direita). Morre em 15 de fevereiro de 2015, em Lisboa, no hospital militar,  aos 74 anos. (****)


Os primeiros anos da minha vida - Parte I: 
infância e adolescência (pp. 16-24)

por Amadu Bailo Djaló

Chamo-me Amadu Bailo Djaló, nasci em 10 de Novembro de 1940, em Bafatá, na freguesia da Nossa Senhora da Graça.

A minha família era da Guiné Francesa [1]. O meu pai, Tcherno Iaia Tata Djaló, nasceu em 1895, em Tata Fulamori, a meia dúzia de quilómetros de Piche, e a minha mãe, Ana Condé, que nasceu em 1904, era da vila de Boké.

O meu pai amava muito os seus filhos, era um homem que estou sempre a recordar. Trabalhou muitos anos como empregado de balcão numa loja de um libanês, de nome Assad.



Guiné-Bissau > s/l > s/d > Cerimónia do fanado. Fotos cedidas pelo autor, Ernst Schade [2] , reproduzidas no livro, nas pp. 18 e 19.

Os meus pais matricularam-nos, a mim e ao meu irmão mais velho,  na escola do Alcorão [3], que frequentei durante três anos. 

Em 1948 fui para o mato, com três irmãos e mais sete rapazitos para a circuncisão [4]. Ficámos num grande acampamento com um homem mais velho, que tomava conta de nós e que nos dava aulas de moral, lições de comportamento e como respeitar os mais velhos.

Dois meses depois regressámos a casa e passei a frequentar uma escola católica, mesmo em frente à nossa casa, onde jogávamos futebol com as bolas que os padres italianos nos emprestavam.

Havia lá um padre italiano, de nome [Arturo] Biazutti [e não Viazutti..., pág. 19] (*****), que gostava muito de mim, talvez por eu ter grande facilidade em decorar as orações. Hoje tenho pena de a ter frequentado só dois anos. O meu pai não me obrigava a ir e eu acabei por abandonar a escola.

Foi uma época que foi correndo feliz até 1954, quando o meu pai me deixou ir com o meu irmão mais velho a Boké, onde a minha mãe tinha família. (...)

Numa manhã desse ano  [de 1954],  parti de Bafatá, a pé, acompanhando o meu irmão Baba Galé Djaló, que levava três carregadores e as respectivas mulheres. Ia também connosco o nosso primo – irmão, Ussumane Indjai, a mulher dele e mais três carregadores, com grandes quantidades de camisolas pretas, então com muita procura na Guiné Francesa.

Em direcção à fronteira, a corta mato, a olhar para trás e a chorar, é assim que me lembro do início da viagem. Uma viagem muito longa, demorámos nove dias a chegar a Boké 
[hoje 5 horas, de carro, pela N3, cerca de 223 km. LG]- 

Durante o dia caminhávamos, à noite dormíamos em tabancas, onde nos deixavam passar a noite.

Em Boké tínhamos lá um tio, um irmão da nossa mãe, que não conhecíamos. Chegámos num dia à noite e passámo-la em casa de um homem que tinha uma mulher em Bafatá. De manhã, fomos para a praça, à procura do meu tio.

No passeio avistámos um homem, que fixou o olhar no meu irmão. Quando nos encontrámos deu a mão ao meu irmão e perguntou:

− Fula, de onde é?

− Da Guiné Portuguesa.

− De que parte?

− De Bafatá.

− Eu tenho uma irmã em Bafatá, chamada Ana Condé.

− É a nossa mãe  
− respondeu o meu irmão.

Era o meu tio, um homem alto, bonito, de cor clara. Agarrou-me na mão e levou-nos a casa dele. Apresentou-nos à família e aos vizinhos, que ficaram muito contentes por nos verem e terem notícias da família de Bafatá.

Os carregadores do meu irmão transportaram cerca de duas mil e quinhentas camisolas pretas. Levámo-las para Bofa, Doupurou, Colom, Mancunta, Colabui, Tamarance e Boké. Vendemos tudo o que levámos.

Eu estava na altura com cerca de 14 anos. Passado um mês, o meu irmão foi à Serra Leoa, comprar panos, lenços e contas, que passámos a vender nas ruas. Mas estes artigos não se vendiam como as camisolas e o meu irmão mandou-me com a mercadoria para a vender em Bintomodiá.

Dias depois fomos para a ilha de Baga e em fevereiro de 1954 regressámos a Bintomodiá. O meu irmão, que já estava em Boké, telefonou ao homem pedindo-lhe para comprar cola. Com o dinheiro que eu tinha juntado comprou 550 quilos de noz de cola e depois segui para Boké.

Acompanhado de Coto Bobo, três ou quatro quilómetros andados chegámos à estrada que ligava Conackry a Boké. Ficámos ali à espera de transporte e encontrámos um militar, que estava de férias, acompanhado de outro homem que lhe transportava a mala. Pouco tempo depois apareceu um jipe, com duas pessoas, um africano e um branco, que vinha a conduzir e que vim a saber depois que era americano. Pedimos boleia, o jipe parou e nós corremos para entrar. 

O americano disse logo que não podia levar três pessoas. O militar olhou para mim mas eu não quis saber de que assunto estavam a falar. Então, ele e o homem que o acompanhava saíram do jipe e fui só eu. Se soubesse não tinha ido, porque a boleia era só até Tamarance, que ficava a cerca de doze quilómetros de Boké. Eu não podia andar sozinho esses quilómetros todos, de noite, a pé, era ainda muito rapazito para uma viagem tão comprida.

Quando atingimos Tamarance, o americano parou o jipe e fez-me sinal para sair. E agora, onde é que eu estou? O sol estava a pôr-se, a noite ia cair não faltava muito. Condoído, talvez, por me deixar ali, o americano olhou para o relógio e fez um gesto para eu me sentar outra vez. Na minha ideia ele ia-me levar a Boké.

Pôs o jipe a andar e, passado pouco tempo, chegados a um monte, mandou-me descer e apontou com a mão uma tabanca ali em baixo. Agradeci-lhe e fiquei a ver o jipe desaparecer no meio do pó. Dirigi-me para a tabanca, onde à entrada das casas encontrei um homem com uma lata de mel.

− Mano, para onde vais 
  perguntei.

− Boké 
  respondeu.

− Eu também quero ir para lá, vamos juntos?

Disse que ficava essa noite na tabanca e que só ia para Boké na manhã do outro dia. Então, eu respondi-lhe que ia com ele.

Segui-o até uma grande morança, vedada com lascas de cana de bambu, com quatro palhotas, entrámos, vi as pessoas a cumprimentá-lo. Era muito conhecido ali, pensei. A certa altura, ouvi alguém perguntar-lhe para onde levava ele o rapazito.

 
−  Não sei de onde ele vem, disse que vai a Boké  − respondeu.

Aproveitei para dizer que vinha de Bintomodiá, que tinha apanhado boleia num jipe e pedi-lhes para me deixarem passar a noite com eles. O homem disse logo que não tinha vindo comigo, que só nos tínhamos encontrado na estrada.

O homem da tabanca mandou-me ir embora o mais depressa possível. Implorei-lhe, mas ele ameaçou-me com porrada, sempre a dizer alto, "vai-te embora, vai-te embora". Mantive-me sentado e quando o vi levantar a mão para me bater, levantei-me, abandonei a casa e fui para a estrada. Era noite, já estava muito escuro.

Fui a outra casa pedir para me deixarem dormir na varanda, mas responderam que fosse a casa do chefe da tabanca, que era o homem que tinha ameaçado bater-me. De casa em casa, a resposta foi sempre a mesma.

Atravessei uma ponte de ferro, para o outro lado, e dei com outra tabanca, onde só falavam sosso. Havia uma casa, um pouco afastada das outras, e, como não vi ninguém, entrei na varanda, que tinha uma maca. Pensei logo em aproveitá-la para dormir. Quando me sentei nela, a maca fez barulho e ouvi uma voz de homem a perguntar quem estava ali. Voltei a levantar-me, o barulho voltou a ouvir-se, a voz do homem também e eu saí dali sem dizer nada.

