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segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22894: Notas de leitura (1407A): O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,

O agora jubilado professor do ISCTE e durante muito tempo o responsável pelo Centro de Estudos Africanos desta instância universitária tem vasto currículo de investigação guineense, são, por exemplo, incontornáveis, os seus artigos de caráter enciclopédico sobre a Guiné, escrito com José da Silva Horta, os seus estudos sobre os judeus na Senegâmbia. 

Neste trabalho desvela-se uma realidade com base na evidência científica e que tem a ver com conceções de aproveitamento de alianças, de negociação de fidelidades e da escolha entre um grande território com um grande chefe ou régulos implicados na gestão da administração colonial, mesmo com um campo de liberdade específica. Prevaleceu a segunda conceção, foi essa que observámos nas nossas comissões sem perceber muito bem o que estava por detrás delas. Eduardo Costa dias dá-nos uma interessantíssima chave explicativa, a propósito do Gabú entre 1900 e 1930.

Um abraço do
Mário



O Gabú entre 1900 e 1930, num ensaio de Eduardo Costa Dias

Beja Santos

O Professor Eduardo Costa Dias, com larga investigação referente à colónia da Guiné, publicou na revista Africana Studia, n.º 9 de 2006, edição do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, um trabalho intitulado “Regulado do Gabú (1900-1930): A difícil compatibilização entre legitimidades tradicionais e a reorganização do espaço colonial”

Uma visão singular que apraz aqui registar, indo diretamente às questões nodais que a investigação contempla.

Primeiro, os problemas da dominação territorial colonial como se puseram nas primeiras décadas do século XX, um processo diversificado que contou com operações militares contra potentados recalcitrantes, cartografia rigorosa, sujeição dos africanos a uma lógica económica e política colonial, que obrigou a novas regulamentações e alargamento da malha político-administrativa, concomitante com o desenvolvimento das comunicações e de outras infraestruturas. 

A Guiné, mesmo a uma escala relativamente modesta, contou com uma rede de estradas ligando o litoral ao interior, generalizou-se o telégrafo e depois o telefone, substituíram-se os antigos postos, presídios e fortificações por pontos locais da quadrícula político-administrativa. 

Enfim, uma dominação territorial que se fez com desacertos, cumplicidades e submissão de poderes locais, havendo resistência passiva, desobediência por parte das populações e dos poderes ditos tradicionais, que se manifestavam sobretudo na recusa do pagamento de impostos, na contestação dos chefes reconhecidos pelas autoridades coloniais, mas muito mais.

Segundo, o estudo centra-se nos anos 1900-1930 na região do Gabú, a figura principal do estudo é o régulo do Gabú entre 1906 e 1927, Monjour Meta Bâlo, já vimos anteriormente referências a este régulo no livro “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço, filho do Governador Jorge Frederico Vellez Caroço. Monjour tinha legitimidade tradicional e era benquisto pelas autoridades portuguesas, até ao dado momento em que se coligaram contestações locais e coloniais.

Terceiro, o investigador dá-nos um retrato da Guiné Portuguesa nesse período: décadas de afirmação da dominação territorial, expedições militares punitivas em territórios recalcitrantes: Papéis da ilha de Bissau, Balantas de Mansoa, regiões dos Bijagós, os Mandingas do Oio, entre outros. Tudo acompanhado de questiúnculas e queixas da administração e dos militares: o antigo herói Abdul Indjai fez-se cair em desgraça; Teixeira Pinto envolver-se-á em confrontos com a Liga Guineense; Vellez Caroço teve vários conflitos com o secretário do Governo, Sebastião José Barbosa, por exemplo. 

A despeito das frequentes mudanças de governadores e das orientações da administração colonial, ir-se-á afirmando uma linha de apoio à administração portuguesa, terão a etnia Fula à cabeça.

Ainda antes do Estado Novo, foi promulgada a Carta Orgânica da Guiné, que dividiu a população residente em civilizada e indígena; em 1919, o território da Guiné Portuguesa foi dividido em dois concelhos e treze circunscrições; substituiu-se o imposto de cabeça por palhota; e manteve-se, mesmo com simulação, a requisição dos indígenas para um sem número de atividades, o trabalho forçado mascarado, e o autor dá vários exemplos com a Casa Gouveia, a Companhia Estrela de Farim e a Companhia Agrícola e Fabril da Guiné.

Quarto, atenda-se ao conceito de Vellez Caroço para a modernização da colónia, ele era defensor da figura do “chefe de território” em vez do “chefe de raça”, de uma política diferenciada para cada etnia e de aproximação aos chefes muçulmanos em detrimento dos animistas. Nesta ótica, observa o autor, ele foi o pai da estratégia colonial que privilegiará durante décadas a aliança da administração com os chefes Fulas.

É nesse contexto que vamos agora situar o Gabú, povoado maioritariamente por muçulmanos (Fulas e Mandingas). Escreve o autor: 

“A soberania portuguesa no Gabú fez-se quase por delegação de poderes, isto é, controlando meia dúzia de chefes tradicionais e remunerando a sua lealdade com uma quase total liberdade de exercício do poder sobre as populações, recebendo em troca apoio para ações militares no resto da Província”. 

O termo Gabú era automaticamente conotado com a área onde pontificava o régulo Monjour e muito menos como a porção de território administrado pela circunscrição sediada em Bafatá. Lembra igualmente o autor que o regulado do Gabú herdou o nome e parte significativa do território do antigo reino Mandinga “animista”, do Kaabu, que existiu, na região compreendida entre os rios Gâmbia e Corubal. A administração portuguesa marcou presença em meados da década de 1910, apareceu a circunscrição administrada do Gabú com sede em Oco, depois em Gabú Sara (futura vila de Nova Lamego, hoje cidade do Gabú). O Gabú estava pouco integrado no espaço da colónia e não era alvo prioritário para intervenções das tropas portuguesas.

Quinto, e assim se passa para a lógica política de entendimentos preferenciais, escolha de interlocutores e relacionamento com os chefes tradicionais. Os chefes eram classificados em três grupos: o dos leais, o dos interesseiros e o dos rebeldes. 

Vellez Caroço, nos anos 1920, estruturou a política de aproximação aos muçulmanos e teceu os contornos da aliança estratégica do poder colonial com os chefes Fulas. Monjur, o régulo do Gabú, foi um precioso auxiliar da administração colonial, combateu ao lado por portugueses nas guerras de pacificação e durante muito tempo dominou as rivalidades entre etnias. E como diz o autor, acabou destituído quando a administração colonial perdeu o interesse em manter um território tão grande nas mãos de um único homem. Monjour é apanhado neste turbilhão de mudanças. No livro escrito pelo filho de Vellez Caroço é bem claro que ele, tal como o pai, era partidário da política dos grandes regulados e adversário acérrimo da multiplicação de regulados. E no seu livro ele apresenta Monjour como vítima das sucessivas traições da sua gente e de alguns administradores que eram favoráveis à lógica da “independência das raças”.

Sexto, o autor historia a ascensão e queda deste régulo que terá nascido em 1850 e faleceu em 1929 na região do Corubal, a sua ascensão não foi pacífica, a chefia do regulado fora contestada por um irmão e por vários descendentes de régulos anteriores. É no choque destas duas lógicas, do “critério da independência das raças” com pequenos regulados e a dos grandes regulados em que apostou sempre Vellez Caroço que veio a prevalecer, em 1917, uma divisão do Gabu em vários regulados, a situação durou pouco, no ano seguinte o regulado foi unificado e Monjour reinvestido como grande chefe. Mas a sua liderança era ameaçada por novos líderes. E com a retirada de Vellez Caroço para Portugal, acaba por ser destituído com uma pensão de trezentos escudos mensais, em 1927, e deportado com residência fixa para o Corubal, onde morre em 1929.

Sétimo, assim chegamos às conclusões. 

Foram-se impondo duas conceções dominantes: a dominação do território via o controlo de um único interlocutor, e que prevaleceu entre os anos 1900 e 1917; e uma conceção de dominação que privilegiava não só os pequenos regulados em prejuízo dos grandes como igualmente a efetiva circunscrição territorial de cada regulado a uma malha precisa da quadrícula político-administrativa colonial, a partir de 1917 e aplicada sobretudo a partir de 1926.

 Prevaleceu a segunda, os régulos foram funcionalizados, a ter obrigações, a despeito de aplicarem, dentro de moldes aceites pela administração colonial, decisões próprias dentro da área de jurisdição. E esta lógica vai chegar até à emergência do nacionalismo, foi com esta lógica que Amílcar Cabral e o seu PAIGC foram obrigados a lidar.
Tocador de korá no Gabú.
Jorge Frederico Vellez Caroço
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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22893: Notas de leitura (1407): Um livro que é "serviço público": "Aldeia Nova de São Bento: Memórias, Estórias e Gentes", José Saúde, Edições Colibri, 2021 (Prefácio de David Monge da Silva)

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22580: Historiografia da presença portuguesa em África (282): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Reduziu-se ao máximo as descrições elencadas pelo Tenente-Coronel Miguéis acerca das operações de pacificação entre 1834 a 1924, no essencial é matéria que interessa a estudiosos, no geral permite picar com uma grande angular da fragilidade da presença portuguesa e há que dizer claramente que continua a pôr-se muita emoção e a mostrar muita indignação por alegadas atropelos ao prestigiado Capitão Teixeira Pinto, sem nunca ter em atenção que Abdul Indjai praticou , e há relatos a confirmar essas depredações, saques, sequestros, roubos, assassínios, durante a campanha de pacificação. Acontece que os mercadores portugueses e estrangeiros que viviam ao tempo na ilha de Bissau queixaram-se ao governador que quem era comandante da campanha era o oficial português. Abdul fica como régulo do Oio (manda a verdade que se diga que ele era régulo do Oio e do Cuor), e tudo leva a crer que atuava praticando barbaridades. Que era ambicioso, basta ler esta peça histórica do seu aprisionamento, talvez o documento mais detalhado que conta a história do seu afastamento da Guiné.

