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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25469: Os 50 anos do 25 de Abril (16): O fotornalismo da guerra, que os senhores do lápis azul deixavam passar, às vezes, em revistas como a "Flama", órgão oficial da JEC-Juventude Escolar Católica (1937-1983)

 



"O inimigo pode atacar a qualquer momento- Os rostos desta guerra, marcados pelo esforço e pela tensão nervosa de muitas horas de angústia, aguardam".




"Uma pausa no esforço diário mas logo prosseguem"


"Vai começar... O Grupo de Combate reune-se na base antes de mais uma operação"...


"Determinação. O rosto do soldado indígena, de metralhadora às costas, revela um firme propósito"


"Hora do rancho, após uma operação. O apetite é redobrado."




"Flama", Ano XXIII, nº 1000, 5 de maio de 1967, pp. 78/79 (Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisbia / Câmara Municipal de Lisboa). 

(Adapt. livre de Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné... Com a devida vénia)


1. Era o "jornalismo" possível. Era o "fotojornalismo de guerra" possível... A "Flama", que se lia no ultramar, que chegava aos quartéis na Guiné, comemorava  em 5 de maio de 1967 o seu nº 1000. Tinha nascido em 1937, da iniciativa de um grupo da JEC - Juventude Escolar Católica, com a benção de Salazar e do Cardela Cerejeira. Era então marcadamente masculina,  e de teor religioso. Redefine-se a partir de 1944... Definia-se, ainda em 1967,  como "um semanário de atualidades de inspiração cristã".... Era então uma das revistas portuguesas mais antigas. E é hoje considerada um marco importante na história do jornalismo português, e nomeadamente do jornalismo feito por mulheres e para as mulheres.  Por ela passaram mulheres, jornalistas, como Maria Teresa Horta, Regina Louro, Edite Soeiro...

Nesse número especial,  dezasseis páginas (num total de 116) eram dedicadas ao cinquentenário de Fátima, na véspera da visita do Papa Paulo VI. Na altura custava 5$00 o número avulso (equivalente hoje a 2 euros; em 3 de maio de 1974, já custava o dobro, 10$00,  também 2 euros, a preços de hoje).

Duas páginas, cheias de fotos e sucintas legendas eram dedicadas à "Guiné: rostos de uma guerra". Evitando-se a propaganda mais descarada do regime. escreve-se:

  • "a luta na Guné prossegue sem quartel";
  • "militares de todos os ramos das forças armadas, generosos na sua juventude";
  • " cumprem a sua comissão de serviço";
  • "momentos dramáticos, arrancados ao quotidiano do soldados português";
  • "o rosto do soldado indígena" (sic)...

Uma raridade, em todo o caso,  na imprensa portuguesa da época, o aparecimento de fotos, com algum dramatismo, de militares portugueses em pleno  teatro  de operações da Guiné, já então o mais duro das "três frentes"....

Mas as fotos são provenientes dos... "fotocines"... no texto diz-se "amavelmente cedidas pelos repórteres dos Serviços Cartográficos do Exército" que eu, por exemplo,  nunca vi, ao meu lado, em operações, no meu tempo (junho de 1969 / março de 1971). As legendas da "Flama" são obviamente escritas no conforto da redação... em Lisboa, e na ignorância do que era realmente uma guerra de guerrilha e contra-guerrilha  ("subversiva e contra-subversiva", na linguagem da tropa de então). Por outro lado, havia o "Big Brother" da censura...

Mas é a "reportagem possível" de uma revista, respeitável, até "arejada",  oroginalmenet ligada à Igreja Católica, e que, para além dos assinantes, tinha uma boa fonte de receita na publicidade (muita dela já virada, nos anos 60/70, para o público feminino).

O seu primeiro diretor foi o dr. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), um dos homens mais influentes da hierarquia eclesiástica de então: 

  • assistente eclesiástico da Juventude Universitária Católica (JUC) (1947-1965);
  • capelão (desde 1947) e professor da Academia Militar (onde leccionava Deontologia Militar e Ética);
  • procurador da Câmara Corporativa, na VIII Legislatura (1961/65), como representante  da Igreja Católica;
  • responsável pelo programa religioso da RTP (até 1966);
  • nomeado em 1966 bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de Bispo de Madarsuma, com as funções de Capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975);
  • membro da Conferência Episcopal Portuguesa, onde desempenhou várias funções, sendo Secretário (1975-1981) e vice-presidente (1981-1984);
  • vigário-geral do Patriarcado de Lisboa (1984)...
Temos algumas referências, no nosso blogue, ao senhor bispo de Mardasuma que, honra lhe seja feita, teve a corgem de ir dizer  missa na mítica Gandembel e lá teve o seu batismo de fogo, no Natal de 1967 (**).

Era o diretor da "Flama" quando se deu o 25 de Abril de 1974. A revista vai dedicar um número especial ao acontecimento. Iremos reproduzir algumas imagens dessa edição (**).



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > 25/12/1968 > Missa de Natal celebrada pelo capelão-mor das Forças Armadas, bispo de Madarsuma. Foi a última missa celebrada em Gandembel (o aquartelamento seria abandonado um mês depois, por ordem do Com-Chefe)... E nesse dia de Natal o Dom António dos Reis Rodrigues teve o seu batismo de fogo...

E ainda propósito desta foto, o nosso camarada  Antº Rosinha escreveu em genial comentário ao poste P13616: 

(...) A foto da "Última Missa em Gandembel", é uma das fotos mais falantes do que qualquer outra que se possa ver sobre a Guerra do Ultramar. Aquela mesa/altar, aquele ajudante em tronco nú, representam bem o desenrascanço da malta.

Esta última missa documentada por Idálio Reis contrasta com a 1ª missa, festejada por índios e pintada por artistas e documentada pela carta de Caminha. Quatro dias após ter chegado em Porto Seguro, no Domingo de Páscoa, em 26 de abril de 1500, Cabral determinou que se realizasse uma missa no ilhéu da Coroa Vermelha. Foi a Primeira Missa celebrada em solo brasileiro e o evento foi documentado pela Carta de Caminha. (...)


Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

17 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13616: Os nossos capelães (4): O bispo de Madarsuma, capelão-mor das Forças Armadas, em Gandembel, no natal de 1968 (Idálio Reis, ex-alf mil, CCAÇ 2317, Gandembel / Balana, 1968/69)

terça-feira, 23 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25426: Os 50 anos do 25 de Abril (11): Entrevista do nosso camarada, amadorense, cor art ref António- J. Pereira da Costa à TV Amadora: "É pá...A Guerra, pá...", vídeo c. 37')


TV Amadora > Histórias de Abril > 11 de Abril de 2024 > António José Pereira da Costa - Entre a Amadora, Guiné e Coimbra | Vídeo 36' 53''

Sinopse:

"António José Pereira da Costa é um orgulhoso amadorense cuja história de vida acaba por estar intimamente ligada à Revolução dos Cravos, não tivesse ele feito parte do Movimento que viria a pôr fim ao 'estado a que tínhamos chegado', como disse Salgueiro Maia.

