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sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 3 

DIÁRIO DE BORDO 

Manhã azul e Deus ao leme

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, e Bissau e Jumbembem, 1963/65)

Manhã azul

18 Julho/63

Nunca abrira assim meus olhos tão arregalados para o que me rodeava, o mar ondulando. Ali era um mundo diferente, revoltado em ondas que, ferozes, se batiam até se desfazerem em espuma. Mas, para quê ter medo, se também o homem traz dentro do peito um mar de sargaços e destroços, estrelas e conchas, fundos e naufrágios, e que quer fugir dos litorais estreitos para, liberto, ir mais longe? O homem é um mar.

Menino de palmo e meio, marinheiro pobre do mar em poças de águas podres pelos caminhos ou no tanque da fonte, habituei-me cedo às rotas para mundos desconhecidos, aos naufrágios dos meus barcos, feitos de jornais esquecidos sobre a mesa. E, quando partia contente do regaço de minha mãe, ela me abençoava, a mim e aos meus barcos, com o seu olhar meigamente doce, com a sua esperança. Pelo menos, hoje não tenho medo do mar, porque ele nasceu comigo e me encheu a alma de peixes e limos, também de noites de espanto, e é assim que anda comigo de onda em onda. O mar não é maior do que a minha alma.

Nunca abrira assim meus olhos carregados de azul. A manhã que me veio, já o sol ia alto, não me trouxe andorinhas para pousarem nos ombros doridos do dia-a-dia e das horas soltas e vazias, nem pássaros para o sol da minha janela que ficou fechada aos campos verdes, aos caminhos do pó, ao grito vermelho das papoilas.

Corri o barco todo de ponta a ponta e fiquei a conhecer-lhe os cantos. Do convés admirei sempre o mesmo jogo branco das ondas em malmequeres de espuma e, mais ao largo, a seara imensa do mar, toda lavrada de azul. E subi ao mastro como velho marinheiro em busca de algumas estrelas. E nunca meus olhos ficaram tão cheios de água e azul, foram tão longe e se pegaram tanto ao céu…

(Jornal da Bairrada, 5 Setembro 1964)

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Deus ao leme

Niassa, 21 Julho, 1963

Um enorme tubarão, listrado de verde-escuro, ora levanta o nariz, mostrando a dentuça terrível que não perdoa à presa, ora pinoteia a cauda, quando mergulha.
Seriam irmãos destes que nos abririam a goela, se Deus não pusesse a mão no leme, quando o cargueiro alemão, se ia a atravessar na rota do Niassa.

A noite de ontem era de breu e murada de um denso nevoeiro, tão cerrado que as luzes só a uma insignificante distância se deram a conhecer, conseguindo romper a escuridão medonha. Eram quatro horas da manhã e tudo dormia, uns a pensarem em cobras enroladas às palmeiras, outros a sonharem com macacos, saltando de ramo em ramo, de árvore em árvore, como os mais espertos bichos da terra, até fazendo-nos manguitos. Àquelas horas, seria o fim do mundo para nós, agarrados a alguma tábua de salvação ou de coletes de salvação enfiados nos ombros, ou os nossos restos mortais boiando naquele cemitério azul, agora da cor do nosso sangue. Está visto, a vida é um momento e num segundo se perde como gota de água na sede escaldante de um deserto ou se reganha com muita coragem ou muita sorte.

São três horas da tarde.
Sentados num monte de cordas grossas, jogam às cartas alguns soldados para esmoerem o tempo ou ainda a refeição e talvez, de saudade, falem de raparigas, das gajas boas, do cargueiro alemão e do desastre eminente.
- Se eu voltar, a Dores não me escapa. É uma boneca. Os seus olhos perderam-me – dizia um enquanto olhava, cheio de esperança a sorrir nos lábios, o crucifixo de ouro que trazia ao pescoço e ela lho havia dado na despedida.

- Sabes lá o dia de amanhã, a vida dá tanta volta.

Uma aragem quente, já há ares de África por ali, leva palavra, puxa palavra e põe gotas de água em tudo e quase nos abre a boca toda, porque sufoca, dançando com farrapos de nuvens um pouco por cima dos mastros. Dizem-nos que a Guiné está perto. Alguns põem-se a espiolhar o horizonte. De facto, era verdade. Quando o sol se escondeu, adormeceu tranquilamente por detrás de uma selva de palmeiras e outras árvores de grande porte. Lá longe, por detrás de uma ilha verde.

(Jornal da Bairrada, 19 Setembro 1964)

[Efectivamente, um percalço grave ia acontecendo na viagem no alto mar. Uma noite, o Niassa esteve na contingência de ser abalroado por um cargueiro alemão cujas luzes não conseguiam rasgar o muro do nevoeiro. Gerou-se algum pânico. Alguns chegaram a preparar os salva-vidas, as barcaças, para saltar para a água, mas, no último instante,os comandantes conseguiram evitar o embate que seria fatal para muitas centenas de jovens, entregues aos bichos do mar. A grande maioria, felizmente, só soube da notícia a meia voz no outro dia, neste caso, boa. Iam a dormir pesadamente].