Vi a luz de um candeeiro a chegar, alumiou-me a cara, e uma voz perguntou-me quem eu era e o que estava ali a fazer. Que queria descansar um pouco, respondi. Era um velhote, que também me mandou ir embora, a gritar alto que fosse para a estrada, que era lá que se pedia boleia, na casa dele não.

Agora o único plano que eu tinha era chorar alto, para as pessoas ouvirem e ficarem incomodadas. Eu chamava alto pela minha mãe, mas ninguém se aproximou ou quis saber de mim. Estive ali a chorar até já não ter mais lágrimas.

De um momento para o outro, ouvi o ruído de um carro a aproximar-se, corri para a ponte e pus-me no meio. O condutor teve que parar e eu pedi-lhe boleia para Boké. Reparou que eu tinha a camisa toda molhada e mandou-me entrar e sentar-me na cabine, entre ele e o outro homem que o acompanhava. Contei-lhes o que se tinha passado nessa noite, enquanto rumávamos para Boké. Deixou-me perto da casa do meu tio, onde encontrei o meu irmão.


Guiné > Bafatá > Mercado local > c. 1968/70 > Foto de Fernando Gouveia (publicado a preto e branco no livro, pág. 32)


Em novembro de 1955 regressámos a Bafatá, também a pé, com os carregadores, outra viagem que nunca mais tinha fim. Às dez horas de uma manhã, entrei na minha casa. 

Depois de matar as saudades dos meus pais e da minha família, fui ter com um santomense, o Carlos Espírito Santo Rafael, que tinha um negócio de venda de fruta e uma taberna ao lado. Trabalhava lá um irmão meu, numa grande horta, com cana-de-açúcar, goiaba, limoeiros, mangos, bananeiras e ananases.

Na altura, com cerca de 15 anos, comecei a trabalhar lá também. Carregava a cana para os carros e levava-a para a destilaria onde se fazia aguardente de cana. Entrava às sete da manhã, fazia um intervalo ao meio-dia para almoçar e retomava o trabalho das 14 até às 17h00 
 [nove horas e meia de trabalho por dia... LG]  

Ganhava 4 escudos por dia [1,94 euros a preços atuais... LG] , que recebia ao mês. Mas raramente recebia o mês inteiro. Quando nos via a urinar ou a mastigar um pedaço de cana, o patrão descontava-nos cinco dias ou 20 escudos [9,68 euros a preços atuais... LG] , por isso raramente recebíamos o mês inteiro. Trabalhei lá, na horta do Rafael, durante um ano, ou nem tanto.

Num dia em que fui visitar o meu pai na loja do Assad, na praça de Bafatá, encontrei um sobrinho do patrão do meu pai, chamado Salimo, que me convidou a ir com ele, trabalhar como capataz, numa obra que estavam a fazer no Gabu [5]. 

De junho de 1957 a janeiro de 1958 fui o capataz da obra, o meu trabalho era contar, ao princípio da manhã e da tarde, os trabalhadores que estavam presentes e entregar a lista do pessoal ao Salimo, para ele fazer os pagamentos todos os sábados.

A seguir ao regresso a Bafatá 
[, no início de 1958], o Salimo encarregou-me de entrar na campanha da mancarra [6]. Nesse tempo, era costume adiantar dinheiro aos agricultores e eu passei a ir numa camioneta, às tabancas cobrar as dívidas, receber a mancarra correspondente ao dinheiro ou ao arroz que tinha sido adiantado. A seguir pesávamos a mancarra e procedíamos aos acertos. 

Depois da campanha da mancarra começámos com a do óleo de palma e depois a do mel e da cera, trabalho este que durou até Junho de 1958.  Salimo queria que eu continuasse a trabalhar com ele mas decidi não ir. O dinheiro que estava a ganhar neste trabalho não compensava, qualquer jila [7] ganhava muito mais.

Voltei para casa e, em julho 
[de 1958],  fui trabalhar com o meu primo, Ussumane, que se dedicava ao negócio do gado. Comprava em Piche, Canquelifá, Buruntuma, Pirada e Paunca e depois levávamos o gado, a pé, para o vendermos em Bissau.

Para o que estava habituado ganhava muito dinheiro mas era um trabalho muito árduo. De Bafatá a Bissau, nunca demorávamos menos de dez dias.

__________

Notas do autor (Amadu Djaló) e/ou do editor literário ("copydesk") (Virgínio Briote)

[1] Os Fulas da região do Gabú são originários da antiga Guiné Francesa. Os Futa-Fulas vieram do Futa-Djalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Toro, Futa-Quebo…)

[2] Nota do editor: Ernst Schade (1949, Holanda), especialista em agricultura tropical, trabalhou durante cerca de 16 anos na Zâmbia, Zimbabué e Moçambique, com instituições governamentais e não-governamentais em programas de desenvolvimento rural. De 1989 até 1995 foi o representante em Moçambique da Organização Norueguesa “Save the Children”. Ernst é um amante da fotografia, agora a sua principal actividade. É representado pelas agências de fotografia Hollandse Hoogte (Holanda) e Panos Pictures (UK).

[3] Nota do editor: a religião seguida pelos Futa-Fulas é o Islamismo, herdado dos árabes, segundo as tradições escritas.

[4] Nota do editor: é aproximadamente entre os onze e os quinze anos que os rapazes Fulas vão ao “fanado”. No dia combinado entre as famílias e o “operador”, os jovens dirigem-se para o mato, onde são aguardados junto a uma árvore. Cada um leva uma pessoa, um amigo ou familiar (um irmão já circuncidado), para o segurar no momento da intervenção. Tiram as roupas e os corpos são cobertos com cinza. Os jovens dispõem-se numa grande roda, voltados para nascente e o “operador”, munido de uma navalha bem afiada, procede à circuncisão do prepúcio. O familiar ou amigo do jovem faz-lhe um penso, cuspindo um pouco da cola (que esteve a mastigar) sobre a ferida ou espalhando uma mistura de ervas e cola moída, após o que liga a ferida com uma tira de pano, em volta dos rins de forma a manter o pénis em posição horizontal. O penso é mudado ao fim de três dias e as lavagens são feitas com água a cair de uma determinada altura. 

Depois da cerimónia os jovens recolhem a uma barraca, onde permanecem trinta dias, sob a vigilância dos responsáveis. Durante este período recebem ensinamentos destinados a orientar-lhes o comportamento futuro, como membros da comunidade familiar ou da etnia. Dormem de costas enquanto a ferida não cicatriza e não lhes é permitido olhar para as mulheres ou raparigas nem tão pouco falar com pessoas estranhas à cerimónia. Durante o tempo que permanecem na barraca do “fanado”, a família prepara uma túnica de pano de cor branca ou azul e uns calções do mesmo tecido. No fim dos trinta dias regressam às suas casas, após o que se segue a festa da saída do “fanado”, aberta a toda a gente.

[5] Nova Lamego.

[
6] Amendoim.

[7] Vendedor ambulante.

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
___________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 16 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23713: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte III: Colocado em Farim, na 1ª CCAÇ, em junho de 1963, fica logo encantado com as beldades femininas locais e convida-as para ir a uma sessão de cinema do senhor Manuel Joaquim

(**) Vd. poste de 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23671: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte II: 1962, recruta em Bolama e instrução de especialidade no CICA / BAC, Bissau: o racismo primário do cmdt da CART 240

(ªªª) Vd. poste de 22 de setemebro de 2022 > Guiné 61/74 - P23638: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte I: Não fomos todos criminosos de guerra: Deus e a História nos julgarão

(****) Vd. poste de 22 de fevereiro de  2015 > Guiné 63/74 - P14282: Os Nossos Camaradas Guineenses (41): Amadu Bailo Jaló (Bafatá, 14/11/1940- Lisboa, 15/2/2015): 13 anos ao serviço do exército português (1962-1975), "em perigos e guerras esforçado mais do que prometia a força humana" (Virgínio Briote)

(*****) Deve tratar-se de Arturo Biasutti, que esteve vinte anos na Guiné, entre 1946 e 1966. Pertencia ao PIME (Instituto Pontifício para as Missões no Exterior). Vd. aqui algumas das suas publicações sobre a Guiné-Bissau:

BIASUTTI (Arturo), Venti anni in Guinea Portoghese (1946-1966). Ricordi personali e privati del padre Arturo Biasutti del PIME. Marino, Villa Scozzese (Italia), 1967. Policopiado.

