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sábado, 4 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24117: Os nossos seres, saberes e lazeres (558): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
Começou a viagem pela rua Gomes Freire, ao gosto de conhecer o espaço do que foi a Academia Militar foi-se inculcando aquela medonha sensação que toda aquela estrutura onde se formaram oficiais, onde viveram os cadetes, tiveram aulas, fizeram ginástica, usufruíram de espaços de convívio, é território em quase abandono, sem préstimo, fica-nos a impressão de que estão ali milhões e milhões de valor que podiam servir para concentrar serviços da instituição, andamos a falar em economia circular, combate aos resíduos e desperdícios e temos ali aquele imenso gigante num quase abandono, agonizante. Impunha-se conhecer a outra parte e o nosso confrade, o Coronel António Morais da Silva ajudou a escancarar as portas, visitou-se a Bemposta a preceito, ali morreu a rainha em 1705, tem impressionante histórico porque foi pertença da Casa do Infantado, instalação de general napoleónico, residência de D. João VI, por aqui passou a Corte de D. Pedro IV, a Biblioteca é uma construção fulgurante, majestosa, sábia em aproveitamentos vários, e a harmonia da Capela Real deixa-nos sem fôlego. Como aqui se contará.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (92):
Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (1)


Mário Beja Santos

Por aqui já se andou, entrada pela Gomes Freire, para conhecer a Academia Militar, como ela foi e praticamente deixou de o ser. Tem longo historial: foi Escola do Exército entre 1837 e 1910, Escola de Guerra entre 1911 e 1919, Escola Militar entre 1919 e 1920, manteve o mesmo nome de 1920 a 1938, ano em que passou a Escola do Exército até 1959, e nesse ano nascia a Academia Militar. Visita com constrangimento, na companhia de um ilustre confrade do nosso blogue, o coronel António Morais da Silva, vou fazendo perguntas quanto aos edifícios e ao seu abandono visível, não entendo como todo aquele equipamento pode estar no mais completo abandono, independentemente de haver manutenção, visitou-se o que era possível visitar, e acordou-se em nova itinerância, a Bemposta, ultima residência da rainha viúva de Inglaterra, Catarina de Bragança, ao que parece a filha dileta de D. João IV, levou como dote uma fortuna, tinha que ser assim, precisávamos como pão para a boca de um aliado poderoso que fizesse frente à hostil Espanha, o tratado de paz ainda vinha longe quando Catarina partiu para Londres e se supunha dar continuação à dinastia dos Stuart, o que não aconteceu. Anos depois de viúva, foi decidido regressar, tomou a decisão de comprar o terreno (tão extenso, que mais tarde se separou aquela enorme parcela que é hoje o Hospital de D. Estefânia), tem hoje os seus limites atuais entre as ruas Gomes Freire, D. Estefânia, Jacinta Marto e Escola do Exército, a fachada principal do edifício do paço está virada para um largo, o Paço da Rainha. D. Catarina regressara a Lisboa em 1693, andou por vários palácios até que em 1699 adquiriu uma propriedade para ali construir a sua residência definitiva e pessoal. Mal sabia que depois da sua morte esta residência iria passar para a Casa do Infantado, D. João V concedeu-a ao seu irmão, o Infante D. Francisco; sofreu enormes estragos com o terramoto de 1 de novembro de 1755, fez-se a reconstrução; foi poiso de tropas napoleónicas, aqui se instalou o quarte general do general Delaborde, virá a ser palco de acontecimentos marcantes da história do liberalismo em Portugal, residência de D. João VI, aqui se instalou a Corte de D. Pedro IV; e em 1850, D. Maria II promulga um decreto que destinava o palácio à instalação da Escola do Exército, instituição fundada em 1837 pelo Marquês de Sá da Bandeira, general Bernardo de Sá Nogueira Figueiredo.

O rol de alterações, obviamente, é de uma extensão que deixa o visitante atabalhoado, quem por ali andar às cegas terá dificuldade (senão impossibilidade, de detetar no interior as marcas do início do século XVIII). Por fora é outra coisa, basta ver as sucessivas gravuras de diferentes épocas, manteve-se o sóbrio da fachada, apostou-se no que há de mais magnificente na escadaria e na fachada principal que leva à Capela Real. Há estudos sobre a residência régia, a riqueza dos materiais, os têxteis e os belíssimos azulejos. Na primeira visita mirei e fotografei o admirável conjunto que Jorge Colaço concebeu para a entrada do que é hoje a Academia Militar. Nesta visita à Bemposta, bem me deliciei com o património azulejar do espaço por onde a rainha teve aposentos e salões de receção.

A Academia Militar editou livro sobre D. Catarina de Bragança e o Paço em 2005, por ele me procurei guiar.

Capela e Paço Real da Bemposta, 1910, fotografia de Joshua Benoliel
Carlos II de Inglaterra e Catarina de Bragança na Old Somerset House - Escola Inglesa (séc. XVII)
Azulejaria na Sala do Conselho, tendo ao fundo imagens de alunos que foram Presidentes da República
Como se pode ficar indiferente a tão alta qualidade azulejar? Mas há mais, numa divisão contígua à Sala do Conselho (construção já da Academia) há um silhar de azulejos azul e branco que corre à volta de toda a divisão; na Sala do Conselho, são painéis com albarradas datados de finais do século XVII e inícios do século XVIII.

O citado livro fala de um vasto conjunto de alterações, havia um tanque de mármore no jardim que hoje se encontra em S. Pedro de Alcântara. A instalação da Escola do Exército exigiu uma nova disposição interna dos espaços como se escreve no citado livro: “O corpo principal do conjunto da Bemposta ficou destinado para a instalação dos serviços administrativos e logísticos daquela instituição, de espaços dignos para a receção das visitas oficiais, bem como de outros espaços indispensáveis ao apoio na formação dos alunos, a exemplo do que aconteceu na Biblioteca. Com o passar dos tempos, foi também possível proceder à constituição de um pequeno núcleo museológico de modo a preservar as memórias da Escola.”

É neste sentido que vale a pena deambular por esses espaços, outrora áulicos, agora com a dignidade necessária para acolher quem visita o gabinete reservado ao oficial general que comanda a casa, foi por ali que eu andei a bisbilhotar.
Está feita a visita, o senhor general teve a deferência de oferecer café a quem lhe bateu à porta, ainda há muito para ver, talvez o mais espetacular, a Biblioteca e a Capela Real, é o percurso a seguir.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24097: Os nossos seres, saberes e lazeres (557): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (91): A Coragem da Gota de Água é que Ousa Cair no Deserto (Mário Beja Santos)

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24066: Notas de leitura (1556): Em "A Minha Guerra a Petróleo", por António José Pereira da Costa; Chiado Editora, 2019 - "Cerca das 281330AGO71", uma memória de guerra, uma apreciação de um facto (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Mansabá ea lgumas das tabancas (Mansomine, Manhau, Mantida, etc.) desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau (Vd. poste P12150, de Ernesto Duarte)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


N
o meu primeiro comentário no Poste 24063, fiz referência ao infortúnio que atingiu o então Cap Faria Monteiro, comandante da CART 3417, quando pisou uma mina antipessoal ali para os lados de Manhau.

No seu livro "A Minha Guerra a Petróleo", o nosso camarada António José Pereira da Costa, Cor Art Ref, faz referência este incidente nas páginas 159 a 167, porque o Cap Monteiro era, e é, seu amigo. Porque a narrativa está muito pormenorizada e fiel ao acontecimento, pelo menos nas horas difíceis passadas em Mansabá e em que eu e os meus camaradas tivemos a nossa modesta intervenção, não resisti a transcrever aqui no Blogue o capítulo na íntegra. Só espero que o nosso esforço tenha minorado a extensão dos ferimentos sofridos pelo Cap Monteiro.

A propósito, o livro "A Minha Guerra a Petróleo" ainda pode ser adquirido, tendo um custo actual de 14,00€, através da WOOK, por exemplo.
São 187 páginas de leitura interessante complementada com algumas fotos.

CV
********************

Cerca das 281330AGO71[2]

Este texto não é só mais uma memória de guerra, uma apreciação de um facto que veio ter comigo. Será a maneira como observei algo que sucedeu a outra pessoa e a memória que disso guardei, influenciada por situações que vivi antes e depois. Julgo que este texto pode ser considerado uma homenagem.

Saindo de Mansabá em direcção a nascente encontrávamos três pequenas localidades abandonadas: Mansomine, Manhau e Mantida. No tempo da paz eram servidas pela estrada que seguia para Banjara - esta já a mais de 18 km de distância - e que, na altura em que por ali andei, também já fora abandonada. Não pertencia ao nosso sector. Era apenas algo de que se falava...

Nos patrulhamentos que realizávamos naquela direcção, marcou-me especialmente a visão do quartel de Manhau, abandonado e destruído. Segundo apurei, fora um destacamento da Companhia de Mansabá, ocupado quinzenalmente por um grupo de combate e um pelotão de milícia com umas condições de vida muito más e para onde era necessário levar tudo, até a água, numa viatura-tanque. Qual seria a vantagem táctica de uma posição com aquelas características? Como tantos outros "quartéis da malta", acabara abandonado e destruído "à granada de mão", por volta de 1966.

Naquela altura, ainda se reconheciam as duas fiadas de arame farpado, agora ferruegnto e quebrado aqui e além, vagamente esticado entre as últimas varas que o tinham suportado. O cavalo-de-frisa ainda se mantinha de pé, mas inútil não chegava a vedar o acesso ao interior da área quadrada, que deveria ter tido cerca de trinta a quarenta metros de lado. No interior, nenhuma construção ou mesmo restos do que pudesse ter sido uma, eram identificáveis com clareza, mas no exterior, o sistema de iluminação continuava bem representado por alguns postes: uns já caídos, outros resistindo às intempéries numa posição quase vertical. Cada poste não era mais do que um tronco de palmeira cravado no solo, ao qual havia sido adossado pela geratriz um "abat-jour" cilíndrico deveras original.

Era constituído por um bidon vazio que tinha sofrido umas pequenas, digamos, adaptações. Uma das tampas - a que ficaria para baixo - fora removida, mas a outra apenas havia sido separada da superfície lateral do cilindro em pouco mais de metade do perímetro. Depois de aberta a geratriz oposta à que fora pregada ao poste, um petromax ficava pendente da face inferior da tampa, no interior do cilindro. Julgo que assim se pretendia preservar o candeeiro dos ventos e das chuvadas, mantendo o perímetro do aquartelamento iluminado. Sempre que um dos Petromax fraquejasse, o "electricista de noite" tinha uma tarefa a cumprir. Considero este abat-jour mais uma prova do "desenrascanço nacional" e do engenho (que não arte) dos Portugueses.

Todavia, o sistema fornecia pouca iluminação para que os defensores pudessem observar a área circundante da posição. Em compensação, o In dispunha de uma visão privilegiada sobre ela, a algumas centenas de metros de distância. Agora, olhar para este "quartel" era contemplar uma espécie de peça de arqueologia militar, que entristecia se procurássemos saber o que levava a que o destacamento fosse construído, sabe-se lá com que esforço, e depois abandonado. Depois deste, era a tabanca de Mantida, onde os militares que guarneciam Manhauiriam buscar laranjas de boa qualidade e correndo os inerentes riscos. Era uma lenda, mas para que tenha surgido é necessário que, pelo menos uma vez, lá tenham ido...

Devo ter ido a Manhau e Mantida duas ou três vezes, mas para além da visão das ruínas do quartel, tenho a imagem de uns dois metros de estrada onde a erva não tinha crescido, passado mais de um ano. Tinha sido ali... segundo se dizia e eu acredito, pois - soube dpois - que, além da mina que vitimara o Monteiro, havia mais três que o furriel de minas e armadilhas tinha detonado.

Eu estava em Bissau com a Bateria Ati-aérea, quando o Joaquim Evaristo me deu a notícia. O Monteiro[4] tinha pisado uma mina anti-pessoal. Há notícias que não podem ser dadas de outra maneira: de modo brutal e com uma frase curta e, como todas do mesmo tipo, de significado imediatamente dedutível. Não sei porquê, mas não fui logo ao Hospital. O Joaquim foi e, pouco tempo depois, só medisse:
- Está sem um pé.

Logo que me foi possível fui ao Hospital e localizei-o. Estava num quarto, deitado na cama com uma perna esticada e a outra erguida e apoiada em algo que se parecia com uma almofada...

Fiquei sem saber o que dizer, mas o silêncio de poucos segundos tornou-se impossível de suportar. Nestes momentos, sabemos que é necessário dizer ou fazer qualquer coisa, mas não temos a ideia do que possa ser. Se calhar, concentramo-nos em nós e no que sentimos, quando deveríamos considerar que o ferido ou o doente grave que ali está é que deverá estar antes de tudo.

Tartamudeei qualquer coisa, nem sei o quê. Depois tentei saber como as coisas tinham sucedido. A estrada abandonada ainda conservava as rodeiras, as marcas dos pneus das viaturas que por ali tinham passado. E foi ao movimentar-se pela área entre rodeiras que encontrou a mina.

Por outras experiências que tive, sei que a surpresa inicial deu lugar ao espanto e à pergunta feita a si mesmo:

- O que sucedeu?

Depois é uma mistura de dor sentida e uma vontade de sair dali, de tudo aquilo que não seja verdade e de um turbilão de perguntas que acabam por se redizir a uma certeza: "Estou gravemente ferido. Isto também me aconteceu a mim".

- A mim? Porquê a mim?

Os outros têm muito que fazer. A nós, nada mais resta do que aguentar a dor e sentir revolta contra a falta de sorte e a irreversibilidade da situação

Dez dias depoi de ter completado 24 anos!...

À chegada dos reforços vindos de Mansabá, os enfermeiros da sua Companhia já tinham garrotado a perna e metido o soro, procedimentos habituais nestas situações. Agora eram sete quilómetros em coluna, de regresso ao quartel, num percurso em que se queria evitar solavancos, sempre excessivos para quem sofre. Porém, nesse dia chovia e, devido à pouca visibilidade, os helicópteros não voavam. Podia ser que as condições melhorassem, mas há dias em que nem os astros ajudam. Cerca das cinco da tarde confirmou-se que o héli não viria e não houve outra solução que não fosse a evacuação, em coluna auto. A espera inglória na enfermaria foi angustiante. Uma tortura que nada justificava. 

Por fim, o pessoal de enfermagem "depositou" a maca numa das viaturas e a coluna partiu em marcha moderada. Seria uma viagem até Mansoa e daí, em ambulância, até ao hospital. Todavia a viagem de Mansoa a Bissau "não estava prevista" e a coluna por ser de quase cem quilómetros, até Bissau, debaixo de chuva intensa. Já tinham passado bastantes horas e o sofrimento físico e psicológico somavam-se, numa aritmética de revolta sem fim, que só terá tido uma paragem pelas seis e meia da tarde à entrada do Hospital Militar de Bissau. Tinham decorrido cinco horas.

Ouvi a descrição do Monteiro e, não podendo ou não sabendo, dizer mais, respondi-lhe que agora "era necessário reagir". No segundo imediato apercebi-me da agressão que tinha cometido. Há coisas que, mesmo que se pensem, não se dizem e o Monteiro fez-mo sentir respondendo-me.
- Reagir? Reagir, reages tu que tens duas pernas. Agora eu só tenho uma...

Fiquei sem palavras. Uns instantes de silêncio depois, despedi-me e deixei o quarto. Além do monte de gaze que marcava agora o fim da perna fiquei impressionado com a cor das gengivas que o ferido apresentava. Brancas. Disseram-me que era do soro que lhe fora ministrado, durante muito tempo. Por mim, penso que era um indício de anemia pela perda de sangue.

Poucos dias depois, voltei com o major Gaspar, nosso amigo e meu segundo-comandante. Ainda estou para saber o que o terá levado a aparecer, naquele dia, com as fitas das condecorações e com o brasão do Regimento de Artilharia n.º 3 (de Évora) sua unidade habitual. Era à tarde e os feridos e doentes tinham sido postos na varanda do hospital, talvez numa tentativa de lhes melhorar a disposição, se tal fosse possível...

A conversa foi curta e eu8 procurei ficar calado. O nosso amigo, talvez por ser mais velho, parecia ter maior capacidade de diálogo, mas, ao fim de alguns minutos, o silêncio acabou por surgir. O Monteiro disse, de repente e num tom que parecia subtil, mas que comportava uma crítica muito amarga e contundente:

- O meu major está muito bonito, com as condecorações!

Com o sol já baixo, ficou-me a imagem do major Gaspar com os olhos marejados, a dizer, como se se justificass:

- Calhou. Isto não é nada. Já estavam postas nesta camisa quando a vesti hoje.

Não arranjo melhor expressão para descrever a nossa saída da varanda: "Fugimos"

E chegou a véspera da evacuação para Lisboa.

De novo, o major e eu fomos ao hospital. O jantar já fora distribuído há muito e os corredores estavam desertos e escuros. Eu tinha para mim que seríamos recebidos com frieza, se não mesmo com agressividade. Porém, ao entrarmos no quarto, fomos saudados com alegria e boa disposição. Era a saída da Guiné, o retorno à "Metrópole" e à família. Era o fugir dali, um lugar onde não pertencia, para um sítio onde poderia reencontrar os seus, aqueles que havia deixado pouco mais de dois meses antes.

Fiquei surpreendido por falarmos com certo à-vontade e eu, já não me lembro a propósito de quê, disse qualquer coisa como:

- Pois é, a vida está má!

O Monteiro tratou-me pela alcunha e comentou:

- Boa piada PK! Boa piada! Olha, que até o meu coto se ri!... - e, agarrado à perna, abanava-a com as mãos.

Foi então que concluí que uns produtos daqueles que tiram as dores e dão boa disposição, talvez euforia, deveriam ter andado por ali, misturados na sopa ou mesmo em todo o resto do jantar.

O Gaspar, por seu turno, aproximou a orelha do coto entrapadíssimo e, pedindo-lhe que ligasse o transmissor, comentou a qualidade da música que estaria a ouvir.

Mais uma vez fiquei sem saber o que dizer. Não me lembro se saí por minha iniciativa, por não poder suportar o surrealismo daquela cena, ou se fui levado pelo final da visita, decretado pelo meu segundo-comandante, para meu alívio, confesso.

A partir daqui e ao longo da minha vida, fui recordando duas situações que desenterrei na memória e que envolviam pernas, as pernas do Monteiro. Uma ainda na Academia e outra já quando éramos oficiais.

Nunca tive grande jeito para um qualquer desporto em especial. Contudo, um dia descobri o basquetebol. Achei-o curioso, mas cedo concluí que deve ser dos jogos de bola mais difíceis de praticar. Ou seria "o árbitro" que me perseguia? Certo é que, sempre que eu tocava na bola fazia falta, "por passos". E não havia maneira de aprender a técnica. E aquela regra é tão apertada, convenhamos!...

Apesar disto, não desisti e resolvi aprender com o Monteiro. E uma das coisas que ele me ensinou foi que, ao receber a bola com ambas as mãos, eu deveria escolher um "pé-eixo" que, a partir daí não poderia mexer. Era como se estivesse soldado ao chão. Pelo menos, foi o que entendi. Acabei por desistir da aprendizagem, mas mantive o gosto pela modalidade, graças às indicações do meu improvisado mestre.

Recordei também a cena na Sala de Oficiais da Escola Prática de Artilharia para onde o nosso curso de tenentes tinha sido enviado para o Curso de Promoção a Capitão, que, depois, não valeu. Mas isso já são questões laterais. Uma manhã, no rádio da sala passava "Les Champs-Elysées", na voz de Joe Dassin. Bela melodia e letra curiosa e bem construída Andávamos pelos nossos vinte e dois a vinte e cinco anos e fôramos musicalmente educados na música europeia. Tínhamos cinco anos de francês, no ensino secundário, e numa música como aquela era fácil encontrar encanto. Imediatamente constituimos uma libha de seis ou sete bailadores com as mãos apoiadas no ombros do que nos ficava ao lado. Depois, em sincronismo, atirávamos alternadamente a perna direita para a esquerda e a perna esquerda para a direita, ao rítmo da música, uma gajice própria dos jovens que éramos, apesar de já todos termos um ano de África, em Angola, em Moçambique ou na Guiné para onde partíramos três e só dois haviam voltado. Naquela idade, ainda tínhamos uma certa garridice que permitia enfrentar o futuro com certo ânimo e confiança, mesmo tendo já adquirido uma certa (má) experiência da vida e sabendo que os tempos que se avizinhavam tinham tudo para ser de provação. A dada altura alguém comentou:
- Olhem só para isto! Os futuros comandantes das companhias de Artilharia que irão para o Ultramar!...

O grupo desfez-se, de imediato. Caíramos em nós. No fundo, éramos oficiais respeitáveis e conscientes dos nossos deveres e não podíamos permitir-nos a brincadeiras como aquela...

Depois da evacuação para Lisboa, tive notícias dispersas do Monteiro, até nos encontrarmos na AM na celebração dos trinta anos do nosso curso. Nessa altura, disse-me que era professor. "Professor", mas com P Grande. Por mim pensei:

- Ainda bem! Nem outra coisa era de esperar de um Homem da minha geração!

Mem-Martins, 10 de Agosto de 2018

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Notas do autor:

[2) - Esta é a maneira de referir nas comunicações militares ou em documentos escritos, algo que sucedeu cerca das 13 horas e 30 minutos do dia 28 de Agosto de 1971. Fica assim constituído o chamado "grupo data-hora".