"A primeira história da rubrica 'Histórias de Abril' é a do oficial do exército António José Pereira da Costa, um testemunho vivo de memória, resiliência e ação."

Fonte: TVAMADORA (com a devida vénia...)


1. Mensagem da jornalista Helena Durães:

Data - 11/04/2024, 17:51
Assunto - Testemunho António José Pereira da Costa

Boa tarde, caro Luís Graça,

Espero que se encontre bem.

A título de curiosidade, envio o resultado da minha entrevista ao António José Pereira da Costa:

https://www.tvamadora.com/programas/historias-de-abril/antonio-jose-pereira-da-costa-entre-a-amadora-guine-e-coimbra/8349

Foi hoje publicada e inicia hoje a rubrica da TV Amadora dedicada ao 25 de Abril.

Agradeço-lhe, também, pela sua ajuda e amabilidade em me facilitar este contacto. Foi precioso.

Grata pela sua atenção.

Com os melhores cumprimentos,
Helena Durães
Jornalista
Carteira de Jornalista nº 6111
TV Amadora | telem 932 799 467


2. Do estatuto editorial da TV Amadora:
  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade.

3. Comentário do editor:

A sugestão do nome do Tó Zé  foi nossa, face a um pedido da TV Amadora, que chegou no passado dia 12 de fevereiro:

"(...) Sou jornalista da TV Amadora e estou a realizar uma recolha de testemunhos de quem viveu a passagem do Estado Novo para a Democracia e é de elevada relevância conhecer a história de alguns ex-combatentes da guerra colonial. Encontrei o seu contacto no blog "Luís Graça & Camaradas da Guiné".

Deste modo, venho por este meio questionar se têm conhecimento de ex-combatente e que seja da Amadora? Ou de alguém que tenha mais conhecimento acerca desta questão?

Agradeço qualquer ajuda que me possam prestar. (...)
Helena Durães (...)"

Com o acordo do próprio e da jornalista, publicitamos aqui o link com o vídeo da entrevista ao nosso camarada, cor art ref, António J. Pereia da Costa


O António José Pereira da Costa, jovem academia e hoje, cort art ref. 


4. Nado e criado na Amadora, na Av Gago Coutinho, o To Zé (como é conhecido entre os amigos) aceitou colaborar com a jornalista Helena Durães. A sua entrevista, com a duração de c. de 37 minutos é o testemunho sincero, frontal e corajoso de uma história de vida, de um homem da nossa geração, que começa na Amadora (onde nasceu e cresceu, e onde frequentou os dois primeiros ano da Academia Militar, em meados dos anos 60), antes de, "ainda menor"(sic), ter ido enviado para o teatro de operações da Guiné.

Esteve na Guiné duas vezes no tempo da guerra, como alferes (1968/69) e depois como capitão (1971/74):
  • ex-alf art, CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69);
  • ex-cap art, cmdt da Btr AAA 3434, BA 12, Bissalanca, Bissau;
  • ex-cap art, CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo;
  • e ex-capt CART 3567, Mansabá, 1971/74.
É nosso grão-tabanqueiro desde 12/12/2007. Publicou um livro com as suas memórias ("A minha guerra a petróleo", Chiado Editora, 2019)... Tem cerca de 200 referências no nosso blogue.

Depois de regressar à metrópole, a vida militar confunde-se com a de muitos outros camaradas de armas. Estava em Coimbra, quando se deu o 25 de Abril. Pertenceu ao MFA. E o resto, o nosso leitor pode ouvir no visionamento do vídeo.

Em mensagem que nos mandou há dias, disse-nos: "a minha participação é demasiado modesta embora curiosa. Atenção que há no blog verdadeiros participantes no 25Abril."... Participação, "modesta", mas que ele assume publicamente, e que teve consequências na sua carreira... Irónico, acrescentou: "Participação modesta porém sabendo o suficiente para o deitar a baixo, ao regime"...


  • (...) "é um órgão de comunicação local e que tem por objectivo divulgar aquilo que acontece no município da Amadoranão desvalorizando a informação de interesse geral";
  • (...)  ainda como propósito dar a conhecer a cidade e a sua história, através de trabalhos de longa duração.
  • (...) compromete-se a respeitar e a realizar o seu trabalho tendo por base os princípios deontológicos e éticos jornalísticos, assim como garantir o respeito pela boa fé dos leitores.
  • (...) compromete-se a todos estes objectivos tendo por base os princípios da liberdade editorial, da igualdade e da verdade. (...)

5. Publicamos também, a seguir, algumas das fotos que o Tó Zé disponibiliziu, e que forma inseridas no vídeo. 


Amadora > Os putos da Av Gago Coutinho: da esquerda para a direita, (i) Eu, Tó Zé, (ii) o Zé Barros (Zé Gordo) empregado da loja do Martins na nossa rua; (iii) o Tony Levezinho, na primeira fila; (iv) o Vítor Levezinho, primo do Tony; (v) o "Fernandinho" que morava ao lado dos meus pais, creio que emigrou para o Brasil, assim como toda a família Ferreira da Silva (Oliveira); e (vi) o Fernando Levezinho (irmão gémeo do Vítor). Acrescenta o Tony: "o Fernando, meu primo (já falecido), também esteve na Guiné e o Vítor em Angola, tendo este sido condecorado por ter levantado uma mina anticarro, sozinho, embora não fosse sapador. Voluntarismo, inconsciência, ou as duas coisas"...


A Academia Militar, polo da Amadora, em meados dos anos 60, com a Reboleira, ao fundo, já crescer tentacularmente...com as construções J. Pimenta.