BIASUTTI (Arturo), Vokabulari kriol-purtguîs (Esboço -. Proposta de Vocabulário).
Bafatá (Guiné-Bissau), 1982. (1ª edição). Segunda edição, com o mesmo título, Bubaque (Guiné-Bissau), 1987.

BIASUTTI (Arturo), Jisus nô Salbadur. Esta obra foi escrita com o pseudónimo de PA BIÀS. Bubaque (Missão Católica), 1972.

Fonte:  Vd. Dioceses da Guiné-Buissau > O que diferentes Missionários da Guiné-Bissau escreveram sobre a própria Guiné-Bissau, Por Fr. João Vicente, ofm

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23727: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte III: 3.º Episódio, "O Corredor da Morte" ou.... "Uma história de amor improvável em tempos de guerra" (protagonizada por Miguel Pessoa e Giselda Antunes)



Sic Notícias > Primeiro Jornal > Grande Reportagem > "Despojos de Guerra", 3.º Episódio: O Corredor da Morte  (31' ) > 20 de outubro de 2022 > Miguel Pessoa e Giselda Antunes: fotogramas do "trailer" (2' 37'')  (Com a devida vénia...) (*)


1. Gostei da "prestação" dos nossos "camarigos" Miguel Pessoa e Giselda Antunes (, depois, Pessoa, por casamento com o Miguel)... O mesmo é dizer, tem mérito o trabalho da equipa da jornalista e realizadora Sofia Pinto Coelho, que os entrevistou, no Museu do Ar - Polo de Alverca, há cerca de um ano atrás. (Só agora, devido à pandemia e à guerra da Ucrânia, esta série foi para o ar, devendo ser exibido, no próximo dia 27, o 4.º e último episódio, dedicado ao tema dos "filhos do vento").

O Miguel e a Giselda foram protagonistas de uma história de guerra, já conhecida há muito dos leitores do nosso blogue, mas é bom que fique também  gravada, em programas televisivos como este, e que chegue ao grande público. 

Um dia de gravações é resumido ou condensado em escassos 30 minutos. É o preço que se paga pela produção televisiva, que é caríssima. Podemos apontar alguns erros e falhas na narrativa e na escolha das imagens (à equipa faltou a asssessoria de especialistas em história militar e "air warfare": vejam-se as imagens da rampa fixa de lançamento do Strela, que o PAIGC não chegou a ter durante a guerra; ou o bombardeamento da aviação, com um tipo de avião e de bombas que a FAP não usava no TO da Guiné...). Mas o mais importante é o lugar de honra que, neste episódio, cabe a dois "camadas de armas", que representam algo mais do que eles próprios, 

Para além da sua história pessoal (e ambos passaram por situações muito dramáticas, duas das quais são aqui contadas e reconstituídas), para além dos seus destinos que acabaram por se cruzar, na guerra e no amor), o Miguel e a Giselda representam os nossos bravos pilotos e as nossas não menos corajosas e pioneiras enfermeiras paraquedistas. 

Miguel e Giselda, gostei de vos rever sob os "céus da Guiné", onde vocês deram o vosso  melhor na paz e na guerra. (E continuaram, depois de 1974, a servir a FAP e Portugal.)

Este é o comentário que faço, em cima do joelho, antes de ir para a minha sessão matinal de fisioterapia,  Prometo voltar ao episódio nº 3 da série "Despojos de Guerra", depois de rever o programa, que gravei. E deixo a porta aberto para os valiosos comentários dos nossos leitores..Mas,  por favor, não digam que o jornalismo português não se interessa pela "nossa" guerra... Ou que o trabalho dos jornalistas portuguesas sobre a "nossa" guerra, é sempre mau ou superficial ou trapalhão... Ou que há uma "pobreza franciscana" nos arquivos sobre a "nossa" guerra... Em suma, não digam sempre mal... 

PS1 - Convenhamos: o subtítulo pode  enviesar o sentido da história... De qualquer modo, as televisões, em concorrência feroz pelas audiências, precisam de títulos e subtítulos apelativos: "O corredor da morte" é um deles, mas na reportagem não se explica que raio de "corredor" era este, que passava por Guileje... onde o avião do Miguel foi atingido por um Strela em 25 de março de 1973... 

Quanto ao "subtítulo", "uma história de amor improvável em tempo de guerra", convenhamos, que é mais atrativo... Todo o mundo está cheio das imagens brutais da guerra que nos entra pela casa adentro, nos telejornais... O amor "humaniza" (?) ou "ameniza" a guerra... E, neste caso, também uma história de amor que dava um filme, como alguns de nós aqui já escreveram... Envolvendo dois seres humanos maravilhosos que foram militares, vestiram a mesma farda, honraram a mesma bandeira, e tinham (e continuam a ter)  além disso, mais outras coisas em comum, como muito bem explicou o Miguel: o sentido da lealdade, da solidariedade, da camaradagem... (e, eu já agora acrescento, o bom humor, a fina ironia, bem patente em duas ou três frases que ressaltam da entrevista: por exemplo, quando o "safado" do Miguel perguntou à "pobre" Giselda, que caiu o charco" da ilha do Colmo, em novembro de 1973,  quando o motor da DO-27  parou, e foi resgatada depois pela marinha, "se a água estava morninha"...).

Este episódio vale pela entrevista a estes nossos dois grandes "camarigos": um lisboeta, o Miguel, a outra, transmontana, a Giselda, da terra do grande poeta e contista Miguel Torga, São Martinho de Anta, Sabrosa, Trás os Montes (ou o "Reino Maravilhoso")... Vá lá, Giselda, a jornalista não te trocou o nome (costumam chamar-te Gisela...).

Quanto ao Miguel Pessoa, "lisboeta"... Sei que ele é alfacinha, de gema, nascido na Penha de França. Mas que, aos dois anos, "djubi", foi levado para Portalegre. Tem, pois, na infância e adolescência, a vivência alentejana... Tal como o vinho, aqui o "chão", o "terroir", também importa... Enfim, sesculpem, Miguel e Giselda, estas "inconfidências", mas as vossas histórias de vida também nos "pertencem"...

PS2- Ao rever hoje a gravação que fiz do episódio nº 3 da série "Despojos de Guerra", vejo com agrado que na ficha técnica há o cuidado de citar as fontes utilizadas (imagens e vídeos) e de agradecer às pessoas, individuais e coletivas, que colaboram com a equipa que concebeu e realizou este trabalho. Entre outros nomes, registei: AD - Acção para o Desenvolvimento / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, Virgínio Briote, Ramiro Jesus, Luís Graça... 


2. "Despojos de Guerra",3ª Episódio: O Corredor da Morte  (31') > Sinopse

“Despojos de Guerra” revela histórias extraordinárias de espionagem, patriotismo, sobrevivência e romance tendo como pano de fundo a guerra colonial portuguesa em África (1961 a 1974).

Esta série documental é uma coprodução da Blablabla Media com a SIC, com o apoio à inovação audiovisual do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual, e pode ser vista no Jornal da Noite da SIC e na plataforma OPTO.

No episódio que será exibido durante o Jornal da Noite desta quinta-feira é contada a história de Miguel Pessoa, um dos milhares de portugueses enviados para o continente africano durante a guerra colonial.

O outrora piloto-aviador relata os primeiros momentos vividos em territórios inimigos e as primeiras impressões por ele sentidas. O cheiro, a temperatura e as primeiras palavras que ouviu quando chegou à Guiné-Bissau ainda estão bem presentes na sua memória.

"Você não está aqui para ganhar medalhas nenhumas, está aqui para ajudar os 40 mil indivíduos desgraçados que estão aí abandonados", cita Miguel Pessoa as palavras que lhe foram dirigidas por um tenente, 
assim que aterrou em solo africano. 

[Na realidade, tratava-se do tenente-coronel pilav José Fernando de Almeida Brito, comandante do Grupo Operacional 1201, cujo Fiat G-91 viria também a ser abatido por um Strela três dias depois do do Miguel, em 28 de março de 1973; mas contrariamente ao Miguel, o Almeida Brito, seu comandante, não mais iria regressar à BA 12 para poder contar a história. O jornalista poderia ter pesquisado, com mais atenção, o nosso blogue.  LG].

Conta também a história que viria a mudar a sua vida, quando foi chamado para fazer o apoio de fogo ao aquartelamento de Guileje, no sul da Guiné Bissau [em 25 de março de 1973].

Nessa missão, a aeronave em que o piloto-aviador seguia foi atingido por fogo inimigo, o que o obrigou a ejetar-se do avião. Miguel conseguiu aterrar mas ficou inconsciente…

Quando os dois destinos se cruzam

Giselda Antunes tinha sido destacada para cumprir funções como enfermeira-paraquedista na guerra colonial. Neste episódio, Giselda revela os processos de salvamento e conta como era recolher soldados feridos em territórios controlados pelas forças inimigas. Um dos salvamentos iria mudar a sua vida para sempre.

O seu trajeto viria a cruzar-se com Miguel Pessoa, quando esta teve de socorrê-lo em território inimigo, tal como era sua função. Foi entre disparos e violência que surgiu uma história de amor, que pode conhecer esta quinta-feira no Jornal da Noite.



A Giselda Antunes (depois de 1974, quando se casou, Giselda Pessoa) tem cerca de 90 referências no nosso blogue. O Miguel Pessoa tem 226 referências. 
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Nota do editor: 

(*) Vd. postes anteriores;

Guiné 61/74 - P23726: Notas de leitura (1509): "Para Além do Amor", por Nelson Cerveira, edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia; 2022 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Socorro-me habitualmente da ajuda que me dá a Biblioteca da Liga dos Combatentes, é neste território que encontro obras, de modo geral edições de autor, de antigos combatentes que aqui deixam os seus trabalhos. Foi aqui que conheci este livro de Nelson Cerveira[1], furriel-enfermeiro do BCAV 8320/73, terá sido o último batalhão que abandonou a Guiné. Nelson Cerveira foi depois para Angola onde geriu um hotel no Kwanza Norte, aqui terá encontrado matéria para escrever 3 livros relatando acontecimentos que tiveram a ver com a guerra civil de Angola. Forjou este romance cuja figura central um furriel ferido em combate, tem uma escrita singularíssima, uma narrativa onde não faltam elementos naturalistas e neorromânticos e grandes tiradas declamatórias.

Um abraço do
Mário



Os enfermeiros também tombam em combate

Mário Beja Santos

O título da obra é "Para Além do Amor", o autor é Nelson Cerveira [foto à direita], edição do autor com apoios de autarquias e instituições da Anadia, 2022. A singularidade da trama assenta na deliberada decisão do escritor em rebuscar uma prosa com laivos de naturalismo, neorromantismo, é uma prosa inflada de afirmações declamatórias e afirmações sentimentais que se inscrevem em atmosferas de dramatização, muitas lágrimas, muitos soluços, até se chegar à redenção que a obra propicia.

Estamos em maio de 1947, na região da Bairrada, em noite de tempestade, os donos da casa ouvem gemidos no celeiro, o agricultor nada vira coisa semelhante, uma moça de 16 anos, que era conhecida por Zeza, e que por ali deambulava por aldeias vizinhas, sem ninguém saber qual a sua origem, acabara de dar à luz. Depois somos introduzidos na história de Zeza, recuamos a 1930, mais uma história trágica, no parto morre a mãe, salva-se a criança que passou a ser criada pelos avós com o nome de Maria Cristina. O casal que recebe a criança que Zeza dera à luz, e que tinha recentemente perdido um filho, aceita criar esta bênção que lhe cai do céu.

Há um lavrador de nome Alfredo que vai trabalhar para uma das quintas mais ricas da região, fica encarregado pelo patrão de cuidar do filho, de nome Tomé, o menino tem 4 anos, irá formar-se em Direito. Alfredo virá ser caseiro da quinta, depois morre o patrão, o filho vende a propriedade. Amélia, a mulher de Alfredo tem um filho que morre apenas com 2 semanas. É nesta altura que nasce o filho de Zeza, em homenagem ao benfeitor, o casal põe-lhe o nome de Tomé. Anos depois os pais adotivos contam a história, mostram-lhe a fotografia de Zeza.

Tomé revela-se um jovem prudente, assenta praça em outubro de 1968 nas Caldas da Rainha, tirará a especialidade de enfermeiro, as aulas decorrem no anexo do Hospital Militar da Estrela. Finda a especialidade, ele e o seu amigo Jorge foram colocados no Hospital Militar de Coimbra, alugam um quarto numa casa no largo da Sé Velha. Vai começar o enfeitiçamento por uma jovem aluna de Medicina, isto em 1969, no reboliço dos acontecimentos estudantis. Tomé era amigo de Laura, esta amiga Aurora, o deslumbramento de Tomé, de todos o autor nos dá a descrição, Aurora está bem impressionada com Tomé, o seu aspeto resplandecente, o olhar aceso, as belas cores, o belo sorriso, estão os três em amena cavaqueira numa esplanada e aparecesse João, vamos ter aqui um discurso incomum, João possuía o dom especial de se encontrar à vontade em toda a parte e não faz mais nada, tem para ali uma larga tirada sobre a tirania colonialista, a liberdade, a igualdade e a fraternidade, lembra aos presentes que a hora que estavam a viver era uma hora sombria e diz o autor que aquele jovem era apologista que o governo salazarista cairia quando a lava escandecente no seio da liberdade irrompesse as ideias libertadoras defendidas pelo comunismo. As discussões multiplicam-se, passa-se para a religião, duvida-se da imortalidade da alma, seguem-se os problemas da civilização, aqui começam as críticas ao comunismo, o Tomé mete-se na conversa, temos páginas e páginas sobre o cristianismo e as lutas acesas do protestantismo. As grandes tiradas declamatórias irão prosseguir, Tomé irá contar a Aurora o que andam a fazer os Movimentos de Libertação, e depois declara-se, Tomé é retribuído, andam enleados. Chegou a hora da mobilização, Tomé irá apresentar-se no Hospital Militar de Bissau, a despedida é dolorosa.

Em 21 de fevereiro de 1970, o furriel-enfermeiro Tomé apresenta-se no Hospital Militar, o espetáculo a que assiste nos corredores constrange-o. Irá ser colocado em Bissorã, escreve uma longa carta à sua amiga Laura. Aurora irá conhecer os pais de Alfredo na companhia de Laura e, entretanto, vamos saber um pouco da história desse ano durante a guerra, nova carta de Tomé para Laura, foi colocado em Guileje, conta-lhe como a guerra é duríssima. Tomé já está em Bafatá, em 26 de junho de 1971 um grupo do PAIGC penetra na cidade, faz diferentes estragos, provoca mortos e feridos. A partir desta data os familiares de Tomé deixaram de receber cartas.

Entramos num ciclo dramático, Tomé fora ferido, um tiro alojara-se na coluna quando socorria um ferido na parada, ficara paralisado, a partir de então, as suas pernas seriam duas rodas de cadeira. Laura visita-o no Hospital Militar da Estrela, Tomé desabafa: “Mais difícil do que viver uma grande paixão é falar dela. Mas tão difícil quanto falar dela é resistir a falar dela.” Dá a entender à amiga que é um cadáver da cintura para baixo, Aurora merece encontrar alguém que lhe possa dar tudo aquilo que ele a partir de agora não pode.

É evidente que este ciclo dramático vai torcer-se e retorcer-se até nos trazer uma outra imagem sobre o amor, haverá revelações conducentes à sublimação daquele amor, de tal modo que o desfecho tem filamentos de uma apoteose, assim:
“Não é por acaso que te encontras junto de mim, meu anjo secreto. Desde aquele dia que te vi naquele uniforme de capa e batina. Como uma sombra, saíste daquela praça no teu uniforme de estudante e eu, que nada sabia de ti, com toda a força do fundo do meu ser, respondia ao teu apelo, compreendi que essa jovem tão frágil estava carregada de toda a feminilidade do mundo e que bastaria tocar-te com um dedo para saltar dentro de mim uma faísca capaz de iluminar para sempre o meu caminho, o meu destino, o meu futuro… e que se não morresse fulminado ficaria preso por um desejo, magnetizado para toda a vida. Deus abençoa algumas pessoas com casamentos felizes e filhos saudáveis. Mas também abençoa outras pessoas com a força e resignação para aceitarem uma vida sem casamentos felizes nem filhos saudáveis. Ajuda-as quando esses sonhos não se concretizam, mostrando-lhes que após o fracasso de uma vida sonhada e não concretizada não têm que ficar com o espaço vazio, com um buraco nas suas vidas, onde antes estava o sonho. Existem outros sonhos a serem sonhados.”

A revelação do que aproxima Aurora a Tomé faz deste um homem feliz na contingência das suas limitações. O autor afirma ter-se socorrido de ideias e conceitos que recolheu dos livros "Os Irmãos Karamazov", de Dostoievski, "O Doutor Jivago", de Boris Pasternak e "Velhice do Padre Eterno", de Guerra Junqueiro.

Despede-se, assim: “Se desejarem entrar em contacto com o autor para comentar esta obra ou prestar qualquer esclarecimento sobre qualquer outro livro da sua autoria, escreva para nelcerveira@gmail.com. O autor terá o maior gosto em esclarecer qualquer leitor que lhe dirija as suas dúvidas”.


BCAV 8320/73 - Guiné, Junho a Outubro de 1974 - O Nelson Cerveira foi Furriel Miliciano Enfermeiro da CCS
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 5 DE JUNHO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10002: Tabanca Grande (343): Nelson Henriques Cerveira, ex-Fur Mil Enf da CCS/BCAV 8320/73 (Bissorã e Bissau, 1974)

Último poste da série de 20 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23724: Notas de leitura (1508): Algumas (breves) notas sobre missionação (V) - Conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23725: Convívios (947): Almoço anual de confraternização dos militares da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), no dia 5 de Novembro de 2022, no restaurante D. Nuno, em Alenquer (José Colaço)




1. Mensagem enviada pelo nosso camarada José Colaço, ex-Sold TRMS da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), com data de 19 de Outubro de 2022, trazendo até nós a notícia do possível último convívio dos veteraníssimos da 557:
Os veteraníssimos militares da CCAÇ 557 na guerra da Guiné, 1963/65, voltam a reunir em mais um almoço anual de confraternização em 05 de Novembro de 2022 no restaurante D. Nuno, em Alenquer.

Por força dos 80 anos, é com muita tristeza, mas como tudo tem um fim, que se prevê seja este o último convívio.

Na foto: o Coelho à esquerda mais a sua equipa do Porto. Uma homenagem mais que merecida, pois a ele se deve em grande parte a organização destes almoços de convívio ao longo dos anos.

Mais informações: telemóvel 918 267 204.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23709: Convívios (946): Comemoração dos 55 anos do regresso da Guiné dos Falcões da CART 1525 (Bissorã, 1966/67) no próximo dia 12 de Novembro de 2022 na Mealhada (Rogério Freire, ex-Alf Mil Art MA)

Guiné 61/74 - P23724: Notas de leitura (1508): Algumas (breves) notas sobre missionação (V) - Conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais

1. Mensagem do nosso camarada Paulo Cordeiro Salgado (ex-Alf Mil Op Especiais da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), com data de 17 de Outubro de 2022:

Caros Camaradas,
Ainda mais este texto.
Obrigado.
Paulo Salgado



Algumas (breves) notas sobre missionação - V

Paulo Salgado

Mandou-me o nosso camarada do Blogue, Mário Beja Santos, por especial deferência, a História das Missões Católicas na Guiné, por Henrique Pinto Rema, padre franciscano, dado à estampa em 1982 pela a Editorial Franciscana, Braga.

No essencial, este valioso documento refere, com detalhe, o Encontro (expressão de que gosto – já usada por Bartolomé de las Casas) entre dois mundos: um, o invasor, o conquistador pela espada e pela fé, outro, o invadido, o conquistado pela espada e pela fé. E como se manifestou a presença dos missionários na costa da Guiné (no sentido amplo: vai para além do Bojador até ao Cabo Não).
Está referido, entre muitas outras peripécias, o seguinte:
"que por aqui andaram em 1584 uns frades carmelitas descalços, tendo sido uma falhada tentativa de fixar uma missão carmelita na Guiné. Frei Cipriano, carmelita, escreveu de Cacheu ao bispo de Cabo Verde acerca da visita de um rei de Caió, D. Bernardo, juntamente com 300 súbitos, a pedir o batismo e uma igreja no seu reino. André Álvares de Almada, refere no seu Tratado a pessoa de João Pinto, padre preto, natural da Guiné, evangelizando em região hoje pertencente ao Senegal. Almada fala dos negros Jalofos “que começam no rio Senegal”: “Esta nação dos Jalofos é mais dificultosa em receber a fé de Jesus Cristo Nosso Senhor que todas as outras nações dos negros da Guiné, porque quase todos seguem a seita de Mafoma. E ano de 1589 foi um clérigo preto por nome João Pinto àquele reino para os fazer cristãos e não fez fruto algum neles, e por isso se foi para outras nações".

Exactamente por ter tomado conhecimento deste frei Cipriano, sabendo ou imaginando o que os frades penaram num mundo tão desconhecido, ficcionei uma crónica que consta do meu livro “Guiné-Crónicas de Guerra e Amor”.

No entanto, por certo que, se tiver tempo, o Mário Beja Santos se pronunciará sobre esta magnífica obra que incide sobre a missionação no período compreendido entre os séculos XV e XX.

Como anteriormente referi, conheci de perto dois padres franciscanos na minha estada na Guiné-Bissau: os padres Macedo e Sobrinho. E, bem ainda, o bispo Settimio Artur Ferrazzeta, padre franciscano, italiano, o primeiro Bispo da Guiné-Bissau, autor do livro que está a ser distribuído às comunidades com título italiano “Sono Allora Africano” (Agora sou Africano), publicada pela Associozione Rete Guinea Bissau onlus.
A obra é uma coletânea de cartas de Dom Settimio escritas a partir de Bissau à sua família, desde que veio a esta terra 1943 até partir para o Pai, em 1999.

Para os bispos de Bafatá e Bissau, num texto de apresentação da obra, Settimio é o autentico "homem garandi", o ancião em plenitude por conquistar o coração de todo o povo da Guiné-Bissau, com o seu génio simples de comunicar o Evangelho. (in "Igreja Católica na Guiné-Bissau").


D. Settimio Artur Ferrazzeta, primeiro Bispo da Guiné-Bissau

Aqui fica a minha singela homenagem, pois dele ouvi palavras de um verdadeiro missionário.

Paulo Salgado

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Nota do editor

Poste anterior de 18 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23716: Notas de leitura (1507): Algumas (breves) notas sobre missionação (IV) - Fundo Documental do Prof. Santos Júnior, localizado no Centro de Memória de Torre de Moncorvo (Paulo Cordeiro Salgado, ex-Alf Mil Op Especiais)

Guiné 61/74 - P23723: Casos: a verdade sobre... (30): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte I: Visto do lado de cá


Efígie de Pansau Na Ina (1938-1970), na nota de 50 pessos emitida em 1990 pelo Banco Central da Guiné-Bissau. Já agora, chamamos a atenção para o valor de cada nota, com a efigie dos heróis da Guiné-Bissau, a seguir à independência: o Domingos Ramos aparece na nota de 100 pesos, o Francisco Mendes (o Chico Tê) na de 500 pesos... O Amícar Cabaral deu a cara nas notas de 1000 pesos (1990), 5000 pesos (1993) e 10 mil pesos (1990)... O peso foi a moeda da Guiné-Bissau de 1975 até 1997, sendo então subtituido pelo franco CFA.


Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura (ou de São José da Amura> Talhões dos Heróis da Pátria, ao lado do Mausoléu de Amílcar Cabral > Túmulo do Pansau Na Isna  (1938-1970), o "herói do Como".

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


A Av Pansau Na Isna é uma das principais artérias da parte histórica, colonial, da cidade de Bissau. Em 20 de janeiro de 1975, a antiga Av Almirante Américo Tomás foi "rebatizada" pelo novas autoridades do país, passando a chamar-se Av Pansa Na Isna: é lá que se situa o hospital nacional Simão Mendes. 