[3] - Naquele tempo, nas unidades tipo Regimento da Metrópole, havia um "electricista de dia" nomeado por escala.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P24001: Os nossos seres, saberes e lazeres (551): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (86): A Academia Militar, fundada por Sá da Bandeira, pela entrada da Gomes Freire (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
Graças ao desvelo do nosso confrade, o Coronel Morais da Silva, fiz o primeiro périplo pela Academia Militar, na Gomes Freire. Há anos que aspirava entrar neste espaço. Estava completamente esquecido que a vida ativa da escola passou de armas e bagagens para a Amadora, estão aqui uns larguíssimos milhões devolutos, ao que parece a instituição militar pode dar-se ao luxo de desmazelar ou deixar ao abandono tão importantes instalações. E há aspetos que doem bastante, passámos pelo que terá sido uma área de atividades desportivas e de educação física, tudo ao abandono, as ervas a tomar conta de um espaço que deverá ter sido formoso. Tudo agravado, talvez por ser dia feriado, por não ser ver praticamente vivalma. Há muita beleza na Bemposta, aqui o património denota a existência de muitos cuidados, mesmo com sinais de que há obras pertinentes para fazer, caso das portadas da entrada, já a descascarem. Mas será com imenso prazer que aqui voltarei para conhecer os outros tesouros da Bemposta.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (86):
A Academia Militar, fundada por Sá da Bandeira, pela entrada da Gomes Freire


Mário Beja Santos

Passei vezes sem conta à porta desta instituição, vi entrar e sair cadetes, o meu destino era lá mais abaixo, na zona do Campo do Mártires da Pátria, ia visitar a minha irmã, ou o meu amigo Raúl Perez ou o Instituto Alemão ou descer a Calçada de Santana, passar pelo Convento da Encarnação e desaguar no Martim Moniz, à procura de especiarias.
Um dia, conversando com um nosso confrade, o Coronel Morais da Silva, manifestei-lhe vivamente o meu desejo, ele fora professor da Academia mais de 20 anos, além de cadete, aqui se diplomara. E um dia acertou-se numa data de visita, uma manhã fria de feriado. Talvez tenha sido melhor assim, a falta de bulício deu para intensificar a sensação de que todo aquele espaço ao abandono é um gravoso desperdício. A instituição tem larga história, gozou de várias designações, foi Escola de Guerra, Militar e do Exército, tornou-se Academia em 1959, e mais recentemente transferiram-se para a Amadora as escolas e a vida dos cadetes. O que encontrei fechado não resultava de dia feriado, é puro abandono, ao que parece as nossas luminárias ainda não encontraram forma expedita de potenciar tão rico património, ademais todas esta Academia Militar assenta no primitivo Palácio da Bemposta, a residência da rainha viúva de Carlos II de Inglaterra, Catarina de Bragança. Propriedade enorme, mais tarde dela foi desafetado o terreno onde se construiu o Hospital Dona Estefânia, a igreja mandada construir pela rainha é um primor de arte.
Gostei do estado dos jardins, mas já conheceram melhores dias. Achei curiosa esta lápide do tempo do reinado de D. Carlos para comemorar o edifício da Escola do Exército, tendo ao lado um ginásio já do tempo da I República, há uma bela sintonia arquitetónica a despeito da diferença de regimes políticos.
Com tudo fechado, e de ouvido atento às descrições feitas pelo anfitrião, caminhámos para a Bemposta onde nos aguardava o sr. Coronel Rodrigues, Diretor do Museu Militar, era suposto uma visita a preceito ao edifício e mesmo à igreja, muita coisa ficará para a segunda visita. Avançou-se para a entrada da Academia a partir do Paço da Rainha, a multiplicidade de conjuntos de azulejos, obra de Jorge Colaço, enche-nos as medidas, conjuntos perfeitos, elucidativos, pela sua disposição vamos acompanhando as atividades das diferentes armas tratadas na então Escola do Exército, ou da Guerra ou Militar.
E daqui passou-se para um espaço museológico, impensável não captar a imagem do legado desse bravo militar que foi o Marquês Sá da Bandeira, até a prótese do seu braço direito deixou à escola que o fundou. Enquanto se visualizavam os oficiais mortos em combate, chamou-me à atenção nas paredes os oficiais mortos na Guiné e na Primeira Guerra Mundial, ocorreu-me ao pensamento que nós só morremos quando deixamos de ser lembrados, uma instituição militar que se preza grava para todo o sempre os seus heróis e os seus mártires.
Impossível não visitar a Sala do Conselho Académico, aqui decorrem atos solenes, pelas paredes espalham-se os retratos de antigos diretores.
Daqui se parte para um espaço de outras memórias, condecorações de antigos alunos que deixaram rasto pela bravura e reconhecimento pátrio, caso do general Almeida Bruno.
A nossa visita está prestes a terminar, voltaremos à Academia Militar para visitar a belíssima biblioteca, outro espaço histórico da Bemposta e a igreja. Chamou-me à atenção o vitral brasonado da escola da Academia e as sucessivas referências porque passou a Academia, como se disse foi designada por Escola até 1959. Até breve.
Biblioteca da Academia Militar

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P23981: Os nossos seres, saberes e lazeres (550): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (85): Com que alegria revisitei Buscot Park, entre Faringdon e Lechlade (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23973: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVII: Leopoldo Jorge da Silva, maj art (Viseu, 1868 - Moçambique, 1916)

MORTOS EM COMBATE (MOÇAMBIQUE, 1914-1918)



Leopoldo Jorge da Silva. maj art  (1868 - 1916)


Nome: Leopoldo Jorge da Silva

Posto: Major de Artilharia

Naturalidade: Viseu

Data de nascimento: 29 de Março de 1868

Incorporação: 1890 na Escola do Exército (nº 329 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Artilharia de Montanha (1º Grupo)

Condecorações: Medalha de Prata “Rainha D. Amélia” | Cavaleiro da Real Ordem Militar de S. Bento de Aviz | Medalha da Cruz de Guerra de 1ª classe (a título póstumo) | Promoção a Tenente Coronel por distinção (a título póstumo)

TO da morte em combate; Moçambique

Data de Embarque; 15 de Julho de 1916

Data da morte: 10 de Novembro de 1916

Sepultura: Cemitério de Nevala - Tanzânia

Circunstâncias da morte: Comandando a coluna de Mossari atacou denodadamente, em 8 de Novembro, forças alemãs em Quivambo obrigando estas a retirar com perdas significativas. No combate travado foi ferido com gravidade: Evacuado para o fortim de Nevala, faleceu dois dias depois (10 de Novembro).




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23968: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVI: Artur Augusto Rodrigues, alf inf (Sabrosa, 1895 - França, CEP, 1918)

 

Artur Augusto Rodrigues (1895 - 1918)


Nome: Artur Augusto Rodrigues
Posto: Alferes de Infantaria
Naturalidade: Sabrosa - Vila Real
Data de nascimento:  20 de Julho de 1895
Incorporação: 1916 na Escola de Guerra (nº 430 do Corpo de Alunos)
Unidade: 2ª Brigada de Infantaria, 8º Grupo de Metralhadoras
Condecorações:
TO da morte em combate: França (CEP)
Data de Embarque: 10 de agosto de 1918
Data da morte: 14 de Outubro de 1918
Sepultura: França, Cemitério de Richebourg l'Avoué
Circunstâncias da morte: Faleceu em 14 de Outubro vítima de ferimentos recebidos (estilhaços de granada) sendo inicialmente sepultado em Tin de Barn



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste sa série > 13 de setembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23613: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXV: Pedro Carrazedo Campos Viana de Andrade, alf art (Portalegre, 1897 - França, CEP, 1918)

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23811: Notas de leitura (1521): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte III: Salazar, Caetano e as Forças Armadas... (Considerar os capitães milicianos como "voluntários" e "mercenários", raia o insulto, não?!..)

1. Estivémos a ler o livro de João Céu e Silva (ribatejano de Alpiarça, nascido em 1959, escritor e jornalista), "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.).

A pensar nos leitores do blogue, já fizemos duas notas de leitura (*), onde ficou patente a nossa opinião posiva sobre a obra. É um trabalho de grande fôlego e meritório, que resulta de uma verdadeira  maratona de entrevistas (42 ao todo, realizada ao longo de 2 anos, quase até ao fim da vida do entrevistado).

O protagonista desta "longa viagem" é o historiador, ensaísta, cronista, jornalista, analista político e também efémero político Vasco Pulido Valente (VPV), pseudónimo literário de Vasco Valente Correia Guedes (1941-2020).