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 2

DIÁRIO DE BORDO

Ó mar salgado!

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

17 de Julho de 1963


A escada ou o portaló que eu subira devagar, há pouco, como se sentisse vertigens ou medo das distâncias que o mar me iria dar em breve, já não tinha os pés em terra e eu também não.

No terraço um mar de gente agitada, convulsiva, emocionada.
Encostado a uma grade branca, debruçado de olhos perdidos no olhar de todos que acenavam lenços, também acenei.

Ali era em todos o mesmo sangue a correr, o mesmo coração a vibrar de mágoa, os mesmos braços, a mesma Pátria. Os dois metros de água, entre o barco e o cais, quando a sirene roncou gritos tristes, como todo o adeus, em mim já eram lonjuras intermináveis, outras terras, nova aventura.

Ia partir. Mas cais de partir serão sempre cais de chegar? Pensei comigo. Olhei mais uma vez e deixando tombar os olhos no rio Tejo e dentro de mim, desci ao camarote, fui arrumar as malas.

Deitei-me. Vi selva e capim, olhos ferozes de terroristas, poças de sangue.
Os boatos sobre a Guiné eram de amedrontar, os piores, que alguns, malevolamente, lançaram ao vento.

Era assim um pesadelo aquela tarde de gaivotas, que, esvoaçando rente aos mastros do Niassa, desejavam uma boa viagem. Parecia impossível tal sonho e subi ao convés.

Navio Misto Niassa
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Lisboa, pequena, apagando-se quase na retina, fugia toda para trás. O céu também. E foi aí que recitei apenas para mim Fernando Pessoa, para mim e para o mar, onde acabara de entrar o navio:

Ó mar salgado, quanto do teu sal 
São lágrimas de Portugal. 
Por te cruzarmos quantas mães choraram, 
Quantos filhos em vão rezaram! 
Quantas noivas ficaram por casar, 
Para que fosses nosso, ó mar!

Fechei a alma. Os versos verteram-me lágrimas no coração, na pele arrepios fundos e longos.
O mar era já tão grande como a saudade. O céu era azul. E eu esperava-o sempre assim.

(Jornal da Bairrada, 5 Setembro 1964)

(Continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

1. Mensagem do nosso camarada Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65), com data de 3 de Janeiro de 2013:

Meu querido Amigo Carlos Vinhal:
Conforme prometido, aqui lhe envio algum material para o Blogue do Luís Graça e do amigo.
Agora que ando a escrever as minhas memórias e as guerra fazem parte da minha história, da história de toda uma geração, fui encontrar material que, saindo no Jornal da Bairrada, não sei por que raio não saiu no TARRAFO.
Entre as memórias de guerra, além de outras, penso que estas poderão ter algum interesse para os amigos. Há no entanto, duas ou três que foram escritas recentemente e as integro neste naipe e outras que não, para não me tornar maçador.
Se alguma não couber dentro do v/espírito editorial, estão perfeitamente à vontade. No cesto do lixo também se guardam coisas.
Como prometi vou enviar um conto de Natal, que acho muito engraçado e carregado de sonho e poesia. 
Um abraço para o Luís Graça.
A edição fac-similada do TARRAFO esgotou.
Para o amigo um abraço de camaradagem e gratidão por tanto.
Armor Pires Mota


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 1

DIÁRIO DE BORDO

1 - A primeira grande desilusão

No da 2 de Julho de 1963 todo o pessoal foi para casa gozar de licença (férias), dentro das normas de mobilização, com o conhecimento de que iria desempenhar a sua missão em Moçambique. No dia 14, apresentava-se pronto a embarcar com destino a Lisboa, mas sofria uma grande desilusão. O destino já não era Moçambique, mas a Guiné. “Essa alteração provocou uma certa perturbação no espírito pessoal, até porque já tinham sido feitas as declarações de pensões, as quais, à ultima hora, tiveram que ser substituídas e reduzidas para cerca de metade. No entanto, ningém deixou de comparecer ao embarque”, segundo consta da história bem sucinta do Batalhão 490. Isto é, ninguém fugia, ninguém desertava.

Das cerimónias de despedida constou uma missa campal na enorme praça, na manhã do dia 16, seguido de desfile, ouvindo-se, aqui e ali, à nossa passagem, uma ou outra voz surda contra a guerra. Nesse mesmo dia, o Batalhão deslocou-se, em formatura, para a estação de caminho de ferro da cidade, seguindo em comboio especial para Lisboa e daí para a gare de Alcântara. Antes do embarque, à torreira do sol, era uma hora da tarde, houve uma formartura de todas as unidades que iam embarcar: o Batalhão 490, os comandos e o CCS dos Batalhões de Caçadores 512 e 513, além de três companhias de artilharia. Era muita gente, cerca de 1500 homens, muita “carne para canhão”, ouvia-se.

Tudo em ordem, mas houve uma falha, lamentada pelo comandante de Batalhão, Fernando Cavaleiro. Era costume a Unidade Mobilizadora, neste caso o RC3, oferecer um guião, mas nada disso acontecera. Ou levou sumiço.

Embarcámos na Estação Marítima de Alcântara, no dia 17 de Agosto de 1963, entre lenços brancos, desfraldados pelos que subiam o portaló ou se estendiam já pela coberta e os familiares e amigos, que, tão nervosos como nós, entre soluços abafados e algumas lágrimas fundas, como as águas do rio Tejo e sentidas como um espinho, formigavam ao longo do cais no mais doloroso adeus a alguém que desse modo partia. Eu não tive ninguém a acenar-me. Tinha toda uma mole enorme, onde sobressaía o preto, a cor do luto em nossa terras. O destino não era para o melhor dos mundos, era para uma terra desconhecida, de mais a mais, onde as armas vomitavam fogo e os corpos jorravam sangue. Momentos antes do grito estridente do barco, onde se juntaram todos os nossos gritos macerados de silêncio, subiu a bordo o Ministro do Exército a fim de fazer uma alocução sobre a missão que nos coubera longe do chão natal. Não é garantido que todos o tenham ouvido, tomados pelos pensamentos mais desecontrados. Palavras que rolaram na espuma das ondas.

No domingo a seguir, era a festa em honra de Santa Margarida, padroeira da minha terra Ainda mal havíamos digerido a tremenda desilusão, não só por causa da farda branca, mas por mudarmos, à última hora, de destino. Na verdade, a Guiné era mais perigosa e a guerrilha andava a fazer fogo e sangue.

Comigo não levei muita coisa, além das roupas civis e fardas, talvez medos, muitos medos. Mentia se dissesse que ia de peito feito perante tantos perigos. Também uma flor de esperança e nela deitados os olhos da Lili que me oferecera um terço em prata dentro de uma concha, que guardo, religiosamente ainda hoje, no pechiché do nosso quarto. Se rezei por ele, não foram muitas as vezes. Adquiri outro de madeira, mais resistente e menos valioso, para trazer comigo nos bolsos da farda. Era a fé no meu Deus, a esperança em todos os meus santos e anjos do céu. Há muito que se acha escurecido do azebre. Ainda um dia destes, o hei-de mandar limpar. Na carteira, além de algumas notas, mais no seu interior, levava uma pagela, dobrada em duas partes, contendo uma oração. Foi oferta de um casal de vendedores do norte, de bordados, que ia pernoitar a Sangalhos, na Pensão de Ernesto Alves Pinto. Sabendo do meu destino, a mulher aconselhou-me a que lesse ou rezasse, que dava sorte. Pois claro que li, não todos os dias, mas alguns. Se dava sorte, era o que eu queria para mim, para os meus soldados e para todos. E sorte tivemos na última noite dormida sobre o bramir do mar largo.

Embarque de militares na Estação Marítima de Alcântara
Foto: © Américo Estorninho (2010). Direitos reservados

Como passámos o tempo a bordo? Foi um tempo penoso, sobretudo para os soldados que ocupavam os porões. Era um espaço bafiento e quentíssimo Os oficiais, mais à superfície, dormiam ou pasmavam-se nos beliches. O melhor tempo era o que se passava na coberta. Umas vezes, em instrução de armamento. Imagine-se, como íamos tão mal apetrechados. Só ali conhecemos a espingarda com que iríamos combater o IN, a eterna G3, automática. Arma que ninguém tinha visto no quartel. Não existia um único exemplar. Íamos agora conhecê-la nas suas partes e no seu funcionamento. Também pouco conhecíamos do terreno e das gentes que íamos encontrar e, em muitas situações, combater. Assim, recebemos também conhecimentos gerais sobre a pouco pacífica Guiné, guerras antigas, clima, raças, usos e costumes. Na parte recreativa, para animar um pouco o pessoal, este teve ensejo de ver vários filmes. Era um modo de atenuar o nojo que originava vómitos.Também ensaiávamos o Hino do Batalhão, música e letra do 2º comandante, major Alexandre António Bahia Rodrigues dos Santos, que regressava à Metrópole em 23 de Janeiro de 1964. Tratava-se de uma marcha militar e intitulava-se “Sempre em Frente”, que ainda é lembrado e cantado nos encontros anuais. Não sei se consegui nesta viagem ler algum livro aos peixes.

(Continua)

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2. Comentário do editor

Por que iniciamos hoje a publicação da série "Últimas Memórias da Guiné", de autoria do distinto repórter de guerra e nosso tertuliano Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490), memórias estas que como o próprio afirma, tendo sido publicadas, em devido tempo, no Jornal da Bairrada, não foram incluídas no seu livro "Tarrafo" [foto da capa à direita], cabe aqui um agradecimento ao autor pela deferência com que trata o nosso Blogue ao enviar-nos este material para publicação, que inclusive contém memórias escritas recentemente, logo inéditas.

Por que felizmente o texto é extenso, será dividido e publicado em vários postes que se desenvolverão temporalmente entre 2 de Julho de 1963, o de hoje com o título: A primeira grande desilusão, até 14 de Agosto de 1965, coincidente com a retirada da 488 de Jumbembem.

CV
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