sexta-feira, 5 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24288: Notas de leitura (1579): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Continuamos à volta de uma narrativa de largo espectro investigacional, elaborada com uma comunicação acessível, bem estruturada, em que o recurso à diacronia permite ir conhecendo a agenda tumultuosa dos últimos meses do Estado Novo. É interessante verificar que ainda há gente saudosista que é capaz de se procurar convencer de que aquela guerra possuía sustentabilidade, o que contraria toda a documentação produzida ao nível das instâncias militares, os recursos humanos estavam por um fio, procurava-se desesperadamente comprar armas e aviões para manter o conflito em África, o ministro das Finanças estava encostado à parede, o aparecimento do livro de Spínola endureceu duas fações dentro do regime; os autores vão elencando os acontecimentos, logo o agravamento em Moçambique, a franqueza com que Bettencourt Rodrigues vai informando o poder político da gravíssima situação militar que vive. Caetano tenta uma porta de saída, pede uma moção favorável sobre a sua política ultramarina à Assembleia Nacional, convoca depois generais e almirantes (a Brigada do Reumático), para anuir à sua política ultramarina, o MFA entretanto organiza-se, há uma precipitação em 16 de março, a revolta das Caldas. Otelo Saraiva de Carvalho aprende com os erros. A operação seguinte será um êxito estrondoso, o Estado Novo cai aparatosamente, já não há ninguém que o defenda.

Um abraço do
Mário



Os últimos meses do Estado Novo, como a guerra colonial fez baquear um regime (2)

Mário Beja Santos

A obra intitula-se "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", Guerra e Paz, Editores, 2023, por José Matos e Zélia Oliveira, o primeiro investigador em História Militar, a segunda, jornalista e com uma tese de mestrado sobre a crise final do marcelismo. Estão aqui registados numa narrativa que prende o leitor do princípio ao fim os três últimos meses que antecederam o 25 de Abril. Basta ver a bibliografia para perceber que os autores consultaram centenas de documentos de arquivos nacionais e estrangeiros, temos aqui um olhar sobre aquele que terá sido o período mais tumultuoso do marcelismo, aqui se registam os principais ingredientes que conduziram ao seu colapso.

Estamos já em fevereiro de 1974, Costa Gomes regressara de Moçambique, elabora um relatório sobre a situação da província, a guerra agravara-se com a tentativa de expensão da guerrilha para sul, em Cabo Delgado a FRELIMO procurava aliciar as populações Macuas, e no Niassa registava-se também atividade da guerrilha. O potencial relativo de combate passara a ser menos favorável às forças portuguesas, era urgente a revisão das estruturas de comandos, organização das tropas e planos de operações para ganhar eficiência no combate à guerrilha. A cooperação com os regimes brancos da Rodésia e da África do Sul intensificara-se, entretanto, a FRELIMO irá receber o míssil terra-ar Strela, a Força Aérea em Moçambique já estava preparada para a chega do míssil e nenhum avião foi perdido na colónia. Em suma, a situação agravara-se.

E os autores debruçam-se sobre o problema da Guiné onde o míssil terra-ar Strela fez a sua aparição em março de 1973. Perante o abate de aviões e os acontecimentos de Guidage, Guileje e Gadamael, Spínola clama pelo reforço dos meios de intervenção e de armamento. O Chefe de Gabinete de Costa Gomes, o Coronel Ramires de Oliveira, pronuncia-se sobre o documento enviado por Spínola, e é bem claro: “O exame da situação estratégica leva-nos a concluir que se torna necessário rever as finalidades políticas a atingir, sabendo que o nosso potencial militar, com os meios que dispõe, não pode cumprir a missão que até agora lhe foi cometida.” Costa Gomes vai à Guiné, em 8 de junho haverá uma reunião de alto nível, o documento dessa reunião está hoje amplamente divulgado, cabe a Spínola a iniciativa de propor a saída das zonas de fronteira para posições mais recuadas. “Obviamente que este recuo teria consequências na segurança das populações, que ficariam entregues à sua sorte, mas isso era um problema que teria de ser visto no quadro particular de cada etnia e que podia ser resolvido com o recurso às milícias. Costa Gomes deu o seu aval à estratégia delineada, era a forma de economizar forças e evitar o aniquilamento das guarnições de fronteira. É interessante notar que, pouco tempo depois desta reunião, Spínola acabaria por mudar de ideias, quando, a 9 de junho, escreveu ao ministro do Ultramar, Silva Cunha, discordando do abandono das zonas de fronteira e das respetivas populações, que ficariam sem proteção militar. O retraimento do dispositivo entrava em contradição com os compromissos que teria assumido perante aquelas populações, não lhe restando outra hipótese senão abandonar as funções que desempenhava na Guiné e regressar à metrópole.”

Marcello Caetano reúne com vários ministros e Costa Gomes e pergunta a este se a Guiné era ou não defensável, “ao que o general terá respondido que, se o inimigo não aparecesse na guerra com aviação própria, a Guiné era defensável. Nessa altura, existiam informações do lado português de que o PAIGC tinha um grupo de pilotos a receber instrução na União Soviética, e de que a guerrilha podia vir a dispor de aviões de origem soviética num futuro próximo.” O General Bettencourt Rodrigues é nomeado novo governador e comandante-chefe, duas companhias que iam para Angola (CCAÇ 4641 e CCAV 8452) foram reforçar as tropas na Guiné.

Os milhões de contos que a África do Sul prometia emprestar para cobrir grande parte das necessidades em armamento já estavam a ser discutidas. Os autores dão depois nota dos acontecimentos da declaração unilateral da independência, do reacendimento de ataques fronteiriços e do bom-sucesso da Operação Neve Gelada, realizada pelo batalhão de comandos africanos. Não obstante, os bombardeamentos a Canquelifá com morteiros 120 irão continuar, Bethencourt Rodrigues chegou a equacionar o abandono desta posição, tal como Buruntuma. Numa nota enviada em 20 de abril, “Bettencourt Rodrigues expressa profunda preocupação pelas informações que tem do uso de viaturas blindadas num ataque noturno a Bedanda e das consequências que a evolução do potencial de combate do PAIGC podia ter junto das guarnições de fronteira. A utilização de viaturas blindadas pelo PAIGC preocupava as forças portuguesas há vários meses, havendo informações de que estas viaturas tinham sido desembarcadas no porto de Conacri em princípios de 1974. Costa Gomes efetuava diligências junto do Chefe-de-Estado-Maior do Exército espanhol para o fornecimento de minas anticarro.”

A documentação de Bettencourt Rodrigues não ilude que o inimigo dispunha de iniciativa tática, melhor equipamento militar e um grande apoio logístico, isto enquanto Silva Cunha tentava, com o recurso do dinheiro sul-africano, dar seguimento às negociações com os franceses para a compra do sistema de mísseis Crotale, além da compra dos caças Mirage, e havia também a intenção de adquirir radares que permitissem uma boa cobertura do território guineense, para além da aquisição de morteiros de 120 mm. O Secretário-de-Estado da Aeronáutica pedia novos meios aéreos, todos contavam com o dinheiro sul-africano. A narrativa prossegue com o nascimento do MFA, o programa político começará a ser definido por uma reunião em Cascais, a 5 de março; um quadro de subversão alastra em várias unidades militares, mas também nas universidades.