Independemente dos aspetos mais polémicos da vida e obra do entrevistado (que, no campo do jornalismo quis, de certo, certo reeditar, um século depois,  As Farpas, do Ramalho Ortigão e do Eça de Queirós),  interessa-nos destacar algumas das ideias que ele gostava de explanar sobre a história do nosso país, e nomeadamente a do período que vai dos anos 30 até ao 25 de Abril de 1974, período esse onde cabe, por inteiro,  a nossa geração, justamente a que fez  "a guerra e a paz"...

Deste livro, aos nossos leitores deverá interessar,  sobretudo, o que diz respeito, direta ou indiretamemente à guerra colonial e às forças armadas, incluindo o 25 de Abril e a descolonização. 

Vamos reproduzir e analisar mais alguns excertos, com a devida vénia: (i) Salazar e as Forças Armadas; e (ii) Marcello Caetano e o Exército. (Em itálico, as declarações do VPV. Seleção, revisão, fixação de texto, para efeitos de publicação neste blogue, bem como notas complementares dentro de parêntes retos: LG) (**)

 Salazar 

e as Forças Armadas


(...) O Exército tinha duas coisas na sua mão: a sua força material e o poder. Foi assim durante muito tempo com o Carmona na Presidência da República e com ele ficou a tradição de ser sempre um militar no cargo.

Seguiu-se Craveiro Lopes, que indispôs Salazar, pelo que este não lhe renovou o mandato e, depois, Thomaz. (….)

Essa autonomia [uma certa independência do Exército dentro do regime] fez com que Marcello Caetano chamasse ao regime uma ditadura bicéfala: quando uma componente falhasse, a outra não falhava.

(…) Salazar (…) sabia que a ditadura só era eficaz se fosse bicéfala e se o Exército tivesse uma certa autonomia.

Ia-lhe custando caro durante a guerra colonial, mas sempre insistiu que era presidente do Conselho e que não queria ser presidente da República (…).

Exagerou-se muito sobre o que Santos Costa fazia e não fazia, porque o Exército chegou à guerra colonial com uma enorme independência em relação ao presidente do Conselho. (pp. 188/189). (…)

O Santos Costa (Mangualde, 1899 - Mangualde, 1892), aqui citado por VPV, foi o oficial do exército que, merecendo a inteira confiança do Salazar (mesmo sendo monárquico), desempenharia um papel fundamental na ligaçao dos sectores militares mais conservadores ao Estado Novo. Exerceu funções no Governo de Salazar durane mais de duas dezenas de anos, entre 1944 e 1958, como subsecretário de Estado da Guerra e depois ministro da Guerra,

Diz a Wikipédia: "Principal factor da reestruturação das Forças Armadas Portuguesas sob o Estado Novo e da sua subordinação ao poder político, Santos Costa participou ao lado de Salazar, de modo decisivo, na formulação da política de defesa de Portugal desde o deflagrar da Guerra Civil de Espanha até ao início da Guerra Fria, incluindo o período conturbado da Segunda Guerra Mundial. Nessas funções desempenhou um relevante papel nacional e internacional, em particular nas relações com os Aliados e na entrada de Portugal na NATO."

Segundo VPV, terá favorecido os amigos nas promoções de carreira, gerando com isso mal-estar nas Forças Armadas.


Marcello Caetano, o Exército 
e os milicianos... "mercenários"

(...) [Marcello Caetano] tinha um problema com o Exército em África: os que comandavam as tropas subiam muito rapidamente até tenente, mas depois ficavam nessa patente por muitos anos. [ Ignorância do "paisano" VPM: queria dizer capitão...]

Além de que o combate era rudimentar: a tiro de espingarda, com bazuca ou metralhadora pesada, longe da imagem que tinham do exército à americana, de onde se saía para as empresas privadas com um bom salário.

O exemplo de carreira dos nossos oficiais era esse: uns anos de escola do Exército, uns anos de alferes e dos postos mais baixos e o comando de uma companhia. Estavam preparados para fazer uma ou duas comissões, mas naquela altura já iam na quarta.

Além de que o recrutamento não dava para preencher os quadros e era preciso ocupar esses postos. Ou seja, o Marcello não tinha capitães que chegassem para liderar as companhias e havia duas soluções:

(i) uma, aumentar por meio da PIDE o número de oficiais que eram retidos para comandar companhias, o que era impossível com quem estava na terceira ou quarta comissão;

(ii) outra, ainda mais perigosa, usar voluntários milicianos (que secundavam os comandos das companhias). 

 [ Ignorância do "paisano" VPM: os capitães milicianos eram "voluntários à força"... e considerá-los "mercenários" raia o insulto... perguntemos aos nossos camaradas que por lá andaram, comandantes operacionais... A menos que VPV se esteja a referir aos "capitães do fim" ou "capitães-proveta", como tabém eram co hecidos na gíria da tropa...(***)]

Essa promoção dos milicianos foi fatal para Marcello, porque criava uma reação nos militares de carreira que estavam à espera de promoção após várias comissões de serviço.

Esse foi um dos grandes argumentos para o 25 de Abril, porque não há pior para os oficiais de carreira do que ver a tropa comandada pelos que consideravam ser mercenários. (…) (pp. 177/178)
 



quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23618: Bedanda, região de Tombali, no início da guerra - Parte II: Testemunho de Jorge (ou George) Freire, ex-cap inf, comandante da 4ª CCAÇ , no período de novembro de 1962 a maio de 1963



Jorge Freire, ex-cap inf, que esteve na Guiné, em 1961/63, e desde então a viver nos EUA (aqui com a sua esposa), e onde é conhecido por George Freire, engenheiro e empresário. Desde julho de 2019, o seu blogue tem estado inativo. Esperamos que ele e a família estejam bem de saúde.

Foto: © George Freire (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

 Vídeo (9' 56'') George Freire > Nov 62 / mar 63 > Vídeo 2/3 > Nova Lamego, Buruntuma, Bissau, Cacine, Bedanda, Chugué... Os primeiros sinais da guerra, no sul da Guiné, em março de 1963: O primeiro morto, o primeiro prisioneiro, as primeiras transferências de população, ... A farda amarela, a mauser...Fauna local: a hiena, o crocodilo... O Rio Cumbijã...

Inserido na conta do Virgínio Briote no You Tube / bra6567 (licar aqui, como alternativa, para visionar o filme)

1. Todas as guerras tem um começo, um desenvolvimento e um fim... É como um rio, que é alimentado, desde a nascente, por mil e um riachos, ribeiras e outros rios... A guerra pela independência na Guiné, levada a cabo pelo PAIGC,  era perfeitamente previsível... Só restava saber a data,  a hora e o local do primeiro tiro, como viria a acontecer em 23 de janeiro de 1963, em Tite, pelas 01h45.

Depois foi o jogo de xadrez... Nem sempre há xeque-mate, como foi o caso... Estupidamente, os dois contendores (e os seus estrategas, patrocinadores e  claques de apoio) deixaram a guerra / o jogo arrastar-se demasiado tempo, por onze (ou mais) longos anos. Acabou por se encontrar uma "solução política", esgotada a sorte das armas... que nem sempre protege os audazes.

Recuemos, pois,  ao princípio imediato, passando por cima das complexas condições antecedentes (causas próximas e remotas), que isso fica para os historiadores... 