O mesmo aconteceu com outros topónimos: (i) a Av República passou a designar-se por Av Amílcar Cabral); (ii)   a Av Governador Carvalho Viegas  é hoje a Av Domingos Ramos, e (iii) a Praça do Império, obviamente, teria que ser a Praça dos Heróis Nacionais.

Fonte: Adapt de António Estácio - "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., il,). Com a devida vénia..


Guiné > Bissau > c. 1960/70 > Vista aérea de Bissau. Ao centro, o Palácio do Governo e a Praça do Império. Bilhete Postal, Colecção "Guiné Portuguesa, 118". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL). Coleção do nosso camarada Agostinho Gaspar.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2019).

Legenda:  1=Av República (depois de 1975, Av Amílcar Cabral); 2=Av Alm Américo Tomás (hoje, Av Pansau Na Isna); 3= Av Governador Carvalho Viegas (hoje, Av Domingos Ramos); 4=Praça do Império (hoje. Praça dos Heróis Nacionais)


1. Quem foi Pansau Na Isna (1938-1970) (*) 

Recordo-me de ter perguntado, nos primeiros anos do 3.º milénio, a um médico, guineense, meu aluno, filho de um antigo comandante da guerrilha, que actuou no Morés, entre 1963 e 1974, quem era o Pansau Na Isna, ou se sabia, mais exatamente, quem tinha sido.

  Sim, sei que é um dos nossos heróis nacionalistas, um dos nossos grandes combatentes da liberdade da Pátria. Era balanta.

– Sabe quando e onde morreu? E em que circunstâncias?

– Infelizmente, não sei…

O meu aluno estava a frequentar o curso de saúde pública, e não era seguramente balanta. Para a população, então ainda fracamente escolarizada,  da Guiné-Bissau , e sobretudo para os mais jovens, já sem  quaisquer memórias da luta pela independêbcia, o Pansau Na Isna seria apenas o nome de uma das principais avenidas da capital, Bissau (onde, por exemplo, a OMS tem a sua representação e onde fica o Hospital Nacional Simão Mendes, e a sede de diversas outras  organizações nacionais e estrangeiras).

Eu também não sabia na altura responder à pergunta, para vergonha minha… De facto, nunca tinha ouvido o nome dele, no meu tempo de Guiné, 1969/71; e a batalha do Como, onde se terá notabilizado, já havia ocorrido há meia dúzia de anos, em 1964, e ninguém sabia localizar, com precisão, no mapa, onde ficava essa ilha... Minto: tinha ouvido umas vagas "estórias" deste homem, que seria uma figura bizarra, vestindo-se à cobói e alvejando, com a sua Kalash, os helis dos tugas... Numa destas bravatas terá encontrado a morte... Claro, nunca consegui confirmar a "estória".

Foi através do episódio da série "A Guerra", que passou na RTP 1, no dia 18 de dezembro de 2007, que eu soube que o Pansau Na Isna era um dos três comandantes do PAIGG que combateram os portugueses, na Ilha do Como, durante a Op Tridente. Mas esta era outra versão, nova, para mim. Nunca voltei a ver este episódio, desde então.

De origem camponesa e de etnia balanta, lá teria  encontrado a morte, na ilha do Como. Ele e outro comandante. Percebi isso do depoimento do único sobrevivente dos três, cujo nome não retive.

Fiquei com a ideia de que o Pansau Na Isna terá sido morto pelos fuzileiros navais. Os seus restos mortais (?) repousam hoje, no Forte da Amura, ao lado  do mausoléu de Amílcar Cabral, e dos túmulos de outros míticos guerrilheiros Domingos Ramos e Titinha Silá. Esse mausoléu pelo menos eu vi-o com os meus próprios olhos, em Bissau, na Amura, em 7 de março de 2008, na primeira (e única vez) que voltei à Guiné.

Rapidamente este  guerrilheiro balanta tornou-se uma lenda. Foi, por exemplo,  tema (e título) de canção, criada e interpretada pelo popular conjunto musical, dos anos 70/80, Super Mama Djombo, no seu álbum Super Mama Djombo (2003, etiqueta: Cobiana). Muito acarinhado pelo regime de Luís Cabral (mas não pelo do seu sucessor), manteve-se vivo até hoje, apesar das muitas mudanças por que passou o país e a própria banda (Vd. aqui a sua página no Facebook).

Este grupo musical, sob a liderança inicial de Adriano Atchutchi, estilizou a música tradicional guineense e deu ao conhecer ao mundo (e às gerações mais novas da população da Guiné-Bissau), ao ritmo do estilo Gumbé, o que foi o sonho de Amílcar Cabral, a luta de libertação e a esperança dos guineenses no futuro... A origem do grupo remonta ao início dos anos 70...

 
Retomando o 9.º e último episódio da 1.ª Série do programa A Guerra (1):


Do lado português, bem gostaria de ter ouvido o testemunho do meu querido amigo e nosso camarada Mário Dias, que tem, no nosso blogue,  três notáveis textos sobre a Op Tridente. 

Joaquim Furtado e a sua equipa privilegiaram  os depoimentos dos militares portugueses de alta patente, a começar pelo homem, que comandou as nossas forças terrestres, o tenente-coronel Fernando Cavaleiro (1917-2012), coronel de cavalaria na reforma, entretanto já falecido. Na altura da Op Tridente era também o comandante do BCAÇ 490.

A justificação para a mobilização de vastos meios terrestres, aéreos e marítimos, numa operação de dois meses e tal (14 de Janeiro de 1964 a 24 de Março de 1964) teria a ver com a necessidade de impedir, ao PAIGC, a autoproclamação da República Independente do Como…

A ilha, o melhor, o conjunto de ilhas (Caiar, Como, Cantungo), era um intrincado puzzle de rias, braços de mar, bolanhas, lalas, ilhotas, floresta-galeria, tarrafo, de cerca de 200 Km, onde o PAIGC não teria mais do que 400 homens armados (300, segundo o Mário Dias), controlando no entanto uma vasta população e os seus recursos.

A ilha do Como era farta em gado e arroz, como muito bem frisou o almirante Ribeiro Pacheco. Talvez ainda mais importante, o Como era um ponto vital para as linhas de reabastecimento do PAIGC, dada a sua proximidade com a Guiné-Conacri. E o seu controlo afectava seriamente o reabastecimento das posições portuguesas na região de Tombali.

Outro oficial da Marinha entrevistado foi o comandante  José Luís Gouveia, dos Fuzileiros, que também participou na batalha do Como. Um dos mitos que caiu por terra era existência de bunkers, de cimento armado, onde os guerrilheiros do PAIGC se entrincheiravam e resistiam aos bombardeamentos da aviação e da marinha portuguesea. Não havia bunkers nenhuns… Dos meios navais, retive que eram compostos por uma Fragata (Nuno Tristão), 4 Lancha de Fiscalização, 4 LDP e 2 LDM.

'Nino' Vieira, que também foi entrevistado, era o comandante militar da Região da Sul, mas não participou directamente na batalha do Como, por se encontrar hospitalizado, na Guiné-Conacri, segundo percebi. Ora, ele é muitas vezes apresentado, indevidamente,  como o herói do Como: isso não corresponde à verdade histórica... 

A haver um herói - e os movimentos nacionalistas e os povos que lutam pela sua identidade, emancipação e liberdade precisam, historicamente, de heróis e de mitos - foi o Pansau Na Isna e os seus guerrilheiros-camponeses... 

'Nino' Vieira, de qualquer modo, terá sido, à distância, o principal responsável pela estratégia de defesa da Ilha do Como. Enfim, os louros da vitória (a havê-la, para um lado ou para o outro) terão que ser analisados e discutidos, com objectividade e rigor, pelos historiadores.

Ao que parece, em balanta, Pansau Na Isna (ou N'Isna) quererá dizer a tabanca que está a morrer. Pansau era muito próximo de Amílcar Cabral, mas analfabeto (isto é, sem qualquer grau de escolaridade formal). Também li algures que ele não morreu no Como, mas mais tarde, em Nhacra, em 1970, num bombardeamento da aviação portuguesa. 

A ter morrido em Nhacra, morreu como ele teria gostado de morrer: vestido de maneira excêntrica, cheio de roncos, de cores garridas, muito ao gosto dos balantas, segundo as versões mais ou menos fantasistas que há anos memorizei... Enfim, provavelmente é mais um lenda, tal como aconteceu com outros combatentes de um lado ou do outro ('Nino' Vieira, Marcelino da Mata, etc.).

De qualquer modo, a versão da morte do Pansau Na Isna em Nhacra, posteriormente à batalha do Como, não bate certo com o depoimento que ouvi no 9.º episódio do programa da RTP...

Na batalha do Como, o grande inimigo dos portugueses terá sido  a falta de água potável, as dificuldades de reabastecimento, as rações de combate, os mosquitos, o terreno… Muitos militares portugueses já não podiam com a intragável carne de vaca à jardineira, que faziam parte da invariável ementa das NT... Valeu-lhes, de alguma maneira, o suplemento de carne de vaca, porco e cabrito que abundava pela ilha, deixada para trás pelas populações em fuga,  estratégica ou não...

A G3, que fez a sua estreia em combate, também não se portou muito bem: era muito sensível, às poeira, à areia, etc... A densa floresta-galeria com árvores de grande porte, seculares, frondosas, tornou praticamente inofensivos os bombardeamentos da aviação portuguesa, à parte o terror que as nossas bombas inspiravam, sobretudo nas mulheres, crianças e velhos…

Por outro lado, os guerrilheiros cedo aprenderam a defender-se dos bombardementos, escondendo-se atrás de bagas-bagas. Alguém confirmou que foram utilizados aviões da NATO (F86 e PV2 e 2-5), operando a partir de Cabo Verde. Não ficou claro o uso de napalm. A FAP fez cerca de 850 missões, largou mais de mil bombas.

O PAIGC terá perdido 150 homens e 6 armas. O Mário Dias fala apenas em 7 dezenas de mortos confirmados. Os mais de 1200 militares regressaram a Bissau, depois da mais cara e mais longa operação, levada a cabo na Guiné-Bissau. Os oficiais portugueses entrevistadaos consideram-na como uma operação que teve um sucesso absoluto.

O PAIGC, por sua vez, transformou em mito a batalha do Como. Para Luís Cabral,  a Ilha do Como foi a primeira região libertada. Usando as clássicas tácticas da guerrilha, o PAIGC evitou afinal o confronto directo com as NT, pondo a sua população a recato.

Pelo lado do PAIGC também foi entrevistado o comandante Gazela, entretanto falecido, em Portugal. Também foi dado o testemunho do médico da CCAÇ 557, entretanto falecido, o Rogério Leitão (1935-2010), membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo.

Segundo a Comissão para o Estudo das Campanhas de África (2014), o Pan Sau (sic) não seria mais do que um 2.º chefe ou adjunto:

(...) Situção > Forças inimigas (...)

Há notícias que referem:

- Ilha do Como - Chefe Saja e 2.° Chefe Pan Sau.

- Ilha de Catunco - Chefe Sumba Na Quedum, tendo como subchefe Imbali Na Noi e Sia Na Ba.

- Ilha de Caiar - Chefe Bacar Sambu (beafada), Abdu Sandem (beafada) e Ansumane Indjai (nalú). (...)

Fonte: Excertos de: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II: Guiné: Livro 1. 1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014, pp. 199/200.

Na segunda parte, veremos o ponto de vista de um "intelectual balanta" sobre esta figura lendária (para os balantas e para o PAIGC), prematuramente desaparecida, o Pansau Na Isna. (**)


2. Comentário de Pezarat Correia a este último episódio, o nono, da 1.ª série do programa RTP sobre a guerra colonial:

(...) Creio que chegou ao fim a 1.ª série do programa “A Guerra”, de Joaquim Furtado, na RTP 1. Estamos já em condições de fazer um primeiro balanço e penso que a “expectativa positiva” que registei no meu “Giro do Horizonte 6” de 17 Out, se justificou. O programa, no conjunto dos 9 episódios, merece-me um julgamento favorável.

Encerrou bem com a “Operação Tridente” na ilha do Como, T.O. da Guiné, em que o confronto entre opiniões dos responsáveis portugueses e do PAIGC puseram em destaque um paradigma da guerra colonial. Tinham razão os primeiros quando, na sua perspectiva, diziam que a operação tinha sido um sucesso, pois cumpriram as missões atribuídas, apesar dos insignificantes resultados em baixas ao IN e material capturado. Mas foram ao objectivo e, naquelas operações, os objectivos não eram para se conquistarem, eram para se ir lá. Tinham também razão os segundos quando se congratulavam por, afinal, depois da operação as tropas portuguesas terem retirado e os guerrilheiros reinstalado no terreno, tornando insustentável a vida da reduzida guarnição portuguesa que lá ficou num extremo da ilha, sem poder sair do seu buraco.

Esta controversa foi paradigmática da guerra, disse eu, porque, de facto, esta foi, para nós, militares portugueses, um somatório de sucessos de operação em operação, até ao inevitável insucesso final.

Os sucessos que os responsáveis pelas três maiores operações nos três TO  reclamaram, “Tridente” na Guiné, “Quissonde” em Angola e “Nó Górdio” em Moçambique, às quais poderemos acrescentar a “Mar Verde” na Guiné com a particularidade de esta ter ocorrido em território da Guiné-Conakri, foram, afinal, rotundos fracassos estratégicos.

Aqui reside o fulcro da questão guerra ganha/guerra perdida, que me parece que este programa ajuda a esclarecer. Este será um dos seus méritos. (...)


Extractos de: Blog A25A > Pezarat Correia > 19 de dezembro de 2007 > Giro do Horizonte 17 - Guerra Colonial 2 (conteúdo já não disponível "on line", nem no Arquivo.pt)


3. Comentário de Virgínio Briote:

(...) Não se pode falar da Guerra na Guiné sem evocar Pansau Na Isna. Tal como muitos homens da guerrilha, de Pansau Na Isna sabe-se muito pouco e do que se sabe, muito é lenda.

Os tempos difíceis, como são sempre os inícios, tornam-se propícios a figuras que, de uma ou outra forma, deem nas vistas. De tal forma a sua figura é lendária que, até na morte pairou muito tempo a dúvida, de quando e onde ocorreu. 

Enquanto alguns ainda insistem ter sido um dos mártires da guerra do Como, outros juram que o fim de Pansau ocorreu muito tempo depois e bem longe dali. Pansau Na Isna (ou N’Isna), nome que em Balanta significa “morrer na aldeia”, foi, apesar de analfabeto (aprendeu a ler no decorrer da luta, em acampamentos da guerrilha), um valioso combatente e um dos braços direitos de Amílcar Cabral nos primeiros anos de luta.

O nome de Pansau ficou para a história por ter sido um dos comandantes da resistência na batalha de Como, que se travou nos primeiros meses de 1964. Apesar de, ao fim de cerca de 72 dias de combate, as tropas portuguesas já não encontrarem resistência significativa, a batalha do Como foi considerada pelo PAIGC como uma grande vitória. Porque conseguiram sobreviver ao constante bombardeamento a que estiveram sujeitos e porque, com a saída das tropas portuguesas (ficou apenas uma unidade no Cachil) foram retomando o controle do arquipélago.

O combate do Como foi de enorme importância para o PAIGC, especialmente no capítulo da propaganda interna e externa e Pansau Na Isna foi um dos heróis mais visíveis, ganhando com essa batalha enorme respeito e prestígio entre os camaradas da luta. Não poucos, dos que com ele lutaram, partilham a ideia de Aristides Pereira (que foi secretário-geral do PAIGC), que o descreveu como um lutador excepcional.

Diz-se que Pansau era algo excêntrico, devido às roupas brilhantes e à fita rosa que amarrava à cabeça. E a história mistura-se com a lenda, aceitando como realidade (os que afirmam não ter ele morrido no Como) que foi pelo brilho e cor da roupa que viu os seus dias acabarem no terreno enlameado de Nhacra (entre Bissau e Mansoa).

Fonte: Nota do editor ("copydesk") originalmete elaborada para o livro de Amadu Bailo Djaló, "Guineense, Comando, Português" (Lisboa Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), Consta do "manuscrito" a que tivemos acesso, por cortesia sua, mas não do livro impresso.