Um abraço do
Mário


A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (3)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

O Tenente-Coronel Miguéis dá-nos porventura o relato mais detalhado sobre a prisão de Abdul Indjai, sugere que houve para ali uma tremenda cabala, intrigas sem fim que caíram sobre Teixeira Pinto, acusado de muita coisa. Quem toma posições pró e contra Teixeira Pinto e as tropelias praticadas por Abdul Indjai esquece-se de que Abdul Indjai tudo pilhava, consentia em todos os saques, sequestros, roubos, era a sua forma de manter os seus homens de mão satisfeitos. Só que estes saques, sequestros, roubos abrangiam direta e indiretamente comerciantes que denunciaram a situação através da Liga Guineense, o governo pôs-lhe termo, mas os ressentimentos ficaram, Abdul pôs-se a jeito para o ajuste de contas.
No texto anterior iniciámos a descrição destas operações, continuamos a dar a palavra ao relato do tenente-coronel Miguéis:
“Abdul Indjai tendo tido conhecimento que uma força de 30 soldados tinha saído de Farim acompanhando géneros para o posto de Mansabá, mandou dizer ao comandante do posto que se ele precisava de 500 carregadores lhos forneceria imediatamente.
Como não fosse aceite a oferta, Abdul saiu com uma força armada mas pouco depois foi ter com o comandante do posto de Mansabá pedindo-lhe que deixasse ir um cabo europeu com o seu sobrinho Alburi ao encontro da sua gente para avisar que não atacassem a força do alferes Figueira. Este alferes chegou com a sua força a Mansabá sem ter sido atacado, apesar de ter encontrado no caminho bastantes jauras (homens de guerra armados). Reforçado o destacamento, Abdul tratou de isolar os Oincas do posto, para evitar que o comandante tivesse conhecimento do que fazia a sua gente, mas ele próprio fornecia lenha e água aos nossos soldados.

Em 29, seguiram de Farim para Mansabá 6 carregadores com géneros para a guarnição do posto, indo com eles o indígena Bacar Sedibe que ia ter com um seu irmão, ex-soldado que fazia o serviço de auxiliar.

Em 30, este indígena declarou ao comandante de Farim que tendo pernoitado numa tabanca de Bironca ali compareceram alguns jauras que pretendiam degolá-lo, conseguindo fugir depois de ter levado algumas espadeiradas.

Em 1 de agosto, constou ao Capitão Lima ter havido tiroteio entre a gente de Abdul e as forças de Mansabá. Jancó Dabó com os auxiliares segue em auxílio do posto e ao mesmo tempo segue uma força sobre o comando do Alferes Trindade, com 1 sargento, 3 praças europeias, 25 indígenas e 49 auxiliares. Acompanha esta força o Capitão Lima que ao chegar à povoação de Demba-Só lhe foi entregue por um Oinca uma carta em que se dizia “estamos cercados, temos Alferes Figueira ferido com certa gravidade, dois soldados feridos e um morto”. Chegado próximo de Mansabá pelas três horas, o Capitão Lima ouviu o tiroteio mas não lhe foi possível continuar a marcha porque os auxiliares se recusaram a acompanhar a coluna com receio de que o posto fizesse fogo contra eles.
Às 5-30 pôs-se a coluna em marcha para Mansabá sendo surpreendida por um tiroteio dos jauras que estavam emboscados ao longo da estrada de Lanfarim, cujo ataque foi repelido pela coluna e pelo posto.

Em 2, o Alferes Figueira faleceu pelas 4-30 horas e as colunas ocupando as quatro faces do posto fez fogo sobre os jauras. Dois auxiliares que saíram para buscar água foram feridos e por este motivo os auxiliares Mandingas, Oincas e Grumetes desanimaram. Os jauras atacaram a face leste do posto e pouco depois o Alferes Trindade, tendo derrubado o querentim onde eles se abrigavam, assim como cortado o milho, dirigia um ataque que tinha por objetivo destruir todos os abrigos impelindo os jauras contra a tabanca de guerra de Abdul.
Às 19 horas as povoações estavam em chamas e a coluna aproximava-se da tabanca de Abdul, quando se ouviu vivo tiroteio para os lados de Mansabá-Mansoa. Era o Alferes Alberto Soares que chegava com uma coluna de 277 homens e uma peça de 7 cm.

Na madrugada de 3 fizeram-se alguns tiros de canhão contra a tabanca de Abdul e logo a seguir veem-se duas bandeiras brancas, uma na tabanca de Abdul e outra na morança de Alburi Indjai. Cessado o fogo, dirigiu-se para o posto Alburi Indjai que vinha comunicar que Abdul Indjai se rendia com toda a sua gente que estava dentro da tabanca. Estando já a amarrar fechos de armas para delas fazer entrega. Pouco depois Abdul Indjai era preso.

Em 16 de agosto, a P.P. n.º 343 declara terminadas as operações no Oio, com a derrota das forças e a captura do ex régulo Abdul Indjai, levanta-se o estado de sítio na circunscrição de Farim e regiões dos comandos militares de Bissorã e Balantas. Nesse mesmo dia são extintos os comandos militares de S. Domingos, Papéis, Bissorã e Balantas.

Em 29 de agosto, por P.P. n.º 385 é demitido do posto de tenente das forças de 2.ª linha e de régulo da região do Oio Abdul Indjai. Assina esta portaria o Governador Henrique Alberto de Sousa Guerra. Mais tarde este homem é deportado para Moçambique, tendo ficado em Cabo Verde, onde faleceu.
Deste modo termina a vida do herói que nas campanhas de Bissau, comandando os seus soldados, empregou com excelentes resultados o fogo por descargas, cujos efeitos ele bem conhecia. Durante a rebelião nunca foi visto a comandar um único homem nem tão-pouco a sua gente fazer uso dessa espécie de fogo”
.

Recorda-se ao leitor que o Tenente-Coronel Miguéis procedeu a um levantamento relacionado com as campanhas de pacificação, por determinação do Governador Velez Caroço, é um documento de leitura obrigatória e que encerrará, estou em crer, o relato mais detalhado das operações que levaram à prisão de Abdul Indjai. O mistério das acusações sobre Teixeira Pinto em estreita conexão com as práticas de pirataria atribuídas a Abdul Indjai carece de estudo e estranho é que a historiografia portuguesa não procure uma explicação documentada não só por se tratar do herói da pacificação mas por poder envolver razões fundamentadas por parte de quem foi esbulhado pelos homens de guerra de Abdul Indjai.

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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22562: Historiografia da presença portuguesa em África (281): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Por determinação do Governador Vellez Caroço, o Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis lança-se numa explanação sobre os principais eventos indicadores do princípio da "pacificação", encetado a partir de 1834 e tendo o seu termo em 1924. Seria a primeira vez que a nível oficial se produzia uma listagem de acordos, convénios e tratados entre a soberania portuguesa e as chefias indígenas. Imprevistamente, o Coronel Miguéis resolve por sua conta e risco pronunciar-se sobre a rebelião de Abdul Indjai, que nos vem dizer não está conforme outros relatos, seguramente este oficial do Exército intuía que a detenção e o exílio do régulo do Oio podia empalidecer os atos militares de Teixeira Pinto, e daí as considerações um tanto barrocas e atenuantes que ele profere, como se lerá adiante. Hoje, está claramente demonstrado que Abdul Indjai, independentemente da sua bravura pessoal, cometeu desmandos incríveis e deixou de praticá-los com os seus mercenários, praticaram-se pilhagens e raptos em toda a península de Bissau. E desmandou-se como régulo do Oio, aterrorizando e impondo impostos como direito de saque. Esta é a verdade dos factos.

Abraço do
Mário



A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (2)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

Trata-se de um inventário minucioso, o oficial procurou esmerar-se, manda o bom-senso que não se vai escrever por atacado toda a sua narrativa, e não há nada como explicar porquê. Começa por nos dizer que desde a descoberta da Guiné até ao ano de 1834 não encontrou nos arquivos da Repartição quaisquer elementos respeitantes a operações militares.

Como vimos anteriormente, é um elenco extensíssimo, mas de extrema utilidade para quem investiga todo este período da pacificação, já possuímos elementos com certa vastidão nesta matéria, como é o caso do admirável levantamento feito por Armando Tavares da Silva em Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926, Caminhos Romanos, 2016.[*]

O Tenente-Coronel Miguéis mantém uma narrativa neutra até chegar à prisão de Abdul Indjai, aí o seu coração balanceou, quer proceder a uma certa advocacia, seria possível traição daquele que foi o braço-direito de Teixeira Pinto, e temos agora um quase solilóquio à procura de explicação para essa estranha rebelião do régulo do Oio, damos-lhe a palavra:
“Revolta-se contra quem? Contra o governo da Província, representado por Henrique Sousa Guerra, seu companheiro de armas, seu comandante durante o período da doença de Teixeira Pinto, e portanto seu amigo? Não, a rebelião de Abdul Indjai não representa uma rebelião contra o domínio português no Oio, seu regulado, deve representar qualquer coisa que ignoro, mas suponho ser forjada pela intriga que campeia em toda a província da Guiné.
João Teixeira Pinto, se te pudesses levantar do túmulo e lançar em rosto as vilanias daqueles que tem adulavam movendo a intriga, por certo Abdul Indjai, teu companheiro e amigo, não mandaria disparar um único tiro contra as forças portuguesas; correria a abraçar-te e apesar da sua cor e raça serem diferentes chorariam ambos a infeliz pátria que impulsionada pela vil traição de alguns dos teus filhos, que nada produzem, deixa muitas vezes no esquecimento aqueles que por ela sacrificaram o seu bem-estar, o seu sangue e a sua vida.
Por vil intriga, tu, Teixeira Pinto, meu camarada, amigo e condiscípulo, não foste galardoado pelo grande serviço que prestaste à Guiné, na ilha de Bissau. Sofredor como eras, contentaste-te com a dispensa do exame para o posto de major. Não serias tu um general em vez de um major? Tenho fé que apagadas as paixões mesquinhas, num futuro não muito longe, a História há de fazer-se e justiça ser-te-á feita assim como ao teu companheiro Abdul Indjai”
.