Do lado português, é impressionante ver como uma  escassa força de algumas centenas de homens guarnecia, em agosto de 1962,  todo o sul da Guiné, compreendendo a região de Quínara (onde a guerra começou) e a região de Tombali, que era o celeiro da Guiné: Comando do BCAÇ 237 (Tite); CCAÇ 152 (Cacine, Gadamael Porto, Aldeia Formosa, Saltinho); CCAÇ 153 + Pel Caç 859 (Fulacunda);  1 Pel Caç / CCAÇ 84 (Empada e Cufat), 

ZA (Zona de Acção) de Tite - Abrangia o sul com fronteira com a República da Guiné (*):
  • Comando do BCaç 237 (Tite); 
  • CCaç 152 (- Pel e 1 Sec) (Buba);
  • 1 Pel Caç / CCaç 152 (Cacine) com 1 Sec Caç (Gadamael Porto); 
  • 1 Pe1 Caç (-)/CCaç 152 (Aldeia Formosa) com 1 Sec Caç (Saltinho);
  • CCaç 153 (-1 Pel) e Pel Caç 859 (Fulacunda); 
  • 1 Pel Caç/CCaç 84 (- 1 Sec) (Empada) com 1 Sec Caç (Cufar); 
  • 4ª CCaç (-1 Pel e 1 Sec) (Bedanda) com 1 Pel Caç (Tite); 
  • 1 Sec Caç (Cacine); 
  • CIM: 2 Pel Caç (I) (Bolama); 
  • Pel Mort 19 (Tite);
  • Destac Man Mat 245 (Tite).

Guiné > Dispositivo das NT em 8 de agosto de 1962.  Destaque para a ZA de Tite (que abrangia todo o sul, com fronteira com a Guiné-Conacri: umas escassas centenas de homens concentrados em Tite, Fulacunda, Bolama, Buba, Empada, Aldeia Formosa, Bedanda, Catió e Cacine:

Infografia: CECA (2014) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2022)

Quatro meses depois, em 1 de janeiro de 1963, o  Sector Sul era guarnecido pelas seguinte forças,  parte delas do recrutamento local: 4ª CCAÇ + Pelotões de Caçadores Indígenas (*):
  • 1 Cmd BCaç, 1 Sec Caç Indígena (I) e 1 Pel Mort todos aquartelados em Tite;
  • 1 Pel Caç (+) em Aldeia Formosa
  • 2 CCaç (-2 Pel e 3 Sec) e 1 CCaç I (- 2 Pel e 4 Sec) em Bedanda
  • ClM, 1 Pel Caç (Pel Indígena - 1 Sec) em Bolama
  • 1 CCaç (-1 Pel) + 1 AMetr em Buba
  • 1 Cmd BCaç, 1 CCS (-1 Pel Rec Inf), 1 CCaç, 1 Sec Caç (Ind) e I Pel Mort todos aquartelados em Catió
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) em Cabedú
  • 1 Pel Caç (l Sec Ind) em Caboxanque
  • 1 Pel Caç + 1 Sec Caç (Pel Ind) em Cacine
  • 1 Pel Rec Inf em Cufar
  • 1 CCaç (-3 Pel) + 1 Sec (1 Sec Ind) em Empada;
  • 1 CCaç + 1 Pel Caç + 1 AMetr em Fulacunda
  • 1 Pel Caç (-1 Sec), Pel Ind (- 2 Sec) em Chugué
  • 1 Pel Caç (1 Sec Ind) na Ilha das Galinhas.

2. Contemporâneo destes acontecimentos, temos o Amadu Bailo Djaló (**), ex-sold condutor auto, que esteve em Bedanda, na 4ª CCAÇ durante o 1º semestre de 1963, antes de se oferecer, em 1964, para os Comandos do CTIG. Do que viu não gostou, nem teve saudades de Bedanda.  

Verificamos agora que ele teve como comandante, nesse período, o ex-cap inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (ou só George Freire, como é conhecido nos EUA, para onde emigrou logo em meados de 1963, e na nossa Tabanca Grande, onde ingressou em 29/12/2008).

Da leitura do diário da Guiné, de George Freire,  depreende-se que houve um rápido alinhamento da população local, com os fulas a mostrarem-se leais às autoridades portuguesas e os balantas (e outros: biafadas, nalus...) a ficarem do lado do PAIGC...  Ficamos a saber, por exemplo, que a população (fula) de Bedanda, em meados de 1965, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, era fundamentalmente oriunda do Cantanhez, e mais concretamemte de Iemberém (no nosso tempo, Jemberém).

Houve seguramente terror e contraterror nestas ações de ambos os lados, nos primeiros tempos da guerra. Mas repare-se que os prisioneiros feitos pela 4ª CCAÇ eram  entregues ao batalhão (o George Freire não o identifica, claramente, mas seria o BCAÇ 356). 

Por outro lado, um dos alvos privilegiados da ação da guerrilha são as casas comerciais, a Ultramarina (ligada ao BNU) e à Gouveia (pertencente à CUF)... O PAIGC apropriara-se, em Cafine, em 25 de março de 1963, do navio "Mirandela", pertencente da casa à Gouveia,  e do navio "Arouca",  da casa Brandão (serão depois utilizados  para transporte de pessoal e material em águas da Guiné-Conacri).

A produção de arroz vai decrescer drasticamente nos anos seguintes. A importação de arroz mais do que triplica de 1962 (c. 9 mil toneladas) para 1964 (c. 30 mil toneladas). A Guiné nunca mais será a mais a mesma, depois do ataque de Tite, em 23 de janeiro de 1963. As comunicações (por terra e por rio), em particular, tornaram-se impossíveis ou difíceis.

(...) A situação no Sul piorava. O inimigo actuava então em quase todo o sector, aproveitando o facto de serem muito escassos os efectivos militares. As deslocações destes tornaram-se cada vez mais difíceis, em face das obstruções das principais estradas da região. Em 2/3Abr, o ln atacou por três vezes o aquartelamento do Destacamento do Chugué; assassinou nativos e régulos que resistiam ao aliciamento; no dia 07, atacou elementos militares em reconhecimento na região de S. Miguel Balanta; em 21, numeroso grupo inimigo opôs forte reacção à CCaç 414, nas ilhas de Caiar e Como. Em 22, o ln atacou por duas vezes forças militares que actuavam em Jabadá.

Esta actividade do ln levava a admitir que, no Sul da Província, só estavam efectivamente sob controlo das autoridades as populações que viviam próximo das guarnições militares; as mais afastadas consideravam-se sujeitas à pressão do ln, como é natural em guerra subversiva" (Fonte_ CECA, 2014, pág. 92).

Todos estes topónimos, citados pelo George Freire, no seu diário, são-nos familiares, para muitos de nós: Bedanda, Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberem, Mejo, Salancaur...  Ainda não se falava de Guileje nem de Gadamael... Repare-se que há tabancas que vão ser logo de imediato abandonadas (caso de Jemberém, cuja população fula é transferida então pela 4ª CCAÇ  para Bedanda), 

Achámos oportuno voltar a publicar este documento que, a par do testemunho escrito do Amadu Djaló, nos ajuda a perceber a rápida degradação da situação mlitar no sul da Guiné, nos primeiros seis meses de 1963.

2. O testemunho de George Freire [ex-cap inf Jorge Freire, da CCAÇ 153, da 3ª CCAÇ e da 4ª CCaç, Fulacunda, Nova Lamego, Bissau, Bedanda, 1961/63; hoje engenheiro, a viver desde agosto de 1963 nos EUA]

(...) "Durante o Natal de 1961 a minha mulher veio passar um mês a Bissau onde eu estava na altura a comandar uma companhia de nativos. 

Em Julho de 1962 a minha mulher voltou para a Guiné e passou quase 3 meses no Gabu (Nova Lamego), onde eu comandei uma companhia mista [3ª CCAÇ, futura CCAÇ 5, "Gatos Prertos", a partir de 1/4/1967, Canjadude, 1967/1974]. 