Instrução na Academia Militar... Coisas elementares como saber nadar não eram ensinadas aos futuros oficiais..., diz o Tó Zé em jeito de cítica à formação que recebeu


Guiné > Região de Tombali > Cacine > Cameconde > CART 1692/BART 1914 (Cacine, 1968/69)


O cap art António J. Pereira da Costa em 1972, no Xime (CART 3494)

Fotos: Cortesia de António José Pereira da Costa / TVAmadora (2024)
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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de abril de  2024 > Guiné 61/74 – P25415: Os 50 anos do 25 de Abril (10): Até sempre, Nova Lamego! (José Saúde, ex-fur mil op esp/ranger, CCS / BART 6523, 1973/74)

sábado, 20 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25416: Os nossos seres, saberes e lazeres (624): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (150): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
É um museu de grande beleza, e não tenho qualquer pejo em dizer que podemos observar neste espaço alguns dos quadros fundamentais da História de Portugal, o nosso hino nacional conclama-nos a gritar às armas, e elas estão aqui desde tempos antigos até aos tempos próximos. Consta que o museu se irá aprimorar com um espaço dedicado às guerras que travámos em África, faz todo o sentido, importámos muito armamentos mas também produzimos pela nossa indústria, basta lembrar a Metalúrgica Duarte Ferreira, dali saíram viaturas que percorreram picadas africanas. A Academia Militar reserva espaço a quem nela se preparou e se glorificou, essa visita foi feita e mostrados sinais de que a Academia não esquece alguns dos seus heróis. O que talvez vá aumentar a importância deste Museu Militar é revelar os armamentos e o modo de viver dos que combateram por longos anos, resta dizer que o Museu Militar de Lisboa, pelo seu esplêndido acervo, bem pode abrigar a memória desses tempos que conduziram ao fim do império e ao enlaçamento com países de língua oficial portuguesa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (150): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade - 2

Mário Beja Santos

Tive sorte no dia da visita, o Museu Militar de Lisboa estava aberto para uma cerimónia, as salas imbuídas numa luminosidade velada, parecia que tinha as salas por minha conta, há para ali espaços que têm o poder magnético para quem andou com as armas na mão e ouviu explodir umas bombardas à volta, é o caso deste espaço da Primeira Guerra Mundial, é uma museografia que tem lampejos cinematográficos. Aqui me detive, a pensar nas trincheiras, inevitavelmente acudiu-me à memória o arame farpado e todas aquelas noites ensombradas pela expetativa de uma flagelação.

Lembranças da Primeira Guerra Mundial, combatemos a Flandres, em Angola e Moçambique
Para além da extraordinária coleção de peças de artilharia depositadas no Pátio dos Canhões, há uma sala do Museu Militar de Lisboa que alberga aquelas armas que infundiram respeito (o melhor é dizer terror) no Império Português do Oriente, a sala é um espetáculo de policromia.
A meia luz da sala produziu estas vitrinas que parecem incendiadas, é um longo corredor com um acervo que permite dizer que este Museu Militar é uma outra face da História de Portugal, aqui estão depositados e expostos armamentos e os diferentes tipos de materiais que foram usados pelas forças terrestres e armadas, houve neste palácio um forte investimento em talha dourada, pinturas murais e estatuária. Li num roteiro dos museus militares que o acervo, inicialmente organizado em 1842, no Real Arsenal do Exército, pelo barão de Monte Pedral, constituíra-se com a finalidade de guardar e conservar material que perdera relevância. Qual quê! Para aqui foi drenado dinheiro e talento. Fizeram-se decorar novas salas com intervenções de Adriano Sousa Lopes, Columbano, Malhoa, Carlos Reis, Veloso Salgado, entre ouros. A história militar de Portugal confunde-se com a história de Portugal, no seu todo.
Mais um exemplo de tetos enriquecidos com homenagens, onde não faltam elementos de apoteose.
A luminosidade precária permite estes reflexos artificiais, tons de aquário, de ondulação turquesa. Possuímos muitas memórias militares em diferentes museus, até núcleos de museus municipais, não nos falta até a fragata de D. Fernando II e Glória e museus de forças especiais, como os Fuzileiros. Mas não há espetacularidade como a desta casa, digamos que aqui prima o chamado bom gosto de uma época, os diretores e os artistas convocados não se pouparam a procurar dar o seu melhor nas novas salas, e é bom referir que o primeiro diretor do museu, general José Eduardo Castelbranco, em que está patente toda a sua marca, o vigor do seu projeto.
O Velho do Restelo, quadro de Columbano
Os versos camonianos que guiaram o pincel de Columbano para este seu admirável quadro
Apoteose, sempre
O museu não esqueceu os Templários, de que a Ordem de Cristo foi herdeira
D. João V, o Magnânimo, não podia ser esquecido, foi ele que deu ordem para se criar a Fundição de Cima e nomeou o arquiteto francês Fernando de Larre, deve-se-lhe, entre outras intervenções, o imponente pórtico da entrada principal, onde ganha relevo a triunfal escultura de Teixeira Lopes
Em permanência a sumptuosidade do barroco, o que D. João V deixou inacabado foi concluído o que faltava no tempo do Marquês de Pombal, coordenou um tenente-general francês, aqui temos o medalhão do rei D. José.
A sumptuosidade sobe pelas paredes até ao teto, o tema é alegórico, aquela senhora no pódio bem podia ser Atena, o ponto curioso é o uso de elementos neoclássicos como as duas colunas ao fundo desta cena onde não falta a rendição ao saber e ao poder, eram tempos do absolutismo.
Outra perspetiva do Pátio dos Canhões, por cima temos a Rua do Paraíso, que desemboca no Largo de Santa Clara, aqui espero vi para visitar a Casa dos Gessos. E a encimar a fotografia pode ver-se melhor o zimbório do Panteão Nacional. Está prometido que numa primeira oportunidade vou até à Casa dos Gessos e aos núcleos museológicos das Oficinas Gerais do Fardamento e Equipamento, núcleos que funcionam no Largo de Santa Clara, sobretudo ponho muito interesse no segundo, estão seguramente lá os nossos fardamentos e equipamentos, é sempre bom lembrá-los.
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Nota do editor

Último post da série de 13 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25380: Os nossos seres, saberes e lazeres (623): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (149): No Museu Militar de Lisboa, o mais antigo da cidade (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 31 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25022: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XLI: ten inf Viriato Sertório da Rocha Portugal Correia de Lacerda (Oeiras, 1887 - Serra de Mecula, Moçambique, 1917)



Viriato Sertório da Rocha Portugal Correia de Lacerda (1887-1917)


Nome: Viriato Sertório da Rocha Portugal Correia de Lacerda

Posto: Tenente de Infantaria

Naturalidade: Oeiras

Data de nascimento: 2 de Janeiro de 1887

Incorporação: 1909 na Escola do Exército (nº 38 do Corpo de Alunos)

Unidade: Regimento de Infantaria n.º 21

Condecorações: Promovido a Capitão por distinção (a título póstumo)

TO da morte em combate: Moçambique

Data de Embarque: 7 de Outubro de 1915

Data da morte: 8 de Dezembro de 1917

Sepultura: Alto da serra de Mecula

Circunstâncias da morte: Morreu numa trincheira combatendo bravamente na serra de Mecula ao 5º dia de combate intenso com as tropas alemãs. No assalto final foi atingido por fogo inimigo quando tentava inutilizar a sua metralhadora. Assim morreu o famoso chefe dos sipaios do Niassa.




