sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23998: Notas de leitura (1545): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (13) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Aqui fica o repositório dos dois primeiros anos da governação Schulz, no tocante à sua estratégia que assentava fulcralmente num eficaz e permanente apoio aéreo, num modelo que ele reproduziu da presença francesa na Argélia, a disseminação em quadrícula do dispositivo terrestre, num máximo de território com população ou em zonas apreciadas como altamente dissuasoras para a presença de guerrilheiros, isto contando com a navegabilidade de grande parte dos rios (o Corubal passava a ser uma exceção, ainda havia transporte até à Ponta do Inglês inicialmente, e depois fazia-se o abastecimento por terra, a partir do Xime, acabou por se abandonar a posição), e fundamentalmente o apoio aéreo, Schulz apostava nos bombardeamentos e na surpresa da deslocação das forças helitransportadas. Aqui se conta as dificuldades que se sentiu e como se tornou evidente haver uma descoordenação entre Lisboa e Bissau.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (13)


Mário Beja Santos
Este primeiro volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Percorremos já um longo percurso (esta recensão já abrangeu mais de metade da obra), os investigadores socorrem-se de um processo diacrónico, atravessam toda a cronologia de acontecimentos internacionais e nacionais que se prendem com o fenómeno da descolonização africana e como este afetou a Guiné; depois, dão-nos o quadro dos meios aéreos existentes, no início da década de 1960 e a sua evolução até ao desencadear da guerra, a adaptação de infraestruturas (nomeadamente Bissalanca, Cufar e Gabu), o aperfeiçoamento na formação dos pilotos, etc. Seguiu-se uma descrição sobre os comportamentos militares dos primeiros Comandantes-Chefes e as aquisições efetuadas, designadamente na Europa Ocidental. Por fim, abordou-se a Operação Tridente, começa agora o período da governação Schulz.

O quinto capítulo da obra intitula-se “Eles Têm Unicamente o Céu”, e abre com uma citação: “Chegámos a uma escola do PAIGC… Tinham caído bombas perto: dois professores mostraram-me os seus fragmentos. As crianças cantavam uma canção, ‘Nós temos a terra, os portugueses têm unicamente o céu.”

O Brigadeiro Schulz veio enfrentar uma guerra em franca expansão na Guiné portuguesa, quando assumiu o comando da província, em maio de 1964. Apesar do resultado inicial da Operação Tridente parecer positivo, o PAIGC não abrandou a sua atividade no Setor Sul e foi aumentando nos outros. A ofensiva da guerrilha no Morés, em particular, era uma ameaça, exigia uma grande mobilização de forças no território. Um número crescente de benfeitores estrangeiros proporcionava ao PAIGC treino militar, apoio diplomático, santuário e ajuda material, incluía morteiros, metralhadoras antiaéreas, lança-granadas foguete e canhões sem recuo; o Congresso de Cassacá permitiu reforçar a unidade a determinação dos insurgentes. Schulz ia ter mais tropas e meios para recuperar a iniciativa ao PAIGC. Vinham forças terrestres e aéreas, incluindo paraquedistas e sobretudo o DO-27.

À medida que o número de aeronaves atribuídas à ZACVG aumentava, mais que duplicou o número de militares entre o início da guerra e a chegada de Schulz. O sistema político-militar ganhou coerência, no passado tínhamos um Governador, Vasco Rodrigues (1962-1964), e um Comandante-Chefe, Louro de Sousa, a separação de poderes revelara-se um erro absoluto. Com Schulz deu-se a conjugação de Governador e Comandante-Chefe, pode implementar uma abordagem mais abrangente e proceder a uma estratégia com o comando unificado, adotou o sistema de quadrícula anteriormente implementado pelas forças francesas na Argélia, a divisão do território em unidades militares autónomas, em cada um dos setores havia guarnições que operavam de forma independente sob as ordens de um Comandante de Batalhão, podendo solicitar forças de reação rápida. Foi um tipo de estratégia que contou fortemente com o poder aéreo, o que veio exigir uma extensa vigilância no ar para detetar a atividade inimiga; os helicópteros não só transportavam as forças especiais como davam apoio de fogo, e também dentro da lógica da quadrícula francesa criaram-se as ZLIFAs (abreviatura de Zona de Livre Intervenção da Força Aérea), estas eram estabelecidas em terrenos dominados por insurgentes ou áreas onde não havia nem forças portuguesas nem população civil; não havia necessidade de coordenação em missões de ataque e reconhecimento armado com as forças do Exército ou da Marinha; as ZLIFAs também foram estabelecidas ao longo de vias navegáveis e passagens de fronteira, tudo no intuito de dificultar o trânsito do PAIGC; como observou um General da FAP, José Francisco Nico, as ZLIFAs tinham por objetivo manter o inimigo em permanente estado de insegurança e privá-lo de iniciativa em áreas menos controladas pelas forças terrestres.

A estratégia de Schulz dependia da intimidação dos ataques helitransportados, mas na época ele tinha apenas três helicópteros Alouette II à sua disposição e as suas limitações impediam o seu uso em operações de assalto; para superar a cadência, o Governo encomendou vinte e um Alouette III em 1964, mas demoraram mais de um ano a chegar.

No entretanto, impôs-se um equilíbrio mais severo dos recursos, em 1964 a FRELIMO lançava o seu primeiro ataque em setembro, a FAP ia ser comprometida com o um terceiro teatro de operações, ainda mais longínquo. Agravando ainda mais as dificuldades da FAP, os aviadores portugueses na Guiné foram privados dos seus mais potentes aviões de combate, deu-se a retirada dos F-86 fornecidos pelos EUA. De janeiro a agosto de 1964, os aviões Sabre tiveram um total de 577 saídas, das quais 430 foram missões operacionais de ataque e apoio de fogo; em comparação, os T-6 tiveram quase o dobro de saídas durante o mesmo período. Contudo, os Sabres, provaram ser o apoio de fogo por excelência, dada a sua velocidade, poder de fogo e capacidade de resposta pronta. O Tenente-Coronel Manuel Barbeitos de Sousa voou na última missão de um Sabre em 20 de outubro de 1964.

Esta diminuição de meios aéreos preocupava Schulz que sustentava a sua estratégia no poder aéreo, em particular a capacidade da FAP fornecer apoio de fogo às forças de superfície, os T-6 sozinhos eram notoriamente insuficientes neste contexto. Os responsáveis da FAP recomendaram a substituição do T-6 por aeronaves movidas a hélice, caso do Corsair, o Skyraider ou o T-28 Trojan, propostas que nunca foram verdadeiramente consideradas. Os decisores em Lisboa puseram a hipótese de substituição dos F-86 por F-84 ou P2V-5 que estavam a servir em Angola, hipótese que se revelou impraticável devido às potenciais repercussões diplomáticas. O Governo português chegou a um acordo com a República Federal Alemã para a compra de 65 caças que eram cópias licenciadas do F-86 produzidos no Canadá e que foram considerados menos propensos à atenção negativa dos EUA. Mas a venda foi detetada e os EUA vetaram o acordo. Lisboa aceitou mais tarde uma oferta alemã para transferir um lote de Fiat G-91 que se iriam mostrar mais adequados para operações ar-terra na Guiné. O acordo com a Fiat satisfez o comando da ZACVG, juntou-se uma equipa de mecânicos a Leipheim, na Alemanha Ocidental, para ações de formação e treino no Fiat G-91, isto no final de 1965. Até lá, a FAP tinha de confiar no lento, venerável e vulnerável T-6. Nessa conjuntura, o PAIGC ia estendendo as suas atividades por quase toda a província, incluindo o Setor Leste nas áreas despovoadas ou escassamente povoadas.

De janeiro a novembro de 1965, as FARP flagelações, emboscadas e outras atividades de guerrilha, incluindo áreas que não tinham sido anteriormente afetadas pela sua guerrilha. O PAIGC e as FARP mantinham uma luta militar implacável na parte Sul do território.