E pondo termo à exaltação pessoal, preito de homenagem ao camarada e amigo Teixeira Pinto, lança-se na documentação existente, ela é de uma grande importância, não encontrei até hoje nada de tão substancial para descrever os acontecimentos:
“Não se encontra na Ordem à Guarnição a nomeação de qualquer força para combater as hostes rebeldes de Abdul Indjai. Na Ordem à Força Armada apenas se lê que desde 23 de junho até 26 partem para Farim e para Mansoa alguns oficiais, que, suponho, irem tratar desta questão.
Um relatório que tenho presente diz que em 19 de março foi a povoação de Solinhoté assaltada pela gente armada de Abdul que tinha por fim prender o indígena Malam Sanhá para ser por Abdul Indjai morto na povoação de Mandorno; que em 20 de maio, 2 Oincas refugiados no território de Bissorã entre esta região e a de Gansambu foram atacados pela gente de Cherno Sabali, dos quais feriram um, não aparecendo mais o outro; que dias depois esta mesma gente assaltou a povoação de Fajonquito, levando tudo quanto encontraram; que em 2 de julho, indo a mesma gente assaltar a povoação de Batur, dali levou 36 cabeças de gado; que em 3, quando a gente de Abdul se dispunha a atacar a povoação de Gussafari para roubar, foram atacados pelos auxiliares, e que em 26 a gente de Cherno Sali atacou os auxiliares de Gussafari para se apoderarem de uma lancha que estava no porto.
No relatório do capitão-tenente João Quadros vê-se que este oficial conduziu a bordo do “Bissau”, em 24 de julho, um destacamento de 40 praças indígenas, 3 europeias, 2 sargentos e o alferes Trindade. Comandava esta força o tenente Sobral. Chegaram a Farim no dia 26. Em 29 chega a Farim o vapor “Capitania”, conduzindo o capitão Lima e um destacamento do comando do alferes Alonso Figueira, 13 soldados indígenas e um europeu.


Em 1 de agosto segue para Mansabá um reforço de 30 praças sobre o comando do Alferes Figueira, levando três carregadores. Os rebeldes (diz o relatório) hostilizaram esta força e cortaram a linha telegráfica entre Farim e Mansabá. Em 13 de julho uma diligência de 23 auxiliares e 2 guardas da circunscrição de Farim prenderam 3 jauras (homens de guerra) mal-armados, tendo fugido outros nove também mal-armados que impunham à gente da povoação de Nema o pagamento de uma multa de 20 escudos e 5 vacas. Pelo relatório do capitão Lima conclui-se que houve em Mansabá uma conferência entre Abdul Indjai, o Capitão Espírito Santo e outros oficiais, que particularmente sei serem o Tenente Honório de Oliveira Marques e o Alferes Alberto Soares, na qual Abdul Indjai propõe o seguinte a troco de entregar todas as armas: 1 – A redução da guarnição do posto de Mansabá a 1 oficial, 1 sargento, 2 cabos e 27 soldados; 2 – A retirada da força militar de Farim; 3 – Desarmamento dos auxiliares da região de Bissorã; 4 – Anexação ao seu regulado das razões de Tiligi, Binar, Bula, Canchungo e Churo; 5 – Que lhe fosse paga a quantia de 40 mil escudos como recompensa do seu trabalho por ter batido as regiões de Mansoa, Oio, Costa de Baixo e Bissau e que lhe fosse dada uma percentagem de 10% sobre o imposto de palhota cobrado anualmente nas regiões acima referidas.

Em 1 de agosto, quando uma força do comando do Alferes Figueira seguia de Farim para Mansabá foi este oficial avisado durante o trajeto que vários grupos de forças armadas se dirigiam ao seu encontro, pelo que tomou certas disposições no sentido de evitar qualquer surpresa. Até à povoação de Bironque a marcha fez-se sem incidentes, tendo notado apenas que a linha telegráfica se encontrava cortada. O 2.º Sargento Parreira, que comandava a guarda avançada, foi avisado que uma força armada, mais adiante, se opunha à passagem dos nossos.
Como os carregadores informados do caso pretendessem fugir, o sargento abandonou a coluna dirigindo-se para Farim, sendo seguido por um indígena e um cabo europeu que, alcançando-o, se verificou ser Alburi Indjai, alferes de segunda linha, sobrinho de Abdul, que ia comunicar estar Abdul inteirado de que a força não ia atacar e que por isso podia continuar a marcha, pois já tinha avisado a sua gente para lhe não impedirem a passagem."


(continua)
Jorge Frederico Velez Caroço, governador da Guiné
____________

Notas do editor:

[*] - Vd. postes de:

30 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17526: Notas de leitura (973): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17536: Notas de leitura (974): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

7 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17554: Notas de leitura (975): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (3) (Mário Beja Santos)

10 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17563: Notas de leitura (976): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (4) (Mário Beja Santos)

14 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17582: Notas de leitura (977): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (5) (Mário Beja Santos)

17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17591: Notas de leitura (978): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (6) (Mário Beja Santos)
e
21 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17610: Notas de leitura (979): “a Presença Portuguesa na Guiné: História Política e Militar 1878-1926”, Caminhos Romanos, 2016 (7) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22546: Historiografia da presença portuguesa em África (280): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Guiné 61/74 - P22546: Historiografia da presença portuguesa em África (280): A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,

Em boa hora se voltou à secção de Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia. Ficara para trás este cotejo efetuado em 1925 por um oficial do Exército que no essencial debita factos sem apreciações pessoais até que chegamos à prisão de Abdul Indjai, aí ele intervém calorosamente e não se nega a dar opinião. 

Há um dado muito curioso da análise deste personagem que possuía uma tropa de choque muito especial e que a pôs ao serviço de Teixeira Pinto. Dos poucos depoimentos que possuímos sobre membros da Liga Guineense (que foi abruptamente distinta, isto numa época em que as organizações de ideário republicano eram acarinhadas) há quem diga abertamente que Abdul Indjai permitia todos os saques pelas povoações onde passava, o que contundia com os interesses dos comerciantes que se viam despojados de matéria-prima para exportação. 

Ele podia, enquanto régulo do Oio, enviar a sua tropa de choque ao serviço do colonizador, mas aterrorizava as populações de todas as vilas acima de Mansoa. É muito fácil andarmos à procura das causas do martírio quando teimosamente fingimos que o valoroso braço direito de Teixeira Pinto agia como o mais prepotente pilha-galinhas, afrontando uma ordem civilizacional que a administração portuguesa da Guiné procurava instituir. Vamos continuar, há mais surpresas.

Um abraço do
Mário



A pacificação da Guiné de 1834 a 1924 (1)

Mário Beja Santos

Como é sabido, a Biblioteca da Sociedade de Geografia possui uma secção de Reservados onde tenho tido a felicidade de encontrar algumas peças preciosas. Houve agora oportunidade de regressar a este filão de manuscritos, e deparou-se-me um dossiê intitulado Res 1 – Pasta E-21, que se intitula Apontamentos Relativos às Campanhas para a Pacificação da Guiné de 1834 a 1924, compilados pelo Tenente-Coronel de Infantaria João José de Melo Miguéis, Bolama, com data de 6 de agosto de 1925, Repartição Militar da Colónia da Guiné, 1.ª Secção. É então Governador Velez Caroço.

Trata-se de um inventário minucioso, o oficial procurou esmerar-se, manda o bom-senso que não se vai escrever por atacado toda a sua narrativa, e não há nada como explicar porquê. Começa por nos dizer que desde a descoberta da Guiné até ao ano de 1834 não encontrou nos arquivos da Repartição quaisquer elementos respeitantes a operações militares.

Tudo começa em 8 de janeiro de 1834, realizou-se o Auto de Ratificação da Praça de Bolor, sítio de Etame, pertencente a Cacheu, de uma parte o provedor de Cacheu, Honório Pereira Barreto e da outra Jaguló, rei e senhor do território de Bolor, que cedeu o território denominado Baluarte.

Estamos agora em 9 de outubro de 1856, é feito um contrato entre o tenente-coronel Honório Pereira Barreto, governador da Guiné, e os gentios de Nagas, representados pelo régulo de Cadi e por Nhaga, pai do régulo de Nagas, por o gentio desejar restabelecer as relações com a praça de Cacheu que há cinquenta anos se achavam suspensas, por causa de uma guerra que houve entre as mesmas. Neste contrato é celebrada a paz entre a praça de Cacheu e o gentio de Nagas, podendo os habitantes de Cacheu negociar nas terras de Nagas, ficando reservado aos portugueses a navegação e comércio do braço do rio de Farim, que se chama Armada, não sendo concedida esta vantagem a estrangeiros.

Com data de 6 de março de 1857 estabelece-se uma convenção entre o governo da Guiné e os Felupes de Varela. Esta convenção foi feita por motivo do governador da Guiné, Tenente-Coronel Honório Pereira Barreto, ser herdeiro do seu falecido pai, o Major João Pereira Barreto, de uns territórios que os Felupes de Varela da margem direita da barra de Cacheu, em tempos tinham cedido a este senhor. O governador Barreto, como os Felupes não desejassem que este território fosse para os franceses, cedeu-o ao Governo de Portugal, ficando desde esta data de 6 de março ratificado a favor da nação portuguesa. Dois anos depois, celebra-se o tratado de concessão à nação portuguesa pelos Felupes de Jufunco (Cacheu) de todo o seu território.

O Tenente-Coronel Miguéis recorda em 1870 foi proferida sentença a favor de Portugal pelo presidente norte-americano Ulysses Grant, ficava esclarecida a questão de Bolama.

Em 24 de janeiro de 1871, foi vítima de uma rebelião de Grumetes na Praça de Cacheu o governador interino daquele distrito, Capitão Álvaro Teles Caldeira. Em 8 de março, uma força composta pelo Batalhão de Caçadores N.º 1 e de marinheiros da Armada Real efetuou um ataque à população de Cacanda (Cacheu), destruindo-a totalmente. Os indígenas desta povoação inquietavam constantemente a Praça de Cacheu, acabando por assassinar o governador do distrito. O Capitão J. A. Marques desenvolvendo um plano de ataque anteriormente combinado, consegue conduzir à vitória todas as nossas forças.

Em 19 de abril, foi lavrado o termo de ratificação e reconhecimento de cessão feita pelos Felupes de Varela de todo o território deste nome, ao governo português. Como também em 3 de agosto de 1879 foi feito um tratado de cessão do território ocupado pelos Felupes de Jufunco à nação portuguesa. Estamos agora em 8 de abril de 1980 e ficamos a saber que foi condecorado com o Grau de Comendador da Ordem de Torre e Espada o Tenente-Coronel Agostinho Coelho por ter sufocado em Bolama uma revolta do Batalhão de Caçadores N.º 1, que tinha por fim constranger o mesmo governador a mandar pôr em liberdade dois oficiais desse batalhão.

Nesse mesmo ano, em 1 de junho, celebrou-se o tratado de paz na povoação de Buba entre os régulos Beafadas, o chefe principal do Forreá, Sambel Tombon e o Governo Português, sendo comandante militar o Capitão de Caçadores N.º 1 da África Ocidental, Tomás Pereira da Terra.

A enumeração de tratados é infindável, mas talvez valha a pena continuar até depois chegarmos ao aprisionamento do régulo do Oio, Abdul Injai, o braço direito de Teixeira Pinto.

Voltamos a 1881 e o autor enumera tratados entre o Governo e os chefes Beafadas de Guinala e Baduk, tratado de paz entre o Governo e os régulos Fula-Forros e Futa-Fulas do Forreá e Futa-Djalon. Regista o autor também conflitos originados pelos Beafadas de Jabadá. Foi celebrado no Presídio de Geba o tratado de paz e obediência do régulo Fula-Preto do Indorna Dembel, Alfa Dacan e o governo da colónia.

Em 1883 ocorre um episódio que aparece versado noutras fontes. Os Fula-Pretos atacaram S. Belchior, aprisionaram cristãos e reduziram a cinzas as suas casas. O responsável pelo presídio de Geba, Alferes Marques Geraldes, organizou uma pequena expedição e foi a Indornal, onde conferenciou com o régulo Dembel, fez a entrega das duas mulheres raptadas e pagou uma indemnização ao governo.

No ano seguinte foi feito um tratado entre o Governador de Cacheu e os régulos de Bolor. Em 16 de abril de 1885, a bordo da escuna Forreá, fundeada no rio das Ilhetas, foi feito um ato de vassalagem ao governo português. Em 11 de outubro do mesmo ano, atacou-se Sambel Nhantá (Cuor, Geba) e foram louvados o Capitão Caetano da Costa Pessoa e o negociante Agostinho Pinto.

Em 15 de janeiro do ano seguinte regista-se um ataque à tabanca de Bijante, no Cubisseco. Em 19 de junho, uma força de 500 Fulas comandada pelo filho de Umbucu investiu contra duas tabancas de Mansomine. Este ataque foi contra as forças de Mussá Molô, de Sancorlã. Era chefe do presídio de Geba o Tenente Francisco António Marques Geraldes que arranjou numa hora uma expedição de 200 homens, atacou as tabancas do régulo de Mansomine, arrasou-as em três horas. Depois Geraldes dirigiu-se a Sancorlã e derrotou Mussá Molô. Geraldes foi então promovido a capitão por distinção. O autor regista que em 1896 havia os seguintes destacamentos na Guiné: Geba, S. Belchior, Sambel Nhantá, Gã Dafé, Contabane e Cacine.

Em 8 de julho de 1919, é declarado o estado de sítio nas regiões dos comandos militares de Bissorã e dos Balantas e na circunscrição civil de Farim, foi nomeado comandante militar o Capitão Augusto José de Lima Júnior. O motivo foi pôr termo à situação anormal criada pela insubmissão do régulo Abdul Injai. O texto que se segue, e que desobedece completamente às considerações até agora neutras que o autor expende ganham um cunho pessoal, vale a pena ler o texto integral, aguça-se a curiosidade do leitor só com o seu texto de arranque:

“Será possível que Abdul Injai se revoltasse?

Abdul Injai, Tenente de Segunda Linha pelos serviços prestados ao Governo Português durante as campanhas da Guiné, o grande amigo dos portugueses, o braço-direito de Teixeira Pinto, o cabo de guerra indígena de maior vulto nas guerras contemporâneas, o homem que descansando as fadigas guerreiras no seu regulado continua cedendo ao governo os seus homens para auxiliarem as tropas regulares que sucedem às campanhas de pacificação; este herói a quem o governo, depois de Teixeira Pinto, tudo deve… revolta-se?”


(continua)


Jorge Frederico Vellez Caroço, Governador da Guiné
Honório Pereira Barreto, um resto da sua estátua na Fortaleza de Cacheu
Fortim de Cacheu, gravura do século XIX, Arquivo Histórico Ultramarino
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22525: Historiografia da presença portuguesa em África (279): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (16) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Junho de 2017:

Queridos amigos

1946 foi um ano prolífico de eventos em torno das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Creio haver matéria de interesse nesta conferência do Major Dimas Lopes de Aguiar: o valor que atribui ao soldado guineense; a exaltação que faz das missões o Exército e da Marinha, sem estas instituições a Guiné portuguesa teria desaparecido do mapa; as suas opiniões sobre a economia e demografia merecem atenção, o conferencista não andava sozinho quando clamava por trazer mais cabo-verdianos e brancos metropolitanos, não esconde que era a desfavor da procriação de mulatos, havia que trazer para a Guiné um número equiparado de brancos e brancas...

Um abraço do
Mário



Guiné Portuguesa: Terra de Lenda, de martírio, de bravos feitos…

Beja Santos

Em 25 de Maio de 1946, na atmosfera das comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné, o Major de Artilharia Dimas Lopes de Aguiar, professor da Escola do Exército, profere nesta instituição uma conferência intitulada “Terra de lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro”.

Enceta a comunicação com um punhado de dados históricos, referências ao clima e ao mosaico étnico. É claro nas suas apreciações: 

“Inicialmente, não nos interessámos pelo desenvolvimento económico do território que hoje é nosso e foi considerado apenas como útil centro de recrutamento de escravos para o povoamento de desenvolvimento de Cabo Verde”

Ao referir-se genericamente aos atributos das diferentes etnias, elogiou o militar guineense: 

“Militarmente falando, têm excepcionais qualidades para serem aproveitadas como valentes e bravos soldados, por neles predominar espírito belicoso, tem grande resistência física, conveniente formação moral sem lhes faltar bravura e elevado sentido da verdadeira camaradagem no combate, os Fulas, os Mandingas, os Papéis e os Balantas. Os Bijagós são óptimos marinheiros. É preciso, porém, para com eles se fazer a guerra enquadrá-los com oficiais e alguns sargentos europeus, uns e outros convenientemente instruídos na política indígena e em hábitos de higiene tropical… os indivíduos portugueses-guineenses têm especial vocação para a nobre profissão das armas, pois gostam de uniforme, adoram os distintivos garridos, são sóbrios, resistentes, bons observadores e exímios exploradores”.

É um orador que não teme o tratamento de questões sensíveis e aborda com liminar clareza as especificidades do esforço da ocupação: 

“Cabe exclusivamente ao Exército e à Marinha a grande honra de terem salvo a Guiné das cobiças estranhas que rondavam os nossos domínios. Na verdade, como nos meados do século XIX faltavam na Guiné as grandes instituições morais da civilização ocidental, como não existiam os elevados interesses económicos, como era fraca a assimilação rácica e quase nula a cultural, se a reduzida força armada de que dispúnhamos tivesse falhado na sua missão de soberania, não flutuaria hoje ali a bandeira das quinas”.

Detém-se o conferencista na hábil política de Honório Pereira Barreto, e atira uma outra verdade: 

“Como não teve continuadores, como falhámos a seguir na política indígena, perdemos algumas posições preponderantes a favor da França”.

É uma época de abatimento, de completa deriva:

“A despeito da resolução da questão de Bolama, o nosso prestígio estava muito abalado e logo em Janeiro de 1871 houve a revolta dos grumetes da velha praça de Cacheu, massacrando o Governador, Capitão Mário Teles Caldeira. A partir de 1895, aproveitando-se um período de paz relativa, esboçou-se a plano para pacificar a Guiné com a colaboração dos régulos nossos amigos. Foi sol de pouca dura. Em 1897, o Governador Pedro Inácio de Gouveia assume o comando das forças que partem de Bissau para Caió, a fim de castigar os Manjacos sublevados. Cumprida a missão, pensa em pacificar o Oio, leva consigo os chefes Lamine Indjai e Quecuta Mané que morre em combate”.

Fará referências às operações dos governadores Júdice Biker e Oliveira Muzanty, bem como a sublevação do Oio que se reacendeu em 1910, seguem-se as campanhas de Teixeira Pinto e mais à frente tece um comentário a Abdul Indjai: 

“A sua desgraça veio da situação de preponderância que criou na Guiné, do seu espírito irrequieto, da fraqueza de algumas autoridades, da duvidosa actuação de outras e da sua inadaptação a uma política fraternal para com os pacificados seus irmãos de sangue. Deve-se, sobretudo, ao facto de não ter sido nomeado governador da colónia após a ocupação efectiva o seu ídolo: João Teixeira Pinto”

Importa referir que está presente na sala o filho, também militar, do herói João Teixeira Pinto. Em jeito de apreciação final ao controverso Abdul Indjai e ao seu banimento, comenta: 

“Diremos que o triste fim do herói teve origem na sua índole irrequieta, na inveja provocada pela situação de preponderância que tinha criado, na falta de prestígio das autoridades administrativas, na duvidosa actuação do comandante militar de Bissorã e Farim e na falsa compreensão do que é deve ser uma boa política indígena”.

Começara, então, uma nova era, após a pacificação e refere a rede de estradas, as 43 empresas de transporte fluvial e o peso económico que a colónia pode vir a ter no futuro, enuncia as produções e exportações de amendoim, coconote, couros, cera, borracha, óleo de palma, arroz e madeiras. 

Não ilude, dentro da problemática religiosa, a insignificância do catolicismo dizendo que existem seis missões católicas com quatro filiais, oito missionários e doze auxiliares. A referência aos efetivos militares esconde veladamente uma crítica, pois em 31 de Dezembro de 1944, o Exército tem 10 oficiais e 59 praças, englobando sargentos, cabos e soldados; a Marinha está reduzida a 1 oficial e 4 praças e a polícia tem o magro efetivo de 2 oficiais, 6 chefes e subchefes e 30 guardas.

O Major Dimas Aguiar mostra-se muito preocupado com a pouca população, sugere uma operação para atrair os descendentes dos indígenas que fugiram durante as campanhas de ocupação, era importante trazer as famintas populações cabo-verdianas e mais brancos metropolitanos. Era uma situação demográfica que precisava de terapêutica urgente, não podia haver tão poucos brancos. Pelo censo de 1940, existiam na colónia 1419 indivíduos brancos, sendo 899 do sexo masculino e somente 520 do sexo feminino. E sentenciou: 

“Não se pode concluir que estejamos no caminho de evitar a condenável e aviltante procriação de mulatos, que já então se contavam por 2200 almas”.

Atendamos ao nível das mensagens, aos juízos expendidos, aos alertas demográficos, ao cuidado posto na atuação do Capitão Teixeira Pinto e ao seu valoroso colaborador Abdul Indjai, sobre o qual o orador é indulgente, como se fosse possível que o principal ajudante do herói das campanhas de ocupação não se pudesse ter transformado num homem da guerra, vaidoso e tirânico. Para que conste, e fique na análise das mentalidades há 7 décadas atrás.
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Nota do editor

Último poste da série de 19 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21268: Historiografia da presença portuguesa em África (227): Aleixo Justiniano Sócrates da Costa - Um outro olhar sobre a Guiné em 1885 (2) (Mário Beja Santos

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20665: Historiografia da presença portuguesa em África (200): “A Guiné Portuguesa, subsídios para o seu estudo”, comunicação de Carlos de Almeida Pereira, no 3.º Congresso Internacional de Agricultura Tropical, Londres 1914 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O antigo Governador Carlos Pereira apresentou o seu trabalho num congresso de agricultura tropical, em Londres, 1914. Carlos Pereira é um republicano entusiasta, no seu livro "A Presença Portuguesa na Guiné", Caminhos Romanos, 2016, Armando Tavares da Silva revela a atividade do governador que se viu confrontado com hostilidades entre indígenas, uma epidemia de febre amarela, o nascimento da liga guineense, a chegada de Teixeira Pinto como novo Chefe de Estado-Maior, as primeiras operações no Oio e, sobretudo o seu nome fica associado à demolição da muralha de Bissau.
Esta obra tem o duplo interesse de registar na monografia, e com o maior rigor e precisão, a organização política administrativa, os dados económicos, não deixando de relevar as potencialidades da economia agrícola; além disso, é importante o seu acervo fotográfico, nenhuma obra da época lhe pode rivalizar com a qualidade das imagens, aptas para diferentes leituras.

Um abraço do
Mário


A Guiné aos olhos do antigo governador Carlos Pereira, 1914

Beja Santos

Carlos de Almeida Pereira
Carlos de Almeida Pereira, Oficial da Marinha, foi o primeiro Governador da Guiné na I República, esteve à testa dos destinos da colónia entre 1910 e 1913. Deve-se-lhe o derrube dos muros que protegiam a vila de Bissau das investidas dos Papéis, sempre hostis. Em 1914, Carlos Pereira apresenta uma comunicação no 3.º Congresso Internacional de Agricultura Tropical, em Londres, a sua comunicação intitulada “A Guiné Portuguesa, subsídios para o seu estudo” tem edição em francês em Lisboa nesse mesmo ano, existe igualmente a versão inglesa.

Destaca-se da leitura do documento o fenomenal e mesmo inusitado acervo fotográfico, de muito boa impressão, uma variedade que permite perceber a arquitetura e a vida sobretudo em Bolama, identificando diferentes etnias, postos administrativos, o estado da fortaleza de Cacheu, etc. O documento tem também a particularidade de um caráter monográfico em que se fala do território, da administração e das potencialidades para o desenvolvimento sem nunca aludir às vicissitudes das lutas da ocupação, Carlos Pereira não refere as operações do Capitão Teixeira Pinto, dele aparece uma fotografia bem curiosa investido como Chefe de Estado-Maior.

Aborda o território e os seus habitantes, dá-nos um quadro bem curioso das missões de demarcação de fronteiras entre 1888 e 1905, os nomes de quem participou logo na primeira demarcação, do lado português e francês e posteriormente. É categórico na superfície da colónia depois da última demarcação: cerca de 36 mil quilómetros quadrados. Descreve os recursos hidrográficos, a meteorologia e o clima. No estado atual da higiene diz sem rebuço que a colónia não se prestava à adaptação da raça branca. Quanto à fauna, recorda-nos que havia poucos elefantes e de pequena estatura, os paquidermes encontravam-se principalmente na circunscrição de Buba, Geba e Cacine. Fala também em antílopes de diferentes variedades, búfalos, leopardos (?), hienas, raposas e lobos. Lembra também a existência de hipopótamos, alude às numerosas variedades de primatas, pássaros, répteis e insetos. A população era estimada em 400 mil habitantes.

O antigo governador confessa não possuir elementos para fazer um estudo etnográfico dos povos da Guiné, sem prejuízo de elencar um número de grupos étnicos, bem próximo da realidade: Felupes, Baiotes, Banhuns, Cassangas, Brames ou Mancanhas, Balantas, Fulas-Forros e Fulas-Pretos, Mandingas, Beafadas, Nalus, Sossos, Papéis, Manjacos, Bijagós e Oincas, esboçando uma caraterização destas etnias. Há aqui um ponto curioso que é a referência a “indeterminados”, situando-os no regulado do Cuor, na margem direita do Geba, frente a Bambadinca, dizendo que viviam até 1908 os Beafadas chefiados por Infali Soncó, que foi destituído depois da sua rebelião, o Cuor foi entregue a Abdul Indjai, os Beafadas deixaram o regulado, uns dirigiram-se para o Oio e outros para Quínara, Abdul Indjai conseguiu atrair indígenas pertencentes a diferentes grupos étnicos exteriores (Turancas, Seruá, Saracolés, etc.). Dado que o território é pobre, Abdul não se interessou muito por ele, foi ocupado pelos Oincas. Este é o exemplo de indeterminados dado por Carlos Pereira.

Uma família Papel

Mulher Grumete -Papel

 Tecelões Grumetes

Mulheres Grumetes - Manjacas

OBS: - Todas estas fotografias pertencem à monografia que Carlos Pereira apresentou em Londres, em 1914.

Os brancos eram computados nalgumas centenas, funcionários, comerciantes, empregados de comércio e agricultores. É minucioso no enquadramento que faz da organização política e administrativa, elenca os respetivos órgãos. Na orgânica especifica os concelhos e postos militares: Bissau, Mansoa, Cacheu, Arame, Bissorã, Mansabá, Churo, Gole, Caranquecunda, Bambadinca, Buruntuma, Xitole, Boduco e Ilha Formosa.

Inevitavelmente, dá a sua leitura da economia agrícola, e começa por dizer que na Guiné o europeu não pode dedicar-se diretamente aos trabalhos da agricultura, a mão-de-obra deve ser indígena. Exprime o seu otimismo, a colónia é um imenso reservatório de produtos naturais de exportação, o único produtor é o indígena que trabalha por conta própria e em condições tais que não permitem a concorrência do europeu em empregar indígenas assalariados. Mas também observa que a mão-de-obra se obtém com facilidade para os trabalhos públicos, para as tripulações das embarcações, para trabalho doméstico, empregados das casas comerciais e particulares, para o trabalho de carga e descarga dos navios, etc., desde que o indígena seja bem tratado, pago com justeza e que lhe seja dada a garantia de poder abandonar o trabalho em certas épocas para se dedicar às suas atividades no seu chão.

Refere igualmente as obrigações do Banco Nacional Ultramarino com o Estado, em contrapartida dos seus privilégios, o banco exerce gratuitamente as funções de Tesoureiro do Estado, recebe os rendimentos públicos, os depósitos judiciais, emite dinheiro, pode fazer operações de crédito agrícola, empréstimos hipotecários, transferências, câmbios, etc.

Muito curiosas são as conclusões do trabalho de Carlos Pereira apresentado em Londres, dizendo que em 1909 o eminente colonial Mr. Messimy escrevia no relatório referente ao orçamento geral do Ministério das Colónias da França que a Guiné Portuguesa, inteiramente encravada nos territórios franceses, economicamente pouco desenvolvida, desprovida de todo o hinterland, não tem mais que interesse histórico para o reino lusitano.
E diz, com certa ufania:  
“Este meu trabalho mostra que não somente Mr. Messimy mas também outros homens de Estado portugueses do regime monárquico se enganaram nas suas previsões. A Guiné Portuguesa, depois da Implantação da República entrou numa fase decisiva de prosperidade, completamente assegurada pela riqueza do seu solo, pela situação geográfica e pelas aptidões dos seus habitantes”.
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20641: Historiografia da presença portuguesa em África (199): Relatório da Província da Guiné Portuguesa, 1888-1889, pelo Governador Interino Joaquim da Graça Correia e Lança (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20041: Historiografia da presença portuguesa em África (171): "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje" - Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Somos levados a questionar como é que este testemunho, uma edição de autor, um documento escrito em 1935 e editado em 1937, passa praticamente à margem da historiografia da Guiné colonial. Pélissier, sempre com azedume e a palmatória da crítica, fala de erros na datação, é assunto importante, mas estabelece uma confusão entre a árvore e a floresta, ninguém, até àquela data, escrevera com tanta riqueza de pormenor e, como se irá ver no texto seguinte, o testemunho do Sargento António dos Anjos dá-nos uma larga margem para desvelar a Guiné nos anos 1910 e 1920, como mais ninguém o fez.

Um abraço do
Mário




Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos: 
A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (1)

Beja Santos

Há pelo menos dez anos que andava atrás deste documento do 2.º Sargento reformado António dos Anjos, um testemunho sem paralelo, praticamente omisso em quem estudou e escreveu este período que vai entre as décadas de 1910 e 1930, René Pélissier faz-lhe uma referência não muito abonatória, até uma crítica mesquinha, paciência. O Sargento dos Anjos irá descrever ao pormenor a sua comissão de dois anos, como aqui chegou, ao tempo havia uma epidemia de febre-amarela, e logo comenta: “Encontrava-se nesse tempo parte da colónia ocupada militarmente, mas a maior parte insubmissa, habitada por raças extremamente rebeldes e de espírito aguerrido, havendo apenas dois Residentes civis, um em Bafatá, outro em Farim”.

Este “resumo” de António dos Anjos não é fácil de encontrar, descobri-o na Hemeroteca Municipal de Lisboa, recomenda-se vivamente a sua leitura pelo caudal informativo.

Já reformado em Bragança, dá-nos muita informação. Logo referindo as cinco grandes etnias de instintos ferozes que estavam em estado de rebelião: os Papéis, os Balantas, os Oincas, os Manjacos e os Mancanhas ou Brames. “No entanto, os mais temíveis eram os Papéis e os Oincas, porque estas duas raças eram descritas com um verdadeiro horror”. Procede ao enunciado das campanhas anteriores onde de vez em quando se engana em datas, o importante é a relação que nos deixa, teve seguramente acesso a alguém que as inventariara: 1844, Ilha de Bissau, Papéis revoltados; 1870, Cacheu, região dos Manjacos, sempre insubmissos; em 1878, Nhacra, região dos Balantas, distúrbios e recusa de pagar impostos; 1880, Forreá; 1886, Cuor, região dos Beafadas; 1891 e 1894, ilha de Bissau, ataques constantes à vila; 1895, na ilha de Jata, região dos Manjacos; 1897, Oio, região dos Oincas; 1902, Belor, região dos Felupes e igualmente outra rebelião no Oio; 1907, Felupes em estado de guerra, uma operação em Campampe e Sansacuto, região dos Fulas; 1908, ilha de Bissau, Cuor e Quínara, a região dos Beafadas em estado de revolta e uma operação em Samonge, região dos Balantas, Farim; 1911, Binhome, região dos Balantas; 1912, Susana, região dos Felupes ou Baiotes.


O Sargento dos Anjos lança-se a pormenorizar a operação ao Oio, em 1897, tendo à frente Graça Falcão e António Caetano, foi um massacre a que escapou milagrosamente Graça Falcão, que andou sozinho a monte, autêntica odisseia. Dá testemunho da rebelião na ilha de Uno, em dezembro de 1918, a coluna a que ele pertencia resistiu à fúria dos Bijagós graças ao uso das armas.

Voltando atrás, dá conta como o governador Júdice Biker, em 1902, castigou os Oincas pelo massacre de 1897. E recorda outro dado que muitas vezes o historiador descura, as lutas interétnicas que se prolongaram com violência mesmo depois das operações de pacificação no tempo de Teixeira Pinto. Um exemplo: “Ainda em 1931, houve nos subúrbios de Bissau guerra entre Papéis e Mancanhas, principiando junto ao mercado de Bissau; e mesmo à vista das autoridades, os Papéis assassinaram Mancanhas que procuravam fugir para dentro da fortaleza”.

Sempre bem documentado, detalha as operações de Teixeira Pinto, recorde-se que o autor desconhecia completamente a obra que na década de 1940 a Agência Geral das Colónias publicou, de acordo com o documento preparado pelo filho do Capitão Teixeira Pinto. Diz ele que os três grandes colaboradores de Teixeira Pinto foram Abdul Indjai, régulo do Cuor e do Oio, Mamadú Sissé, nomeado régulo dos Felupes e o chefe de guerra Alfá Mamadú Seilu.


Assistiu às transformações de Bissau e é encomiástico: “A cidade de Bissau, que ainda há poucos anos era pequena vila de ruas apertadas, sem alinhamento, dali a pouco tempo entrava em progresso, ajardinando-se, abrindo-se ruas largas e avenidas, construindo-se magníficos edifícios, tornando-se o ponto de convergência de boas estradas que, pela sua vez, faziam irradiar, lentamente, a civilização para todos os pontos da colónia, e por onde, amiudadas vezes, transitavam automóveis e camiões carregados de mercadorias, atravessando sertões que têm muitos quilómetros de extensão, onde ainda havia milhares de negros que nunca tinham visto um branco”. Alarga-se nas suas observações sobre o porto e cais do Pidjiquiti e apresenta a fortaleza.

Em certos momentos, a sua comissão militar vem ao de cima, recorda os valorosos que caíram em combate, vale a pena citá-lo, vai seguir-se uma série de testemunhos do que viu durante a sua comissão de dois anos:
“Chegando algum dia a fazer-se uma ponte que seja construída em alvenaria ou em cimento armado, no rio entre Mansoa e Bráia, onde desde há anos se encontra a ponte feita com paus de cibe e carantins, dever-lhe-ia ser dado o nome de Ponte dos Mártires da Guiné, visto que foi naquele ponto onde moram massacrados tantos militares que iam pela primeira vez tentar abrir caminho de Mansoa a Bissorã. As campanhas que Teixeira Pinto fez na Guiné, onde se travaram os mais violentos combates foram as de: Região do Oio em Canchuncuto e Mansabá; Região dos Manjacos, no Xôroenque e Basserel; na Região dos Balantas, na Bráia e Encheia; na Região dos Papéis, em Intim, Jaál e Quinhamel, e onde os Papéis e Grumetes sofreram a maior derrota foi no Biombo. As praças que mais se distinguiram nestas campanhas foram os Sargentos Moens, Faria, Vilaça, Amorim, Jacinto e o cabo Godinho.
O Sargento Amorim, também 1919, na campanha de Mansabá – região do Oio – mais uma vez mostrou a sua coragem e valentia, junto do desditoso Alferes Figueira, onde este no seu posto de combate tombou para sempre, quando foi atacado aquele pequeno quartel. Ainda hoje jazem os restos mortais deste oficial ao lado de três soldados indígenas, junto ao baluarte que heroicamente defendiam! Era um homem modesto, desprendido de vaidades, um excelente camarada e muito estimado pelos seus superiores!
Não devo deixar despercebido o 2.º Sargento Augusto das N. Rocha, que além de, por uma casualidade, não ter feito parte de nenhuma campanha das que houve na Guiné, desembarcou nela em 1912 e ainda nela se encontra com residência fixa em Safim, região dos Papéis, sendo um bom colonial. Este transmontano de rija têmpera foi um valente! Mostrou-o quando em 1907, voluntariamente, foi incorporado na grande coluna de operações, do comando do bravo transmontano Alves Roçadas, à grande e aguerrida região dos Quamatas, no sul de Angola, onde foi condecorado com a Medalha de Valor Militar.
Ainda atualmente se encontram transitando na Guiné algumas praças, já reformadas, que em tempos que já lá vão, treparam parte do solo desta rica colónia, debaixo de fogo e que foram louvadas e condecoradas com a medalha de cobre comemorativa das campanhas do Exército Português, com a legenda “Bissau 1915”: os Sargentos Amorim, Teixeira, Anjos e o Cabo Godinho.”