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24929: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXIX: Maj inf João Teixeira Pinto (Moçâmedes, Angola, 1876 - Negomano, Moçambique, 1917)


João Teixeira Pinto (Moçamedes, Angola. 1876 - 
Negomano, Moçambique, 1917)

Nome: João Teixeira Pinto 

 Posto:  Major de Infantaria 

 Naturalidade: Moçâmedes. Angola

 Data de nascimento: 22 de Março de 1876 

 Incorporação:  1897 na Escola do Exército (nº 68 do Corpo de Alunos) 

 Unidade:  Companhias Indígenas de Infantaria Expedicionárias 

 Condecorações: Cavalheiro da Ordem Militar da Torre e Espada de Valor, Lealdade e Mérito  | Medalha de Prata Rainha D. Amélia com legenda “Cuamato 1907”|   Medalha de Ouro de Serviços Distintos 

 TO da morte em combate:  Moçambique 

 Data de Embarque: 15 de Fevereiro de 1917 

 Data da morte:  25 de Novembro de 1917 

 Sepultura; Negomano - Moçambique 

 Circunstâncias da morte: 

A força portuguesa instalada defensivamente no vale do rio Ludjenda (Negomano) desde 18 de Outubro de 1917, foi surpreendida por um ataque da guerrilha alemã pelas 10 horas da manhã de 25 de Novembro. O Major Teixeira Pinto, comandante da força, ciente da gravidade da situação,  acorre à zona mais pressionada da defesa, comandando as descargas de fogo e acabando por ser atingido num braço pelo fogo inimigo. Retirado da zona por um dos seus soldados para uma tenda, às três horas da tarde o terrível combate terminou com o toque de cessar-fogo. Começou então a pilhagem desenfreada por parte das forças alemãs a que não escapou o Major Teixeira Pinto mais tarde encontrado cadáver com um tiro na cabeça.

Tem 76 referências no nosso blogue, como "capitão Teixeira Pinto". Ficou conhecido na Guiné como o "capitão-diabo".



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24928: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVIII: cap cav João Luiz Ferreira da Silva (Leiria, 1879 - Moçambique, 1916)

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24928: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVIII: cap cav João Luiz Ferreira da Silva (Leiria, 1879 - Moçambique, 1916)

 


João Luiz Ferreira da Silva (Leiria, 1879 - Moçambique, 1916)

Nome:  João Luiz Ferreira da Silva 

 Posto:  Capitão de Cavalaria 

 Naturalidade:  Leiria 

 Data de nascimento: 27 de Dezembro de 1879 

 Incorporação:  1901 na Escola do Exército (nº 153 do Corpo de Alunos) 

 Unidade: Estado-Maior da Cavalaria 

 Condecorações 

TO da morte em combate: Moçambique 

 Data de Embarque: 3 de Junho de 1916 

 Data da morte: 7 de Dezembro de 1916 

 Sepultura 

Circunstâncias da morte:  Após a retirada de Nevala,  sendo necessário obter informação acerca do dispositivo e intenções da força alemã, o capitão Ferreira da Silva (ajudante de campo do general Ferreira Gil) ofereceu-se para actuar como parlamentário levando consigo roupas e medicamentos para os prisioneiros e simultaneamente obter a informação que escasseava. 

Acompanhado do intérprete Câmara de Leme e sinalizado com bandeira branca, cruzou o Rovuma em pirogas enviadas pela força alemã. No regresso, transportando três feridos entregues pelos alemães, ao passarem em Matchemba foram atacados por uma força alemã que já ocupava o posto local tendo perecido o capitão Ferreira da Silva, o condutor e dois dos feridos. 



António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem

1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 11 de janeiro de  2023 > Guiné 61/74 - P23973: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXVII: Leopoldo Jorge da Silva, maj art (Viseu, 1868 - Moçambique, 1916)

domingo, 22 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24781: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (11): E na hora da nossa morte, ámen!


Contos com mural ao fundo (11) >   E na hora da nossa morte, ámen!

por Luís Graça (*)


"O meu país é o que o mar não quer"
 (Ruy Belo, 1973)



Porra, meu irmão, meu herói, estou no teu velório!... Ainda não estou em mim!... Afinal, nunca me preparei, em vida, para este momento, para este papel!... Mesmo que já tenha feito o luto do pai, da mãe, do Jorge...  Estou de coração destroçado!... Mas sou incapaz de chorar...  Vim logo que soube da notícia. Foi a mana que me telefonou ontem.

Desta vez, a “gaidja”, como tu lhe chamavas, a puta da gadanha da morte, trocou-te as voltas... Tanto a fintaste, na equitação, na guerra, na boémia, nos amores, na estrada, no jogo, na vida... e foi ela agora que te pregou a rasteira e te cortou, rente, o fio o que te ligava à vida!... Na modorra da paz, da decadência, da depressão dos "quatro vintes", como dizem os franceses!... Aos "quatre-vingts", aos oitenta, meu irmão, veio o xeque-mate, a última emboscada, a estocada final!...

Bem podia ser eu a estar aí esticado que nem um carapau seco, de botas altas, já gastas, cambadas, engraxadas para a ocasião!... A cerimónia fúnebre, a tua última parada, a tua última formatura!... As mãos em oração, elevadas ao céu qual estátua jacente de um agora apeado condestável!... O caixão aberto, o rosto coberto de lenço de linho, bordado, da nossa mãezinha!

Os gatos pingados, os safados,  sabem do seu ofício. Vestiram-te a farda nº 1, já muito puída do uso e dos anos, com os amarelos dos galões de coronel desbotados... A cruz de guerra ao peito e as tuas demais medalhas e condecorações de uma vida dedicada à tropa. E até a espada, não se esqueceram da tua espada de defensor do Império e da Nação. Espada ou sabre ? Estavas sempre a dar-me nas orelhas, porque eu confundia a espada e o sabre...

Tu, que noutra encarnação só poderias ter sido um cavaleiro andante, um temível condestável, um bravo e fero guerreiro do Império!... Desculpa a ironia, estou a ser cruel, mesmo que saibamos, tu e eu, que nem sempre líamos as coisas pela mesma cartilha... O catecismo foi o mesmo, o batismo, a primeira comunhão, o crisma...

Porra, meu irmão, meu amigo, meu companheiro, meu camarada... Chegou a tua vez, como chegará a minha.  A avaliar pelas estatísticas da morte dos homens em Portugal já estavas na linha da frente com os pés para a cova... Mas eu não me conformo com isso, nem dou qualquer valor às médias estatísticas com que nos infernalizam a vida...  Ou talvez não, matematicamente falando, se calhar já tinha chegado a tua hora, o teu dia, o teu mês, o teu ano. Há a predestinação, há o deve-e-haver do Criador e dos seus "informáticos"... (Desculpa a blasf+emia, mas eu acho que até Deus já tem cimputador.) 

Não importa, para quem te amava, a morte bateu cedo demais à tua porta!... É sempre injusta e cruel a morte de quem amamos.