No contexto internacional, a Organização da Unidade Africana reconheceu o PAIGC como o único movimento de libertação legítimo da Guiné portuguesa, isto em março de 1965, era uma tomada de posição que iria assegurar ao PAIGC mais apoio.

Quando o Coronel Krus Abecasis chegou a Bissalanca como novo Comandante da ZACVG, em julho de 1965, deparou-se-lhe de imediato com uma situação estratégica intrigante. O PAIGC continuava a expandir-se e a intensificar as suas operações por toda a Guiné, tinha a iniciativa e a surpresa do seu lado, atacava onde queria e quando queria. Exigia-se uma resposta vigorosa, mas a zona aérea carecia de meios, Abecasis reestruturou o Comando e mais tarde acabou por observar que a relação operacional da FAP com os seus serviços da Guiné revelava descoordenação. Dois anos antes de assumir o comando, Abecasis visitara Bissalanca e descobrira essas desconexões e deu o exemplo de que havia pedidos urgentes de apoio aéreo que eram aprovados por escalões de comando superiores sem previamente se verificar se havia disponibilidade de aeronaves e de tripulação.

Chegara-se ao cúmulo de os pilotos estarem em missões sem nenhuma ideia da disposição das forças terrestres que estavam a apoiar ou do seu movimento. Abecasis concluiu a sua avaliação pedindo um sistema de trabalho que lhes assegurasse uma maior flexibilidade e um conhecimento mais detalhado do alvo e uma melhor compreensão das possibilidades e limitações que eram impostas à aviação.

Arnaldo Schulz, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas na Guiné Portuguesa, 1964-1968 (Coleção José António Viegas)
Guerrilheiro do PAIGC sobraçando um RPG-2, pronto a disparar (Coleção Alberto Grandolini)
Pilotos alemães e portugueses em Oldenburg, ação de formação em Fiat G-91 (Arquivo Histórico da Força Aérea)
Tenente Fernando Moutinho num Fiat G-91 (Coleção Fernando Moutinho)
Sala de operações em Bissalanca, onde diariamente eram planeadas e analisadas as missões (Coleção Fernando Moutinho)

(continua)
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Notas do editor:

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Último poste da série de 20 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

Guiné 61/74 - P23997: Notas de leitura (1544): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IX: o vagomestre e o petisco que não podia ser para todos: o caso da mão de vaca com grão...

Pormenor da capa do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2010], 399 pp. il, disponível em formato pdf, na Bibilioteca Digital do Exército). 

1. C
ontinuação da leitura do 
Manuel Andrezo, pseudónimo de  Aurélio Manuel Trindade, ten-gen ref, que foi cap inf no CTIG, último comandante da 4ª CCAÇ e o primeiro da CCAÇ 6 (a 4ª Companhia de Caçadores passou, a partir de 1 de abril de 1967, a designar-se por CCAÇ 6, "Onças Negras"). Fez a sua comissão sempre em Bedanda, entre julho de  1965 e julho de 1967.

Aurelio Manuel Trindade irá completar  90 anos em 2023 (nasceu em Viseu, em 11 de maio de 1933).   Fez quatro comissões no ultramar. Desejamos, desde já, que que o novo ano de  2023 seja vivido com saúde, alegria e esperança, rodeado dos filhos e netos que, sabemos, o adoram. Vive em Lisboa. E ainda gostaríamos que ele um dia aceitasse o nosso convite para se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, juntando-se assim aos 868 amigos e camaradas da Guiné.  Ele e o seu nosso amigo Mário Arada Pinheiro (que já acietou o convite: problemas de saúde têm-no impedido de nos mandar as fotos da praxe).

Um exemplar do seu livro, impresso na Alemanha (c. 2020), foi-me gentilmente facultado, no verão passado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do autor,  seu amigo e camarada, datada de 13/12/2020. 

Vamos fazer, com esta, um dezena de notas de leitura (*) deste livro que, infelizmente, está fora do mercado, por se tratar de edição de autor. Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6),  têm mostrado interesse por esta obra, que temos estado a divulgar.   

E muitos outros dos nossos camaradas conheceram a região de Tombali onde se situa Bedanda, gente que guarda as melhores e as piores memórias do inferno de tarrafe, lianas, floresta, água, suor, lágrimas e sangue, que era toda essa região do Sul: Bedanda, Cumbijã, Nhacobá, Catió, Ganjola, Cachil, Como, Cufar, Cadique, Cantanhez (Caboxanque, Cafal, Cafine, Jemberem, Chugué, Cobumba...), Cacine, Cacoca, Sangonhá, Cameconde, Guileje, Balana, Mejo, Gadamael, etc.

Temos vindo, ao mesmo tempo,  a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). (**)

A história que escolhemos para hoje, com a devida vénia (e homenagem ao autor no ano em que vai fazer  90 anos) é um delícia de humor de caserna. Confesso que me diverti a (re)lê-la. E, ao mesmo tempo, é  também reveladora das qualidades que deve ter um grande comandante operacional (como era o caso do capitão Cristo): disciplinado e disciplinador, mas pondo sempre à frente de todas as suas decisões o espírito de corpo, a coesão, o bem-estar e a segurança dos seus homens. 

É também reveladora das pequenas "sacanices" ou "velhacarias" que alguns camaradas, que tinham a faca e o queijo na mão, podiam fazer a outros camaradas... Enfim, os pequenos abusos do poder, os privilégios.... Afinal, "quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte"...

O sargento Lopes, a exercer as funções de vagomestre (por já não ter  "idade" para ir para o mato a comandar uma secção)  terá aprendido uma lição para a vida. 

Casos como este, ter-se-ão multiplicado na Guiné... Estava-me a lembrar de histórias passadas na minha CCAÇ 2590/CCAÇ 12... Talvez um dia ainda as conte: afinal, os dois sargentos do quadro, de quem eu, de resto,  era amigo,  já morreram infelizmente...E não levarão a mal, lá no Olimpo dos combatentes, uma ou outra história pícara que a gente, do lado de de cá, conte sobre eles e nós... Os dois viram a guerra a partir da secretária: um passeava a sua úlcera pelas tabancas, o outro fazia a conta a fraca contabilidade de uma companhia de praças africanas desarranchadas"... O 1ºs sargentos,. por norma, estavam de passagem, e preparavam-se para ir para a Escola Central de Sargentos, em Águeda... 


A GUERRA DO PETISCO 
(pp. 298/302)


A alimentação no quartel era um problema, nomeadamente quanto à aquisição de carne fresca. Por isso, de vez em quando, o capitão permitia que se matasse uma ou duas vacas da manada da Companhia. Dado o reduzido número de cabeças de gado, estas só poderiam ser abatidas por ordem do capitão. Há muito tempo que não se comia carne fresca, mas quando o desejo começava a ser muito forte o capitão autorizava o abate de uma vaca e durante um dia ou dois tirava-se a barriga da miséria. 

Ora foi o que um dia o capitão veio a fazer, chamando o sargento vaguemestre para que abatesse uma das vacas. A vaca foi morta, a carne distribuída, e o Fialho, que trabalhava na messe de oficiais, logo sugeriu ao capitão que se podia fazer um bom petisco para os oficiais com grão e mãos de vaca. Ele sabia que habitualmente as mãos de vaca eram deitadas fora por não ser viável cozinhá-las no rancho geral. Não chegavam para todos os soldados. 

O capitão não apreciava as mãos de vaca, em Lisboa nunca as comeria. No entanto, em Bedanda, onde tudo era diferente e a alimentação regra geral deficiente, mão de vaca era capaz de ser uma óptima variante ao rancho habitual. Com base nisso disse ao Fialho para ir falar com vaguemestre e que a seu mando lhe entregasse as mãos da vaca abatida. 

Foi o que o Fialho quis ouvir. Saiu da Companhia e foi à cantina falar com o sargento. Encontrou-o muito atarefado a conferir e a arrumar os géneros. 

─ O que queres daqui, Fialho? Estou a trabalhar, não tenho tempo para te aturar. Já te dei os géneros para a messe, o que é que queres mais? 

