sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24753: Notas de leitura (1624): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2022:

Queridos amigos,
Descritas as revoltas em Angola desde a rebelião da baixa de Cassange até ao caos sangrento após a insurreição de 15 de março, o historiador Valentim Alexandre dá-nos um retrato das movimentações políticas em Angola, tanto das organizações dos colonos como dos movimentos de emancipação. A segunda parte da obra atende às pressões externas, ao novo quadro da Assembleia Geral da ONU, onde a administração norte-americana se mostrava inequivocamente adversa ao nosso colonialismo, o regime procura apoios externos, revelara-se-ão poucos, a despeito do comércio do armamento, parceiros fixe só serão encontrados na África do domínio branco, Salazar tem a consciência de que não pode bater as palmas ao apartheid. E entramos num vórtice das tensões entre militares, o historiador dá-nos uma narrativa bem impressiva de como foi desencadeado o golpe de Botelho Moniz e como o regime se defendeu. Na conclusão, fala-se detalhadamente da explosão nacionalista em África e como ela a prazo foi bem-sucedida, era um processo histórico inexorável.

Um abraço do
Mário



O início da guerra em Angola, os três primeiros meses (3):
Uma surpreendente obra de referência sobre a génese da convulsão anticolonial


Mário Beja Santos

Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril) por Valentim Alexandre, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021, marca o regresso de Valentim Alexandre à história colonial, de que possuí extenso e brilhante currículo, ainda há escassos anos nos ofereceu outra obra de referência, Contra o Vento – Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960), também publicado em Temas e Debates/Círculo de Leitores, que pode ser encarada como a primeira peça de algo que se afigura vir a ganhar corpo como a História da Guerra Colonial (1961-1975), empreendimento de grande dimensão, que até hoje nenhum investigador nem nenhuma equipa se acometeu, tal a grandeza da tarefa e o distanciamento que impõe.

Para concluir esta curta viagem em torno de uma obra que se tornou indispensável para o estudo dos primórdios da Guerra Colonial, passa-se em revista as movimentações políticas em Angola e as repercussões destas sublevações angolanas na vida política do regime, irão culminar com a Abrilada, um golpe palaciano falhado, a que se seguirá a declaração política de Salazar de se ir rapidamente e em força combater os focos subversivos. O autor recorda que as revoltas de 4 de fevereiro e 15 de março fizeram fervilhar iniciativas e movimentações entre a população branca, que se sentia ameaçada e não via nas instâncias oficiais a capacidade para dominar a situação, e elenca um conjunto de nomes de intervenientes, recorda que os relatórios da PIDE sublinhavam o clima de desconfiança e suspeição que se vivia em Angola. As estruturas da sociedade angolana mostravam-se paralisadas, numa enorme confusão, e a oposição angolana ao Estado Novo também mostrava incapacidade, tal como as autoridades, para combater a revolta, naquele exato período predominavam as milícias e ninguém as contestava – enfim, oposicionistas e nacionalistas brancos nada mais sabiam fazer do que atividades desgarradas. Terá sido a única exceção a recém-fundada Frente Unida Angolana “pela corrente nacionalista africana que se tinha afirmado politicamente nos últimos anos da década de 50 no distrito de Benguela”. Em 5 de abril, a Frente publicou o manifesto “À população de Angola”, apresentava-se como um movimento cívico, sem distinção de raças, tendo em vista a construção de uma sociedade multirracial. Houve igualmente uma reação das associações comerciais, apelando a Lisboa meios militares para fazer frente à gravidade do momento, sugeria mesmo o estudo imediato da transferência de todo o governo da nação para Angola. O contra-almirante Lopes Alves chega a Luanda a 24 de março, é um homem com pouca saúde, fala diariamente com Adriano Moreira, então subsecretário da administração ultramarina, não esconde a sua inquietação com a situação que se vive no Norte de Angola, pede tropas, armas e polícia. O seu ponto de vista sobre a génese da sublevação diverge da dos militares, estes diziam que todos os acontecimentos resultavam dos abusos nas relações de trabalho, especialmente no problema do algodão, Lopes Alves atribui mais importância à agitação lançada do exterior. E inopinadamente regressa a Lisboa a 2 de abril. O texto da exposição de associações económicas chegará ao conhecimento de Salazar. Este continua sem reagir.

Quanto às organizações políticas africanas, temos as declarações do MPLA e da UPA. Viriato da Cruz, figura preponderante do MPLA, revela que o partido se tinha até então abstido de qualquer ato de violência, mas esta linha de pensamento irá evoluir rapidamente com os atos subversivos. Mário Pinto de Andrade, então presidente do MPLA, revela numa conferência em Casablanca, em fins de abril, que o partido decidira passar à ação direta, estavam ao lado do povo em armas. O autor escreve: “Com a sua direção em Conacri, mal implantado no Congo ex-Belga, dizimado pela repressão policial em Luanda e áreas limítrofes, o MPLA tinha de facto grandes dificuldades em afirmar a sua ação no curso da rebelião desencadeada pela UPA no Norte de Angola. Em compensação, procurava ganhar apoios no exterior”. E dá-nos igualmente o quadro de ação da UPA, e de outras organizações de base étnica bacongo, o MDIA e a NGWIZAKO, com programas nada coincidentes, até porque a NGWIZAKO vinha lutando pela eleição do Rei do Congo. E há a questão do enclave de Cabinda, tinha à frente uma organização clandestina que se apresentava publicamente como um movimento de libertação do enclave.

O autor trata as pressões externas no palco da ONU, onde a nova administração de Kennedy em nada se revelava favorável à política do Estado Novo, montou-se em Portugal uma campanha antiamericana, o regime procurava apoios, encontrava poucos e de fidelidade duvidosa, intervinha mesmo no continente africano, só recebera atenção na África Austral, Salazar não tinha ilusões de que não se podia apresentar como apoiante do apartheid de Pretória; temos o quadro interno, naturalmente complexo, mas o regime não se sente ameaçado. É nesta atmosfera que surge a Abrilada, uma última tentativa nascida na cúpula militar do regime para destituir o ditador e mudar o curso dos acontecimentos.

As chefias militares cedo mostraram que não queriam só debater os programas de armamento e da resposta mais conveniente às sublevações angolanas, queriam debater as questões de política geral. O próprio ministro do Exército assinalou três questões críticas de índole política geral: a atmosfera internacional pouco favorável a Portugal, a existência da censura, criadora de mal-estar, a existência de pessoas ligadas à política do governo simultaneamente ligadas a empresas que afetavam os interesses económicos da Nação. Trata-se de um descontentamento em surdina que apanha transversalmente a cúspide militar, formam-se inevitavelmente grupos, um é polarizado pelo antigo presidente Craveiro Lopes, outro por Santos Costa, um indefetível de Salazar, as fações vão entrar em confronto. O general Botelho Moniz, um ministro que começara a sua carreira apoiando sem tergiversações Salazar revela-se crítico, pretende manter boas relações com os Estados Unidos, sucedem-se os textos, e para 27 de março marca-se o início da fase decisiva da Abrilada, ensaia-se que Américo Thomaz tome partido e demita Salazar, o autor esmiúça com rigor o golpe e o contragolpe, inevitavelmente Salazar ganha e os contestatários são afastados.