E, no entanto, era uma morte anunciada, diz a tua viúva alegre, encolhendo os ombros, conformada, e fingindo limpar uma lágrima furtiva, tão afetiva e socialmente hipócrita como as falinhas delicodoces de amor com que te engatou no Rio de Janeiro... Mas quem sou eu, afinal, para julgá-la?!.. A ela e a ti, que aos 65 ainda te julgavas um garanhão!

O teu médico oncologista, esse, não te escondeu (nem podia esconder) a verdade... "A verdade nua e crua, doutor!", foste tu a implorar-lhe, qual quê!, a dar-lhe uma ordem taxativa!...  Como se o médico fosse o teu pobre alferes miliciano, que chorava baba e ranho quando sofreu a primeira baixa mortal, lá na serra do Mapé, no planalto dos Macondes!... Ainda guardei esse aerograma, um dos poucos que me escrevias de Moçambique... Sempre foste muito preguiçoso para escrever para mim e para os pais.

Porque um homem, doutor, tem o direito de despedir-se da vida e de morrer em paz com a vida, com os outros e com Deus, suplicou (ou sentenciou ?) o capelão militar quando já estavas nos cuidados paliativos, no terminal da morte, no hospital militar (segundo me contou a nossa mana, que vive aí no Grande Porto, e que te acompanhou nas últimas horas)... 

Que atroz ironia, que insulto, como se a gente soubesse como isso se faz!... Isso, de um gajo despedir-se da vida, e ter direito a uma boa morte. Como se nos tivessem ensinado, na família, na escola, na catequese, na igreja, no seminário, na Academia Militar, na tropa, na guerra…, a arte de bem morrer!... Ensinaram-te, isso sim, a andar a cavalo em toda a sela... E a jogar bridge. E a dansar o tango. E a fumar um bom charuto. E a pegar num copo de cognac. Ou a conduzir um descapotável. 

Também lá andei, na guerra, mas nunca pensei na minha própria morte, mesmo vendo a morte, ali tão pertinho, a meu lado. Aos vinte e poucos anos, em qualquer guerra, não há combatente que não tenha desenvolvido um forte sentimento de imortalidade... Terrível ilusão!...É por isso que há heróis!... E soldados desconhecidos, mortos aos milhares, nas trincheiras e nos desembarques anfíbios das Grandes Guerras...

Imagina, mano, pediram-me para te fazer o teu elogio fúnebre, amanhã, na igreja, na missa de corpo presente!|... Mas eu não sei se serei capaz de dizer duas coisas a teu respeito, que valha a pena dizer, em público, e que não sejam meras palavras de pompa e circunstância, como vocês, militares, gostam.

Invade-me a angústia, o pânico, o pudor... Não quero dececionar-te, muitos menos aos teus filhos e netos, aos teus amigos, aos teus camaradas, que eu não conheço ou conheço mal... Sobretudo não me peças para repetir essa grandessíssima mentira, com que te formataram, a de que “é doce morrer pela Pátria!”… A tua Pátria, a minha Pátria, a nossa Pátria ? A Pátria deles ? Qual delas, afinal ?... Bolas, a morte é sempre amarga, seja na cama, seja no campo de batalha...  

Eu sempre ficava confuso quando tu chegavas a casa, oficial e cavalheiro, impecável no teu uniforme e as insígnias da arma de cavalaria, de bota alta e pingalim... Destroçavas corações nos bailes das debutantes... Casaste, ao menos, com uma gaja rica, que te sustentou os teus vícios, e te deu três filhos, que sempre achaste "maravilhosos,  feitos entre três comissões"... 

E depois, meu mano, ao fim e ao cabo, o que é que eu sei de ti, depois destes anos todos de separação, física e emocional ? (O teu casamento separou-nos.)... 

Não sei se fostes um bom amante, um bom homem, um bom pai, um bom cidadão ou até mesmo um bom militar. Sei que fostes um bom irmão, um bom amigo, um bom português. E que até nem eras mau cavaleiro, ainda ganhaste uns concursos de equitação quando eras novo e eras bonitão e sobretudo não havia guerra, ou havia paz podre, com algumas  nuvens negras que ninguém tomava como sinais premonitórias da borrasca que se abateria sobre a nossa pobre Pátria, velha e cansada de carregar um império que não se pagava (nem se defendia) a si próprio... 

E talvez isso me baste, ou deveria bastar-me: foste um homem bom, um bom irmão. É o mínimo que eu poderia dizer de ti. É o mínimo que se pode dizer de qualquer gajo minimamente decente. 

Porra, poderia estar eu no teu lugar. E no meu íntimo só posso regozijar-me por estar vivo... Ou ainda vivo, aos setenta (que vou fazer dentro de semanas)!... Podia lá ter ficado, na Guiné, morto por uma roquetada ou uma mina. Pergunto-me: quantos anos ainda me restam ?... "Temei a velhice, porque ela nunca vem só!", dizia-nos o nosso avô de Ponte de Lima.

Quando olho para ti, ou para o que ainda sobra de ti, aí deitado na urna aberta, no teu esquife, arrepio-me… O raio da morte não tem pudor… E exala um cheiro tão forte, a cabra, que afugenta os vivos... Daí as flores, as coroas de flores, e as ervas aromáticas, os sprays de perfume  com que a gente a tenta esconjurar, afugentar, enganar, porventura engalanar, e sobretudo negá-la e esquecê-la...

Os guineenses, animistas, no meu tempo, faziam o "tchoro", comiam, bebiam, dançavam, choravam e homenageavam o morto, com bandos de jagudis à volta da morança para partilharem também as migalhas da festa... 

A nossa Igreja, na morte, apodera-se de nós, do nosso cadáver, e incita-nos, aos vivos, ao arrependimento, ao nojo, ao jejum e à abstinência, à secura de sentimentos e emoções... Que este é um vale de lágrimas, que a vida é uma passagem, que estamos em trânsito, mas que no fim teremos, os justos, a eterna recompensa da glória de Deus, o privilégio, a graça, de nos podermos sentar à Sua direita... Repara: nunca à Sua esquerda...

É verdade, és o “mano velho”, o “morgado”, e eu sou o “caçula” da família, como tu me chamavas, quando vieste de Angola, lembras-te ?…"Coberto de pó e glória!",  exclamava eu, quando recebia uma fotografia tua,   já adolescente e e a estudar para padreco.  Pouco mais de uma década  nos separa, mas podíamos ter sido irmãos gémeos, sempre o disseste ou, se calhar, o desejaste… E eu sempre te admirei, nessa altura. Incondicionalmente.