─ Na messe de oficiais lembrámo-nos de aproveitar as mãos de vaca e fazer mão de vaca com grão. Falei disso ao nosso capitão, ele concordou tendo-me dado ordens para as vir buscar antes de o senhor as deitar fora. Queria também um pouco de grão para fazermos o petisco.

 ─ O nosso capitão quer as mãos de vaca? Já as não tenho. Aquilo que vocês queriam fazer para os oficiais já nós fizemos para os sargentos e já as comemos. Como é que eu vou resolver isto agora? Tens a certeza que foi o nosso capitão que te mandou vir buscar as mãos de vaca? Isso não será uma iniciativa tua para fazerem um petisco para vocês? 

─ Não, meu sargento, não é iniciativa minha e o petisco é para os oficiais. E foi o nosso capitão que me mandou vir falar consigo. Eu só lembrei ao nosso capitão que era bom nós fazermos um petisco na messe de oficiais com a mão de vaca. Ele concordou comigo e mandou-me vir buscar as mãos de vaca. Eu não sabia que o meu sargento já as tinha comido. Eu vou dizer ao nosso capitão que o senhor e os outros nossos sargentos já comeram a mão de vaca. 

─ Está bem, podes ir dizer porque eu não me posso transformar em mão de vaca. 

O Fialho saiu da cantina e foi falar com o capitão. 

─ Meu capitão, falei com o nosso sargento vaguemestre. Não arranjei a mão de vaca porque o nosso sargento já a tinha arranjado para ele e para os outros sargentos. Nem sequer pude trazer a prova do sucedido porque eles estavam com pressa e já tinham comido o petisco. Só não tinham ainda lavado a louça porque eu bem vi a panela e os pratos sujos lá na cantina. 

─ Está bem, Fialho. Diz ao nosso sargento vaguemestre que venha falar comigo. 

O Fialho saiu do gabinete e dirigiu-se logo à cantina com o recado do capitão que tinha ficado aborrecido por o sargento já ter comido a mão de vaca. Queria falar com ele. Foi depois falar também com o Balsinhas dizendo-lhe que já tinha lixado o vaguemestre. 

 Fialho, como é que tu fizeste isso ao Vaguemestre? 

─ Eu sabia que os sargentos já tinham comido a mão de vaca, da vaca que matámos. Cozinharam-na com grão. Eu tinha dito antes ao capitão que se podia fazer um petisco com mão de vaca. A princípio o capitão não se mostrou muito interessado mas com o apoio dos nossos alferes consegui que o nosso capitão me mandasse ao nosso sargento vaguemestre buscar a mão de vaca. Como já a tinham comido não a pude levar e agora o nosso capitão quer falar com os sargentos que a comeram. 

─ Fialho! Tu és terrível. Arranjaste uma grande intriga. Coitado do nosso sargento vaguemestre. 

─ Coitado uma ova. Coitados é de nós porque ele sempre vai arranjando uns petiscos para os amigos. 

Cumprindo as ordens o vaguemestre lá seguiu para o gabinete do capitão. 

─ O meu capitão mandou-me chamar? 

─ Mandei sim. Você não perdoa nada. Mal acabámos de matar a vaca já você a estava a cozinhar e a comer com os seus amigos. Eu tinha mandado o Fialho buscar a mão de vaca porque queria fazer um petisco para mim e para os nossos alferes, mas você antecipou-se. Nem se lembrou de perguntar ao seu comandante de companhia se queria as mãos de vaca para a messe de oficiais. Julgo que era o mínimo que deveria ter feito. Se eu dissesse que não queria,  você poderia então fazer o petisco para os seus amigos. O que tem a dizer sobre isto? 

─ Nada, meu capitão. De facto eu fiz o petisco e comi-o com os meus amigos. Não me lembrei de perguntar ao meu capitão e aos nossos alferes se queriam a mão de vaca para a messe de oficiais. 

─ Agora, menino, que o mal está feito, não há mais nada a fazer. Você é comandante duma secção de atiradores. Porque tinha confiança em si e porque já tem a sua idade, inadequada a um comandante de secção na Guiné, eu mandei-o para o rancho e nomeei um cabo para comandar a sua secção. Mas como afinal vejo que você é muito desembaraçado, mais do que eu pensava, amanhã vai comigo para a operação já planeada e volta a comandar a sua secção. Esteja equipado amanhã, às duas horas da manhã. Pode sair. 

Pouco tempo depois entra no gabinete do capitão o alferes Carvalho.

 ─ Meu capitão, o Lopes foi falar comigo e disse-me que amanhã é ele que vai connosco na operação? Isto é verdade? 

 ─ É sim, Carvalho. É verdade porque aquele sacana fez um petisco com a mão de vaca e nem se lembrou de nós. Assim, nunca mais vai esquecer que quando houver um petisco o capitão e os nossos alferes também são gente. 

─ Meu capitão, tenha dó de mim. O Lopes nunca foi a uma operação porque você o retirou logo para vaguemestre, e o cabo que comanda a secção sabe dar conta do recado. A operação vai ser difícil e eu não queria levar um maçarico a comandar a secção. Se o quiser levar connosco dê-lhe outra missão. No pelotão não tem lugar. Problemas já nós temos, não precisamos de mais outro. Veja lá se pode rever a sua decisão. 

─ Está bem, mas não digas nada ao Lopes. Ele vai preparar-se para a operação, mas na altura da saída eu dispenso-o e volta para o rancho onde ele é bom. 

─ Assim está bem. Até logo e desculpe o meu desabafo. 

No noutro dia, antes da saída para a operação, o sargento Lopes apareceu de camuflado com espingarda, granadas e cantil. Parecia um guerreiro, mas com cara de grande aflição quando se apresentou ao capitão. 

─ O nosso sargento está pronto para comandar a sua secção? 

─ Estou pronto para cumprir as suas ordens, meu capitão. O nosso alferes disse que a operação era difícil e que eu ia ser mais um problema para ele. Preferia que eu não fosse. 

─ E você prefere ir ou não?

 ─ Eu preferia não ir mas o meu capitão é que sabe.

 ─ Bem, Lopes, vá lá tratar do rancho. Você não vai connosco porque eu preciso de alguém de confiança para tratar do rancho e da alimentação do quartel. Da próxima vez quando houver petisco lembre-se do seu capitão e dos nossos alferes. 

─ Esteja descansado, meu capitão. Não me voltarei a esquecer. Obrigado e boa sorte.

 ─ Obrigado Lopes e porte-se bem. 

Quando o sargento se afastou, o capitão, sorrindo, disse ao alferes Carvalho: 

─ Ainda bem que você não o quis a comandar a secção. Se o levássemos ia ser um grande problema para nós. É bom rapaz, muito bom vaguemestre, mas velho de mais para comandar uma secção nos matos da Guiné. Se você não me tivesse dado a hipótese de o dispensar, não sei como me ia livrar desta enrascada em que me meti. Tínhamos que andar com ele às costas pois ele não iria aguentar o esforço que nos espera. 

─ Tudo acabou em bem, meu capitão. A próxima vez que matarmos uma vaca, as mãos serão para fazermos um petisco para os oficiais. E eu, ou muito me engano, ou o petisco vai aparecer na messe já preparado.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos, para publicação deste poste: LG ]

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23996: Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74) - Parte II: A mãe Gracinda


Lisboa > Mosteiro dos Jerónimos > Um casal de "Fidalgos" do Minho (Gracinda e Zé), no casamento do filho “caçula”

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Joaquim Costa, ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021; autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicarm 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022. Tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto. 



Capa do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina, Guiné: 1972/74". Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp.


1. Texto enviado pelo  Joaquim Costa, no passado dia 5 de janeiro, às 02:01:

"(...) Dando continuidade à nova série sobre parte da minha história de vida (humilde e singela!?), aqui vai mais um poste, para caso lhe reconheças qualidade e de interesse o publicares.# (...) (*)


Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto (Joaquim Costa, ex-fur mil, CCAV 8351, Cumbijã. 1972/74) - Parte II: 
A mãe Gracinda


Tatuagem: "Amor de Mãe".
Cortesia do livro "Guerra
na Pele – As tatuagens
da guerra colonial",
de João Cabral Pinto,
  edição de autor, 2019.