Caetano entende que se deve dirigir à Assembleia Nacional, pretende que se vote uma moção que não deixei quaisquer dúvidas acerca da política ultramarina que ele prossegue. Em diferentes níveis, cresce a ebulição, no próprio regime constituem-se blocos, nas Forças Armadas procura-se avaliar o impacto do livro de Spínola, o MFA clarifica posições, escolhe para chefe do movimento Costa Gomes, internamente constituem-se comissões, na militar, sobressaem os nomes de Garcia dos Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e Manuel Monge, na política Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Lourenço. A imprensa internacional, devido aos seus correspondentes em Lisboa, não deixa escapar as movimentações que aparentemente estão todas ligadas ao aparecimento de um livro chamado Portugal e o Futuro. A vigilância sobe as movimentações militares leva a que o ministro do Exército mande proceder a transferências compulsivas.

Na segunda semana de março de 1974, Caetano parece muito confiante com a sua política ultramarina, seguem-se reuniões com o Presidente da República, este insiste na demissão de Costa Gomes e Spínola, Caetano pede para não continuar na chefia do governo, escreve carta a Thomaz, este recebe-o ainda nesse mesmo dia, dir-lhe-á “já é tarde para qualquer deles abandonar o seu cargo, temos de ir até ao fim". E é nesse contexto que Caetano forja uma audiência a oficiais de todas as Forças Armadas a que só se recusarão estar presentes Costa Gomes, Spínola e Tierrno Bagulho, evento que ficará para a História com o nome de Brigada do Reumático. Forja-se uma remodelação do governo. E é neste ambiente que vai ter lugar a revolta das Caldas.


José Matos
Zélia Oliveira
Avião C-130
Avião P-3-Orion (Imagem Wikipédia)
Marcello Caetano recebe a Brigada do Reumático
Uma imagem esclarecedora do fim do regime

(continua)
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Notas do editor:

Poste anterior de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24274: Notas de leitura (1577): "Rumo à Revolução, Os Meses Finais do Estado Novo", por José Matos e Zélia Oliveira; Guerra e Paz, Editores, 2023 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24276: Notas de leitura (1578). Lançamento do livro do ten gen ref Garcia Leandro, "O Balanço de Uma Geração" (Lisboa, Gradiva, 2023, 360 pp.)...Vídeo com a recensão crítica do Presidente da República

Guiné 61/74 - P24287: Efemérides (392): No dia 29 de Abril de 2023, realizou-se a cerimónia de Comemoração do Dia do Combatente de Matosinhos e do 14.º Aniversário do Núcleo da Liga dos Combatentes (Carlos Vinhal)

Cemitério n.º 2 de Sendim - Memorial aos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Matosinhos

Realizou-se em Matosinhos a cerimónia de Comemoração do Dia do Combatente e do 14.º Aniversário do Núcleo de Matosinhos, promovida pelo Núcleo e pela Câmara Municipal de Matosinhos e que contou com as presenças do Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes, Coronel Lucas Hilário, da Presidente da Câmara, Dra. Luísa Salgueiro e do Vice-Presidente da Câmara, Dr. Carlos Mouta e de outras entidades.

A cerimónia militar iniciou-se pelas 10h30, perante o testemunho de muitas dezenas de pessoas presentes em frente ao Memorial de Homenagem aos 70 combatentes do concelho de Matosinhos mortos na Guerra do Ultramar, localizado no cemitério de Matosinhos (Sendim), onde se encontravam posicionados os Porta-Guiões dos Núcleos de Matosinhos, Porto, Ribeirão, Lixa e Marco de Canavezes, um clarim dos Bombeiros Matosinhos-Leça da Palmeira e uma Guarda de Honra composta por sócios combatentes do Núcleo.
Porta-Guiões presentes na cerimónia
Guarda de Honra composta por Antigos Combatentes

A cerimónia iniciou-se com a deposição de coroas de flores no Memorial, pelas seguintes entidades: União de Freguesias de Perafita, Lavra e Sta. Cruz do Bispo, União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, União de Freguesias de Custóias, Leça do Balio e Guifões, União de Freguesias da Senhora da Hora e S. Mamede de Infesta, Comando da Zona Marítima do Norte, Câmara Municipal de Matosinhos e Liga dos Combatentes.
O Clarim, de seguida, prestou as honras militares aos combatentes mortos executando os principais toques de homenagem. Um grupo de sócios do Núcleo cantou um salmo e foi lida a prece do Exército. A cerimónia militar terminou com a entoação do Hino da Liga pelo referido grupo de sócios.
O senhor Fernando Monteiro, em representação do Presidente da União das Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, deposita a coroa de flores da Freguesia
O 2.º Comandante da Zona Marítima do Norte, Capitão Tenente Mendes Valente, deposita a coroa de flores da Marinha
A Dra. Luísa Salgueiro, Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, deposita a coroa de flores da Edilidade
O Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes, Coronel Lucas Hilário, e o Presidente do Núcleo de Matosinhos, Tenente Coronel Armando Costa, no momento em que depositavam uma coroa de flores em homenagem aos Combatentes falecidos
As coroas de flores depositadas junto aos 70 nomes dos Combatentes do Concelho de Matosinhos caídos em Campanha

Pelas 11H30, no Hotel Tryp Expo, em Leça da Palmeira, com a Sala Galeão completamente lotada, deu-se início à Sessão Solene do 14.º Aniversário do Núcleo com a condecoração com a Medalha de Comportamento Exemplar (grau ouro), nos termos do preceituado no Regulamento da Medalha Militar do Secretário da Direção, Sargento Ajudante Carlos Alberto Silva Osório, pelo Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes, Coronel Lucas Hilário. Seguiu-se a imposição da Medalha Comemorativa das Campanhas a 5 sócios combatentes do Ultramar e a entrega de Testemunhos de Apreço aos associados com 50 anos de sócio e 40 anos de sócio e o Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes fez a entrega ao Vogal da Direção, Sargento Chefe Domingos Batoca, do Certificado de qualificações de formação modelar como Delegado Social do Núcleo. Posteriormente, foram igualmente entregues a 2 sócios Testemunhos de Apreço pelos bons serviços prestados ao Núcleo e à Liga dos Combatentes, nas pessoas da Dra. Luísa Salgueiro, Presidente da Câmara e Eng.º Pedro Gonçalves, Presidente da Junta da União de Freguesias de Custóias, Leça do Balio e Guifões.
Entidades oficiais presentes na Sessão Solene na Sala Galeão
Os Combatentes que receberam Testemunhos de Apreço
Imposição de Medalhas Comemorativas das Campanhas a Combatentes

A sessão solene prosseguiu com o uso da palavra pelo representante do Presidente da União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, pelo Presidente do Núcleo de Matosinhos, pela Presidente da Câmara Municipal de Matosinhos e pelo Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes.

Cerca das 13H15, 135 participantes iniciaram, na Sala Caravela, o almoço de confraternização.

Aspecto da Sala Caravela

O programa para este dia prosseguiu com a entrega por parte do Presidente do Núcleo ao Secretário Geral da Direção Central da Liga dos Combatentes da Medalha do Núcleo e de um donativo do Núcleo para a Liga Solidária, no valor de 300€, com o objetivo de apoiar combatentes e famílias e a construção de Residências Seniores para os combatentes e famílias mais idosos de que são exemplos recentes as de Estremoz e Porto.

Seguiu-se a atuação do Quinteto de Metais mais percussão da Banda de Moreira da Maia de que faz parte o Vogal do Núcleo, Sargento Chefe Domingos Batoca. O seu desempenho foi brilhante e muito apreciado por todos os participantes que interagiram com grande satisfação com as músicas apresentadas.

O Presidente do Núcleo agradeceu a sua colaboração por participarem neste dia tão importante, oferecendo-lhes o Guião do Núcleo. Ainda foram agraciados pelo Presidente do Núcleo com o emblema da Liga 7 novos sócios.

Para encerrar o programa estabelecido, o Presidente da Direção e o Presidente da Assembleia Geral cortaram o bolo, cantou-se os parabéns ao Núcleo e foi lançado o Grito da Liga.

De entre as entidades já referidas estiveram igualmente presentes, o 2.º Comandante da Zona Marítima do Norte, Capitão Tenente Mendes Valente, o Comandante da Divisão Policial da PSP de Matosinhos, Intendente Ângelo Sousa, o Presidente da União de Freguesias de Custóias, Leça do Balio e Guifões, Presidente da Mesa da Assembleia Geral da União de Freguesias de Custóias, Leça do Balio e Guifões, Sr. José Tunes, os representantes do Presidente da Junta da União de Freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira, do Presidente da União de Freguesias de Perafita, Lavra e Sta. Cruz do Bispo e da União de Freguesias de S. Mamede de Infesta e Sra. Da Hora, os Presidentes dos Núcleos do Porto e Marco de Canavezes e os representantes dos Núcleos de Penafiel, da Maia e Lixa, o representante do Presidente das Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Leça do Balio, Dr. Joaquim Silva e familiares dos matosinhenses falecidos no Ultramar, entre outros convidados.

Como notas relevantes deste dia fica a disponibilidade, a dedicação e o empenho evidenciados pelos nossos dirigentes que tudo fizeram para que a concretização de um dos dias com mais significado para o Núcleo fosse um êxito, agradecendo-se a presença das entidades convidadas e que acompanharam as cerimónias. É de salientar, mais uma vez, a evidência da importância da realização destas cerimónias para fortalecer os laços de amizade e de união entre dirigentes, sócios, familiares e amigos envolvidos pela sua demonstração de adesão aos objetivos da Liga: defesa dos valores morais e históricos de Portugal, promoção da solidariedade social e do apoio mútuo aos mais carenciados.

Texto: Núcleo de Matosinhos da LC.
Fotos: © João Oliveira
Fixação do texto; selecção, edição e legendagem (em itálico) das fotos: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24283: Efemérides (391): No dia 25 de Abril, Faria celebrou a memória dos Alcaides e do Capitão Salgueiro Maia e Camaradas (Manuel Luís Lomba)

Guiné 61/74 - P24286: Convívios (957): Pessoal de Bambadinca, 1968/71 (CCS/BCAÇ 2852, CCS/BART 2917, CCAÇ 12,Pel Caç Nat 52, 54 e 63, Pel Rec Daimler 2046 e 2206, Pel Mort 2106 e 2268: 27ª edição, Coimbra, 27 de Maio de 2023: inscrições até ao dia 16 (António Damas Murta, ex-1.º Cabo Op Cripto, CCAÇ 12, 1969/71)

 



Brasões das unidades e subunidades que passaram por Bambadinca (Setor L1 da Zona Leste, Região de Bafatá) entre meados de 1968 e meados de 1971. Composição do nosso editor Eduardo Magalhães Ribeiro.

Infogravura: Eduardo Magalhães Ribeiro / BLogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)




António Damas Murta, ex-1º cabo Op Cripto 
CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71); 
bancário, reformado da Caixa Geral de Depósitos,~
residente em Coimbra.



1. A organização, este ano, está a cargo do António Damas Murta [foto acima ], com a preciosa ajuda sua filha Sofia Murta.  (Palmas para ele, é o terceiro encontro que organiza, depois dos de 2009 e 2014).

Apesar das dificuldades económicas e sociais que atingem muitos portugueses, incluindo muitos dos nossos ex-camaradas de armas (agravadas pelas  limitações de mobilidade e saúde), esperemos que o 27º almoço-convívio em Coimbra, no próximo dia 27 de maio de 2023, atinja ou ultrapasse mesmo as 80 inscrições do último ano (2022).

Publica-se a seguir o convite e o programa do 27º convívio anual do pessoal que passou por Bambadinca entre 1968 e 1971. A reter:

(i) ponto de encontro; Estádio Universitário de Coimbra, às 10h00;

(ii) Missa na igreja de Santa Cruz, na baixa coimbrã, às 11h00;

(iii) Almoço no restaurante "República da Saudade", a partir das 13h00;

(iv) Preçário: 31 morteiradas (adulto):

(v) Inscrições até 16 de maio;

(vi) contactos: telef 239 71 30 55 / telem 964 538 201 (António Murta) | telem 968 050 119 (Sofia Murta, depois das 17h00, durante a semana)

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Nota do editor:

Último poste da sériie > 27 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24258: Convívios (956): A CCAÇ 2381 comemorou o seu regresso no 9 de Abril de 1970, fazendo o seu 30.º Almoço / Convívo no dia 15 de Abril, em Torres Vedras (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

Guiné 61/74 - P24285: O que é feito de ti, camarada ? (18): António Lalande Jorge, ex-fur mil mec auto, CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, março de 1972 / abril de 1974)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatã > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > Capa da brochura com a história da CCAÇ 12, desenhada pelo fur mil at inf António Levezinho. (A história da unidade, redigida pelo nosso editor Luís Graça, vai do início da formação da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, até fevereiro de 1971; infelizzmwnte falta o resto da história,  até  à  data da extinção, agosto dev1974. )

O Sector L1 tinha sede em Bambadinca. Havia ainda mais três subsectores: Xime, Mansambo e Xitole. A oeste e a sul, o Sector L1 era delimitado pela margem direita do rio Corubal, e a norte pelo rio Geba Estreito, se bem que os regulados do Enxalé e do Cuor, na margem direita  do Geba ainda fizessem parte do sector. 

O porto fluvial do Xime e a estrada Xime - Bambinca passaram a ser, sobretudo a partir de 1969, a principal via de entrada na Zona Leste (região de Bafatá e região de Gabu). Bambadinca (em mandinga, a "cova do lagarto") era posto administrativo (pertencente à circunscrição / concelho de Bafatá). Em 1969 estava ligada a Bafatá (30 km) por estrada asfaltada. Do porto fluvial do Xime a Bambadinca era uma dúzia de quilómetros. Havia um reordenamento (Bambadincazinho, a oeste do quartel e posto administrativo) e uma tabanca (a norte e a leste). A povoação tinha escola, posto dos CTT, capela, posto sanitário, missão do sono (desativada), dois ou três estabelecimentos comercais, uma missão católica... Nunca foi atacada ou flagelada no nosso tempo (CCAÇ 12, julho de 1969/março de 1971). Tinha cerca de 400 homens em armas (além da CCAÇ 12, 170 militares, tinha uma CCS, um Pel Rec Daimler, um Pel Mort, um Pel Caç Nat e um PINT, Pelotão de Intendência, fora do quartel, no porto fluvial). Bambadinca tem mais de 670 referências no nosso blogue.


Infografia. Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)


1. Esta é mais uma tentativa, da nossa parte, para localizar o António Lalande Jorge, ex-fur mil mec auto, CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, março de 1972 / abril de 1974).  Deixou aqui, no nosso blogue, um único comentário, no poste P8302 (*), que depois transformámos em poste, o P21641 (**).


Para além de uma curta nota curricular da sua passagem pela CCAÇ 12, em rendição individual, entre março de 1972 e abril de 1974, e de nos ter participado a morte do ex-fur mil SAM Victor Alves (1949-2016), o António Lalande Jorge mostrou interesse em continuar a acompanhar o nosso blogue (e até voltar a escrever nele), embora reconhecendo as suas limitações comunicacionais:

(...) Nunca escrevi nada no blogue porque nunca fui "expert" em computadores e é para mim muito difícil dominar estas tecnologias , no entanto sempre acompanhei lendo todos os comentários que por aqui foram passando.

(...) Tenho algumas histórias curiosas que poderei divulgar num momento de inspiração.

Já agora não sei se será o local mais apropriado para estar a fazer este comentário mas peço desculpa pela minha ignorância. (...)

António Lalande | 4 de agosto de 2016 às 23:49


2. Na altura, escrevemos: 

(...) Jorge, foi pena não teres deixado um contacto (...) (endereço de email, telemóvel ou telefone...). Nem sequer sei onde vives. Gostaria muito de saber mais coisas sobre a "nossa" CCAÇ 12 do teu tempo. E, naturalmente, conhecer-te, em carne e osso, se houver oportunidade para tal.

Ficas, desde já, convidado (...) para te juntares à nossa Tabanca Grande (...). Dá notícias. (...) 

Reiteramos o nosso convite (***). Temos aqui mais de 450 referências à CCAÇ 12. Parece que o António Lalande Jorge não tem página no Facebook, contrariamente a muitos antigos combatentes. Deixamos-lhe aqui os nosso contactos, que de resto figuram ao alto da coluna esquerda do blogue:

(i) Luís Graça (Lourinhã):

luis.graca.prof@gmail.com

(ii) Carlos Vinhal (Leça da Palmeira / Matosinhos):

carlos.vinhal@gmail.com

(iii) Eduardo Magalhães Ribeiro (Maia):

magalhaesribeiro04@gmail.com

(iv) Jorge Araújo (Almada):

joalvesaraujo@gmail.com

(v) Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com
 
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8302: Os nossos camaradas guineenses (31): O José Carlos Suleimane Baldé, ex-1º Cabo At Inf, CCAÇ 12 (1969/74), está em Portugal até 3 de Junho, e quer estar connosco! (Odete Cardoso / Luís Graça)

(**) Vd. poste de 13 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21641: Casos: a verdade sobre... (18): Os "momentos dramáticos" vividos pela CCAÇ 12, em março de 1973, obrigada a render no Xime a CART 3494 [António Lalande Jorge, ex-fur mil mecânico auto, CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, março de 1972 / abril de 1974)]

Guiné 61/74 - P24284: Parabéns a você (2166): Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf da CCAÇ 2317/BCAÇ 2835 (Gandembel e Nova Lamego, 1968/69)

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Nota do editor

Último poste da série de 3 de Maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24278: Parabéns a você (2165): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAV 3366/BCAV 3846 (Susana e Varela, 1971/73)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24283: Efemérides (391): No dia 25 de Abril, Faria celebrou a memória dos Alcaides e do Capitão Salgueiro Maia e Camaradas (Manuel Luís Lomba)


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66), datada de 3 de Maio de 2023, dando notícia de uma homenagem pelo 650.º aniversário do feito dos Alcaides de Faria,  assim como ao Capitão Salgueiro Maia, a cargo do Grupo Alcaides de Faria, de que o Lomba é presidente, e da Junta da União de Freguesias de Milhazes, Vilar de Figos e Faria:


Faria celebrou a memória dos Alcaides e do Capitão Salgueiro Maia e Camaradas

O 25 de abril de 2023 foi a oportunidade da celebração conjunta da memória daqueles heróis nacionais pelo Grupo Alcaides de Faria e a Junta da União de Freguesias de Milhazes, Vilar de Figos e Faria. A solenidade foi iniciada às 11H00, com o hastear da Bandeira Nacional junto ao memorial pelo descendente dos Alcaides de Faria, Eduardo Felgueiras Gayo, dignificada com o Hino Nacional pelo instrumental da Banda do Galo do CCO, a deposição da coroa de flores pelo presidente e o vogal da Junta de Freguesia e a alocução alusiva do presidente do Grupo Alcaides de Faria:

“O mês de abril português é fértil de eventos históricos. O 25 de abril de 1127 será celebrado um dia: indícios empíricos apontam-no como o dia em que D. Afonso Henriques assumiu os castelos do Neiva, de Faria e outros, baseou-se e neste castelo proclamou-se “Príncipe dos Portugueses” de Entre Douro e Minho, mais de dois terços do Condado de Portugal. Um dia chegará em que o 25 de abril celebrará também a fundação da nacionalidade.

O feito dos Alcaides de Faria culminou em abril de 1373, há 650 anos, com o levantamento do cerco ao seu castelo e a retirada dos invasores para a Galiza. O Alcaide Nuno Gonçalves foi dar batalha a essa Primeira Invasão Castelhana do Norte, foi derrotado e aprisionado na freguesia de Carapeços, convenceu o general invasor a conduzi-lo ao castelo, consciente da fatalidade da sua exortação ao filho Gonçalo Nunes:
- Filho alcaide! Maldito sejas tu e sepultado no inferno como o traidor Judas, se estes que me vão matar entrarem nesse castelo sem tropeçarem no teu cadáver!...

O Alcaide Nuno Gonçalves de Faria doou conscientemente a sua vida à pátria, salvou o seu castelo e a sua guarnição reteve a invasão com a sua resiliência. Caso o inimigo tivesse progredido livremente e o Porto tivesse caído, o Tratado de Paz de Santarém não teria acontecido. Ante o assassínio do alcaide pela sua heroicidade, o fidalgo Diogo Lopes Pacheco, matador sobrevivo da linda Inês, que incluía a invasão como conselheiro do general galego, passou a mediador das pazes, o rei castelhano estava a contas com o cerco anfíbio a Lisboa, que o desenformou é plausível, que a invasão do Norte estava encalhada em Faria e que as tropas de Barcelos e do Bispo do Porto estavam a cortar-lhe a linha de retirada por Ponte do Lima.

A motivação foi comum a D. Afonso Henriques, aos Alcaides de Faria, ao capitão de abri Salgueiro Maia e camaradas: a liberdade e a dignidade dos Portugueses. Há 49 anos, a exortação do “capitão de abril de “vamos acabar com o estado a que isto chegou” galvanizou os seus comandados, avançaram de Santarém sobre Lisboa, ele expôs o peito à metralha em toda a manobra, o seu feito culminou no Largo do Carmo, a dar o fim ao impopular regime político e a conceder a rendição com dignidade ao seu chefe”
.

Seguiu-se a romagem ao Cemitério Paroquial, para homenagear os filhos da terra e combatentes da Pátria na sua última morada, a canora Banda do Galo encabeçou-a e dedicou-lhes músicas fúnebres, os sinos dobraram a finados e a celebração culminou com a chamada nominal dos combatentes da I Grande Guerra e da Guerra do Ultramar: Joaquim Luís de Faria, António Peixoto, Américo Ponte, António Marques, Cândido Ferreira, Domingos Figueiredo, Joaquim Gonçalves, Joaquim Brito, Joaquim Lomba, José Amorim, Manuel Boucinha, Manuel Ferreira, Manuel Peixoto e os omissos.

Manuel Luís Lomba


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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24277: Efemérides (390): Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar da Freguesia de Paus, Concelho de Resende, levada a efeito no passado dia 29 de Abril (Fátima Soledade / Fátima Silva)

Guiné 61/74 - P24282: Agenda cultural (833): Apresentação do livro "João Cardoso de Oliveira - homem e sacerdote", da autoria do nosso camarada António Mário Leitão, a levar a efeito no próximo dia 6 de Maio de 2023, pelas 16h30, na Igreja Matriz de Ponte de Lima

1. Em mensagem do dia 3 de Maio de 2023, o nosso camarada António Mário Leitão, (ex-Fur Mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973), enviou-nos o convite para o lançamento do seu livro "João Cardoso de Oliveira - homem e sacerdote", a levar a efeito no próximo dia 6 de Maio, pelas 16h30, na Igreja Matriz de Ponte de Lima:


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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24254: Agenda cultural (832): livro «50 Anos (1975-2025) de factos e feitos da História do CCRAM - primeira década: 1975/1985»; convite para a sessão de lançamento, Corroios, Seixal, dia 29, sábado, às 15h30 (Jorge Araújo)

Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico


O barbeiro-sangrador,   c. 1805 > Ilustração de James Gillray (1757-1815)  (London, Victoria and Albert Museum). 
Imagem do domínio público. 
Cortesia de Wikimedia Commons.


1. Começámos a publicar, desde de meados de março passado, uma série de textos, da autoria do nosso editor Luís Graça, sobre as lições que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer" (*)...

Às vezes quando a doença e a morte nos batem à porta, à minha, à da minha família, à dos meus amigos e camaradas mais próximos, é que eu me lembro que dediquei uma boa parta da minha vida (quase quatro décadas) ao ensino e à investigação da arte e da ciência da proteção da doença e da promoção da saúde, o mesmo é dizer às "coisas" da saúde pública... E dão-me saudades esses tempos quando, sendo mais novo, escrevia sobre esses temas...

Depois de sobrevivermos à dura prova que foi para todos (nós/vós) a pandemia de Covid-19, eis-nos agora a fazer o luto pela perda recentes de pessoas que nos eram muito queridas. Daí a oportunidade  da publicação  deste textos que fomos (re)buscar ao nosso "baú", mas que não têm a ver, pelo menos diretamente, com a Guiné e a guerra que lá travámos, entre 1961 e 1974.

São textos, com vinte e tal anos, que constavam da nossa antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

Contando com a complacência ou até a cumplicidade dos nossos leitores, esperamos, ao menos, que a  leitura desses textos, agora revistos, possa ter algum proveito e dar algum prazer. Para o nosso editor, é também uma forma de continuar a lidar com o seu sofrimento psíquico e o sofrimento psíquico das pessoas que lhe estão próximas.  

Por outro lado, o nosso blogue já atingiu, na Internet, a "terceira idade": fez 19 anos em 23 de abril p.p.  E tem que ser "alimentado" todos os dias, com pelo menos três postes... Estes textos também funcionam como uma espécie de "tapa-buracos"... LG


5. Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva 
e do Encarniçamento Terapêutico


(Continuação)

No pós-25 de Abril, numa leitura algo imediatista e datada, recusava-se a ideia de que a grande maioria destes provérbios fosse de origem popular, dada a sua "função de ocultação ideológica" (Gomes, 1974). Na melhor tradição jacobina e anticlerical, via-se aí a língua viperina da "padralhada", dos frades, dos jesuítas, etc. já que o povo não podia ser intrinsecamente... "reaccionário".

Populares ou nem tanto, os provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa não deixam de refletir uma experiência amarga da população, vítima não só de um ciclo infernal de epidemias que durou mais de 400 anos ("Da peste, da fome, da guerra - e do bispo da nossa terra, Libera nos, Domine!") como do uso e abuso, por parte dos praticantes de artes médicas até à alvorada do Séc. XX, de técnicas terapêuticas agressivas, invasivas e de duvidosa eficácia como era o caso da purga e da sangria.

Nesta perspectiva, alguns provérbios podem ser vistos como formas de contestação avant la lettre do encarniçamento terapêutico de que é hoje acusada a medicina defensiva: "Se não morre do mal, morre da cura" (Quadro XIV, em anexo).

Em meados do Séc. XVII, o uso da sangria (ou flebotomia), praticada por cirurgiões e barbeiros-sangradores (uma profissão só extinta entre nós em 1875) tal como a purga ou o clister (ministrada pelos cristaleiros e cristaleiros), generalizara-se de tal modo que dera motivo ao adágio popular: "Em Lisboa não há sangria má nem purga boa"

De facto, havia médicos que num mesmo episódio de doença mandavam sangrar "trinta e quarenta vezes" (Lemos, 1991, vol. II. 37). Sangravam-se 0s ricos e os pobres, os reis e os súbditos, os doentes e os sãos...

Outros provérbios terão uma origem semelhante (Quadro XIV):
  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue";
  • "Como é o braço assim é a sangria";
  • "Dia de purga, dia de amargura";
  • "O que faz mal ao corpo é o sangue";
  • "Sangrai-o e purgai-o e, se morrer, enterrai-o";
  • "Sangrar de saúde".

Além da prática da sangria, o barbeiro também era chamado para tratar dos dentes: "A quem dói o dente vai à casa do barbeiro". E em quase todas as vilas e aldeias deste país, até aos anos 60, ele era para todos os efeitos um verdadeiro praticante da arte médica a quem se recorria para tratar de um abcesso, dar uma injecção, fazer um penso ou receber um conselho. De resto, "é na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"...

No regulamento do Hospital Real de Todos os Santos, inaugurado em 1504, estava prevista a figura do barbeiro-sangrador. Competia ao enfermeiro-mor (chefe de uma enfermaria) estar presente "quando algum Enfermo se ouver de sangrar"- tarefa essa que era executada pelo barbeiro-sangrador, externo (Capº XVI) -, devendo para o efeito requisitar ao hospitaleiro as necessárias "ataduras e panos" (p. 75).

A profissão de barbeiro-sangrador só será extinta, oficialmente, por decreto de 13 de Junho de 1870, o que testemunha a longa persistência de séculos da prática da flebotomia entre nós (Pina, 1937.21-22). 

No entanto, a sangria ainda se praticava em Lisboa nos finais da Monarquia!

(Continua) (**)

(Bibliografia a apresentar no final da série)

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Quadro XIV— Provérbios e outros lugares comuns da língua portuguesa sobre o barbeiro, a purga e a sangria

Objecto

Provérbio

Barbeiro Barbeiro- Sangrador Dentista

 

  • " A quem dói o dente vai à casa do barbeiro"

  • "A quem dói o dente vai a dentuça" (Séc. XVI)

  • "Da vida alheia é mestre o barbeiro"

  • "Dente fora cangalhão na cova"

  • "É na cara dos pobres que os barbeiros aprendem"

  • "Guarde-nos Deus de oficial novo e de barbeiro velho"

  • "Quando Deus tira os dentes, alargar a goela"

  • "Quando Deus tira os dentes, endurece as gengivas"

  • "Quando dói o dente é que se vai ao dentista"

Purga       Sangria

  • "Como é o braço assim é a sangria"

  • "Dia de purga, dia de amargura"

  • "Dia de tosquia, dia de sangria"

  • "Em Lisboa não há sangria má, nem purga boa"

  • "Mais vale suar que enfermar"

  • "Não é sangria desatada"

  • "Quando se está esmagado não se chora, sangra-se"

  • "Sangrai-o e purgai-o, e, se morrer, enterraio-o"

  • "Sangrar de saúde"

  • "Sangria que no princípio da manhã é salutífera, por ventura sucede ser mortal na declinação do dia"

  • "Um ar purgado, morte ao cabo"

Sangue

  • "Arrenego da tijelinha de ouro em que hei-de cuspir sangue"

  • "Bebe vinho branco de manhã e à tarde tinto para teres sangue"

  • "Dar o sangue das veias" (Séc. XVII)

  • "Ficar sem pinga de sangue"

  • "Mais vale onça de sangue que libra de amizade"

  • "Não quero escudela de ouro em que cuspa sangue"

  • "O bom vinho faz o bom sangue"

  • "O que faz mal ao corpo é o sangue"

  • "O sangue se herda e o vício se pega"

  • "Sangue pela boca nem das gengivas"

  • "Sangue quer sangue, sangue quer vida"

  • "Todo o sangue é vermelho"

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Nota do editor:

(*) Vd. postes de:




20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

(**)  Último poste da série > 10 de abril de  2023 > Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida

quarta-feira, 3 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24280: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte VI: Sexo, álcool e amuletos... A maldição ou a premonição do Amílcar Cabral ?..."Só nós somos capazes de destruir o Partido" (Boké, Guiné-Conacri, finais de 1970)


Guiné-Bissau (sic) > PAIGC > s/l > Março-abril de 1974 > Mulher com criança /Foto: ASC Leiden - Coutinho Collection - B 29 - Life in the Liberated Areas, Guinea-Bissau - Woman with child - 1974.tif

Fonte: Wikimedia Commons > Guinea-Bissau and Senegal_1973-1974 (Coutinho Collection) (Com a devida vénia...) . Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)






1. A seguir à invasão de Conacri por tropas portuguesas e forças da oposição ao governo de Sékou Touré, em 22 de novembro de 1970 (Op Mar Verde), Amílcar Cabral (AC) reuniu as cúpulas do PAIGC em Boké, na Guiné-Conacri, próximo da fronteira sul com o território da então Guiné Portuguesa, em data que não podemos precisar mas sabemos, pelo testemunho de Luís Cabral (LC) ("Crónica da Libertação", Lisboa, O Jornal, 1984, 464 pp.), que foi ainda em 1970, por volta do final desse  ano. (*)

AC aproveitou para fazer o balanço da "bárbara agressão do inimigo contra a capital da República da Guiné", segundo o relato do seu mano, LC (pág. 373).

Difícil para ambos  era compreender "a traição de muitos dos principais colaboradores do presidente Sékou Touré" (sic) (pág. 374). Naturalmente o AC não revelou,  aos seus  colaboradores mais próximos,  as tremendas dificuldades  (económicas, politicas,  sociais, etc.) por que estava a passar a Guiné-Conacri nem ele alguma vez denunciou a natureza ditatorial do regime de Sékou Touré. Obviamente, não iria cuspir na sopa nem dizer mal dos seus hóspedes.... e aliados. Amílcar Cabral (e o seu estado-maior) estava nas mãos do "camarada" Sékou Touré (em relação ao qual, de resto, havia um temor reverencial, visível na maneira como o LC se  referiu a ele da primeira vez que o conheceu, à distância, chegando na sua viatura presidencial ao aeroporto da capital).

Mas não deixou, o AC,  de avançar com a sua própria teoria espontânea  sobre os riscos que estava a correr o próprio PAIGC, cujas sementes de destruição não eram exógenas (ou seja, vindas do exterior) mas endógenas (geradas a partir de dentro), insistindo repetidas vezes que "só nós" (sic) (...) "estávamos em condições de destruir o Partido" (pág, 375). Uma premonição, quiçá, do seu próporio assassinato dois anos mais tarde, em Conacri, a 20 de janeiro de 1973, e onde a participação do Sékou Touré, como autor moral,  está  ainda por esclarecer, bem como a de dirigentes do PAIGC como o Osvaldo Vieira, primo do 'Nino'.

E contou, o AC, para gáudio geral da audiência,   a história ou a fábula do bode que, numa pequena terra se havia celebrizado pela sua extraordinária capacidade de procriação, até ao dia em que o presidente do município local se apressou a comprá-lo e instalá-lo num estábulo-modelo, promovendo-o a "bode municipal"...

A partir daí, bem comido e melhor dormido, o bode desinteressou-se totalmente das cabras. Quando o seu antigo proprietário, indignado, lhe pediu explicações, face às reclamações do seu novo dono ( o presidente do município). o bode limitou-se a responder, cinicamente: "Agora sou funcionário público." (pág. 376).

A mensagem que o AC quis transmitir  aos seus "generais", depois da prova de fogos  que fora, para todos aqueles que  lá estavam, a invasão de Conacri e a tentativa de derrube do regime, era clara: ninguém nos destrói,  a partir de fora, a começar pelos "tugas", se continuarmos de mãos dadas a certar fileiras... Mas nós podemos destruir-nos uns aos outros...

Foi nesta reunião de Boké que apareceu, pela primeira vez, a figura do Partido-Estado. Foi criado o Conselho Superior de Luta no seio do qual era eleito o Conselho Executivo da Luta (pág. 377). Foi também nesta reunião que passaram a fazer parte das Forças Armadas, "as forças regulares - o Exército Popular, a Marinha Nacional e, mais tarde, a Aviação Militar" (pág. 378). Por seu lado, "a Guerrilha e a Milícia foram juntas numa única organização, as Forças Armadas Locais (FAL)", cabendo a sua direção ao Comité Nacional das Regiões Libertadas (sic).

E chegamos ao ponto que nos interessa. No final da reunião, o AC punha mais uma vez o dedo na ferida, manifestando as suas reiteradas preocupações com a "vida pessoal dos quadros e dirigentes do Partido" (pág. 378).

Escreve o irmão, LC:

"Sei bem quanto era doloroso para o Amílcar ter de abordar sempre esta questão delicada cuja origem nascia do comportamento de alguns dos dirigentes da luta" (Negritos nossos)...

E o LC exemplifica, com algum prurido, duas condutas altamente perniciosas para um partido que se pretendia "libertador": 

(i) "o consumo exagerado da bebida alcoólica" (pp. 378/379); 

e (ii) a prostituição, o assédio sexual, a poligamia (pp. 380/383), 

e (iii) implicitamente a cultura do "cabra-macho"... (Claro que ele nunca usa as palavras prostituição, assédio sexual e cabra-macho..).

As questões do álcool e do sexo eram extremamente incómodas e até fracturantes num  "partido revolucionário", de inspiração marxista, como o PAIGC, que se queria frugal, puritano, impoluto. 

Os dirigentes e os quadros sabiam quem eram os visados pelas palavras de AC. Um deles seria o Osvaldo Veira, grande apreciador da "água de Lisboa", acrescentamos nós. 

No caso do álcool, LC conta que havia dirigentes que se davam ao luxo de ter os seus "furadores" privativos (!) para extraírem o vinho de palma, bebida que rareava no mato tal como as bebidas alcoólicas que eram importadas (e disputadas em Conacri).

A questão da "violência sexual" (outra expressão que nunca é usada, por falso moralismo) era outro grave problema que já vinha de trás. Diversos "senhores da guerra" haviam sido denunciados, julgados e condenados à morte, em Cassacá, no I Congresso do PAIGC, em fevereiro de 1964, acusados de brutais abusos sexuais e atrocidades para com a população, e nomeadamente para com as  raparigas e outras mulheres jovens (mas também contra os que os que se opunham a estas práticas horrendas). LC só volta a referir a persistência deste problema por ocasião da reunião de Boké, em finais de 1970.  Isto significa que ele nunca fora resolvido ao longo daqueles anos todos...

"Todos os homens normais gostam de mulheres, dizia ele [ o Amílcar Cabral] (...). No auge do seu desespero em ter de abordar esta questão uma vez mais, o Amílcar acrescentou, elevando ligeiramente a voz: 'Se pensam que são mais machos do que nós, estão enganados, se quiserem podemos ir ao quarto ao lado e fazer a experiência! Temos as nossas mulheres, a nossa família, e sabemos a responsabilidade que nos cabe nesta fase da vida do nosso povo`".(...) (pág. 382).

O que estava em causa era a cultura, então dominante no seio do PAIGC, do "cabra-macho", de peito feito às balas, de "peito vermelho", aguerrido, corajoso, mas também violento, machão, predador sexual...

Umas terceira preocupação do AC (e do LC) era o uso e abuso de amuletos, já abordado nas pp. 166/167. LC revela que os dirigentes do PAIGC, no mato, "tinham sempre um combatente muito jovem, que transportava,  num saco, os variados amuletos a que cada um tinha direito, dada a sua condição de chefia" (pág, 166). 

No caso do 'Nino' Vieira, por exemplo, não se deslocava no mato em situações de combate,  sem o seu arsenal de amuletos, e de pelo menos dois ajudantes (!),  que os carregavam, além de um bigrupo reforçado,  segundo o testemunho (suspeito) do Bobo Queita (que não gostava dele, e ainda mais depois do golpe de Estado de 14 de novembro de 1940).    [ In: Norberto Tavares de Carvalho, "De campo a campo: conversas com o comandante Bobo Keita". Edição de autor, Porto, 2011. (Impresso na Uniarte Gráfica, SA; depósito legal nº 332552/11). Posfácio de António Marques Lopes. p. 197.)

O AC, de formação católica, filho de ex-padre e professor primário (todavia, sexualmente muito promíscuo, com muitos filhos de várias mulheres), não apreciava também estes "aspectos menos racionais" do comportamento dos seus homens... Mas teve que engolir este e muitos  outros sapos (como, por exemplo,  a "mutilação genital feminina" praticada pelos povos "islamizados" da Guiné: não me lembro de ele alguma vez se ter pronunciado, ou pelo menos escrito, sobre este problema, ele que, de resto,  era pai de duas meninas, filhas de uma portuguesa... que foi alegadamente o "amor da sua vida").

"O amuleto - mezinho, como lhe chamávamos - era uma fraqueza que foi transformada em força pelo Partido" (pág. 166). Quando ainda não havia armas para se defenderem, "o Amílcar entregava-lhe(s) o dinheiro necessário para mandar fazer o mezinho - algumas citações do Corão, escritas em caracteres árabes" (...), amuleto que depois era "cuidadosamente forrado de cabedal, e que tinha a virtude de reforçar no combatente a confiança em si próprio, trazendo-lhe a confiança psíquica indispensável ao bom cumprimento da sua missão (pág. 167).

Umas páginas à frente, LC conta a história caricata de um grupo de estrangeiros, o sociólogo sueco Rolf Gustavson e uma equipa de cineastas e fotógrafos franceses, constituída por Michel Honorim, Giles Caron e Michel Carbeau" (pág. 385). Os franceses vinham do Biafra e queriam ver cenas de guerra e sangue...

Isto passa-se entre Farim e Jumbembem, quase nas barbas das NT. Face ao risco de serem apanhados por uma emboscada das tropas portuguesas, LC deu ordem à escolta, comandada por Bobo Queita, para fazer uma "retirada forçada" até à fronteira... Não tendo nada de interessante para filmar (nem sequer umas tabancas em ruínas, carbonizadas pelo napalm dos colonialistas... ), "o chefe da equipa francesa disse em voz alta que éramos um bando de mentirosos" (sic).

Apesar da desculpa do cansaço físico e da tensão acumulada, o LC é obrigado a ameaçar confiscar-lhe as películas há utilizadas. Resultado: 

"Do documentário que devia ser feito das filmagens de Michel Carbeau, pelo realizador Michel Honorim, chefe da equipa, nunca tivemos notícias" (pág. 387). 

Restou o fotógrafo Gilles Caron que terá feito, mesmo assim, algumas belas imagens dos sítios por onde passou...

Destes (e doutros nomes que andaram pelas "áreas libertadas" a documentar a luta do PAIGC) há escassíssimas referências na Net: vd. Journal of Film Preservation, 77/78, october 2008.

Guiné 61/74 - P24279: Historiografia da presença portuguesa em África (366): Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
Não deixa de ser uma fascínio e provocar uma grande admiração folhear estes documentos de expansão portuguesa coligidos por Vitorino Magalhães Godinho (1918-2011), obra da sua juventude, este data de 1943, serão publicados ainda 2 volumes, em 1944 e 1956, uma trilogia que é hoje uma raridade bibliográfica. Neste primeiro volume, aquele que se irá consagrar como o maior historiador português dos Descobrimentos procede ao levantamento das fontes que se propõe estudar e comentará um acervo de documentos, hoje reconhecidamente de valor irrefutável, tudo à volta do projeto henriquino. A escolha da Relação de Diogo Gomes tem extrema importância a vários títulos: primeiro, vemos o historiador a cortar cerce em confusões de Diogo Gomes, mostrando haver poucas coincidências entre o seu relato e o de Zurara; segundo, tratando-se a Relação de Diogo Gomes o primeiro escrito na contemporaneidade do Infante D. Henrique, revela os conhecimentos científicos da época, caso de se pensar que o Senegal era o braço ocidental do Nilo, tudo dentro de uma lógica do mundo concebido por Ptolomeu; terceiro, Vitorino Magalhães Godinho deixa bem claro que o Infante D. Henrique tem a alma de um cruzado, de um empreendedor comercial e o desejo de espalhar a fé, as informações que vai obtendo das sucessivas viagens seguramente que lhe terão dado conta que o islamismo já tinha forte difusão, a despeito de um grande espaço destinado à cristianização, junto dos povos animistas. Esta Relação é muito mais do que uma curiosidade, tudo começa em Ceuta e nas ilhas do mar oceano do Ocidente, resolvido o diferendo das Canárias, aposta-se no povoamento da Madeira e dos Açores.

Um abraço do
Mário



Diogo Gomes na obra de Vitorino Magalhães Godinho (1)

Mário Beja Santos

Na sua juventude, aquele que se virá a credenciar como o mais importante historiador dos Descobrimentos portugueses, Vitorino Magalhães Godinho, publica duas obras que serão a alavanca da sua assombrosa investigação, no arranque da década de 1940: A Expansão Quatrocentista Portuguesa e os Documentos Sobre a Expansão Portuguesa. Logo na introdução do Vol. I de Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, o historiador deixa bem claro que sabe ao que vem, pauta-se pela evidência científica, não vai haver fantasia nem batalhas de Ourique nem as invenções da historiografia de Alcobaça, alerta-nos para as fontes do seu estudo: as narrativas (crónicas, relações); fontes diplomáticas (diplomas régios, diplomas emanados de entidades com direitos senhoriais, bulas pontifícias); documentos diversos, obras técnicas (tais como roteiros, regimentos náuticos, tratados cosmográficos e náuticos). E elenca o conjunto de todas estas fontes que pretende compulsar para o seu trabalho.

É exatamente neste vol. I, publicado pela Editorial Gleba em 1943 que Vitorino Magalhães Godinho retoma o estudo da Relação dos Descobrimentos da Guiné, atribuído a Diogo Gomes e que tinha sido publicada em 1900 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. Que importância se pode conferir a tal relação? É o único documento publicado por um navegador ou explorador contemporâneo do Infante D. Henrique, Diogo Gomes (ou Diogo Gomes de Sintra) está bem identificado como o colaborador do Infante, tendo exercido atividades de responsabilidade no reinado de D. Afonso V. O debate que ainda hoje persiste sobre a autoria da Relação é se teria sido ditada a Martinho de Boémia ou por este redigida e/ou modificada.

Chama logo à atenção a forma como arranca o texto:
“De que modo foi achada a Etiópia austral, a qual se chama Líbia inferior, além da que Ptolomeu descreveu, agora chamada Guiné pelos descobridores portugueses, a qual descoberta referiu Diogo Gomes, almoxarife do Paço de Sintra, a Martinho de Boémia, ínclito cavaleiro alemão (o historiador refere que ao tempo ainda não havia nenhum estudo crítico sobre a Relação de Diogo Gomes). A Relação começa sempre com o início do projeto henriquino, as viagens ao rio do ouro, as expedições conduzidas por Nuno Tristão e António Gonçalves, a procura do caminho para Tombuctu, as viagens de Gonçalo de Sintra e Dinis Dias que foram para além da Ponta da Galé, a construção da fortaleza de Arguim, novas armadas com Gil Eanes, Lançarote de Lagos, Nuno Tristão e Gonçalo Afonso de Sintra, as capturas de gente africana, prosseguem as expedições, já se está no país dos Jalofos, mais adiante passa-se o rio de S. Domingos e o rio Grande (o Geba) “e tivemos ali grandes correntes do mar, e na enchente faz grande ímpeto, o que chama o macaréu, porque então não há âncora que possa aguentar. Por esse motivo outros capitães e homens deles temiam muito, julgando que era assim todo o mar além, e me rogavam que voltasse. E a meio da maré ficou o mar bastante manso, e vieram os mouros da terra nas suas almadias e nos trouxeram as suas mercadorias, a saber: panos de seda ou algodão, dentes de elefante e uma quarta de malagueta em grão. E parámos aí, nem passámos além por causa das correntes do mar. E quando veio a maré cheia aconteceu-nos a nós como antes e assim nos voltámos a donde nos saímos”.

Descreve os palmares, os animais, volta a referir os elefantes e menciona as tocas dos crocodilos. Retornam viagem para o promontório de Cabo Verde, passam obrigatoriamente pelo rio Gâmbia, por ele navegam, vão estabelecendo relações com a população local, há quem os informe de que estavam cristãos em Cantor, falam-lhes de grandes cidades comerciais com abundância de ouro, caravanas de camelos trazendo mercadorias de Cartago ou Tunes, de Fez e do Cairo, Diogo Gomes vai obtendo informações sobre os reis, o comércio, sabe da existência do grande senhor chamado Batimansa, havia também um rei chamado Nomimans bastante hostil aos cristãos, Diogo Gomes mandou-lhe presentes, o rei apresentou-se, falaram de religião e o rei informou que só cria no Deus vivo e uno, queria ser batizado, escreveu uma mensagem ao senhor Infante para que lhe mandasse sacerdote e um fidalgo que o instruísse na fé e que lhe mandasse um açor, ave de caça, porque se admirou muito quando lhe disse que os cristãos traziam na mão uma ave que apanhava as outras aves.

No regresso vai contactando embarcações portuguesas e gente em terra. Tudo contando ao Infante D. Henrique, deu particular atenção ao que lhe dissera o rei Nomimans. “O Infante tudo fez, e mandou para ali o sacerdote parente consanguíneo do cardeal, Abade de Souto da Casa, para que ficasse com aquele rei, e o industriasse na fé.”

E dá-se a morte do Infante em Lagos, em 13 de novembro de 1460, será depois transladado para Santa Maria da Batalha. “Dois anos depois, o senhor rei Afonso armou uma grande caravela, onde me mandou pôr capitão; levei dez cavalos comigo e fui à terra dos Barbacins, ali há dois reis. O rei deu-me poder sobre as margens daquele mar, para que quaisquer caravelas que encontrasse em terra de Guiné fossem sob minha autoridade ou domínio, porque ele sabia que ali estavam caravelas que levavam espadas e outras armas aos mouros, ordenando-me que as tomasse e lhas trouxesse a Portugal (a bula de Eugénio IV de 25 de maio de 1437 concedera autorização aos portugueses para comerciar com os mouros, excetuando, porém, a venda de armamento). Com a ajuda de Deus, em doze dias cheguei a Barbacins”.

E descreve quem encontrou e dá-nos uma noção dos termos dos resgates: os mouros vendiam sete negros por um cavalo. Refere adiante que foi com António da Noli de regresso a Portugal. “E porque a minha caravela era mais veleira que a outra, cheguei eu primeiro a uma daquelas ilhas, onde vi areia branca, e, parecendo-me bom o porto, lancei a âncora e o mesmo fez António. E disse-lhes que queria ser o primeiro a pôr pé em terra, e assim fiz, e nenhum indício de homem vimos aí”. Observa Vitorino Magalhães Godinho que o descobrimento do arquipélago de Cabo Verde era atribuído a Diogo Gomes ou António da Noli ou a Cadamosto. Na Relação a viagem de Diogo Gomes em companhia do genovês é de 1462; ora a viagem do veneziano é de 1456, e documentos oficiais atribuem o descobrimento a António da Noli, cuja viagem deve ter sido anterior à de Cadamosto que ao encontrar quatro das ilhas supôs erradamente ser o seu descobridor. Mesmo admitindo que na Relação há confusão cronológica, e que Diogo Gomes acompanhasse António da Noli, não parecesse de aceitar o tirar ao genovês a glória do descobrimento, pois de contrário certamente o rei não lhe concederia a capitania de Santiago, como o próprio Diogo Gomes informa.

Trata-se de um belíssimo texto e vale a pena acompanhá-lo até ao fim.

(continua)

Estátua de Diogo Gomes na cidade da Praia, Cabo Verde
Estátua de Diogo Gomes na fortaleza de Cacheu
Vitorino Magalhães Godinho na juventude
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Nota do editor

Último poste da série de 26 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24253: Historiografia da presença portuguesa em África (365): António de Cértima, cônsul português em Dacar, anos 1920 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24278: Parabéns a você (2165): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAV 3366/BCAV 3846 (Susana e Varela, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24271: Parabéns a você (2164): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuna, 1964/66)