Porra, não morreste de pé, e ainda bem,  de espada em riste, a defender o "quadrado", como os nossos gloriosos antepassados, nas ditas guerras de pacificação do Império, agarrados à bandeira das quinas, branca e azul, no caso do tio-bisavô António, em Chaimite, em Moçambique, e já a verde-rubra, no caso do tio-avô José, no Cunene, em Angola…

Claro que tinhas de seguir a carreira das armas, estava inscrito no teu ADN, numa família de nobres tradições como a nossa, mas arruinada, que deu alguns bravos soldados à Pátria… Desde 1640, oriundos do terceiro estado, o povo, que o novo rei, o Senhor Dom João IV, o primeir0 da dinastia de Bragança, irá nobilitar... Tinha um lugar especial na nossa sala de jantar, com o retrato sobre o topo da nossa mesa comprida que só se usava em dias de festa... A casa cheia, a alegria dos nossos pais, a reunião anual da família extensa, do clã...Lembras-te ?  

Dizem que foi feita, a mesa, pelo nosso avô paterno,  com grossas tábuas de um centenário carvalho que travou um duelo de morte com um ciclone... As raízes, são sempre as raízes que nos tramam, as raízes telúricas, quando nos faltam, quando nos falham... Vê a nossa casa solarenga, hoje em ruínas: salvou-a a mana, que fez dela um alojamento local... De guerreiros acabámos em hoteleiros!... Triste sorte, se queres que te diga...

Habituámo-nos a viver "do soldo e do saque", como ironizava (quando falava da história da família) o nosso avô materno, Francisco, professor primário, jacobino, antimilitarista, republicano dos quatro costados, quezilento, desmancha-prazeres,   que casou, contrariado, a filha numa família monárquica (e muito pouco ou nada liberal, tenho hoje que acrescentar)… 

Mas o amor falou bem mais alto, o que era raríssimo naquele tempo, em que os casamentos ainda eram de conveniência, negociados pelas famílias e regados com vinho fino... A nossa mãe foi uma santa, uma heroína, uma mulher do seu tempo, mas de grande têmpera: quis casar por amor, contra as convenções sociais e as paixões políticas que dilaceravam as duas famílias... 

Enfim, não dávamos apenas soldados, a verdade seja dita: demos também padres, missionários, administradores, magistrados, embaixadores, mestres-escola e, seguramente, freiras e frades, pelo menos até 1834… E, pelo meio, muitos filhos da mãe, como em todas as famílias...

Porra, mano, não sei se foste um bom cristão. Assalta-me agora essa dúvida.  Não pesei o teu saco de pecados, nem sei se os pecados têm peso… Acho que sim, há alguns hediondos, que devem pesar toneladas. 

Mataste ? Nunca falámos disso, mas talvez tenhas matado na guerra, onde andámos os dois, cada um para seu lado, e com motivações bem diferentes… Se mataste macondes, eu também devo ter morto balantas. De resto, não se ganha uma cruz de guerra sem matar um ou mais inimigos, uma boa dúzia deles, no mínimo… Mas na guerra matar não é crime... E, se for na guerra santa,  é um dever sagrado, se forem infiéis ou "turras", conforme o Deus a quem rezas.

Torturaste ? Violaste ? Roubaste o tesouro nacional ? Desonraste o exército e a tua arma, a cavalaria ? Desejaste a mulher do teu comandante, do teu camarada ou do teu subordinado  ? Cometeste adultério ? Evocaste o santo nome de Deus em vão ? Adoraste o bezerro de ouro ?... 

Não sou juiz, muito menos o do Juizo Final… Mas não vou pôr as mãos no fogo por ti, no que diz respeito aos pecados mortais... E já nem sequer me lembro de quantos eram, os que nos ensinaram na catequese. Eu, dantes, sabia isso tudo na ponta da língua, a começar pelos dez mandamentos da lei de Deus... E, lembras-te, quando nos íamos confessar, ao abade,  fazíamos figas com a mão atrás das costas. Fostes tu que ensinaste...

Porra, mano querido, olho para o teu cadáver, ponho a mão na tua testa, gelada como o granito da nossa casa, e causas-me horror e dó: o que fazem a um gajo depois de morto!... Com milhões de micróbios em marcha para, na linha de desmontagem,  te limpar a carcaça, por dentro e por fora...

Mas, que importa?!, se amanhã, ao meio-dia, vais parar ao crematório. Aqui perto, em  Paranhos. E tudo acaba lá, a mais de 900 graus centígrados. Limpo, asséptico, indolor. Ou talvez não, para nós que fomos ou ainda somos cristãos (se queres saber, eu ainda o sou)... Os gatos pingados, esses, entregam um pequeno pote com as tuas cinzas à viúva, tiram as luvas das mãos, tomam um banho, voltam a vestir o fato e a gravata, e metem-se no carro a caminho do aconchego do lar, doce lar…

E a tua gaja, a viúva alegre, essa, ainda vai gozar metade da tua pensão de reforma de herói nacional, com um marmanjo qualquer que ela há-de conhecer no Facebook ou no ginásio onde faz Pilates e olhinhos sofridos de Barbie, a pestanejar de rimel, aos putos de vinte anos, cheios de testosterona… (Não tive sorte com as tuas mulheres.)

Mas o que estás para aí a rosnar entre dentes ? Oiço já mal, mas mesmo assim sou capaz de reconstituir o teu pensamento, a tua voz, cavernosa, de ventríloquo, que vem, senão das profundezas do Inferno, pelo menos do outro lado do rio que acabas de atravessar, na barca de Caronte…

“Meu sacana!, desta vez passaste-me a perna!... Não pediste a bênção ao mano velho, como te ensinaram os nossos pais. Foste um cobardolas de merda, podias ter sido solidário comigo... Podíamos ter feito a nossa viagem juntos, sempre era menos penosa. Iríamos empoleirados, divertidos, na minha Chaimite, a cantar as canções da nossa alegre infância que eu te ensinei, na Mocidade Portuguesa... Tu, um lusito de palmo e meio!.  Sempre tínhamos as férias grandes para estarmos juntos, na nossa quinta, apesar da diferença de idades!... Essa seria a tua derradeira (e verdadeira) prova de fraternidade, de amor e de amizade!... Mas não tenho esse direito, o de te pedir o supremo sacrifício da vida, nem que fôssemos irmãos gémeos verdadeiros!... Espero que ainda tenhas, ao menos, uma longa vida para te poderes ir lembrando, de quando em vez, com saudade, deste teu pobre amigo, mano e mentor”…

E como vais querer ser lembrado ? Como um herói?!

“Sim, justamente como um herói. Lembras-te como tu me dizias ?!... Sempre tiveste a mania de recorrer à mitologia grega, com referências eruditas, chatas p'ra burro, para um gajo como eu que era de cavalaria, e que nunca gostei de estudar: ‘Meu herói, mais do que um homem, menos do que um deus’... Sempre me chamaste 'meu herói’... E eu até gostava, confesso, mas sem nunca te levar a sério. Quero, por isso, que te lembres de mim como um herói. Sempre gostei da tua definição de herói, mais do que homem, menos do que deus...”

Seja, então, feita a tua última vontade, grande cavaleiro!