"Amor de Mãe", foi, porventura, a frase mais tatuada pelos militares na Guerra Colonial. Assunto que já deu origem a vários livros.

Nunca fiz nenhuma, nem penso fazer, contudo nutria uma certa admiração pelos soldados que as faziam. No fundo era a exteriorização da tatuagem que tinham gravado nas suas alma e nos seus corações.

Todos temos consciência que foram as nossas Mães que mais sofreram com a guerra no ultramar, uma dor mais intensa e dolorosa porque em silêncio.

Decidida a intenção/aventura/ousadia... de publicar em livro as minhas memórias de guerra, como por instinto, iniciei a narrativa com uma homenagem singela aos meus pais. Parece a despropósito, mas para mim só podia começar desta maneira já que foram figuras marcantes e sempre presentes em cada dia de Guiné, em particular nos dias mais difíceis, ouvindo (quem disser o contrário mente!?) os seu sábios conselhos.

Dando sequência à publicação da série " Origens do Tigre Azul: Nado e criado entre Famalicão e o Porto" (*),  aqui vai mais um poste. Hoje sobre a Mãe Gracinda. São histórias dos primórdios do "Tigre Azul" e  "Furriel Pequenina", que complementam o meu  livro "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel pequenina".


A mãe Gracinda

No dia 27 de abril de 1950 (dia do meu nascimento), cinco anos após o fim da II Guerra Mundial e ainda com o cheiro a pólvora no ar, de acordo com os relatos mil vezes contado pelo meu irmão Manuel, que nesse mesmo dia passa com distinção e louvor no exame da quarta classe, morre a avó paterna, o Barrigana lesiona-se com gravidade num treino e o meu irmão Eduardo (columbófilo) perde a sua melhor pomba que não regressou de um torneio. 

Um dia do tamanho de uma vida. No mesmo dia, se ri, se chora, se nasce e se morre. Muitas emoções contraditórias no ar.

Sendo o sétimo filho do José e da Gracinda, tendo em conta a época, nasci em berço de ouro, o mesmo não podendo dizer-se dos meus irmãos.

O Manel viveu toda a sua vida com a mágoa de nunca terem valorizado e festejado, condignamente, a sua aprovação com distinção e louvor no exame da quarta classe. Feito já mais visto na família e na aldeia. De forma diferente a Avó e o irmão tiraram-lhe o protagonismo.

O pai Zé e a Mãe Gracinda viveram a miséria dos tempos da primeira e da segunda guerras mundiais, da gripe pneumónica e da guerra civil espanhola, saindo destes conturbados acontecimentos sem esmorecerem, continuando a lutar, resilientes, por uma vida melhor para a família

A Gracinda cumpriu exemplarmente o estatuto que estava reservado às mulheres na altura: acompanhar as decisões do marido e criar os filhos “dados” por Deus.

Dizem que, enquanto solteira, não havia terreiro de dança que não a conhecesse, ouvindo-se a sua voz, sobrepondo-se às demais, nas cantorias do Minho. Nas desfolhadas, no cantar das Janeiras e dos Reis (#), ninguém lhe passava a perna.

Quando fui estudar para o Porto, uma vez que o orçamento familiar não comportava as despesas de alojamento e alimentação na Invicta, todos os dias fazia a viagem Famalicão / Porto / Famalicão, aproveitando o facto de ter direito a um passe gratuito. Para apanhar o comboio, levantava-me todos os dias às cinco horas da manhã,  tendo a minha santa mãe já o pequeno-almoço na mesa.

Assim abalava eu para a odisseia diária. Mas não estava só: mal saía de casa, ainda noite escura, logo ouvia, para além do cantar dos galos e o ladrar dos cães, um grupo de mulheres que chamavam umas pelas outras em altos berros audíveis de uma ponta à outra da aldeia (ó Mariiiiiiiiiiiiiia, já qui bouuuuuuue!) transportando grandes molhos de caruma (ou pruma, como elas diziam) à cabeça, até às padarias da vila, para aquecerem os fornos. Cumprimentavam-me carinhosamente dizendo: 

−  Vamos ter guarda-livros na aldeia?!

Passados uns dias, não suportei ver a minha santa mãe, que era a última a deitar-se, levantar-se todos os dias às cinco horas da manhã para fazer o pequeno-almoço para o menino, pelo que, tomei uma decisão:

− Mãe, a partir de hoje, sou eu que trato do meu pequeno-almoço. 

E assim foi, todos os dias, junto à porta de saída, tinha uma caixa de bolachas Maria, tirava duas… às vezes uma,  e uma garrafa de vinho fino, de que bebia um cálice... às vezes dois.

Mais tarde, o meu pai, com um semblante de caso (que me assustou), abeirou-se de mim e disse-me (já com um leve e indisfarçável sorriso maroto (que me distendeu): 

− Meu filho, decidi alugar-te uma casa no Porto, porque me fica muito mais barato do que o teu mata-bicho diário.

Aqui ficou decidido manter as bolachas e trocar o vinho fino por leite, já fervido de véspera. Mas!…, como por “milagre”, no local das bolachas e do vinho fino, todas as manhãs lá apareciam o pão com marmelada e o leite com café sempre quentinhos (##)-

(Continua)
________

Notas do autor:

(#) Letra:

Aqui estamos nós,
Todos reunidos,
P’ra cantar os Reis
Aos nossos amigos;
Sem nenhum interesse,
Com muita amizade,
Cantando as “reisadas”
À sociedade.

(...)

Viva o patrão desta casa,
Homem de grande careca,
Abra lá a sua porta
E encha lá a caneca.

Viva a patroa da casa,
Mulher de muito trabalho,
Põe rabanadas na mesa
E umas achas no borralho
(...)


(**) Em resultado destas drásticas alterações, ia muito menos alegre para o Instituto mas, vai-se lá saber porquê !?, melhorei em muito os resultados escolares…

Guiné 61/74 - P23995: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (15): Humilhados e ofendidos... (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista, CCP 121 / BCP 12, 1972/74, natural de Águeda)


Victor Tavares

1. O Victor Tavares, natural de Águeda, conterrâmeo e amigo do nosso Paulo Santiago (outro dos nossos "históricos"),  antigo presidente da junta de freguesia de Recardães, sua terra natal, não foi um "tipo qualquer"... Foi um grande combatente e um dos melhores do melhores: ex-1.º cabo paraquedista, da CCP 121 / BCP 12 (Bissalanca, 1972/74),  Tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue. Integra a Tabanca Grande desde 6 de outubro de 2006. É, portanto, um dos nossos "veteranos".

Justifica-se, por muitas razões,  a reprodução deste excerto de um poste já muito antigo (*): o Victor dá-nos aqui o retrato do abandono e da humilhação, a que foram sujeitos, em Cacine, os militares que, sob as ordens do comandante do COP 5, major Coutinho e Lima (1945-2022), abandondaram Guileje, em 22 de Maio de 1973, chegando a Gadamael, também fortemente atacada pelo PAIGC, a seguir a Guileje, e salva pelos pára-quedistas e a Marinha -, refugiando-se depois em Cacine. 

A "batalha dos 3 G" foi há 50 anos  (**)... Ainda há gente que se lembra, e participou nos acontecimentos, em Guidaje, em Guileje, em Gadamael... O Vitor Tavares esteve lá,  em todas... Este texto, que voltamos a reproduzir, é também uma forma de ele "fazer a prova de vida"... Andou há tempos atrapalhado com sérios problemas de saúde... Felizmente, superou-os, está melhor, já voltou ao seu Facebook... 

Um abraço fraterno para ele. LG


Gadamel Porto, o outro inferno a sul

por Victor Tavares



Depois de regressada do inferno de Guidaje (***), a Companhia de Caçadores Paraquedista (CCP) 121 encontrava-se estacionada em Bissalanca [Base Aérea n.º 12], gozando um curto período de descanso, após a desgastante acção que tivera no norte da província.