(continua)
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Notas do editor

Vd. postes de:

29 de junho de 2017 > Guiné 61/74 - P17523: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (1): Até à pág. 14 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

3 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17538: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (2): Págs. 15 a 23 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

6 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17551: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (3): Págs. 24 a 32 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

10 de Julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17564: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (4): Págs. 33 a 42 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

13 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17576: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (5): Págs. 43 a 51 (Alberto Nascimento, ex-Sold. Cond. Auto da CCAÇ 84, 1961/63)

17 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17590: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (6): Págs. 52 a 60 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

20 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17603: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (7): Págs. 61 a 69 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

24 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17613: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (8): Págs. 70 a 79 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

27 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17622: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (9): Págs. 80 a 88 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)
e
31 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17637: "Resumo do que era a Guiné Portuguesa há vinte anos e o que é já hoje", da autoria do 2.º Sargento Ref António dos Anjos, Tipografia Académica, Bragança, 1937 (10): Págs. 89 a 97 (Alberto Nascimento, ex-Soldado Condutor Auto)

Último poste da série de 31 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P20024: Historiografia da presença portuguesa em África (169): “Monjur, o Gabú e a sua História”, por Jorge Vellez Caroço; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1948 (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19942: Historiografia da presença portuguesa em África (166): Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Para os historiadores, nomeadamente para quem trabalha no período chamado de pacificação e ocupação da Guiné, é documento incontornável, o Capitão João Teixeira Pinto dá conta das escolhas a que procedeu para encontrar tropas auxiliares, enumera os seus colaboradores próximos, a Operação do Oio, sobre o Oio e sobre os Papéis do Churo, que antecederam a campanha de Bissau, aqui minuciosamente descrita. Teixeira Pinto era profundamente detestado por uma ala militar e pela Liga Guineense, é lastimável não possuirmos as peças concludentes que iluminem todo este processo que levou ao afastamento do capitão, que mais tarde viu o seu nome ressarcido. Uma das queixas foi a brutalidade exercida, os troféus de guerra e as pilhagens dos irregulares. Abdul Indjai saiu altamente beneficiado, é nomeado régulo do Oio, e depois perseguido, acusado das piores infâmias. Mamadu Sissé sairá pela porta triunfal, o seu nome é apresentado ao longo de décadas como o símbolo da lealdade guineense a Portugal.

Um abraço do
Mário


Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (2)

Beja Santos

O relatório que o Capitão Teixeira Pinto dirigiu ao Governador da Guiné, em 1 de setembro de 1915, referente à coluna de operações contra os Papéis e Grumetes revoltados da Ilha de Bissau, é um documento-chave para a compreensão do que foram as últimas operações da chamada pacificação da Guiné continental, em 1915. O documento, em sede dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, foi reproduzido no Boletim da Sociedade vinte e um anos depois, e tem sido documentado por alguma historiografia. O interesse que lhe conferi foi ver certas correções introduzidas e desenhos das operações, mas na verdade fica-se sem saber se são da autoria do capitão ou de quem ofereceu a cópia à Sociedade de Geografia de Lisboa.

No texto anterior, Teixeira Pinto comenta a derrota do inimigo e a necessidade de se proceder a uma conquista efetiva da Ilha de Bissau. Procede a um balanço:
“Tivemos 3 soldados feridos e nos irregulares 88 baixas, sendo 70 feridos e 18 mortos. Entre os feridos estava a chefe de guerra Mamadu Sissé, que depois de pensado não quis ficar no hospital, continuando à frente da sua gente. Todos se portaram com uma valentia que não há palavras para o poder descrever. Saliento o tenente de guerra que fez o seu batismo de fogo mostrando durante o combate muita energia e muito sangue frio, parecendo mais um guerreiro encarniçado nas guerras africanas do que um novato saído há pouco da Escola de Guerra.
O inimigo atacou com muita valentia e muito convencido pelos massacres que nós sofremos em 1891 e 1894 que eles nos massacraram e que tomariam conta da vila cujas casas comerciais e mulheres eles já tinham dividido entre si.”

Dias depois, começa a marcha sobre o chão Papel, com a seguinte formação:
“Na frente, para desenvolver sobre o alto de Bandim ia o Mamadu Sissé. Em seguida ia Aliburi (filho de Abdul Indjai) para desenvolver à direita dele onde apoiava a sua esquerda e, em seguida, os Futa-Fulas de Alfá Mamadu Seilú com os seus soldados e a metralhadora. Da retaguarda, marchava Abdul Indjai com a sua gente pronta a aparar o ataque do lado de Antula”.

O inimigo rompe fogo, a coluna passou todos os obstáculos e repeliu para além dos altos de Intim e Bandim. “Nesse dia de luta de 1 contra 10, com inimigo bem armado com armas aperfeiçoadas, bastante cartuchame e com a lenda de invencível, cada soldado, cada irregular, cada voluntário foi um herói. Graduados regulares e irregulares portaram-se de tal modo, mostraram tanta energia, tanto sangue frio, desenvolveram tal actividade que não sei descrever o entusiasmo e o reconhecimento que me invadiu quando à tarde estávamos acampados sem se ouvir um tiro no mesmo sítio em que acampou a coluna de 1908, que foi sempre mais ou menos hostilizada pelos inimigos”.

Está a coluna acampada no alto de Bandim há escassos dias, dá-se novo ataque dos Grumetes e Papéis, é repelido. “Durou duas horas o fogo, tendo nós tido 27 feridos e 4 mortos. Nesse dia, prevenia a praça que avançava no dia imediato sobre Antula e que fizessem o bombardeamento de Antula das 8 às 9 horas e que às 9 horas eu romperia a marcha, podendo às 9 e 30 horas atirar alguns tiros de granada sobre as povoações que deixávamos para evitar que viessem na nossa retaguarda”.

Segue-se um auto e na manhã seguinte a coluna prepara-se para uma luta rendidíssima em Antula, considerada pelos Grumetes e Papéis como chão sagrado, o Governo nunca tinha ali ido ao som de guerra.
Segue-se a descrição:
“A coluna levava marchando na frente em atiradores o chefe de guerra Mamadu Sissé com a sua gente apoiada pelo pelotão de soldados e metralhadora. No flanco esquerdo em fila indiana, a gente de Alfá Mamadu Seilú e Cherno Bacar. No flanco direito, também em fila indiana, a gente de Aliburi que apesar de ferido continuou em serviço. Na retaguarda, estendidos em atiradores, parte dos irregulares sob o comando directo de Abdul que marchava no centro com a reserva, pronto a acudir no ponto mais ameaçado. Encontrámos resistência fraquíssima. Papéis e Grumetes que estavam na povoação, depois de algum tiroteio, fugiram quando viram soldados e irregulares carregarem para o assalto. Perseguidos, deixaram bastantes mortos. Não tivemos mortos nem feridos e tínhamos tomado o chão sagrado. Ficou tão limpo de inimigos o território que às 15 horas o 2.º Sargento Vilaça e o voluntário Jorge Karam seguiram para Bissau por terra a levar a feliz nova da tomada de Antula sem mortos ou feridos”.

Dias depois de acampados em Antula, seguem para Cujá, nisto ouve-se forte tiroteio na retaguarda, era um ataque de Grumetes e Papéis. Segue-se até Jaal, com mais ou menos tiroteio, na mata, Grumetes e Papéis faziam uma gritaria ensurdecedora. Carrega sobre o inimigo, debaixo de chuva intensa. Jaal estava abandonada. Na manhã seguinte, o inimigo voltou a fazer fogo sobre o acampamento dos irregulares, carregou sobre o inimigo, foi desalojado. É neste contexto que Teixeira Pinto é ferido, marcha-se para Safim, o capitão entregou o comando ao Tenente Sousa Guerra e recolheu-se à lancha-canhoneira Flecha. Enumeram-se várias escaramuças dias a fio. Dias depois, a coluna progride para Contume e Bor, que foram tomadas. O inimigo ataca o acampamento de Bor, novamente repelido. Bor é cercada, o Tenente Sousa Guerra vai em seu auxílio. Grumetes e Papéis não resistem ao ataque a Cumeré. É neste enquadramento que se dá um episódio marcante. Em meados de julho, o régulo de Tor comunica a Teixeira Pinto que quer entregar armas e espadas. Foram então enviados mensageiros ao régulo do Biombo para que ele mandasse dizer se queria paz ou guerra.

Importa reproduzir na íntegra a prosa de Teixeira Pinto:
“Iniciámos a marcha às dez horas e meia e chegámos a Tor às doze e meia. Encontrámos o rei e os seus grandes sentados debaixo de umas grandes e lindas árvores. É um rapaz novo e simpático. À nossa chegada não estava ainda confirmada a sua nomeação. O povo queria-o, mas o rei de Biombo queria outro, por este não ser inclinado à guerra. Quando chegámos, este apresentou-se como rei e como tal ficou. Tinha junto algumas espingardas e espadas (…) Enviámos ao régulo do Biombo para que ele mandasse dizer se queria paz ou guerra. À noite vieram dois enviados dele trazendo meia dúzia de armas de pedreneira muito escangalhadas, dizendo que o régulo queria paz mas não podia juntar mais armas porque os rapazes as não entregavam. Percebi que era troça e mandei-lhe dizer que no dia seguinte iria para o Biombo e se ele realmente estava em boas condições e não queria guerra, que nos esperasse à entrada da povoação com as armas da sua gente. No dia seguinte, seguimos para lá e à entrada do Biombo estava uma árvore muito grande e grossa a que chamam aqui poilão, do lado da nossa marcha havia um monte de 80 espingardas encimadas por uma bandeira branca.
Do lado oposto estava o régulo com alguns dos seus grandes. Logo à chegada da guarda avançada da coluna e quando estavam a ver umas armas, partiu uma descarga feita pelos Papéis que se achavam emboscados por detrás de um morro de terra cercado por purgueiras, escapando por pouco de ser atingido o chefe de guerra Abdul Indjai. Não esperava semelhante traição e o régulo foi preso. Houve tiroteio rijo que durou até à tarde, tendo nós 17 feridos e 3 mortos. Interrogado o régulo, declarou que ele nunca se submeteria porque ele odiava os brancos, que tinha mandado sempre 500 homens a cada combate que tinha havido e que enquanto ele fosse vivo e houvesse um Papel do Biombo, haviam de fazer guerra ao Governo, e que se morresse e que se no outro mundo encontrasse brancos, que havia de fazer guerra.”