Em jeito de conclusão, o historiador recapitula os acontecimentos que levaram às diferentes sublevações, recorda o passado da história de Angola sempre marcado pela violência, também a génese das independências africanas, a ideia de defesa do Império como imperativo nacional, a fissura entre as Forças Armadas quanto à resposta adequada quanto ao despoletar dos nacionalismos africanos e lembra-nos como todas as insurreições em África irão marcar uma nova época de um continente cada vez mais liberto do colonialismo do século XIX.

De leitura obrigatória.


Holden Roberto
General Botelho Moniz
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24740: Notas de leitura (1623): "Os Desastres da Guerra, Portugal e as Revoltas em Angola (1961: Janeiro a Abril)", por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2021 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido... 

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Se tens galinha pedrês, não a  mates nem a dês

por Luís Graça

Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho. 

Ou que, de saco à cabeça, ia levar o grão de centeio ou de milho à azenha, lá longe, no Porto Antigo onde abicavam os barcos rabelos, depois de vencidos os temidos cachões do rio Douro, até então indomável.

Seguia, a pé, pela linha férrea do Douro, feita senhora, a Leonora, mas não segura... Com o comboio a apitar ao longe, e a avisar que já tinha chegad0 ao Juncal. E que a barragem do Carrapatelo haveria de trazer um dia a luz, a civilização, o emprego, a paz, a ordem e o progresso.

E que abria as pernas, depois, ao seu homem e senhor, seu amo, no meio do campo de milho.

Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística,  desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade. 

"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...

Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar.  E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira.  E "na casa deste home, quem na trabalha na come"- 

E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial,  e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")... 

E mais a costeleta de Adão e as criadas de lavoura que eram violadas em cima da meda da palha de centeio. Enquanto os bois gemiam e babavam-se, sob a canga,  e estrumavam a terra,  as rodas do carro chiavam, e o varapau voltejava no adro da romaria, sob o efeito  estonteante do vinho e dos foguetes,  e o senhor abade praguejava: "freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las". 

Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres,  que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor"  e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão  à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho  na eira e  não em lençóis alvos e castos e bentos de linho. 

"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.

E ela levava, com a sua licença, a vaca, ao boi do povo para a emprenhar, E, com a sua licença, o porco à feira para, com sorte, no regresso trazer uns vestidinhos de chita, por meia dúzia de reis, para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa,  quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas,  de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.

E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.

E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".

Quinta de Candoz,
setembro de 2008, 
versão revista em 5/10/2023
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

Guiné 61/74 - P24751: Facebook...ando (41): António Medina, um bravo nativo da ilha de Santo Antão, que foi fur mil na CART 527 (1963/65), trabalhou no BNU em Bissau (1967/74) e emigrou para os EUA, em 1980, fazendo hoje parte da grande diáspora lusófona - Parte V: Da ilha de Pecixe à ilha do Fogo...


Cabo Verde >Ilha do Fogo > São Filipe > s/d > Foto do Facebook do António Medina | 26 de Maio de 2014.  [Presumimos que seja o autor o rapaz que está num grupo de amigas, e à volta de uma moto que pode ter sido comprada... com o "patacão da guerra"; de qualquer modo, esta foto, dos anos 60,  contrasta com as fotos a seguir, de raparigas (manjacas?) que vão participar na festa do fanado na ilha de Pecixe]

Foto (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

  



Guiné > Ilha de Pecixe > Foz do Rio Cacheu >  CART 527 (1963/65) :  Raparigas prontas para a festa do fanado (circuncisão) | Página do Facebook do António Medina > 4 de Dezembro de 2013  [ Estamos em crer que as raparigas são da etnia manjaca]

Fotos (e legenda): © António Medina (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Continuação da seleção de fotos do álbum do nosso camarada da diáspora lusófona, António Medina (estas fotos correm o risco de desaparecerem, um dia, com o encerramento da página do Facebook do autor) (*):

(i) ex-fur mil at inf, CART 527 (Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió 1963/65), de resto o único representante desta subunidade, na Tabanca Grande;

(ii) a CART 527 estava adiada ao BCAÇ 507 (Bula, 1963/65), que era comandado pelo ten cor inf Hélio Felgas;

(iii) de seu nome completo, António Cândido da Silva Medina, nasceu em 26 de setembro de 1939, na ilha de Santo Antão, Cabo Verde (completou há dias 84 anos);

(iv) estudou no liceu Gil Eanes (Mindelo, São Vicente) (o único liceu então existente nas ilhas);

(v) depois da passar à disponibilidade, viveu em Bissau, e entre 1967 e 1974, até à independência, sendo funcionário do BNU (Banco Nacional Ultramarino);

(vi) regressou a Portugal, onde ainda trabalhou no BNU; mas vive desde 1980 nos EUA, em Medford, no estado de Massachusetts, onde também foi bancário;

(vii) tem página no Facebook (última postagem: 30 de outubro de 2022);

(viio) ver foto acima, aos 83 anos, tirada em (ou por volta de) 30/10/2022, na sua casa nos States.

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24750: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (12): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo II - Actividades no TO da Guiné - Chegada ao Olossato e sobreposição com a CCAÇ 2402



"A MINHA IDA À GUERRA"

12 - HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: CAPÍTULO II - ACTIVIDADES NO TO DA GUINÉ

João Moreira


Graduados do 4.º Grupo de Combate - Furriéis: Justino, Ramalho e Moreira, e Alferes Silva.
Senhor Harfouche, que era libanês e chefe de posto do Olossato.

(contunua)
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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24727: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (11): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Capítulo I - Alterações na Composição da CCAV 2721

Guiné 61/74 - P24749: Ataques ou flagelações com foguetões 122 mm: testemunhos (3): A guerra vista do CAOP1 (Canchungo/Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74) (António Graça de Abreu)


Lisboa > Museu Militar > O foguetão 122 mm ou a arma especial Grad (ou ainda "jacto do povo", na gíria do PAIGC). Capturada em Cufar, em 1/1/1973.

Era uma arma de artilharia, de bater zona e não de tiro de precisão, com alcance máximo de 11.700 metros para 40º de elevação. Segundo um relatório do PAIGC a distância maior a que se efectuou tiro, teria sido contra Bolama, em 4 de Novembro de 1969, a 9.800 metros. 

O foguete dispunha de um perno (assinalado a vermelho) que, percorrendo o entalhe em espiral existente no tubo, imprimia uma rotação de baixa velocidade a fim de estabilizar a vôo. As alhetas só se abriam depois do foguete sair do tubo.  

Fotos (e legenda): © Nuno Rubim (2007). 
Todos os direitos reservados. [Edição e kegendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Abreu, António Graça de - "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura". Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007, pp. 104-105. (Capa do livro, reproduzida com a devida vénia).


BI militar, emitido em Teixeira Pinto, 
6 de agosto de 1972.



1. Do nosso camarada e amigo, António Graça de Abreu publica-se uma série de excertos do seu Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp), com o descritor "foguetões 122 mm" (*),

Selecionámos as passagens em que há referências a ataques ou flagelações a aquartelamentos e destacamentos com foguetões 122 mm, enquanto ele esteve no CAOP1 (Canchungo ou Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74).

Tudo somado, ao fim de quase dois anos de comissão foram muitas centenas de rebentamentos, vistos ou ouvidos,  com especial especial destaque para os que caíram no sul, na região de Tombali... 

O António  esteve em Cufar, no CAOP1, de junho de 1973 a abril de 1974.  Mais uma vez, com a devida vénia ao nosso camarada que nos autorizou a utilização do seu trabalho...

Tudo indica que junto à fronteira o PAIGC, no final da guerra (1973/74 (e contra aquartelamentos como Bedanda e Gadamael),  já utilizava viaturas com o sistema de  lançamento múltiplo (ou multitubo) de foguetes 122 mm: nas flagelações ou ataques, já não se limitavam a lançar dois ou três foguetes, mas dezenas, e durante uma ou duas horas. A CECA faz referência ao sistema de lançamento múltiplo de foguetes BX-10, mas não lhe chama Grad ou BM-21 Grad. (Há uma grande confusão com as várias versões deste sistema e as suas siglas...)
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Canchungo, 7 de Julho de 1972

(...) Recebi carta da minha mãe. Diz-me que foi ao Porto e que, por amor de mim, colocou um grande ramo de flores no altar de Santo Ildefonso, na igreja da praça da Batalha. Que o santo me proteja!

Mas não me parece viver em situação de grande perigo. Tenho muitos privilégios, não sou propriamente um operacional, não saio para o mato de G 3 em punho em busca do IN. Há apenas o problema dos bombardeamentos, flagelações ou de uma emboscada na estrada.

Quase há um ano que Canchungo não é atacada pelo PAIGC. A última vez, a 3 de Agosto de 1971, foi com foguetões 122 disparados a onze quilómetros de distância. 

Durante quatro minutos sobrevoaram o quartel, sibilando no ar e foram rebentar lá longe, na bolanha, nos arrozais a sul. Foi só susto, não houve mortos nem feridos, apenas um capitão, ao fugir, caiu numa vala e partiu uma perna.
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(...) Canchungo, 22 de Agosto de 1972

Existe um CAOP 2. Fica em Nova Lamego, terra dos homens de etnia fula, lá no leste, não muito longe da fronteira. É uma zona menos pacífica do que a nossa. Foram agora flagelados com foguetões 122

Não sei ainda o que são, nem o estrago que provocam. A semana passada, nos arredores de Nova Lamego, uma mina anti-carro fez ir pelos ares um camião Berliet, tendo provocado 19 feridos, alguns graves. Nova Lamego nem é do pior. 

Aqui a nordeste, o aquartelamento de Olossato foi bombardeado a semana passada durante hora e meia. Nós, em Canchungo, fomos atacados (?) durante um minuto. O ataque em Olossato veio de todas as direcções com um potencial de fogo de arrepiar. No entanto, não se deve abrir muito a boca nesta guerra, as nossas tropas só tiveram um ferido grave e três feridos ligeiros. Os abrigos e as valas para alguma coisa servem.
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(...) Canchungo, 27 de Janeiro de 1973

Mansoa é o nosso destino. Entre as três possibilidades, Bula, Bissorã e Mansoa, não sei qual é a melhor, é dos tais casos em que “venha o diabo e escolha.”

Pouco sei sobre Mansoa, o meu baluarte nos próximos catorze meses. Mas é a maior das três que nomeei atrás e tem uma vantagem, a sua proximidade de Bissau - uns 60 quilómetros, -   e o facto de existir uma estrada asfaltada onde se circula normalmente sem escolta. Para oeste, entre Mansoa e Bissau, o IN não actua. No entanto, a vila é menos pacífica do que Teixeira Pinto. Para norte, leste e sul já os guerrilheiros se movimentam entre a malha dos aquartelamentos portugueses e encontram-se bases IN não muito distantes. Não vou falar mais da sagrada e intocável Caboiana, agora vai ser o Morés, o Queré, o Choquemone, o Oio.

Mansoa tem a grande desvantagem de “embrulhar” em média uma vez por mês. Tanto quanto sei, fazem pontaria para o quartel e disparam os foguetões 122, os canhões sem recuo, a uma distância que varia entre os quatro e os dez quilómetros. 

Eles são maus artilheiros, não costumam acertar na tropa e pelo que tenho lido nos relatórios diários que historiam esta guerra, quem normalmente paga as favas nas flagelações a Mansoa é a população negra das tabancas. A tropa tem abrigos, os disparos IN acertam com mais facilidade nas casas da vila do que no quartel.
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(...) Mansoa, 12 de Março de 1973

Bissá, um pequeno aquartelamento doze quilómetros a sul de Mansoa, foi atacado sábado passado às nove e meia da noite, estava eu a beber um café na esplanada do Simões, o restaurante. Foi um ataque a sério que se prolongou por quarenta e cinco minutos, apesar da distância ouviam-se os disparos e rebentamentos com muita nitidez. Os dois obuses de Mansoa ajudaram ao barulho e dispararam cinquenta e sete granadas de canhão sobre as zonas prováveis de retirada do IN. Só hoje soube os números.

Resultado, o IN destruiu e queimou oitenta e sete tabancas, houve três mortos entre a população, muitos feridos e gente intoxicada. As NT de Bissá não sofreram nada, além do desgaste psicológico que uma flagelação tão dura como esta costuma provocar.

Mantive-me tranquilo, mas se em vez de Bissá a ser atacada tivesse sido Mansoa diria, por certo, adeus à pacatez e à calma. Estar dentro de um quartel cercado de arame farpado e experimentar as sensações fortes de ouvir os foguetões, as granadas de morteiro e canhão sem recuo a vir em nossa direcção ou a cair não muito longe de nós, faz com que os rebentamentos comecem a ficar cá dentro. 

Agora entendo melhor porque é que, depois do regresso a Portugal, um ex-combatente ouve um foguete rebentar na romaria da aldeia e corre, tremebundo, a esconder-se no primeiro buraco que lhe aparece.
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(...)  Mansoa, 19 de Março de 1973

Foi a vez de Infandre “embrulhar”, um aquartelamento com quarenta militares e cerca de mil habitantes, dez quilómetros a norte daqui. Levaram com foguetões, canhão sem recuo, RPG, morteiros, armas automáticas, foram atacados com um enorme potencial de fogo. No destacamento, não houve feridos, apenas os usuais estragos materiais. A pobre da população é que pagou as favas.

Em Infandre, como em muitos outros lugares da Guiné, os negros tanto fazem o nosso jogo como apoiam o PAIGC. Mas a população é sempre infeliz. Nas flagelações à distância, os guerrilheiros não acertam na tropa portuguesa e acabam por provocar mortos e feridos nos habitantes negros que tantas vezes até não lhes são adversos. É a guerra impiedosa, cruel.
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(...) Mansoa, 6 de Maio de 1973

Os militares do quartel de Bula, ainda na zona se acção do CAOP 1, estão a passar por dificuldades. A vila fica mais perto de Bissau do que de Mansoa, a norte, e é um lugar estrategicamente importante. Um grupo grande de guerrilheiros anda por lá a fazer estragos. Numa emboscada próxima da povoação, as NT tiveram sete mortos, quatro soldados brancos e três negros e bem podem agradecer a Deus. Eram só trinta e cinco soldados portugueses contra duzentos guerrilheiros, não foram todos dizimados por acaso.

Em seguida, Bula foi atacada com foguetões, sem consequências. O batalhão da terra é constituído por “periquitos” acabados de chegar de Portugal, inexperientes e medrosos. Os guerrilheiros sabem que eles são novos na Guiné e vá de atacar, atacar, atacar.

O meu coronel [paraquedista, Rafael Durão, comandante do CAOP1] foi hoje de urgência para Bula, às cinco da manhã, orientar as operações de contra-guerrilha, dar força aos militares de lá. Seguiu sozinho de jipe, por companhia apenas a sua espingarda Kalashnikov, em sessenta quilómetros de estrada. 

Se o itinerário não é muito perigoso porque atravessa zonas controladas pelas NT, não posso deixar de reconhecer a coragem deste homem, já com mais de dois anos de comissão na Guiné. Tenho tido os meus problemas com ele, sobretudo devido à minha incompetência como pequeno oficial do exército, mas reconheço-lhe uma enorme valentia e excepcionais qualidades de comando.

Ao meio-dia e meia hora, estava de regresso a Mansoa, de novo sozinho no jipe, depois das reuniões com os oficiais de Bula. Voltou célere porque para hoje estava marcado um almoço de despedida em sua honra, oferecido pelos oficiais e sargentos do CAOP1. Não me admira que amanhã parta outra vez para Bula, ou para qualquer outro lugar da Guiné onde se justifique a sua presença, o seu comando de operações. (...)
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Sistema ou rampa de lançamento monotubo de foguetões 122 mm. Arma, de origem soviética, capturada  em 1 de janeiro de 1973 em operação a partir de Cufar.  Tinha sido usada no ataque a Cufar a 23 dezembro de 1972, atingiu a pista de aviação, sem consequèncias de maior. Cortesia da página da CCAÇ 4740  (Cufar, 1972/74 > Fotografias de sempre. 


(...) Cufar, 25 de Junho de 1973

Não estou encantado com o lugar que vim encontrar, mas Cufar é melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações.

Ponto Um: Estou no sul da Guiné, rios, canais, bolanhas, florestas. Até Dezembro de 1972, isto era quase tudo território do PAIGC. Havia os aquartelamentos de Catió, Cufar e Bedanda bem defendidos onde a tropa portuguesa não punha muito o nariz de fora. 

Em Abril de 1972 estiveram por aqui observadores do Comité de Descolonização da ONU para conhecer as realidades das zonas libertadas pelos guerrilheiros. Vieram de Conacry, entraram pela zona de Guileje, chegaram até perto de Cufar, sempre a pé, abrigados pelas florestas. (...)

Há três meses, em Março [de 1973], Cufar foi atacada com uma dezena de foguetões 122. Só um caiu dentro do nosso arame farpado e, por incrível que pareça, bateu numa árvore, tombou para uma vala onde estavam quatro soldados e não rebentou. Só vendo se acredita, e eu vi. Os soldados penduraram na árvore o resto da fuselagem do foguetão, como um autêntico troféu de guerra. O local fica a trezentos metros da minha secretaria e esta tarde voltei lá para confirmar o que os meus olhos tinham visto, claramente visto. (...) 
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Cufar, 2 de Julho de 1973

Catió “embrulhou” ontem às seis e meia da tarde. Seis foguetões, como de costume caíram fora do quartel. Em Cufar, ouvem-se sempre os rebentamentos mas a maioria do pessoal está tão habituado que já nem estranha. Hoje, às seis da manhã, acordei com mais pum, catrapum, pum, pum, tão diluídos na distância que voltei a adormecer. Era Gadamael.

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(...) Cufar, 20 de Julho de 1973

 A guerra acalmou, sossegou na nossa zona. Anda tudo admirado, mas isto tem uma explicação, é por causa da época das chuvas que conhece agora o seu auge. Chove todos os dias, as bolanhas, o mato enchem-se de água, é difícil caminhar quilómetros e quilómetros por trilhos na floresta, carregando às costas foguetões, morteiros, granadas, etc., para flagelar um aquartelamento. Num ataque em forma, o terreno precisa de estar firme para um bom apoio e eficiência das armas mais pesadas. No período das chuvas, a terra está mole, húmida, empapada em água. As saídas das granadas de morteiro, por exemplo, fazem com que o tubo de morteiro recue e se enterre no solo. Com as chuvas, os guerrilheiros aproveitam a menor actividade das NT para se reabastecerem, construir tabancas, trabalhar nos arrozais.

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(...) Cufar, 26 de Setembro de 1973


 O PAIGC declarou ontem  a independência. Por aqui nada mudou a não ser que agora, oficialmente, somos nós portugueses quem está a ocupar a pátria deles.

Temos um novo tenente-coronel no CAOP 1, com apenas cinco dias de Guiné. Andou pelo Estado-Maior e fez comissões em Angola e Moçambique, sempre nas delícias do ar condicionado. Está a estranhar as realidades deste abençoado lugar. Ontem até chamou Cafur a Cufar! 

No dia em que chegou, Bedanda esteve aí a “embrulhar” durante uma hora, com foguetões 122, mais de trinta, sem consequências. Meio assustado, o tenente-coronel perguntou-me: “Isto é sempre assim?” Eu respondi-lhe: “Não, meu tenente-coronel, isto costuma ser muito pior!”
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(...) Cufar, 8 de Novembro de 1973

 Os dias fabulosos, as histórias que não conto, os whiskies que bebemos, às vezes a morte, espantalho de sangue agitado ao vento diante da menina dos olhos.

De madrugada, Gadamael, chão com cadáveres, juncado de medos. Quarenta e seis foguetões 122 disparados pelos guerrilheiros do PAIGC sobre o aquartelamento, aqui a sul, na fronteira. Apenas me apercebi de rebentamentos distantes, no sono do resto da noite. É normal, já nem estranho. Mas na mente de cada um de nós, a preocupação cresce. Quarenta e seis foguetões sobre Cufar, como seria?

As bebedeiras, cerveja, vinho, whisky, o álcool a circular no sangue temeroso. Os homens tontos de mágoa, solidão e medo.

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(...) Cufar, 11 de Novembro de 1973

 Outro dia duríssimo para Gadamael. Às seis da manhã, eu dormia mas acordei sonolento com os muitos rebentamentos distantes. Foram duas horas de flagelação com quarenta e dois foguetões 122. Tiveram dois mortos e muitos feridos.

Quando chegou a Cufar, o meu tenente-coronel “periquito” vinha cheio de ideias para pôr num brinquinho o que resta do CAOP 1. Começa a baixar a cabeça, a entrar na realidade. Ficou alterado com os ataques a Gadamael, hoje à noite apanhou uma bebedeira monumental. As pessoas, quer as do pequeno, quer as do grande mando, quando têm vinho dentro ficam claras como água.

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Guiné >Região de Tombali > Cufar> CAOP 1 > O António Graça de Abreu, de camuflado, à esquerda, no aeródromo de Cufar, com o alf mil Miguel Champalimaud.
 
Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comp'lementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


(...) Cufar, 14 de Novembro de 1973

Vieram os “jactos do povo”, como os guerrilheiros lhes chamam. Gostei, desta vez não apontaram aos vizinhos do lado, era connosco e, como costuma acontecer, tivemos sorte. Foram disparados oito foguetões 122 e só rebentaram três, a mais de quinhentos metros de Cufar.

Eram oito da noite, eu estava no gabinete do capitão a jogar xadrez com o Eiriz, o alferes das transmissões, quando ouvimos o silvo de um foguetão e um primeiro rebentamento. Saltámos rapidamente para a vala situada ao lado do edifício onde já havia gente abrigada, caímos uns por cima dos outros e ficámos quietinhos, à espera. Uns dez minutos depois, porque não havia mais foguetões, saímos da vala, não muito assustados. Foi um ataque pequeno, daqueles que só servem para criar insegurança e medo.

O médico, o Bastos, ficou por baixo de uma molhada de alferes e saiu da vala zangadíssimo, agastado com o Miguel Champalimaud (sobrinho do António Champalimaud, o “tio Patinhas” português). O rapaz caíra-lhe em cima e, com os foguetões a rebentar, o Miguel peidara-se, cagara-se como um rei por cima da cabeça do Bastos. Uma cena de antologia digna do Chaplin, do “Charlot nas Trincheiras da Guiné”. (...)

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(...) Cufar, 21 de Novembro de 1973

Guerra todos os dias. Ontem às seis de tarde, hoje às seis da tarde. Ontem foi Cobumba, estávamos a começar a jantar e pum, catrapum, pum, pum. Alguns de nós saltaram das mesas e começaram a correr para as valas. Cobumba fica aqui mesmo ao lado e como têm lá uma nova companhia de “periquitos”, os guerrilheiros trataram de lhes fazer condigna recepção, com foguetões, morteiros, canhão sem recuo, tudo a disparar numa cadência de fogo impressionante. O pessoal de Cobumba teve sorte, estão lá estacionados quatrocentos homens – a companhia velha e os “periquitos” que os vêm substituir – e não sofreram uma beliscadura.

Hoje foi a vez de Gadamael, já não era atacada há dois dias e meio! Embora muito mais distante do que Cobumba, ouviam-se os rebentamentos com extrema nitidez. Foram só vinte minutos de fogo, também a um ritmo capaz de assustar o mais valente, as granadas rebentavam de dez em dez segundos. Não sei se houve consequências para as NT em Gadamael, mas a flagelação foi tremendamente feia. O ataque a Cufar dia 13 passado, comparado com estes dois que ouvi ontem foi uma brincadeira.


Em resumo, a nossa tropa anda acagaçada. O PAIGC movimenta-se, põe, dispõe e manda lembranças. Começamos a ver a guerra com os olhos cada vez mais tortos. A aviação actua, os Fiats fartam-se de bombardear aqui em redor, numa cintura aí de quarenta quilómetros. Volta e meia ouvimos o zumbido dos aviões a jacto e os rebentamentos secos das bombas a cair. (...)
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(...) Cufar, 4 de Dezembro de 1973


Mais foguetões 122 e de novo para Cufar, direccionados para o interior do nosso aquartelamento. O Chugué, há dois dias levou com vinte e cinco foguetões, sem consequências, Gadamael tem sido tão flagelada, com consequências, que já perdemos a conta ao número dos foguetões. Nós, mais humildes, fomos brindados com dez projécteis explosivos disparados durante quinze minutos.

Eram nove e um quarto da noite, eu estava na varanda do meu quarto a ouvir a BBC e senti o silvo, os rebentamentos próximos. Logo de seguida soaram as rajadas das nossas metralhadoras. Os foguetões IN caíram todos fora do perímetro de Cufar, felizmente. É o costume, são disparados de muito longe, a onze quilómetros de distância, os guerrilheiros têm má pontaria, os foguetões são difíceis de orientar, ou desorientam-se no ar, e por isso não costumam acertar. Mas assustam, assustam sempre.

Vim ter com os meus soldados. Havia uma certa excitação, ainda para cúmulo choveu esta tarde. As valas estavam cheias de água e lama, e uma vez mais havia soldados que saíam das valas cobertos de lama, borrados de medo.

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(...) Cufar, 9 de Dezembro de 1973

 Esta noite fui obrigado a ir dormir a cama alheia. Ao chegar ao quarto, deparei com uma majestosa invasão de formigas gigantes baga-baga, aquelas que ostentam umas tenazes afiadas e mordem como santolas. Haviam entrado por duas frinchas na parede grossa e começavam a fabricar o seu formigueiro exactamente sob o vão do colchão da minha cama. Não as contei, mas seriam cinco a dez mil formigas laboriosas e trabalhadoras que tinham tido o bom gosto de habitar o espaço onde durmo. Era tarde, quase meia-noite, estivera a jogar xadrez, limpei cinco alferes, começo a jogar bem. Depois, não havia insecticida à mão e, à paulada, não era fácil correr com aqueles milhares de monstros pequeninos. Por isso, peguei nos meus lençóis, na almofada e resolvi ir pedir asilo ao meu amigo alferes Neto, da 4740, que habita um quarto grande, com duas camas.

Às cinco menos dez da manhã, fomos acordados pelos pum, catrapum, pum, pum. Era Cobumba, os nossos vizinhos mais próximos. Mais um ataque filho da puta! Estava tudo a dormir e durante meia hora a cadência de fogo era impressionante. Se fosse connosco, lá teria eu de fugir em cuecas para a vala. Cobumba levou o tratamento do costume, foguetões, canhão sem recuo, RPG e morteiros. Também como é habitual, nem uma beliscadura nos duzentos homens que por lá padecem.

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Guiné >Região de Tombali > Cufar> CAOP 1 > O António Graça de Abreu, no aeródromo  de Cufar, em dezembro de 1973, posando junto a um heli, Alouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades dos arame farpado... Dezete meses depois do início da comissão, o António recebia finalmente o tão desejado quanto temido baptismo de fogo. Recorde-se que o António Graça de Abreu foi alf mil, CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74), e trabalhou diretamente com o cor prqt Rafael Durão, seu comandante (e em relação ao qual não esconde a sua admiração pelas suas qualidades como militar).

Foto (e legenda): © António Graça de Abreu (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem comp'lementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


(...) Cufar, 21 de Janeiro de 1974 

Cumpriu-se um ano sobre o assassinato do Amílcar Cabral e o PAIGC comemorou a data. Aqui na zona atacaram os aquartelamentos de Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué, Catió e… Cufar. 

Eram dez da noite, sozinho no quarto, lia umas “Vidas Mundiais” antigas e ouvia uma cassete com o Concerto de Aranjuez, de Joaquin Rodrigo. Por cima da guitarra e dos violinos espanhóis gravei outra música, outro concerto, uma parte do ataque, rebentamentos, tiros, rajadas, mais rebentamentos, meti na fita a minha reacção onde se nota algum nervosismo e se ouvem demasiados palavrões. Assim:
(…)

Boum, boum, pum, catrapum, pum.
-Aí está, um ataque!... Caralho! Um ataque, foda-se!

Tá, tá, tá, tá, tá.
- Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...

Boum, boum…
- Tumba, um foguetão, caralho!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.

- Dá mais Manel! Estamos a levar no coco, estamos a “embrulhar”, caralho!

Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
- Espera aí um bocadinho!

Boum…
- Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
- Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!... Espera aí um bocadinho, João…

Boum, boum…
- Estou-me a vestir, é preciso é calma!

Boum, pum, pum…

- Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.

Boum, boum…
- Estamos a “embrulhar”, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…

Boum, boum…
- Tumba, tumba, tumba!...

Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...

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(...) Cufar, 22 de Fevereiro de 1974

Regressei [de Bissau,] no Nordatlas, na viagem certinha até cá abaixo. Tudo calmo em Cufar. No nordeste da Guiné, em Copá junto à fronteira, é que tudo vai mal. Mal para as NT, bem para o IN. Ouvi falar num ataque com cem foguetões, valha-lhes Deus! Começa a ser insustentável aguentar Copá.

Em Portugal as coisas também aquecem, com manifestações contra a carestia de vida organizadas pelos maoístas do MRPP. Houve pancadaria da grossa, três polícias feridos, um deles levou uma pedrada na cabeça. O povo não anda bom.

Em Bissau rebentou uma bomba no quartel-general. E que dizer do novo livro de António de Spínola “Portugal e o Futuro”? O antigo Caco Baldé, meu ex-comandante-em-chefe, propõe soluções federalistas para a resolução dos conflitos do Ultramar. O livro vai ter sucesso entre os liberais, o grupo do Balsemão e do “Expresso, e também entre alguma da Oposição. Abençoadamente, agitará os espíritos de muitos portugueses.

O Marcello Caetano começa a ficar exasperado. No essencial, o mestre de Direito limitou-se a dar continuidade à política de Salazar e não sabe, ou esqueceu-se, como diz o Bob Dylan que “the times, they are a’changin”. O general Spínola aponta caminhos enviesados, é verdade, mas indica possíveis saídas para o pântano fétido em que vivemos.

Que futuro para Portugal?
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(...) Cufar, 28 de Fevereiro de 1974

O nosso 1.º sargento Afonso informa-me que o tal alferes Saldanha nomeado para me render, já está em Bissau mas não virá para Cufar, foi colocado na secretaria do Batalhão de Comandos, no Cumeré, logo ali às portas da capital. Quer isto dizer que já estou substituído na província, o que vai acelerar a minha rendição definitiva. A partir de Bissau, o 1.º Afonso é impecável, interessa-se pela nossa vida, conhece todas as capelinhas de Bissau, trata dos nossos assuntos com extremo cuidado e rigor. É um diamante no CAOP1.

Mais uma história de guerra. D. Cecília Supico Pinto, a “generala Cilinha” do Movimento Nacional Feminino anda de visita à Guiné, a dar coragem e conforto moral aos briosos militares que defendem a integridade do império. 

No seu peregrinar por este sagrado solo pátrio desembarcou segunda-feira passada em Cacine, de helicóptero, às nove da manhã. Às onze o aquartelamento foi atacado com trinta e seis foguetões, uma flagelação que se prolongou por hora e meia. Só se registaram alguns estragos em tabancas, mas dizem-me que a Cilinha mostrou alguma coragem, aguentou-se muito bem, aninhada como toda a gente no fundo de uma vala.
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(...) Cufar, 12 de Março de 1974

Os guerrilheiros continuam a marcar pontos. Caboxanque tem sido massacrada. Ontem, flagelação às quatro e vinte da madrugada. Acordei sobressaltado. Caboxanque fica mesmo aqui em frente, a oito quilómetros em linha recta e, ao ouvirem-se os primeiros rebentamentos, não sabemos se é com os outros ou connosco. Estes nossos vizinhos estão a ser atacados todos os dias.

Bedanda, ontem, também esteve sob o fogo dos foguetões durante duas horas. Tiveram dois feridos, um deles gravíssimo, com um estilhaço na cabeça. Noite, escura desceram o rio até Cufar, depois, a cena habitual, iluminar a pista, esperar pelo Nordatlas, evacuar o rapaz para Bissau.

Não estamos livres, um destes dias de sermos também atacados. Todos pensamos nisso, todos pensamos que da próxima vez pode ser qualquer um de nós a levar com um estilhaço, a ser desfeito por um projéctil qualquer.

Ontem também tivemos um problema grave mas de outra natureza, um enorme incêndio. Se soprasse mais vento ardiam as tabancas todas dos negros. As casas são construídas com estacas e adobe, têm telhados de colmo, não chove desde Dezembro, está tudo ressequido e em três tempos o fogo avançou de tabanca em tabanca. Arderam seis.

Parece que o incêndio começou com o rebentamento de um fogareiro a petróleo. Teria sido fácil controlá-lo se não se tivesse pegado à tabanca do lado onde o pessoal das Fox, as viaturas blindadas, guarda o seu material e tem uma espécie de paiol. Ora com as tabancas a arder e com muitas granadas dentro de uma delas, foi um festival de rebentamentos e estilhaços projectados pelo ar. A maioria da população negra fugiu para longe, mesmo assim houve imensa sorte porque ninguém foi atingido. Mais desgraças para os pobres negros que ficaram sem casa.

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(...) Cufar, 3 de Abril de 1974 

A guerra está feia. Bedanda embrulhou durante todo o dia, um ataque tremendo, doze horas consecutivas de fogo. A festa só acabou à noite com uma espécie de cerco à povoação levado a cabo pelos homens do PAIGC.

Em Cufar, tão próximo, além de distinguirmos nitidamente as rajadas de metralhadora de mistura com os rebentamentos dos RPG, foguetões e canhão, à noite viam-se as balas tracejantes e as explosões no ar. 

Uma novidade, os guerrilheiros utilizaram viaturas blindadas na flagelação a Bedanda. Existe uma estrada que vem da Guiné-Conacry, passa junto a Guileje – abandonada pela tropa portuguesa, – entra pela região do Cantanhez e termina em Bedanda. O IN está a utilizar esse percurso para deslocar camiões carregados com todo o tipo de armamento, em seguida é só despejar sobre os aquartelamentos portugueses mais expostos e fáceis de alcançar, como Chugué, Caboxanque, Cobumba, Bedanda, Cadique e Jemberém.

Bedanda é uma povoação grande, a maior do sul da Guiné depois de Catió. Terá uns cinco mil habitantes e ontem já se falava em abandonar o aquartelamento. A população africana saiu da vila, ficando por próximo.

Bedanda levou com mais de sessenta foguetões e centenas e centenas de granadas de RPG, morteiro e canhão sem recuo. Foi medonho, há muita coisa destruída, mas tiveram sorte, contam-se apenas dois feridos, um furriel e um negro que levou um tiro nas costas. A tropa passou mais de doze horas metida nas valas.

Espera-se novo ataque a Bedanda. As NT já foram remuniciadas e há promessa de se enviarem mais militares para defender a terra. Os guerrilheiros também devem ter ido descansar e reabastecer-se.

Todas estas flagelações, apesar de serem destinadas aos vizinhos do lado, deixam marcas em todos nós. São horas, dias, meses a ouvir continuamente o atroar dos canhões da guerra. Eu ando um bocado desconexo, excitado, “apanhado”. Quase não tenho dormido, são as sensações finais, o cansaço, o desamor à mistura com o alvoroço do regresso a casa. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / Negrios e realces a amarelo: LG)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P24748: Manuscrito(s) (Luís Graça ) (238): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte V: um país de brandos costumes: quatro mil degredados em Angola, nos finais do séc. XIX, três em cada quatro dos colonos brancos


Porto : Museu Nacional Soares dos Reis > "O desterrado"0¥(¥, escultura, em mármore de Carrrara, datada de 1877.  Uma obra-prima da escultura portuguesa naturalista do séc. XIX. Autoria; Soares dos Reis (1847-1889). Inspirado no extenso e pungente poema de Alexandre Herculano, que conheceu bem o exílio:  "Tristezas do Desterrado" (1852):  Fonte: Imagem do domínio público,  adaptada. Cortesia da Wikimedia Commons. 



Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I e II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53 e 54")



Camilo Castelo Branco.
Cortesia de Wikipedia


1. Às voltas com a figura, intrigante e contraditória, de Zé do Telhado (1816-1875) (*), tinha que ler as "Memórias do Cárcere", do Camilo Castelo Branco (Lisboa, 1825-Vila Nova de Famalicão, 1890), obra que eu, confesso, não conhecia.

Trata-se, de resto, de um autor prolífero, compulsivo, que, para além de uma história de vida, pessoal, amorosa, familiar,  turbulenta, truculenta, infeliz, que acabou em tragédia (o suicídio, aos 65 anos), nos deixou mais de duas  centenas e meia de títulos, de quase todos os géneros, embora de qualidade literária desigual. (Declaração de interesse: não é um dos meus escritores favoritos, mas têm sido as "Memórias do Cârcere", nos últimos tempos,  uma leitura de cabeceira; a par disso, conheço meia dúzia de títulos do autor.)

É um prosador portentoso, genial, um mestre da língua, com uma enorme capacidade de efabulação, e com grandes recursos estilísticos, mesmo se algumas das suas criações são dramalhões de ""faca e alguidar, ao gosto do público burguês oitocentista, que devorava os "folhetins" camilianos  (publicados semanalmente na imprensa), com a mesma avidez com que os portugueses no pós-25 de Abril consumiam as telenovelas brasileiras.

Deixou-nos, muitas vezes a traço grosso, um retrato de uma época conturbada socialmente em que Portugal estava longe de ser o tal país de brandos costumes que, no nosso tempo de meninos e moços, nos tentaram impingir na escola e na catequese.

O livro, "Memórias do Cárecere", foi escrito em 40 dias (cerca de 500 pp.
), depois dele sair da prisão, como explica no prefácio da 2ª ediçáo (1862). É constituído por mais de uma trintena de "historietas" (o termo é dele), incluindo um esboço biográfico relativo à figura do Zé do Telhado (op. cit, vol, II, cap XXVI, pp. 83-107).

E é seguramente ele, Camilo,  quem, através do seu advogado do Porto,  Marcelino de Matos, o salva da condenação à morte (pena que ainda não tinha sido abolida...), a ele,  Zé do Telhado, e  depois, com o livro, o transforma  numa herói romântico, com um destino trágico ( tal como  a  Brasileira de Prazins e tantas outras figuras da tragicomédia camiliana, sem esquecer o Simão Botelho e a Teresa Albuquerque, protagonistas da novela, com muitos traços autobiográficos, "Amor de Perdição", escrito na prisão, em 15 dias, em 1861).

Na realidade, o Zé do Telhado (das "Memórias do Cárcere")  é também uma criatura camiliana, romântica e trágica como o  seu criador...

No ano e picos em que esteve na cadeia do Tribunal da Relação do Porto, entre outubro de 1860 e novembro de 1861 (se não erro), pelo crime de adultério, o escritor conheceu dezenas e dezenas de homens (e também mulheres), a maior parte condenados, à espera de partir para Lisboa para depois aí embarcarem para o desterro em África; homicidas, parricidas, 
infanticídas, violadores, adúlteras, ladrões, bandidos, sicários, loucos, cleptómanos, moedeiros falsos, etc.

Um pouco ao acaso, ao sabor da leitura, selecionei uns tantos excertos do livro (I volume),  com algumas destas figuras, representantes da subumanidade que apodrecia nas enxovias da cadeia do Porto. Escolhi excertos menos "sombrios", de preferência com descrições  e cenas galhofeiras,   grotescos ou picarescas, fazendo  jus sobretudo ao sarcasmo com que o autor tratava os "maus fitas" de então ( a "corja", como ele lhes chamava).

Na época já se discutia vivamente a urgência da reforma do sistema prisional e o livro do Camilo, ao denunciar as miseráveis condições de carceragem em que viviam então os reclusos (que tinham de pagar "cama, mesa e roupa lavada"!), também dá um importante contributo nesse sentido. Aires Gouveia era então o grande paladino dessa reforma, cuja efectivação há de chegar ao séc. XX, com a criação de um moderno sistema penitenciário. (**)

2. Excertos de "Memórias do Cárcere" (I Volume, 1862):

(i) José Bernardino Tavares, lavrador de Santa Maria da Feira, que roubou a Felícia ao abade, acabando por ser preso por ajustes de contas com o rival (pp. 170/178):

(…) Tinha o padre no presbitério uma espadaúda a moça, que era o feitiço de seu amo, e dos rapazes. Rentavam-lhe todos, e ela a todos voltava as costas de esquiva, e de soberba pelas peias em que trazia o coração do abade (pág. 170).

(…) José Bernardino tirou-se de seus cuidados e fez dois dedos de namoro à sécia. (pág. 170).

(…) As carícias do abade como que lhe cheiravam a simoneta, os colóquios ao lar com ele, nas noites grandes, faziam-na tosquenejar, bocejar e dormir sobre a roca (pág. 171).

(…) Aquela casta de mulheres, quando adregam de amar, criam sangue novo, espanejam-se, enramalham-se, são como leoas na selva, quando ruído do leão lhes sacode os músculos (pág. 171).

(…) – Traz o leite, Felícia!, berra o pastor daquele tinhosa ovelha, que àquela hora estava já tresmalhada e sisada no aprisco do senhor José Bernardino (pág. 171).

(…) O abade amava Felícia quando todos as potências da sua imoralidade, da sua compleição, da sua estupidez (pág. 172).

(…) Uma noite pegaram lhe fogo à casa, e por um triz que a labareda não chorrisca os torresmos do padre (pág. 174).

(…) Nenhum outro preso [como o José Bernardino] encontrei ali tão ansioso da liberdade, e ao mesmo tempo tão regalado de amiudadas visitas de valentes e atoicinhadas mocetonas de sua terra (pág. 175).

(…) Com a morte do soberano [o rei Dom Pedro V (1837-1851), que visitou duas vezes o cárcere do Tribunal da Relação do Porto, quando o Camilo lá estava, em 1860/61 ] morreram as esperanças do preso [de obter perdão ou comutação da pena]. Desvanecidas estavam elas já para mim. A palavra dos reis era sagrada quando os reis governavam; agora apenas reinavam. Um amanuense de secretaria basta a entupir os canais por onde aflui a misericórdia do rei ao povo (pág, 177).

(ii) Outra história de um abade, minhoto, mas este homicida (matou a tiro o irmão da amante), e que conseguira fugir da cadeia de Braga, antes de voltar a ser apanhado e metido no cárcere do Tribunal da Relação do Porto (pp. 221/227)

(…) O padre Manuel [dos Arcos] teria cerca de trinta e oito anos, os olhos espelhavam melhor a alma, que eu sinceramente imaginava má (pág, 221).

(...) Estava ao padre condenado a calceta perpétua. Não sei de pena mais dura nem mais aviltante (pág. 221).

(…) Padre Manuel tinha uns amores com uma mocetona do concelho dos Arcos; e a mocetona tinha um irmão honrado, contrário a tais amores. Prevaleceu o coração do padre sobre as razões do irmão, e o escândalo sobre os rumores da opinião pública.

O padre era valente e temido; e a moça, afoitada por ele, afrontava o desprezo, e ostentava despejadamente a sua concubinagem (pág. 222).

(…) Estava o padre Manuel nas cadeias de Braga e entendeu que estava mal (pág. 222).

(…) Tomou por caminhos travessos que o levavam aos Arcos, e, porventura, surpreendeu a moça fiando e humedecendo a estriga com lágrimas, senão é que a encontrou contemplativa e sentada no rebordo da pia dos cevados (pp. 223/224).

(…) A moça foi à salgadeira, escolheu os melhores salpicões, respigou da horta os mais tenros renovos, e fez a ceia como as mulheres laboriosas de Homero, e ele comeu à tripa forra, como os heróis do mesmo poeta, que conhecia melhor o seu mundo e o nosso, que nós outros romancistas, falsificadores do coração humano (pág. 224).

(iii) Sobre o parricida, que foi desterrado para África (pp. 180/187):

(…) O hospital da misericórdia [do Porto] não queria receber doidos, porque não tinha enfermaria especial. Ninguém o dirá do estabelecimento de caridade mais dotado e rico do país. (pág, 180).

(…) Eu tenho de coração humano ideias sempre em divórcio com as ideias comuns. Quero acreditar que há remorsos e saudades naquele homem, que foi filho, que teve mãe, que orou com ela, que a viu morta, que a chorou talvez nos braços do pai, que foi tudo o que são os bons filhos, antes de serem parricidas. (pág. 187).

(iv) Os fabricantes e passadores de moeda falsa também passavam pela cadeia da relação do Porto, era um delito frequente na época. Um deles foi desterrado para Cabo Verde, deixando no Porto mulher e três filhos (pp. 117/129)

(…) Três deles esta hora estão a caminho da África, e não mais para eles aquele ardente céu lhes dará monção de voltarem à pátria. (pág. 117)

(…) [Um deles] o senhor Máximo que, ao tempo da sua prisão, tinha um lá, tinha no largo do Carmo um botequim. (pãg. 117)

(…) Na prisão trabalhava ele incansavelmente, desde o arraiar da manhã até alta noite na manufatura de caixinhas para as boticas, e fazia trezentas por dia. O lucro de cada tarefa diária orçava por quatrocentos e oitenta réis.

(...) Quando foi preso, tinha ele em começos de formatura na escola médico-cirúrgica um filho; outro em latinidade, e projetava educar o terceiro também na carreira das letras. Sua mulher tinha nascido, senhora, e recatada se mantivera sempre como exemplar mãe e esposa (pág. 118).

(...) Vou, como iria para a sepultura, deixando protegida mulher e filhos (...). De ora avante, já se me dá de morrer aqui ou no degredo (pág. 119).


(v) Zé do Telhado, salvo da pena capital, condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos  (pp.  83/107)

(…) Marcelino de Matos defendeu gratuitamente o seu cliente. Querer dar-lhe a liberdade era um paradoxo,  querer salvá-lo da pena capital era um arrojo. E salvou-o! 

Não foi o sofisma que embaíu os jurados;  foi a sincera e comovida eloquência que os pungiu a lágrimas. Muitas deviam ser necessárias para lavar tanta nódoa de sangue acusador! (pág. 105).

(…) Marcelino de Matos venceu muito; fez que José do Telhado fosse julgado como réu de uma única morte, sem premeditação, e como caluniado na maioria dos roubos arguidos. Fez muito ali, onde estavam os testemunhos, os roubados, os feridos, a multidão que o vira,  ou só vira pelos olhos do seu terror!

José Teixeira foi condenado a degredo perpétuo com trabalhos públicos.

A meio caminho, quando voltava ao antecipado inferno da reclusão incomunicável, encontrou sua mulher que lhe saiu a despedir-se… para sempre (pág. 106).

(…) Um dia, quando eu já era livre,  foi-lhe intimada imprevista ordem de embarcar para Lisboa. José Teixeira entroixou a sua pequenina bagagem, desceu a entrar na escolta, estendeu os pulsos às cordas, e pediu a um preso circunstante um vintém de esmola para cigarros. E recebeu a esmola mais alegre do que tinha recebido, em Valpaços, uma condecoração  [a "Torre e Espada"] por ter salvo a vida ao Bayard português [o  general Sá da Bandeira]   (pág. 107).

(...) Os jornais têm contado façanhas do José Teixeira do Telhado  contra a negraria [em Angola] . O comércio de África deve lhe muito, e espera muito mais daquele braço de ferro, e sede de sangue. Os pretos é que pagam os agravos que os brancos lhe fizeram cá. Se José Teixeira for esperto, pode morrer, pelo menos, rei daqueles sítios. (Nota da segunda edição). (Nota de rodapé, pag. 107). (#)

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Fonte: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, I Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 53).

(#) Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II Vol, 8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966 (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco, Edição Popular, 54).

(Seleção, revisão, fixação de texto e notas, LG)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24745: Manuscrito(s) (Luís Graça) (237): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte IV: 10 anos de impunidade

(**) Vd. Diário de Notícias, 1 de julho de 2017 : "A pena de morte estava abolida na consciência social desde 1840". Entrevista do director do Museu do Aljube, por Ana Sousa Dias.

 [O entrevistado é Luís Farinha. Estranhamente não é mencionado o seu nome, nesta peça do DN. Recorde.se que ele, com o nosso Renato Monteiro, é autor do livro "Fotobiografia da Guerra Colonial" (Publicações Dom Quixote, 1990; Círculo de Leitores, 1998)]

(...) Qual foi o percurso até à abolição?

Os abolicionistas começaram por tentar que nos códigos e nas leis houvesse menos motivos para a pena de morte, é uma estratégia clara desde a Viradeira, desde Pascoal de Melo e Freire, a quem D. Maria I manda fazer um Código Penal novo. As razões previstas na lei vinham desde as Ordenações Filipinas do século XVII, era uma longa listagem. A outra estratégia era tentar que o rei comutasse a pena, o que aconteceu constantemente com a D. Maria I, D. João VI , D. Maria II e D. Pedro V - com os reis da Guerra Civil, D. Pedro IV e D. Miguel, não, evidentemente.

Comutação em prisão perpétua?

Pode ser perpétua, trabalhos forçados ou degredo. Normalmente é degredo... as colónias nesse sentido deram sempre muito jeito. Um dos argumentos dos finais do século XIX contra a abolição era o facto de se mandar pessoas para as colónias aos milhares. Entre 1870 e 1896 há quatro mil degredados, são três quartos da população branca de Angola. (...)

(...) Os bem-intencionados queriam construir penitenciárias em todos os distritos, mas não havia dinheiro. E os que eram contra a abolição da pena de morte diziam: "Se não conseguem construir é melhor matar. Para que estão a criar ilusões? As pessoas vão para o degredo durante anos e anos - há lá alguma penitenciária, algum trabalho que regenere?" Claro que não havia. Os desgraçados viviam miseravelmente de trabalhos forçados, não só para o Estado mas também para particulares que faziam deles escravos. É isso que diz Ramalho Ortigão: estão a criar uma situação falsa, não há meios para regenerar as pessoas, não há cadeias preparadas. (...)