Daí o Comando Chefe entender que os 4 a 5 dias de descanso concedidos já eram demais e ser necessário o reforço das nossas tropas aquarteladas em Gadamael por se encontrarem em grandes dificuldades. Acaba, por isso, por dar ordens para rumarmos a Gadamael, para onde partimos a 12 de Junho de 1973.

Partindo de Bissau em LDG [Lancha de Desembarque Grande] com destino a Cacine, onde chegámos a meio da tarde deste mesmo dia. Como a lancha que nos transportava, não conseguia atracar ao cais por falta de fundo, fomos fazendo o transbordo por várias vezes em LDM [Lanchas de Desembarque Médias] para aquela localidade.

Foi então, logo na primeira abordagem da lancha, que me apercebi que na mesma estava um indivíduo que pela cara me pareceu familiar. No entanto, como o mesmo se encontrava vestido à civil,  calções, camisa aos quadradinhos toda colorida e sandálias de plástico transparente - pensei ser porventura algum civil que andaria por ali no meio da tropa, o que seria natural e podia eu estar errado.

Depois de toda a tropa estar desembarcada, indicaram-nos o local onde iríamos ficar, num terreno frente ao quartel de Cacine. Instalámo-nos e de seguida fomos dar uma volta pelas redondezas, até que no regresso deparo com a mesma criatura, sentada no cais com ar triste e pensativo, típico da pessoa a quem a vida não corre bem. 

Eu vinha acompanhado do paraquedista Vela, meu conterrâneo – e hoje meu compadre. Perguntei-lhe:

Ouve lá, aquele tipo ali não é nosso conterrâneo?

Responde ele:

− Sei lá, pá, isto é só homens.

 "Gadamael ?!... Vocês vão lá morrer todos!"

Por ali estivemos na conversa mais algum tempo, até que tomei a iniciativa de me dirigir ao fulano uma vez que ele continuava no mesmo sítio. Acercando-me dele, perguntei-lhe:

  
 Diz-me lá, camarada, por acaso tu não és de Águeda ?

Responde-me ele:

 −  Sou.
E pergunta-me de seguida:

 E, você, não é de Recardães?

Digo-lhe que sim, cumprimentamo-nos e vai daí perguntei-lhe o que é que ele estava ali a fazer, porque de militar não tinha nada. Respondeu-me que não sabia o que estava ali a fazer, de uma forma triste e ao mesmo tempo em tom desesperado e desanimado.

Entretanto com o desenrolar da conversa, ele perguntou o que estávamos ali a fazer, eu respondi que na madrugada seguinte íamos para Gadamael Porto... Qual não é o meu espanto quando ele põe as mãos à cabeça, desesperado e desorientado, e me diz:

− Não vão, porque vocês morrem lá todos!

Tentei acalmá-lo, dizendo-lhe para estar descansado que nada de grave ia acontecer, pedi-lhe para me contar o que se passava, vai daí, começa ele a relatar o que tinha passado em Guileje e Gadamael até chegar a Cacine. Na verdade depois de o ouvir, não me restaram dúvidas que ele tinha mais do que sobejas razões para estar no estado psicológico aterrador em que se encontrava .


Os militares portugueses que abandonaram Guileje, 
foram tratados como desertores e traidores à Pátria

Entretanto, informa-me da sua situação militar daquele momento tal como a de outros camaradas que abandonaram Guileje. Neste grupo estava também outro meu conterrâneo, que o primeiro foi chamar, vindo este a confirmar tudo.

O que mais me chocou foi a forma desumana como estes militares foram tratados, depois da sua chegada a Cacine, sendo considerados como desertores e cobardes, quando, em meu entender, se alguém tinha que assumir a responsabilidade dessa situação, seriam os seus superiores e nunca por nunca os soldados.

Estes homens foram humilhados por muitos dos nossos superiores  
 que eram uns grandes heróis de secretária!  , foram proibidos de entrar no aquartelamento, não lhes davam alimentação, o que comiam era nas Tabancas junto com a população. 

As primeiras refeições quentes que já há longos dias não tomavam, foram feitas por estes dois homens juntamente com os paraquedistas, porque o solicitei junto do meu Comandante de Companhia, capitão paraquedista Almeida Martins – hoje tenente general na reserva   ao qual apresentei os dois camaradas do exército que lhe contaram tudo por que passaram.


Os dois desgraçados de Guileje eram meu conterrâneos: 
o Carlos e o Victor Correia

Solicitei ao meu comandante para eles fazerem as refeições junto com o nosso pessoal, prontificando-me eu a pagar as suas diárias, se fosse necessário. Ele autorizou os mesmos a fazerem as refeições connosco enquanto não tivessem a sua situação resolvida e a nossa cozinha que dava apoio ao bigrupo que estava de reserva, ali se mantivesse.

O meu comandante expôs o problema destes homens ao comandante do aquartelamento do exército, solicitando que o mesmo fosse resolvido com o máximo de brevidade uma vez que a situação não era nada dignificante para a instituição militar.

É de salientar que estes dois homens já não escreviam aos seus familiares há mais de um mês, porque não tinham nada com que o fazer. Fui eu que lhes dei aerogramas para o fazerem e os obriguei a escrever, porque o seu moral estava de rastos e a vida daqueles militares já não fazia sentido. Dormiam debaixo dos avançados das Tabancas enrolados em mantas de cor verde, não tendo mais nada para vestir a não ser o camuflado.

Estes meus dois conterrâneos que atrás refiro eram o Carlos (que infelizmente já faleceu, natural do lugar de Perrães, Oliveira do Bairro) e o Victor Correia (de Aguada de Baixo, Águeda, e que hoje sofre imenso de stresse pós-traumático de guerra) (****)

[ Selecção / Revisão e fixação de texto / Substítulos / Parênteses retos / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
_____________

Notas dos editores:

(*) Vd. postes de:


(**) Ultimo poste da série > 21 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23903: Guidaje, Guileje, Gadamael, maio/junho de 1973: foi há meio século... Alguém ainda se lembra? (14): "Cobarde num dia, herói no outro" (João Seabra, ex-alf mil, CCav 8350, 1972/74)

(***) Vd. postes de:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

(****) Estes camaradas devem ter pertencido à CCAV 8350 (ou a subunidades adidas, os "Piratas de Guileje" foram os últimos a deixar Guileje, por ordem do comandante do COP 5, o então major Coutinho e Lima (*****).  

Recorde-se que, de 18 a 22 de Maio de 1973, o aquartelamento de Guileje foi cercado pelas forças do PAIGC (Op Amílcar Cabral), obrigando as NT a abandoná-lo (juntamente com algumas centenas de civis)

(i) 2 grupos de combate da CCAÇ 4743 (unidade de quadrícula de Gadamael) (incluindo o seu comandante); 

(ii) CCAV 8350 (unidade de quadrícula de Guileje) (incluindo o comandate do COP 5, major Coutinho e Lima);

(iii) Pelotão de Artilharia, comandado pelo Al Mil Pinto dos Santos (já falecido); 

(iv) Pel Cav Reconhecimento Fox (reduzido, havendo apenas duas Fox); e

(v) Pelotão de milícias local...

 A Companhia Independente de Cavalaria 8350/72 foi a unidade de quadrícula de Guileje entre outubro de 1972 e maio de 1973. Viu morrer em combate nove dos seus homens, entre algumas dezenas de feridos. Foi seu Comandante o Cap Mil Abel dos Santos Quelhas Quintas,  também ferido.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23994: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVIII: Breve história do império do Cabú



A lenda de Alfa Moló - belíssima ilustração do mestre português José Ruy (Amadora, 1930), um dos 
maiores ilustradores e autores de banda desenhada (pág 53)



Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5




O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amigaé também o autor do sítio 

1. Transcrição das pp. 89/91 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império de Cabú 
(pp. 89-91)



A história de Cabú começa quando o grande general Tiramakan Traore, às ordens do famoso primeiro Imperador do Mali, Sundiata Keita, cria o Reino de Cabú em 1250 (45), com capital em Cansalá.