E este importante documento termina assim:
“Permita-me, Senhor Governador, que eu fale dos meus valentes colaboradores para os quais eu não encontro palavras no meu coração de português, nem para exprimir todo o meu reconhecimento pelo valioso serviço prestado à nossa querida Pátria, nem por saber traduzir todo o meu desejo de que lhes fossem dadas recompensas condignas.
Singelamente, descrevi os serviços prestados pelos meus auxiliares e irregulares e voluntários, mas V. Ex.ª decerto com a sua clara inteligência saberá compreender aquilo que a insuficiência da minha pena não soube dizer.
Como resposta àqueles que diziam que em Bissau não queriam que se fizesse a guerra aos Papéis e Grumetes, basta ler as linhas anteriores em que indivíduos e casas comerciais de Bissau cederam gratuitamente os seus barcos e concorreram com dádivas e provas inequívocas de simpatia”.

Régulo Mamadu Sissé, fotografia de Domingos Alvão, o régulo esteve presente na I Exposição Colonial que decorreu no Porto, em 1934.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19920: Historiografia da presença portuguesa em África (164): Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19920: Historiografia da presença portuguesa em África (165): Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2018:

Queridos amigos,
Teixeira Pinto ficou na História da Guiné Portuguesa como a figura determinante da submissão de povos rebeldes como os Grumetes, os Papéis, os Manjacos, os Mancanhas. Tendo estudado as causas dos sucessivos insucessos e desastres, concluiu que precisava de outro tipo de auxiliares. No seu relatório de 1915 não explica as razões que o levaram a escolher Abdul Indjai e o que o teria impressionado nos seus auxiliares. Como é bem sabido, iria tornar-se numa das figuras mais polémicas e contestadas, censurado por morticínios e brutalidades praticadas pelos seus auxiliares. Entrou em rota de colisão com a Liga Guineense, será afastado da Guiné, irá morrer em combate no Norte de Moçambique.
No Estado Novo, o seu nome receberá todas as honras, e jamais se falará do comportamento de Abdul Indjai, acusado de toda a casta de prepotências como régulo do Oio. Parece que o nome dos heróis lendários é quase sempre atravessado pela nódoa dos seus colaboradores...

Um abraço do
Mário




Teixeira Pinto e as operações na ilha de Bissau, 1915 (1)

Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa existe a cópia do relatório que o Capitão Teixeira Pinto redigiu ao Governador da Guiné, com data de 1 de setembro de 1915, em Bolama. Foi oferecido à Sociedade de Geografia de Lisboa em 20 de junho de 1936 por Raúl Ferreira Chaves e editado no Boletim da Sociedade, número de setembro e outubro de 1936. É bem interessante ver nesta cópia correções e desenhos das operações, sabe-se lá a quem atribuir autoria. O texto é um dos clássicos da pacificação, uma janela aberta para se entender vários contenciosos entre Teixeira Pinto e uma certa classe sociopolítica, com destaque para a Liga Guineense, neste relatório se fala do régulo do Cuor, Abdul Indjai, figura altamente problemática não só no Cuor como no Oio, é um relatório de operações minucioso, não há menção àquilo que nós hoje chamamos “danos colaterais” e que foi um dos cavalos de batalha dos hipercríticos ao trabalho de Teixeira Pinto. Pela sua extensão, vamos destacar vários textos que julgamos de grande importância para a submissão dos Papéis e Grumetes.

Logo o arranque do relatório:

Ex.mo Sr. Governador (Andrade Sequeira)
Não quis a sorte que V. Ex.ª assistisse à campanha que acaba de realizar-se, mas sinto-me bastante satisfeito por ser V. Ex.ª quem deve apreciar o trabalho hercúleo que os nossos camaradas de terra e mar e auxiliares tiveram de despender para se conseguir o belo resultado que é indiscutível embora o despeito e a inveja daqueles que nada produziram a favor da Província e que só sabem censurar e criticar, procuram discuti-lo.
Para esses todos o meu desprezo e dos meus valentes companheiros de armas. 

Após esta introdução, segue-se um histórico em que se diz abertamente que em 1912 a autoridade portuguesa era puramente nominal entre os rios Farim e o oeste do rio Geba, abrangendo os povos Oincas, Balantas, Brames ou Mancanhas, Manjacos e Papéis, a exceção eram as vilas de Cacheu e Bissau e o porto militar de Gole. Refere os insucessos e desastres de Graça Falcão, da coluna Júdice Biker, bem como da coluna Soveral Martins no Churo e os desastres das colunas de 1891 e 1894 em Bissau, onde também teve insucesso a coluna de 1908, sob o comando de Oliveira Muzanty. Conclui Teixeira Pinto que as causas desses reveses era o aproveitamento de Grumetes como auxiliares e o pouco conhecimento do terreno, dos usos, costumes e forma de combater dos povos a submeter. Procurou uma alternativa, encontrar auxiliares diferentes dos Grumetes. Considera que estes eram bons para um desembarque, ataque rápido, pilhagem e volta para as suas casas, não eram capazes de se conservar nas regiões atacadas, pois tinham família em Bissau, Geba e Cacheu. E explica como encontrou alternativa. Numa ida a Bafatá, graças a Calvet de Magalhães, o Administrador, conheceu o régulo do Cuor, Abdul Indjai, fez um rápido estudo dele e desse estudo concluiu que estavam encontrados os auxiliares de que precisava. Precisava agora de estudar o terreno. Para ir ao Oio, combinou com o gerente da Casa Soler para o levarem no vaporinho da empresa até Porto Mansoa, seria apresentado ali como inspetor da Casa que ia a Farim inspecionar a sucursal e que para tal pretendia ir a cavalo através do Oio.


Depois de algumas peripécias, e até de um princípio de envenenamento, chegou ao Oio a 16 de maio, ali entrou vitorioso com pouco mais de 300 homens, desarmou os insurretos e conseguiu que eles passassem a pagar imposto. Refere no seu relatório que a região ficou completamente submetida e sob a nossa autoridade, tinha-lhe sido dito pelo comandante do Oio, José Ribeiro Barbosa (já se fez no blogue referência ao importante relatório que o Tenente Barbosa enviou para Bolama, documento que também consta dos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia) que muitos indígenas que há já muito tempo estavam refugiados no território francês recolheram ali, voltaram a fazer as suas culturas no Oio.

Com a chegada da época das chuvas, Teixeira Pinto foi forçado a descansar e estudou a campanha de Bissau.
Vale a pena ver o que ele escreve diretamente ao Governador:
“Em Dezembro de 1913, mandou-me V. Ex.ª a Cacine porque em Gadamael os indígenas se tinham sublevado e queriam matar o Administrador. Fui ali e consegui prender os dois cabeças do motim e restabelecer a ordem sem ter havido fogo.
Em 18 de Dezembro, recebi em Cacine um telegrama de V. Ex.ª, chamando-me com urgência a Bolama. Chegado aqui, deu-me V. Ex.ª a infeliz nova do massacre do Churo, em que perdeu a vida o desditoso Alferes Nunes, alguns polícias e o pessoal de bordo do motor Cacine, que os rebeldes queimaram.
As dificuldades na organização de uma coluna constam do meu relatório sobre uma campanha que iniciei a 2 de Janeiro de 1914 com mais de 300 homens, avançando por uma das duas regiões de mais fama dos Papéis do Churo. O esforço dos meus valentes auxiliares e irregulares deu-me a vitória e em seguida com esse punhado de valentes submeti os Manjacos e os Mancanhas ou Brames, tendo-os desarmado.
Estas regiões ficaram submetidas e ocupadas pelos Grumetes, apoiados pela Liga Guineense que emprega todas as suas influências para impedirem a guerra.
O atrevimento dos Papéis era tal que nas ruas de Bissau quando se cruzavam com algum europeu em lugar de se afastarem pelo contrário esbarravam com os europeus e com um encontrão afastavam-nos. Quando algum branco ia passear fora da vila, logo a cem metros, era frequente encontrar um Papel que lhe dizia para voltar para a vila porque aquilo não era do Governo, era deles. A um estrangeiro que foi caçar apanharam-lhe a arma e obrigaram-no a pagar uma multa para os resgatar.
A campanha provou que os Papéis e os Grumetes estavam muito bem armados e municiados”.

Continuando os seus comentários, relata que a 18 de maio chegara Abdul Indjai a Nhacra com 1600 irregulares armados e explica o vaivém das canhoneiras e até das emboscadas de que estas foram alvo. Houve escaramuças até no Alto de Intim, ripostou-se com um contra-ataque que provocou imensas perdas aos Papéis.
E finda este ponto dizendo:
“Senhor Governador, para mim estava terminada a lenda dos Papéis. Com aquela coluna depois da rude prova por que acabava de passar e ainda do entusiasmo do que estava possuído, eu adquiri a certeza da derrota do inimigo e da conquista da ilha de Bissau”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19919: Historiografia da presença portuguesa em África (163): O reino de Fuladu, de Alfa Moló Baldé a Mussá Moló, da bacia do rio Gâmbia ao rio Corubal (1867 - 1936) (Cherno Baldé)