“Podia ter morrido pela Pátria!?... Com Honra e Glória!... Mas, não, acabei por ser um burocrata da tropa, no fim da carreira, num daqueles serviços do Exército que ninguém quer chefiar"...

Deixa-te de tretas, tivemos muitas discussões em vida, sobre isso. E sobre o teu militarismo. Sempre foste um bocado militarista. Que tu tenhas recebido a cruz de guerra, tudo bem. E foi bem merecida. Felizmente que não foi a título póstumo... Estou a ser egoísta, desculpa lá, queria eu dizer: não fiquei, assim, privado de conviver contigo, mais estes quarenta e tal anos...

“É doce morrer pela Pátria”: ensinaram-me na Academia Militar, uma escola de valores e virtudes que tu nunca tiveste o privilégio de conhecer… E, se bem me lembro, onde nunca me foste ver, a não ser no juramento de bandeira, com os pais e a mana. Sem esquecer o Colégio Militar, de que guardo as melhores recordações e onde fiz amigos para a vida. Chamas a isto militarismo ?”

Não, aí já não te acompanho, nem nunca te acompanhei, a partir dos meus 18 anos, quando rompi com o passado. Bem sabes que nunca tive jeito para a tropa, como tu e os nossos antepassados  que seguiram a carreira das armas. E fiquei com fobia aos internatos. Fiz o que tinha a fazer, como português e cidadão, que foi o serviço militar obrigatório. Honrei a palavra dada ao nosso pai... Não fugi. E fui "infante", tropa-macaca, como a gente dizia na Guiné... 

Já tu tinhas dado uma volta pelo Índico, em 1958, quando eu entrei para o Seminário… E mal sabias tu que a Pátria te voltaria a chamar, desta vez, para Angola, três anos depois... Sempre receei ter que ir a Lisboa, com os pais, ao 10 de junho, para receber uma qualquer cruz de guerra tua, a título póstumo... Tinha esses pesadelos, que me aterrorizvam à noite, confesso...

“A nossa querida e saudosa mãe queria que eu fosse para padre, contrariando o avô, o pai dela, que era anticlerical, como sabes... E o nosso pai, esse, queria que eu seguisse a tradição da família… Acabei por ir para o Colégio Militar e entrar na Academia, graças aos pergaminhos da nossa casa e à nobreza da nossa linhagem… Mas sei que o nosso pai, que Deus lá tem, teve de fazer das tripas coração. Vivíamos acima das nossas possibilidades, com as míseras rendas dos caseiros e os roubos do feitor... Mais uma vez, valeu-nos a cunha do nosso primo general, que foi sempre um grande e leal amigo da família...”

O seminário sempre era mais barato. Ir para Lisboa era um pesado encargo para a família. E a nossa mãe, com a sua intuição, o seu sexto sentido, parece que estava a adivinhar que os tempos que aí vinham, não eram propriamente cor de rosa... 

Sobrou para mim, que acabei por ir para Montariol, em Braga... Já que tinha um filho oficial do Exército, um garboso oficial e cavalheiro, faltava-lhe, à nossa mãe, um missionário, barbudo, de sotaina branca, para dilatar a fé e o império. Mas eu cedo percebi que os votos de pobreza, obediência e castidade eram um fardo demasiado pesado para um jovem que não tinha cometido nenhum crime lesa-família ou lesa-pátria, só queria afinal viver, e viver a vida do seu tempo… E que tempos, esses, os dos anos 60, meu irmão!

Fui aguentando, à custa de muitos sacrifícios pessoais, de muito ranger de dentes, com  muito cinismo à mistura, só para não dar um desgosto à nossa mãezinha... Quando ela morreu, precocemente, ainda tão jovem, tão cedo e tão linda, eu já estava em teologia, no Seminário da Luz, em terra de mouros... Há muito que tinha perdido a vocação ou percebido que não tinha jeito nem feitio para missionário franciscano desterrado para Angola, Guiné ou Moçambique...

Voltei ao Norte. Mal tive tempo de respirar o ar livre da noite do Porto (que na altura era uma chungaria), chamaram-me para a tropa e, de seguida, meteram-me num barco, misto de carga e passageiros, direitinho à Guiné. 

“Já eu tinha passado por Moçambique, foi lá que me cobri de honra e glória, e ganhei esta cruz de guerra que ostento, com orgulho, ao peito... E já tinha trinta e muitos”…

Em boa verdade, eu tive infância (e tão feliz!), mas não tive nem adolescência nem juventude... Tal como tu, que passaste os teus melhores anos entre a caserna e o ultramar… Envelheci, pelo menos uma década, no seminário, na tropa, na guerra...

Quando voltei da Guiné, fui à procura do tempo perdido... Andei na noite, na má vida, com más companhias, desperdiçando o resto dos meus verdes anos, dando cabo do fígado e arriscando a saúde, com uísque marado e as gajas da noite... Felizmente, ainda não havia, nesse tempo, o VIH/Sida... Ou estava em incubação...

À beira do abismo, na 23ª hora, conheci a Manela, que me levou, de novo, para o caminho do bem... Estamos casados há 40 anos. Foi o segundo anjo da guarda que conheci na vida, depois da enfermeira paraquedista que me levou para o hospital militar de Bissau, e me salvou do inferno de... Ai!, porra, já não me lembro (ou não quero lembrar ?!) do raio do sítio onde apanhei uma mina anticarro que matou uma meia dúzia dos nossos…  Começava por um G, de Guiné... Guigiti? !... Peço-te desculpa pela branca... Como também não me lembro do nome desse anjo que veio do céu, para me salvar. Imperdoável!... A minha memória já não é o que era... Ainda gostava de a conhecer, a essa enfermeira paraquedista, se por acaso ainda for viva, como espero...

Acabou-se a guerra, para mim, nesse dia. E lá percorri as estações do calvário: Hospital Militar, em Bissau, Hospital Militar Principal, na Estrela, depois o Centro de Reabilitação de Alcoitão...  Muitos meses em tratamento e recuperação, uma prótese no calcanhar, enfim, foram as medalhas que eu trouxe da Guiné... E tenho uma pensão de merda como Deficiente das Forças Armadas. 

Nunca ninguém me foi visitar, nem sequer as senhoras do Movimento Nacional Feminino... E muito menos o meu pai, o que eu entendo e até perdoo: Vila Nova de Cerveira ficava longe da capital e o pai, não sei se te lembras, já estava doente... A nossa mãe, essa, já tinha partido para a beira do Padre Eterno.