O Reino de Cabú começou por ser apenas um Reino vassalo do grande Império do Mali, mas com a queda deste no século XVI, tornou-se um Império, o qual abrangia vários reinos, que iam desde a Gâmbia à Guiné-Bissau, passando pelo Senegal.

A grande migração de fulas para a Guiné nos séculos XVIII e XIX, trouxe as sementes da nova etnia dominante ao Império de Cabú.

Os fulas vinham do norte de África, eram na sua maioria pastores, com uma minoria de agricultores. Muitos deles eram devotos seguidores do islamismo e do modelo de civilização a ele associado.

Constituíam uma sociedade onde existia também uma classe instruída, e por isso, consideravam que tinham uma cultura superior à dos ignorantes mandingas.

Os mandingas eram principalmente agricultores, mas eram também guerreiros orgulhosos e valentes, que olhavam com desprezo para os fulas, pois não passavam de famintos e miseráveis criadores de gado, vestidos de trapos e farrapos.

A crença dos mandingas era animista, mas eram tolerantes com as outras crenças, e aceitavam o islamismo, tendo existido reis e imperadores mandingas no antigo Império do Mali, que se converteram ao islamismo e disseminaram a sua fé.

A chegada dos fulas à Guiné no século XVIII foi pacífica, pois foram bem recebidos pelos mandingas, que os deixaram utilizar as suas terras, em troca do pagamento de um tributo (46).

Os terrenos cedidos aos fulas pelos mandingas eram chamados pelos mandingas de fulacundas (47), ou seja lugares dos fulas.

O aumento de tributos,  por parte dos mandingas, levou os fulas a deslocarem-se para outras zonas mandingas e também para as terras dos biafadas, escolhendo os locais onde as exigências de tributos eram menores.

Nesta altura apareceu um marabu (48), Seiku Umarú, que profetizou que os fulas em breve iriam mudar a sua condição de submissão, passando a ser os novos senhores, o que correspondia às suas aspirações, e os levou a começarem a pensar numa revolta.

Os mandingas, ao terem conhecimento de tal prenúncio, ficaram preocupados, além disso a contínua imigração fula fazia aumentar assustadoramente o seu número (49), e a continuar assim em breve seriam mais numerosos do que os mandingas, o que veio a acontecer mais tarde.

Os mandingas decidiram desincentivar a vinda dos fulas, e afastar os que já estavam nas suas terras. Então fizeram um aumento generalizado dos tributos, mas a resposta não foi a que esperavam, pois os fulas não abandonaram as suas terras e revoltaram-se, pedindo ajuda aos fulas do Reino do Futa Djalon.

A criação do Reino do Futa Djalon fez mudar as relações dos fulas com os seus vizinhos, pois a partir dai iniciaram a sua campanha de levar a luz divina aos pagãos, lançando uma guerra santa contra os seus vizinhos animistas (a jihad), e a conquista do Império de Cabú estava
entre os seus planos.

O momento era propício para os fulas, pois o Império de Cabú estava dividido por conflitos internos, e a sua economia estava em decadência.

Os fulas do Futa Djalon olhavam para esta guerra com agrado, pois ela dava resposta aos seus anseios de levarem a mensagem divina do Islão aos reinos animistas e permitia também poderem responder aos pedidos de ajuda dos seus irmãos fulas do Império de Cabú, além disso esta guerra iria assegurar-lhes escravos para trabalharem nos campos, dar-lhes o acesso aos cereais de que necessitavam, e garantir-lhes a segurança das suas caravanas, quando estas passassem por aquelas regiões.

A primeira grande batalha entre fulas e mandingas é denominada batalha de Berekolong (50) (1850-51), e ocorreu em Sancorla.

Os fulas venceram a batalha de Berekolong, e o Reino de Sancorla passou para o domínio fula, mas o exército fula sofreu grandes perdas, não tendo força suficiente para continuar a conquista.

As revoltas fulas sucederam-se por todo o lado, os biafadas e os nalus foram igualmente atacados pelos fulas revoltosos, os quais com a ajuda dos fulas de Labé e Timbo (51) em 1868 tomaram Bolola (52) aos biafadas.

A região conquistada pelos fulas aos biafadas passou a chamar-se Forreá, terra da liberdade em língua fula.

As forças militares portuguesas, apesar de não se envolverem nas lutas, apoiaram os revoltosos, dando guarida aos mesmos nas suas fortificações.

O poder no Império de Cabú desde o início do século XIV que era dividido entre três clãs da nobreza, um Sané e dois Mané (53), os quais consideravam que apenas eles tinham direito ao título de Mansa Bá, que significa Grande Rei ou Imperador, pois apenas eles possuíam a linhagem real, pelo que o lugar de Imperador rodava entre eles.

O sistema de rotação do lugar de imperador funcionou bem até à morte do Mansa Sibo Mané (54), da província de Same, pois neste caso os s
eus descendentes esconderam a sua morte, e não cederem de imediato o lugar de Imperador na capital ao seu sucessor por direito de rotação, Djanqui Uali Sané. Assim, apenas se retiraram de Cansalá um ano depois, gerando um conflito interno entre os clãs Mané e Sané.

O Império de Cabú estava numa situação difícil, com revoltas internas e invasões fulas, era necessário manter a unidade entre os mandingas, mas aconteceu precisamente o contrário. 

Por outro lado a economia do Império de Cabú estava em decadência, as caravanas que passavam por Cabú eram cada vez menos, e o comércio de escravos era reduzido, na verdade agora existiam novas rotas e outros destinos, devido aos comerciantes estrangeiros e às rotas comerciais marítimas (55).

Os fulas, que tinham vindo progressivamente a conquistar territórios ao Império de Cabú, aproveitaram as divisões internas dos mandingas para darem o golpe final, e assim um poderoso exército do Reino do Futa Djalon (56) invadiu Cabú e destruiu Cansalá (1867) (57), passando os fulas a dominar todo o território.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]
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Notas de CF:

(44) Tiramakan Traore - o nome também surge nalguns textos com a designação Tirmakhan Traore, Tiramong Traoré e Tiramaghan Traore.

(45) Cabú - pag, 83, “Kaabunké - Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais”, de Carlos Lopes.

(46) “Conflitos interétnicos” – Carlos Cardoso.

(47) Fulakunda - lugar fula, a palavra kunda na língua mandinga significa lugar.

(48) Seiku Umaru - este marabu também conhecido pelo nome El Hadgi Omar, é referido em vários textos como espalhando a mensagem, que no futuro os fulas serão os novos senhores, por exemplo na pag. 78 de “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira, e na pag. 63 da “Grandeza Africana” de Manuel Belchior.

(49) “Fulas do Gabú” - pag. 79, “Fulas do Gabú” de José Mendes Moreira.

(50) Berekolong - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(51) Forreá - pag. 160 em “Guiné Portuguesa” – A. Teixeira da Mota.

(52) Bolola - pag 147 em “História da Guiné I” - René Pélissier.

(53) Kaabunké - pag. 179, Espaço, território e poder na Guiné-Bissau, Gâmbia e Casamance pré-coloniais - Carlos Lopes.

(54) Mansa Sibo - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes refere, “Quando o Mansa Sibo, da província de Sana morreu, a rotatividade exigia que o Mansa-Bá seguinte fosse Janké Wali, da província de Pakana. Mas os descendentes do primeiro fizeram
“ouvidos de mercador” e mantiveram o poder por mais um ano. Este foi o factor que desencadeou um conflito importante entre os Mané e os Sané de Pakana, numa altura em que as agressões do Futa-Djalon exigiam coesão e não dispersão de forças Kaabunké”.

(55)  Cabú - em “Resistência Africana ao controlo do território” Carlos Lopes.

(56) Exército do Futa-Djalon - a sua dimensão é referida na pag. 28 de “Mandingas da Guiné Portuguesa” de António Carreiras: “ Os Fulas- Pretos, animados pelos bons resultados das operações do Futa, solicitaram novamente o auxílio do Almami de Timbó para tentarem
a batida definitiva dos Soninkés. Reunidos trinta e dois mil homens de guerra dos quais doze mil cavaleiros, aquele régulo de Timbô fez a concentração de tropas em Kitchar (imediações de Kadé)”.