(Continua)
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 12 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2435: PAIGC - Quem foi quem (6): Pansau Na Isna, herói do Como (Luís Graça)

(**) Último poste da série > 5 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23664: Casos: a verdade sobre... (29): os fotogramas do vídeo com a visita da delegação do Movimento Nacional Feminino a Cufar, no início de fevereiro de 1966 (Mário Fitas / Sílvia Espírito-Santo / António Murta / João Crisóstomo / Joaquim Mexia Alves / Miguel Rocha)

Guiné 61/74 - P23722: Parabéns a você (2108): Rogério Cardoso, ex-Fur Mil Art da CART 643 (Guiné, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23694: Parabéns a você (2107): Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72) Residente na Guiné-Bissau

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23721: In Memoriam (458): O nosso Xico Allen (1950-2022) será cremado amanhã, dia 20, depois das cerimónias fúnebres na igreja de Lordelo do Ouro, Porto, às 14h30... Lembrando aqui os versinhos que ele fez em Empada quando era "Metralha" da CCAÇ 3566 (Empada e Catió, 1972/74)


Xico Allen (1950-2022) (*): Cerimónias fúnebres amanhã,  quinta feira, dia 20, na igreja de Lordelo do Ouro, Porto.  Informação da agência funerária. 


Francisco Allen Pereira (para nós será sempre o Xico Allen), numa das suas últimas viagens à Guiné-Bissau.  Aqui, em Agadir, Marrocos, 19/09/2017.  Foto da sua página do Facebook.


Guarda >27 de abril de 2019 >  Convívio de "Os Metralhas" (CCAÇ 3566, Empada e Catió, 1972/74) 
> "Alguns dos oficiais que prestaram serviço na Companhia dos Metralhas, com o Xico Allen, na ponta esquerda, que foi sempre o maior dinamizador destes convívios". Foto e legenda do médico Henrique Pinheiro Machado. Fonte: Página do Facebook do Francisco Allen Pereira.
 

1. Quando, em abril de 2006, o Xico Allen  (1950-2022) (*) voltou à Guiné, de jipe, e revisitou Empada, pela enésima vez (a primeira fora no ano já distante de 1992),  mas desta vez com a sua filha Inês e o Marques Lopes,  ele que era um homem de ação, pouco ou nada dado às escritas, mostrou uma outra faceta que, se calhar, nem a filha conhecia de todo, a de poeta popular, nortenho, tripeiro, ao rapar de uma folha de papel onde tinha rabiscado uns  versinhos, umas quadras de pé quebrado,  no seu tempo de Metralha, em Empada ... 

Nessa altura, em 2006, divulgámos, no nosso blogue, esses versos, sem qualquer retoque. E considerámo-los como mais uma pequena amostra do nosso Cancioneiro da Guiné (**), neste caso dedicado a Empada (***). 

Voltamos a reproduzi-los (com pequenos retoques nossos), como uma singela homenagem a este camarada e amigo  que, a partir de hoje,  se vai juntar aos amigos e camaradas da Guiné, membros ds Tabanca Grande, "que da lei da morte já se foram libertando"... Com ele, são já 125, o que não deixa de ser arrepiante: qual de nós será o próximo da lista?

 
Cancioneiro de Empada

por Xico Allen (1950-2022)
  
I
Antes d'chegar à Guiné,
Recebi uma medalha,
Hoje ainda a conservo
Com o nome de... Metralha (****)

II
Viajei de avião,
Rumo à cidade de Bissau,
Às primeiras impressões
Não me p'receu muito mau.

III
E depois de lá chegar
Segui para o Cumeré,
Fui conhecer o mato
Para saber como é.

IV
Quinze dias durou o estágio
P’rá condução na picada,
E depois fui obrigado
A juntar-me à macacada.

V
Quando cheguei a Bolama,
Muita fome lá passei,
De fome julguei morrer
Mas desta 'inda escapei.

VI
Bolama ficou p'ra trás
E rumei para Empada,
Lá iria ser melhor
Era o que tudo pensava.

VII
Empada estava à vista,
Qu'era o nosso destino
Andei pela mão dos grandes
Como se fosse um menino.

VIII
D'noite cheguei a Empada,
Estava tudo iluminado,
De manhã fui passear,
Fiquei decepcionado.

IX
Comecei a c'mer melhor
Depois que aqui cheguei,
Mas foi à minha custa
Pois cá me desenrasquei,

X
Houve cabritos e cabras,
Mortos a tiro e paulada,
Que, p'ra matar a malvada
Até nem custava nada.

XI
Neste rol de matanças
Também há porcos, leitões,
O que para nós mais tarde
São grandes recordações.

XII
Nos dias de avioneta,
Anda tudo em reboliço
Não só esperamos correio
Como presunto e chouriço.

XIII
Agora que somos velhos,
Esperamos rendição
Porque estamos quase, quase,
No fim desta 
 comissão.

XIV
E o tempo vai passando
Com muita dificuldade,
E eu vivo ansiando
Voltar à minha cidade

XV
Mas nas noites de Inverno,
Mil amarguras passei,
E nas horas de reforço
Muita chuva apanhei.

XVI
Trovoada e relâmpagos
Iluminavam com'o dia
Não desejo que tu passes
Aquilo que eu não queria.


Xico Allen

(Revisão / fixação de texto / título: LG)


s/l > s/d  > Da esquerda para a direita: Abel Moreira Santos, Francisco Allen Pereira, José Casimiro Carvalho e  José Vilas Ribeiro. Foto de J. Casimiro Carvalho, régulo da Tabanca da Maia, que comentou, na página do Facebook do Xico Allen, ontem, dia 18: "Partiste. O Régulo-Mor estará à tua espera. Foste sempre um bom camarada. Estiveste à espera em 2010 na Guiné, do Avião, para nos acompanhar e ajudar, foste sempre um Grande Homem e um "Homem Grande".  Adeus, Xico". https://www.facebook.com/fapereira1.  

Por sua vez, o Abel Moreira Santos comentou: "Estamos a ficar cada vez menos, desta foto de quatro só restam dois, o último que partiu que descanse em paz, até já camarada e amigo".
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores > 


19 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23720: In Memoriam (457): Xico Allen (1950-2022), ex-Soldado Condutor Auto, CCAÇ 3566, "Os Metralhas" (Empada e Catió, 1972/74): A minha homenagem ao amigo Xico Allen, como sempre o tratei (Albano Costa)

(***) Vd. poste de 9 Vd. poste  1 de junho de  2006 > Guiné 63/74 - P829: Cancioneiro de Empada (Xico Allen)

(****) Ficha da undade: Companhia de Caçadores n.º 3566

Identificação: CCaç 3566
Unidade Mob: BC 10 - Chaves
Cmdt: Cap Mil Inf João Nuno Rocheta Guerreiro Rua | Cap Inf Herberto Amaro Vieira Nascimento | Cap Mil Inf Pedro Manuel Vilaça Ferreira de Castro
Divisa: "Os Metralhas"
Partida: Embarque (nos TAM) em 23mar72; desembarque em 23mar72 | Regresso: Embarque em 18jun74

Síntese da Actividade Operacional

Após realização da IAO, de 27mar72 a 22abr72, no CIM, em Bolama, seguiu em 24mai72, para Empada, a fim de efectuar o treino operacional e a sobreposição com a CCaç 3373.

Em 17mai72, assumiu a responsabilidade do subsector de Empada, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 3852. 

Em 22jan73, por remodelação do dispositivo, o subsector passou à dependência do BCaç 4510/72. 

Em 3 e 21abr73, dois pelotões foram deslocados para Catió, em reforço da guarnição
local, onde se mantiveram até 23jan74.

Em 25fev73, a sua zona de acções foi alargada às áreas da península da Pobreza e Cubisseco de Baixo, por reformulação do dispositivo, incrementando então a sua actividade ofensiva, com realce para uma acção imediata sobre Iangué, em 19out73, com bons resultados.

Em 14jun74, foi rendida no subsector de Empada pela CCaç 4944/73, recolhendo seguidamente a Bissau, a fim de efectuar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n." 116 - 2ª Div/4ª  Sec, do AHM).

Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 412