“Tiveste azar, irmãozinho… Os manos do meio, esses, lá se foram desenrascando, pior ou melhor. O António foi 'a salto' para França, para grande desgosto dos pais, era refratário e tornou-se um comuna de merda… O Jorge, depois do magistério primário, livrou-se da tropa, com um grande cunha de um médico militar do Porto; a mana,  essa, lá casou, tarde e a más horas, com um servidor público, chefe de finanças de Braga”…


Sabes ?!, nunca te contei isto!... Aos dez anos quis ficar órfão e depois morrer, quando fui para o Seminário de Montariol. É monstruoso, tenho que o admitir: desejei a morte dos nossos pais!... Eles, coitados, já não estão cá, e espero que não me oiçam... Mas, se me estão a ouvir, que me perdoem!... Agora, eu não sei é se Deus me vai perdoar. Nunca contei o segredo, nem sequer ao meu confessor nem ao meu diretor espiritual... Estou-te a contá-lo, pela primeira vez, e sei que me vais saber escutar,  entender e perdoar....

"Achas que é normal um puto querer morrer na flor da idade ? Ou sentir um secreto prazer em imaginar-se órfão de pai e mãe ?... Eras um monstrozinho!"...


Sim, quis matá-los!... Sentia-me só, abandonado, terrivelmente só, perante Deus Todo Poderoso… Para trás de mim, e cada vez mais distante, ficava o mundo… Um a um via desaparecer, separados por  vidro fosco e espesso, os rostos que me eram familiares e queridos, os dos meus pais, irmãos, tios, primos, mas também os dos meus amigos e colegas de escola… Um vidro cada vez mais grosso transformado em muralha instransponível...

“Também passei por esse choque, essa angústia, a da separação, quando fui para o Colégio Militar, lá longe, na capital do império… Passava da nossa casinha, da nossa quinta, da nossa querida família extensa, onde conviviam três gerações, para um casarão, uma instituição castrense dominada, aos meus olhos de puto, por seres poderosos, prepotentes, mesquinhos... Tive medo, sobrevivi às praxes, enfim, sabes como era naquele tempo... Mas nunca me passou pela cabeça essas ideias malucas de suicídio ou de orfandade... Sempre foste, afinal, um puto mimado, sobretudo pela mãe e pelo avô Francisco que te queria fazer doutor de letras!"...

Em boa verdade, eu sentia-me abandonado por todos, e até por ti, que eras o meu herói, o meu ídolo, o meu anjo da guarda!...

“Não te podia valer, por muito que o quisesse!... No início do último trimestre de 1958, eu já estava na Índia como alferes... Uma eternidade para lá chegar, seguimos o caminho de Vasco da Gama, deixámos tropa e material em Angola e em Moçambique…”

E tu, meu sacana ?!... Sempre foste um mulherengo, um escravo do gineceu,   um gajo fraco com as mulheres, como eu mais tarde vim a descobrir!...Na altura, fiquei chocado e dececionado contigo, que eras o meu ídolo, quando te apanhei, nu em pelota, no espigueiro, montado na filha de um dos nossos caseiros... 'Boa como o milho', rías-te tu, meu safado... Armado em pinga-amor, um Dom Juan minhoto, caíste mais do que uma vez como a mosca no vinagre…

"Cala-te, não sejas ingrato!... Ainda te quis levar às putas em Vigo!...Mas, tu, parolo,  quiseste ficar virgem até à ordenação de padre!... Ah!, ah!, ah!...
 Eh!, e nada de aldrabices, essa filha do caseiro era a Joaquina das Bouças, ficámos até bons amigos. Estamos quites, tratei-lhe do passaporte e paguei-lhe a passagem de comboio para França, lá casou com um mouro de Moura ou Mourão, um gajo do Sul..."

Abelhudo, era o que tu eras!... Sempre atrás do mel, sem te importares com os sarilhos de saias que arranjavas e as aflições que causavas à nossa pobre mãezinha... Ficas a saber que não posso com a gaja que te caçou há 15 anos, no carnaval do Rio de Janeiro, ainda estavas viúvo de fresco... Nem sei que idade tem, a tua  'coronela', muito mais nova do que tu!... Deve ter a idade dos teus filhos mais velhos, os do teu primeiro e trágico casamento... E que eu mal conheço, nunca ou raramente foi às últimas  festas da família. Felizmente que não tens filhos da brasileira...

“Não te admito que fales assim da minha legítima esposa, e agora viúva, face à lei de Deus e dos homens… Se me pudesse pôr de pé, ainda te dava com o pingalim na cabeça e depois um valente murro nas ventas”…


Desculpa, mano velho, não tenho o direito de me intrometer na tua vida privada e na vida da tua família, e das tuas mulheres com quem, se calhar por ciúmes, nunca simpatisei… 

Estou apenas irritado comigo próprio, zangado  com o resto do mundo... E com Deus, se queres saber! (E que  Ele me perdoe!)...Estou eu a querer falar contigo, baixinho, a sussurrar contigo, que já estás no mundo dos mortos, estou eu aqui a não querer perturbar o sono eterno dos que viajam contigo na barca de Caronte, e ouço, ao lado, as gargalhadas despudoradas da sacana da tua viúva e dos seus amigos e até dos nossos primos… Alguém, tenho impressão que um gajo do teu curso, deve estar a contar uma anedota porca do tempo do Colégio Militar ou da Academia ou do Spínola na Guiné..

Mas que falta de pudor, de compostura e sobretudo de respeito por ti, que estás em câmara ardente, recebendo a derradeira homenagem dos teus familiares, amigos e camaradas de armas!...

Acho que me vou retirar, com a tua licença... Durmo mal, vou descansar um pouco, estou zangado,  volto amanhã,  para rezar por ti e encomendar a tua alma... Vais ter com o nosso pai e a nossa mãe, e o nosso Jorge, coitado, que Deus também já lá tem... Espero amanhã estar mais calmo e pedir a Deus que me perdoe, se me excedi e se O irritei. Deus não gosta que O irritem.

Vou rezar por ti e pedir a Deus perdão pelos teus e pelos meus pecados. Nunca me hei esquecer das palavras que a nossa mãezinha nos obrigava a rezar: antes de irmos para a cama, e depois da oração ao anjo da guarda, vinha a Avé Maria que terminava com o "E na hora da nossa morte, ámen!".

Ah!, já me esquecia, a Manela, que tirou um peito há pouco tempo, não pode acompanhar-te na tua despedida da Terra da Alegria (ela lê muito o poeta Ruy Belo) mas manda-te, por mim,  o último chicoração. Ela sempre gostou de ti, mesmo com todos os teus defeitos. 

Volto depois de amanhã para Lisboa.

© Luís Graça (2019). Nova versão, revista e melhorada, nesta data.

Nota do autor: este é um texto literário, um conto, narrado em tom muito confessional e intimista. Alguns vocábulos ou expressões, mais "duros", que podem ferir a suscetibilidade do leitor, têm que ser relevados e entendidos dentro dos limites da liberdade criativa e do espírito aberto do "livro de estilo" do nosso blogue.

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Nota do editor:

(*) Último poste da série : 5 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!