(57) Cansalá - não existe uma data aceite por todos os historiadores sobre a destruição de Cansalá, eis alguns exemplos: Carlos Lopes na “Resistência Africana ao controlo do território”, indica a data de 1867;  Mamadu Mané,  em “O Kaabu”, indica “por volta de 1865”; Carlos Cardoso,  em “Conflitos interétnico”, indica o ano de 1865;  René Pélissier na “História da Guiné I”, pag. 143, refere que “a grande batalha de Kansala (Cam-sala) data de 19 de Maio de 1864, dando como referência o historiador António Carreira; Joel Frederico Silveira em “O Império Africano 1825-1890”, na pag. 216 refere a data de 1867.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 18 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali

(**) Vd. também postes de



Guiné 61/74 - P23993: Agenda cultural (827): Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato, no Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro", na Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Só na véspera à tarde é que recebi um mail a confirmar que podia participar neste colóquio, já tinha compromissos assumidos para sábado, de modo que o meu relato cinge-se ao que me parece ter sido o essencial do primeiro dia do colóquio. Recomendo a leitura do jornal O Expresso do próximo fim de semana, acerquei-me do José Pedro Castanheira para lhe pedir o texto, para mim uma das peças mais importantes daquele dia de trabalhos, respondeu-me que a sua comunicação será publicada integralmente no jornal, razão pela qual não ma podia facilitar. Não escondo a grande surpresa que tive com a categoria intelectual do Presidente da Assembleia da República, felizmente que podem ler na íntegra a sua intervenção.

Um abraço do
Mário



Lembrar um construtor de nações, meio século depois do seu assassinato

Mário Beja Santos

A Assembleia da República acolheu um colóquio intitulado “Amílcar Cabral, História do Futuro”, promovido por um conjunto de instituições universitárias, nos passados dias 13 e 14. Lamentavelmente só pude participar no dia 13, pelo que vou reportar, em síntese, o que ali se disse sobre a vida, a obra e a atualidade do pensamento revolucionário do líder do PAIGC.

Abriu o colóquio o Presidente da Assembleia da República, Augusto dos Santos Silva, que se debruçou sobre os lugares e as ideias de Amílcar Cabral, pegou em duas frases de Cabral sobre como a libertação é um fator de cultura e a distinção entre cultura e manifestações culturais. Para quem ali estava a ser evocado, importa entender que um povo colonizado está excluído pelo colonizador. Cabral entendia a libertação como processo de resgate, um resgate de identidade nacional, era na própria libertação que se ia construindo uma cultura agregadora, uma matriz nacional, superadora de diferentes crenças, de diferentes idiomas, e com a capacidade alavancar uma nação para o desenvolvimento socioeconómico e cultural. Cabral, observou o orador, entendia que o povo português era aliado de quem procurava a independência. Em síntese, para Cabral a libertação não era só a independência, adquirida esta era imprescindível passar para o desenvolvimento e aí a cultura era crucial como processo de transformação, seria a encarnação de uma identidade múltipla (comunicação integral do orador disponível em: https://www.parlamento.pt/sites/PARXVL/Intervencoes/Paginas/Intervencoes/Intervencao-PAR-na-sessao-abertura-coloquio-Amilcar-Cabral-Historia-do-Futuro.aspx)

Interveio, seguidamente, Fernando Rosas, centrou a sua comunicação sobre os termos e os modos como se deve ir mais além desta memória histórica que entrou perigosamente em esquecimento, importa retomar os estudos e as investigações alusivos à obra de Cabral e conhecer melhor todo o período da luta de libertação, aprofundando o que há de atual no pensamento de Cabral.

A comunicação seguinte coube a António Sousa Ribeiro, que na continuação das observações do comentador anterior deplorou o inconsciente colonial, postura que também foi mantida por Joana Dias Pereira que aludiu ao domínio do presentismo, uma historicidade que agora parece subordinada a estudos posteriores ao fenómeno do colonialismo; uma convidada estrangeira, Marga Ferré, pronunciou-se sobre os desafios que o pensamento de Cabral propõem para o futuro e não deixou de se sublinhar o que ela tratou como anomalia histórica, Cabral estava destinado a ser um agente colonial, provavelmente numa posição de todo, e rebelou-se contra o colonialismo, o que nos leva a refletir sobre lugares e ideias que impõem o vigor de um pensamento novo, daí a importância de continuar a estudar Cabral.

Seguiu-se a este período de apresentações o primeiro painel intitulado “Guerra colonial: memória e silenciamentos”, em que participaram Miguel Cardina, Carlos Cardoso, Patrícia Godinho Gomes e Cláudia Castelo. Cardina retomou a reflexão sobre o quadro do esquecimento sobre as lutas de libertação e propôs um conjunto de desafios que poderão contribuir para revigorar a memória destes acontecimentos, citou a necessidade de haver uma rede conjunta de arquivos, investigação sobre os modos com que se fez a guerra e a relação soldados/população, incentivar a investigação académica nos novos países independentes, entre outros.

O investigador guineense Carlos Cardoso recordou que a luta armada foi constitutiva da nação tal como ela existe e sublinhou a omissão existente no país quanto a políticas de perdão; para o investigador, a História da Guiné tem de ser contada com histórias e saudou o facto de hoje em dia os cinco países africanos de língua portuguesa terem resolvido estudar conjuntamente as suas lutas de libertação; Patrícia Godinho Gomes centrou a sua intervenção sobre as mulheres silenciadas na luta armada, chamou a atenção para a urgência em proporcionar investigações de história oral sobre estas mulheres, são testemunhos enriquecedores; Cláudia Castelo debruçou-se sobre o papel da Casa dos Estudantes do Império na luta de libertação.

Seguiu-se novo painel intitulado “Amílcar Cabral, trajetos de vida e memória viva”, fora intervenientes Vítor Barros, José Neves, Julião Soares Sousa, José Pedro Castanheira e Leonor Pires Martins. 

Ganharam realce as intervenções de Julião Soares Sousa e José Pedro Castanheira. Julião Soares Sousa comentou os olhares contemporâneos sobre o líder do PAIGC, favoráveis ou desfavoráveis: mártir, herói, autoritário e cultor da personalidade, homem previdencial, enfim, são revelações abonatórias de que continua a ser necessário estudar aquele tempo, a sua vida e a sua obra. 

José Pedro Castanheira recordou à assistência a investigação que leva há décadas sobre o assassinato de Cabral, mantêm-se as incógnitas sobre a origem do complô, referiu os diferentes arquivos e documentos onde é patente de que não houve qualquer ordem de autoridades portuguesas ou da PIDE para matar Cabral naquela altura, nada consta, referiu, nos arquivos na Torre do Tombo, no Arquivo Histórico-Diplomático e nas Actas do Conselho Superior de Defesa Nacional, sabe-se hoje que nos diferentes tribunais (foram três) se debruçaram sobre o assassinato de Cabral todos os presumíveis ligados ao complô foram guineenses, não foi inquirido nem acusado de qualquer culpa um só cabo-verdiano.

No final deste painel, foi recordado que em finais de março, no Palácio Baldaia, estará patente uma exposição sobre Amílcar Cabral.

Retomados os trabalhos da parte da tarde, a comunicação mais esperada a do comandante Pedro Pires que começou por referir que não era isento nem imparcial, valorizava o triunfo de Cabral durante a luta armada e post mortem, enalteceu a estratégia do líder por se ter preocupado em primeiro lugar com a consciencialização das massas camponesas, ter procurado a todo o transe apoios para formar quadros revolucionários, como aconteceu e ele próprio se ter encarregado da primeira preparação desses quadros, nas escola piloto em Conacri.