Do Gabu fui transferido para Bedanda   [4ª CCAÇ, futura CCAÇ 6, "Onças Negras", a partir de 1/4/1967, Bedanda, 1967/1974], onde ela ainda passou quase um mês, mas nos fins de Dezembro tive que a mandar de volta a Portugal pois as coisas começaram a aquecer demais. (...) 


O meu Diário da Guiné
 
por George Freire

Como história, transcrevo partes de um diário que encontrei no meio de papelada antiga numa gaveta da minha secretária. A primeira entrada no diário foi no dia 31 de janeiro de 1963 e a última, no dia 28 de maio do mesmo ano. Aqui vai:

31/1/63:

Ataque de terroristas aos Fulas de Jemberem 
[no original, Emberém, hoje Iemberém]. Mataram o chefe da tabanca e outros 6 Fulas.

2/2/63:

Acção em Boche Falace pelas minhas forças de Emberém. Um grupo de terroristas balantas em fuga deixou grande quantidade de arroz cozido (!).

6/2/63:

O nosso destacamento em Salancaur foi atacado às 00:30. Tivemos baixas: um furriel e um soldado foram mortos do nosso lado e vários terroristas foram abatidos. 
[O furriel foi o José do Rego Rebelo, açoriano de Ponta Delgada, CCAÇ 274 / BCAÇ 237; foi o segundo  furriel miliciano a morrer no TO da Guiné].

Nesta mesma noite, também atacaram o nosso destacamento em Cacine, mas felizmente não houve baixas a assinalar.

8/2/63:

Fui a Bissau tratar de vários assuntos da Companhia [4ª CCaç].

9/2/63:

Volta de Bissau. Manga de trabalho em atraso devido as acções dos últimos dias. Recebemos informação de que vários terroristas passaram ao largo, vindo de Catió para a zona de Cacine. As instalações da Ultramarina foram assaltadas e o encarregado europeu foi morto.

10/2/63:

Lista de material extraviado em combate: 1 capacete em Chugué, 1 espingarda Mauser e 1 pistola-metralhadora em Jemberem.

Esta madrugada as instalações da Gouveia em Salancaur foram atacadas. Os terroristas levaram cerca de 10 toneladas de arroz e outros géneros de comida.

11/2/63:

Efectuámos acções em Jemberem, Salancaur e Cadique. 

Vários elementos terroristas que tinham tomado parte no assalto aos Fulas de Jemberem foram aprisionados e enviados para a sede do Batalhão.

12/2/63:

Um alfaiate mandinga, Mamude Djassi, que tinha sido aprisionado em Chacual pelos terroristas e que passou vários dias num dos seus acampamentos, conseguiu fugir e apresentou-se ao nosso destacamento do Chugué. Foi transportado para o nosso quartel em Bedanda. Enviei um rádio para o Batalhão para que este Mandinga possa ser aproveitado como guia na acção que está a ser preparada pelo Batalhão.

13/2/63:

Enviei um pelotão para Salancaur para proteger o embarque de arroz da Ultramarina e da Gouveia.

14/2/63:

Patrulhamento feito em Jemberem e Cadique. Nesta última povoação tivemos contacto com terroristas Balantas que puseram alguma resistência mas acabaram por fugir. Três foram abatidos.

15/2/63:

O nosso quartel em Bedanda foi visitado por 3 directores da CUF, procurando informações do que se está a passar na região. 

Nessa mesma altura, terroristas rebentaram um pontão na estrada de Catió junto de Timbo

Houve também grande tiroteio em Chugué e algumas explosões na estrada próxima da área. 

Os 3 directores ficaram bem informados do que se está a passar...

16/2/63:

Chegou o Pelotão de acompanhamento da Companhia 273. Uma patrulha das nossas forças do Chugué foi atacada por um grupo armado de pistolas-metralhadoras. Não sofremos baixas mas 2 terroristas foram abatidos.

Regressou à base o Pelotão destacado em Salancaur. Foi rendida por novas forças a Secção que se encontrava destacada em Emberém.

17/2/63:

Continuaram a chegar mais elementos da companhia 273.

18/2/63:

Reconhecimentos feitos a Salancaur, Jemberem e Cadique

Aprisionámos alguns dos elementos que tinham atacado o nosso destacamento de Salancaur.

22/2/63:

Fomos visitados aqui em Bedanda pelo Comandante Militar e pelo Major Mira Dores, durante a altura em que tínhamos começado uma acção no mato de (Nhairom?), com 2 pelotões da CCaç 273 e 1 Pelotão da minha Companhia.

23/2/63:

Regresso da acção. Pobres resultados. Foram encontrados vários acampamentos terroristas, abandonados mas com indícios de terem sido ocupados recentemente. 

Foi rendida a secção de Jemberem.

25/2/63:

Reconhecimento feito em Salancaur e Mejo. O Capitão Delfino, Comandante da Companhia que substituiu a CCaç 74, visitou-nos, para discutirmos colaboração.

26/2/63:

Outra visita pelo Comandante Militar e o Comandante da Força Aérea, para discussão sobre a colaboração da FA na próxima operação que iremos executar. Pormenores foram discutidos em detalhe.

27/2/63:

O Capitão Relvas veio da sede do Batalhão visitar-nos em Bedanda. Aparentemente, o Comandante do Batalhão está chateado por não ter sido consultado nos detalhes de apoio pela FA. e tomou a decisão de fazer a operação sem esse apoio. (Incompreensível!).

A acção começará esta noite a partir das 00:04.

A acção terminou pelas 15:00 do dia 28/2/63. Os resultados que poderiam ter sido bastante satisfatórios, foram praticamente nulos, pois vários grupos de terroristas conseguiram, (devido a configuração e extensão do terreno de acção), fugir e dispersar. Se a FA tivesse colaborado os resultados teriam sido tremendos, pois o número de terroristas que conseguiram infiltrar-se entre as nossos forças foi considerável. (Esta foi a opinião de todos os comandantes de pelotão directamente envolvidos na acção. Na área onde a minha companhia actuou, notamos exactamente os mesmos resultados).

É evidente que os terroristas foram avisados da operação a tempo de poderem debandar. Nada me admira, pois temos um número considerável de soldados nativos, incluindo Balantas...


1/3/63:

Hoje pela 09:30 e mais tarde pelas 14:30, pessoal do pelotão do Cabedú sofreu emboscadas respectivamente entre Cafal e Cafine e no cruzamento de Cabante. Na segunda emboscada sofremos um morto e um ferido. Uma viatura Chaimite 
[lapso: talvez Daimler ou Fox ou White, não havia Chaimites em 1963], foi destruída na primeira emboscada. Seguiram dois pelotões reforçados para os locais das emboscadas.

Em Impungueda uma patrulha da CCaç 859 travou contacto com os terroristas e feriu alguns e os outros conseguiram fugir.

2/3/63:

Durante parte do dia de ontem e durante todo o dia de hoje as nossas forças percorreram todo o terreno nas zonas das emboscadas. Encontraram vestígios dos atacantes, fizeram um prisioneiro que tinha tomado parte numa das emboscadas, mas nada mais. O soldado ferido seguiu de avião para Bissau e o morto foi enterrado no cemitério de Bedanda.

O prisioneiro foi interrogado mas poucas informações conseguimos. Foi enviado para o Batalhão para ser interrogado.

3/3/63:


O Comandante Militar veio cá hoje de avião com o segundo Comandante do Batalhão 356. Depois de informados dos acontecimentos dos últimos dias, seguiram para Catió.

4/3/63:

Recebemos informação do Batalhão de um possível ataque planeado pelos terroristas a Caboxanque e Jemberem.

Enviei dois pelotões para Jemberem e Cadique, ponto de onde, segundo a informação, os terroristas se estavam a organizar para os ataques. Em Caboxanque executámos acções por um pelotão da minha companhia e outro da CCaç 273.

6/3/63:

Fizemos um reconhecimento à zona de Jemberem. O Alferes Gonçalves encarregou-se de falar aos chefes Fulas de Jemberem e discutir a possível mudança das suas tabancas para Bedanda. Há toda a vantagem dessas mudanças para incrementar a protecção da população Fula. Poderemos também formar aqui e em Bedanda um pelotão de uns 40 Fulas, o que nos poderá ajudar substancialmente na segurança da área e aliviar as nossas forças. Os chefes Fulas aceitaram a nossa oferta de braços abertos.

7/3/63:

Começámos o transporte da população Fula de Jemberem. Usámos 10 viaturas neste movimento. Calculamos que serão necessárias 3 mais viagens semelhantes.

8/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Seguiram dois pelotões da CCaç 273 para a região de Salancur.

9/3/63:

Continuação do transporte dos Fulas. Os pelotões da CCaç 273 continuaram a operar na região de Salancur.

Elementos Fulas de Emberem conseguiram aprisionar um nativo que sabiam estava ligado ao movimento terrorista. Quando este nativo (Balanta) foi interrogado aqui na Companhia, deu-nos a informação de que elementos terroristas estão no mato de Boche Falace a prepararem um ataque àquela povoação. Enviámos um pelotão da CCaç 273 para a área.

Recebemos também informação, por elementos do Chugué, que um grupo de terroristas bem armado estava concentrado do outro lado da fronteira com a Guiné Francesa, perto da zona de Banta-Sida.

Mais informações recebidas do pelotão de Emberem: cerca de 300 elementos terroristas estavam a preparar um ataque à nossa companhia em Bedanda na madrugada de amanhã.
Dei ordens para que todo o nosso pessoal, (estávamos um pouco desfalcados pois tínhamos 2 pelotões em operações longe de Bedanda), estar em alerta em posições defensivas, já há muito preparadas para eventualidades semelhantes. Foi uma longa noite de nervos, mas o ataque nunca se deu.

10 e 11/3/63:

Acabámos o transporte dos Fulas de Emberem para Bedanda, contudo ainda teremos que transportar abastecimentos e víveres que ainda lá ficaram, em especial uma grande quantidade de arroz. 

Os Fulas fizeram um outro prisioneiro que, após interrogado, nos deu boas informações sobre o grupo terrorista que tem actuado na zona de Boche Falace: nomes de comandantes, armamentos e locais aproximados do grupo. Este prisioneiro foi enviado para o batalhão.

13/3/63:

Recebemos novas informações sobre um outro possível ataque ao nosso aquartelamento no dia 16 ou 17.

O Benfica venceu o Dukla de Praga para a Taça dos Campeões Europeus. Ouvimos o relato no rádio.

15/3/63:

Chegou um pelotão da CCaç 417 que seguirá para Caboxanque. Enviei uma grande coluna de 10 viaturas para Jemberem para trazer o resto dos víveres pertencentes aos Fulas.

16/3/63:

O pelotão da CCaç 417 seguiu para Caboxanque para render o Pelotão 859.

18/3/63:

Chegou o Pelotão 859 que seguirá para Bafatá. A CCaç 273 partiu para Jemberem em operações, não se sabendo por quantos dias.

19/3/63:

Visita do Major Pina para discutir os pormenores do movimento dos Pelotões 859, 870 e 871 para Bafatá. Eu irei a comandar a coluna e voltarei para Bedanda de avião.

20/3/63:

O Alferes Mendes seguiu com um pelotão para o Chugué dentro do novo plano de ordenamento dos dispositivos.

22/3/63:

Cabedú enviou uma mensagem informando que os terroristas estavam a planear uma emboscada às viaturas da CCaç 273 que se tinham deslocado para a região de Darsalame. Enviei imediatamente um rádio para o Capitão Gaspar com todos os detalhes da informação.

23/3/63:

Chegou outro pelotão da CCaç 417. Seguirá amanhã para Cabedú para render o Pelotão 871, que virá para Bedanda e depois para Bafatá na minha coluna.

(...) O meu diário, cobrindo os acontecimentos que se passaram entre a minha partida para Bafatá com a coluna, a minha vinda de retorno a Bedanda e as semanas até ao dia 18 de Maio, extraviou-se, infelizmente.

Lembro-me de alguns detalhes de possíveis ataques a Bedanda que, felizmente, nunca se concretizaram. Nós estávamos muito bem preparados, com todo o terreno à volta do aquartelamento (cerca de uns 150 metros), completamente limpo de arvoredo e vegetação.

Tínhamos os morteiros de 60 todos treinados nas áreas prováveis de ataque, além de explosivos enterrados e comandados à distância. Bem no fundo, eu estava com esperança de que os terroristas tentassem um ataque, pois seriam totalmente aniquilados, mas nunca aconteceu, possivelmente porque eles sabiam que tal acção seria muito difícil e arriscada.

No dia 18 de maio, o Capitão Nelson (meu colega de curso) (****) veio render-me. Durante os 4 dias seguintes fiz a entrega da 4ª CCaç ao Nelson e no dia 21 de maio segui de avião para Bissau.

Ai estive à espera de transporte e finalmente no dia 27 de maio parti de volta a Portugal no navio da CUF “Ana Mafalda”.




Curso finalista da Escola do Exército (hoje, Academia Militar) do ano de 1955, do qual faziam parte (além do George Freire, com 75 anos de idda em 2008, residente nos EUA, antigo comandante da 4ª CCAÇ - Fulacunda, Bissau, Nova Lamego Bedanda, Maio de 1961/ Maio de 1963),  os seguintes oficiais reformados do exército português: generais Hugo dos Santos, António Rodrigues Areia, Adelino Coelho e António Caetano; coronéis João Soares, Costa Martinho e Maurício Silva, entre tantos outros.  O capitão José Manuel Carreto Curto, ex-cap inf, CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63) era "do curso um ano mais velho do que o meu". (Faleceu em 18/11/2018, com ten gen ref.)

Foto (e legendagem): © George Freire (2008). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor:

(*) Fonte: Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 6.º volume: Aspectos da Actividade Operacional. Tomo II: Guiné. Livro I. Lisboa: 2014, pp. 62 e 88.


(***) Vd. poste de 27 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11011: Efemérides (119): Diário de George Freire, ex-comandante da 4ª CCAÇ (Bedanda, 1962/63): o início da guerra no sul do CTIG (jan / mar 1963)...Recordando topónimos que nos são familiares: Cabedu, Caboxanque, Cacine, Cadique, Cafal, Cafine, Catió, Chugué, Jemberém, Mejo, Salancaur...

Vd. também poste de 24 de janeiro de  2013 > Guiné 63/74 - P10996: Efemérides (117): O início da guerra no CTIG há 50 anos: Nova Lamego, Bissau, Bedanda... O paraíso... perdido (set 62/mai 63): filme de George Freire, ex-cap inf QP, a viver nos EUA há meio século (Virgínio Briote / Luís Graça)

(****) Comandantes da 4ª CCAÇ (Bolama, Buba e Bedanda, 1958/67): Cap Inf Manuel Dias Freixo | Cap Inf António Ferreira Rodrigues Areia | Cap Inf António Lopes Figueiredo | Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (membro da Tabanca Grande, onde é conhecido como George Freire)| Cap Inf Nelson João dos Santos | Cap Mil Inf João Henriques de Almeida | Cap Inf Alcides José Sacramento Marques | Cap Inf João José Louro Rodrigues de Passos | Cap Inf António Feliciano Mota da Câmara Soares Tavares | Cap Inf Aurélio Manuel Trindade