Recordou a resistência dos povos da Guiné contra a presença colonialista e interrogou-se sobre o valor histórico da colonização portuguesa. Logo que demonstrado que Salazar não queria aceder a qualquer tipo de negociação de abertura para a independência da Guiné, Cabral preparou etapa a etapa a solução militar, nunca escondeu a surpresa de como a luta de libertação se revelou fulminante e decisiva logo em 1963 e 1964. Lembrou também que coube a Cabral procurar romper o equilíbrio estratégico e que se deslocara à União Soviética não só para ali se prepararem os utilizadores do míssil terra-ar como que eles fossem cedidos com bastante rapidez, em 1973, tal como aconteceu. Pedro Pires mantém a tese de operação da PIDE para assassinar Amílcar Cabral e mantém a esperança de que a geração de Cabral continue a testemunhar e a ser ouvida sobre a visão do líder e do seu legado político e moral.

É este o apanhado que me parece mais pertinente para os meus confrades do blogue.

Artigo de Bárbara Reis, publicado no jornal Público em 14 de janeiro, com o título 50 anos depois, Amílcar Cabral está esquecido e está na moda, disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/14/mundo/noticia/50-anos-amilcar-cabral-esquecido-moda-2035088, com a devida vénia.
Abertura do colóquio e comunicação do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva
Intervenção de Julião Soares Sousa
Intervenção do comandante Pedro Pires
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23975: Agenda cultural (826): Colóquio "Amílcar Cabral e a História do Futuro"... Organização: CES/UC (Projeto CROME Memórias Cruzadas; Políticas do Silêncio). Local: Assembleia da República, Lisboa, 13 e 14 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23992: "Lendas e contos da Guiné-Bissau": Um projeto literário, lusófono e solidário (Carlos Fortunato, presidente da ONGD Ajuda Amiga) - Parte XVII: Breve história do império do Mali


Capa do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017. - 102 p. : il. ; 24 cm. - ISBN 978-989-8661-68-5



O autor, Carlos Fortunato, ex-fur mil arm pes inf, MA,
CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71, é o presidente da direcção da ONGD Ajuda Amiga



1. Transcrição das pp. 85/87 do livro "Lendas e contos da Guiné-Bissau", com a devida autorização do autor (*)


Breve história do Império do Mali



A história do Império do Mali começa com a queda do Império do Gana no Século XI.

O Império do Gana foi um dos mais antigos e poderosos impérios africanos, talvez remonte ao século IV, mas os dados sobre a sua formação são pouco rigorosos; o seu território ia desde o deserto da Mauritânia até ao rio Níger no Mali, mas não incluía os territórios da República do Gana, que apesar de ter o mesmo nome não possui qualquer ligação ao Império do Gana.

O geógrafo Al-Bakri (38)  (século XI), de Córdova, escreveu sobre o Império do Gana e sobre o seu poderio militar, referindo que possuía um exército de 200 mil homens, dos quais 40 mil eram arqueiros.

Este Império, inicialmente designado de Kumbi pelos seus habitantes, foi chamado de Gana pelos árabes.

A crença dominante no Império do Gana era a animista, mas o nascimento do islamismo no século VII, e os seus contactos com ele, irão provocar no século XI a queda do Império, face ao crescimento do islamismo no seu território e aos almorávidas.

Os almorávidas eram uma espécie de monges guerreiros, que em nome do Islão empreenderam no século XI uma “guerra santa”, e nela acabaram por destruir o Império do Gana, libertando muitos povos do jugo dos seus senhores. 

Um deles foi o povo mandinga, originando o Reino do Mali, o qual viria a assumir um papel dominante na nova ordem,  e um outro importante reino que se constituiu, foi o Reino Sosso.

O Reino Sosso, conduzido por Sumanguru Kanté (39) , dominou inicialmente os Reinos vizinhos, entre eles o Reino do Mali, mas depois de várias batalhas acabaria por ser totalmente derrotado na batalha de Kirina por Sundiata, a qual leva à criação do Império Mali.

Os mandingas tornam-se os grandes conquistadores da região, e em 1230 Mari Diata I, também conhecido por Sundiata Keita ou Sundjata Keita ou simplesmente Sundiata, que reinou de 1230 a 125540, funda o  poderoso Império Mali, o qual incluía os territórios do Senegal, Gâmbia, Mali e Guiné-Bissau, e partes da Guiné-Conacri (41), Mauritânia e Níger.

O nome de Sundiata e a história do Império do Mali, são conhecidos pelos povos dos países da África Ocidental, pois a sua história tem sido transmitida até aos dias de hoje.

Apesar da importância e popularidade da figura de Sundiata como fundador do Império do Mali, quem o dá a conhecer ao mundo é o Imperador do Mali, Mansa Bá Mussa, também conhecido apenas por Mansa Mussa ou por Mansa Kankan Mussa, que reinou de 1312 a 1337, devido à imponente peregrinação que fez a Meca em 1324.

Al-Umari, um viajante árabe que no começo do século XIV visitou o Império, descreve a sala do seu trono assim:

“(…) O sultão preside no seu palácio numa grande varanda onde se encontra um enorme trono de ébano feito para uma pessoa alta e corpulenta; o sultão é ladeado por duas presas de elefante viradas uma para a outra, e as suas armas todas em ouro, são colocadas ao pé dele: sabre, lanças, carcás, arco e flechas (…) (42)”.

A famosa peregrinação levada a cabo por Mansa Mussa, seria composta por uma caravana com 60 mil pessoas, entre elas 12 mil servos, e 500 escravos cada um transportando ouro, e 80 camelos carregados com mais de duas toneladas de ouro para serem distribuídas entre os pobres (43).

Apesar de não existir um entendimento consensual entre os historiadores, sobre os números reais da peregrinação de Mansa Mussa, sejam eles quais forem, a verdade é que os árabes ficaram deslumbrados com o poder e riqueza no Império Mali.

A peregrinação colocou literalmente o Mali nos mapas do mundo medieval, pois Mansa Mussa surge com uma pepita de ouro na mão, no mapa do catalão Abraão Cresques, em 1375.

A peregrinação a Meca do Mansa Mussa em 1324, teve também influência na expansão do islamismo, pois deu mais força à sua fé, e gerou mais determinação em o difundir.

Outro homem religioso do Mali, que ainda hoje é lembrado pelo seu fervor religioso, é o Mansa Koy Komboro, que em 1280 impôs o islamismo como religião oficial no seu reino, Djenne, e construiu a enorme Mesquita de Djenne, o maior edifício do Mundo construído com lama. Os habitantes de Djenne ainda hoje lhe chamam “Mesquita de Komboro“, e ela continua a causar admiração aos viajantes que por ali passam.

Em 1545 o Império Songai ocupa Niani,  a capital do Império do Mali, ponto fim a um Império em decadência, dividido com lutas internas pela conquista do trono, e minado com revoltas.

[ Revisão e fixação de texto / Negritos, para efeitos de edição deste poste: LG]

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Notas do CF:

(38) Al-Bakri - pag. 69 da “História da África” de J. D. Fage. Al-Bakri escreveu o livro “Descrição de África” em 1087, que serve de fonte a muitas obras literárias.

(39) Sumanguru Kanté - este nome é usado na pag. 86, “História da África” de F. D. Fage, e também em Sundiata – Lion King of Mali de David Wisniewki, e em Sundiata – Uma Lenda Africana de Will Eisner, mas esta figura surge também com outros nomes, como por
exemplo na pag, 167 em História da África Negra, de Joseph Ki-Zerbo, o seu nome é Sumaoro Kanté, na pag, 27 de Sundiata – An Epic of Old Mali, de Djibril Tamsir Niane, o seu nome é Soumaoro Kanté.

(40) Sundiata - 1230-1255, pag. 46 “A Descoberta de África”, de Catherine Coquery - Vidrovitch.

(41) Guiné-Conacri - oficialmente designa-se República da Guiné, mas vulgarmente também é chamada de Guiné-Conacri, para se distinguir da Guiné-Bissau.

(42) Mansa Musa - pag. 24 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

(43)  Mansa Musa - pag. 25 da “A Guiné do século XVII ao século XIX”, de Fernando Amaro Monteiro e Teresa Vazquez Rocha.

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Nota do editor: