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sábado, 26 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23817: In Memoriam (463): Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022)... Um excerto do livro "Quebo" (2014): Recordando os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971, "se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida"


Rui Alexandrino Ferreira (Angola, Sá da Bandeira, 
h0je Lubango, 1943 - Viseu, 2022) (*)





Guiné > Região de Tombali Aldeia Formosa > CCAÇ 18 (jan 197/set 72) > 1971 > Os primeiros foguetões 122 a serem capturados aos guerrilheiros do PAIGC. No foto, ao centro Cap Mil Rui Ferreira, comandante da CCAÇ 18, com dois dos seus homens, guineenses: o furriel mil Aristóteles Tomé Pires Nunes  e o furriel  mil Carlos Solai Só. Foto, com a devida vénia, reproduzida de "Quebo: nos confins da Guiné", Coimbra, Palimage, 2014, pág. 107. 




Capa do livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014, 364 pp.).
Um exemplar deste segundo livro do Eui Alexandrino Ferreira, foi-me gentilmente ofertado pelo Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), Reproduzo aqui a sua dedicatória: "Tendo estado em Aldeia Formosa com o autor, quero partilhar com o meu ilustríssimo amigo Luís Graça alguma dessa vivência. Manuel Gonçalves, s/d  [2022] ".



1. Em homenagem ao nosso ten cor inf ref Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022), deixamos aqui a sua versão sobre os tristes acontecimentos que ensombraram Aldeia Formosa, na noite de Consoada de 1971,  sob a forma de confrontos armados, opondo militares, guineenses, da CCAÇ 18, a camaradas, metropolitanos da CCS e da CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, jul 1971 / set 1973).  O Rui Alexandrino Ferreira estava então na sua segunda comissão no CTIG, desta vez a comandar a CCAÇ 18 (de janeiro de 1971 e setembro de 1972).

Trata-se de um excerto do seu livro "Quebo: Nos confins da Guiné" (Coimbra, Palimage, 2014). Com a devida vénia aos herdeiros do autor e à editora, a Palimage. É também uma homenagem à sua esposa, a quem dedica (a ela e às filhas) este livro, com palavras  de enorme ternura e humanidade que merecem ficar aqui registadas no nosso blogue:

"Este livro  (...) é principamente dedicado à minha esposa, que continua a ser dos meus sonhos o mais lindo, pro quem tive a ousadia de pedir a Deus: "Senhor! Cuida bem dela. Dá-lhe uma velhice calma e sem abrolhos, que a compense da imensidão de sacrifícios que por mim temfeito. Quando a tiveres de a chamar a Ti, não o faças sem primeiro o teres feito a mim, pois  sem ela nem o mundo seria o mesmo, nem a  minha vida teria qualquer sentido" (pág. 19).

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos a seguir relatados: vd. por exemplo, o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estva a altura em Aldeia Formosa, Joaquim dos Reis Martins ("Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335); ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**). 



Capítulo décimo primeiro – A noite dos horrores, ou o conflito armado entre metropolitanos e africanos e ainda a morte de Virgolino Ribeiro Spencer (pp. 197 – 202)


Por Rui Alexandrino Ferreira 



(...) Se durante a permanência do [BCAÇ] 2892, a coexistência entre brancos e africanos decorreu de forma natural, (…) dentro do aquartelamento e da povoação [de Aldeia Formosa] (…), com a chegada do [BCAÇ] 3852 tudo se tinha modificado.

(…) Sucedia que entre os fulas, para publicamemte mostrarem a grande amizade que os unia, estes se passeavam de mão dada. Tal facto foi originando alguns piropos da parte dos soldados metropolitanos, que foram agravando com o correr do tempo.

Longe de qualquer prática homossexual, que aliás não foi detetada nenhuma, na CCAÇ 18, durante todo o tempo em que lá estive (…). Os militares do [BCAÇ] 3852 pareciam, a este respeito, estar desinformados, pouco mentalizados, como se fosse coisa de que nunca tivessem ouvido falar.

Foram-se assim agravando as relações. E, se não me custa aceitar que havia alguns militares da [CCAÇ] 18, que estariam mais perto dos ideais do PAIGC, e atentos a uma oportunidade para lançar uma confusão, tal não me parece ter sido esse o presente caso.

Confusão que acabou por acontecer na noite da consoada de 1971. Foi seguramente, se não a pior, uma das mais trágicas da minha vida.

E tudo começou por uma violenta discussão entre africanos e metropolitanos no bar do Cabo Verdiano, envolvendo o campeonato de futebol da primeira divisão. Do Benfica ao Sporting (…), foi subindo de tom e passou para o futebol de Aldeia Formosa, onde tinha recentemente terminado o campeonato inter-unidades.

E assim, normalmente, acabava por vir a lume a minha própria pessoa. Não sendo efetivamente um elemento muito disciplinado, usando e abusando da força que então tinha, era extremamente corajoso, lutador e, sem ser violento, impunha o físico, nunca tirava o pé do sítio onde metia e raramente perdia um confronto a dois.

Tendo sido injustamente expulso durante um desafio por um furriel árbitro que, na busca de protagonismo, não encontrara melhor solução que me pôr fora de campo, ordenei então à equipa da 18 que abandonasse o terreno, pois o futebol para nós tinha acabado naquele momento.

Foi um alvoroço. Chamado às preces
 [ou à pressa ?]    o comandante [ten cor inf António Afonso Fernandes Barata], [este ] ordenou-me que fizesse reentrar o pessoal no campo, ao que lhe respondi que nem pensar.

− Então mando-os eu entrar – retorquiu.

−Essa é que eu gostava de ver, entrar um que fosse, depois de eu ter dito para o não fazerem.

− Então, eu prego-lhe uma porrada.

− E eu preocupado com isso, seguramente viu daqui para melhor, porque não há nada mais perigoso em matéria operacional do que uma companhia africana. E venha quem os ature.

− Mau…, então vamos conversar. O que é o senhor quer ?

− Mande substituir o árbitro.

E assim foi feito (…).

Do futebol se passaram às malévolas insinuações, se julgaram ações, se estabeleceram suposições, numa alusão a eventuais práticas homossexuais, metendo pelo meio o uso dos balandraus, alguns ricamente costurados, que os fulas usavam em ocasiões especiais, mas que efetivamente mais pareciam vestimenta de mulher.

E tudo acabou num confronto físico, quando um soldado africano enfiou pela cabeça abaixo de um soldado africano uma cadeira. Criadas fixaram assim as condições para o pandemónio que se seguiu.

Impotente para reagir fisicamente, dada a diferença de arcaboiço, o soldado africano foi a casa buscar a arma. Os soldados metropolitanos refugiaram-se no quartel e os africanos instalaram-se numa casa fronteiriça a este, de onde desencadearam o ataque.

A notícia chegou como uma bomba à tabanca da [CCAÇ ] 18 [fora do quartel, onde ficavam o comandante e os demais graduados da companhia].

− Nosso capitão, o pessoal está todo aos tiros uns aos outros.

(…) Desatmado, usando, tal como me encontrava, as calças do camuflado e uma t-shirt branca, dirigi-me rapidamente ao local do conflito.

Já então o tiroteio era verdadeiramente infernal. Os soldados metropolitanos tinham começado a responder de dentro para fora do quartel. Tendo feito rapidamente um balanço à situação, só havia um solução: terminar imediatamente com a troca de tiros, antes que a situação ficasse incontrolável.

Identificando-me e ordenando, tão alto quanto consegui, que pusessem fim ao tiroteio, avancei direto à casa onde se encontravam entrincheirados os soldados da 18.

Os tiros passaram por mim zumbindo, dilagramas iam rebentando um pouco por todo o lado. E fosse por intervenção divina, por interferência de Nossa Senhora de Fátima que protege os portugueses quando estes se encontram em más situações, ou pela intervenção que era conferida pelo amuleto que me fora dado pelo Cherno Rachid Jaló, não sofri nem a mais ligeira beliscadura.

Continuando a avançar em direção à casa, consegui que os meus soldados a abandonassem e assim se findou o tiroteio. No rescaldo, e num balanço final, tinha um dos majores um dos lados da cara completamente esfacelado, por se ter mandado abaixo do jipe que estava a ser atacado.

Mais grave, estava o Virgolino Ribeiro Spencer, um dois furriéis da 18, que transitava de boleia na motorizada do Ganga, outro furriel da mesma 18, que era avançado de centro da seleção da Guiné (…)[com família no Pilão]… [E a propósito do Pilão], ainda estava bem presente na mente de todos a morte de quatro elementos da polícia militar, vítimas de uma granada que lhes meteram dentro do jipe.

Virgolino Ribeiro Spencer foi inacreditavelmente atingido por uma bala que, tendo feito ricochete no farolim, o foi apanhar naquele exíguo pedaço do seu corpo, que não estava protegido pelo corpo do Ganga. (…)

Evacuado para Bissau, na madrugado do dia seguinte, morreu um dia depois [na realidade, umas três semanas depois, em 15 de janeiro de 1972]. Para o seu velório e enterro, Spínola mandou-me buscar a Aldeia Formosa.

Foi mais uma noite de profundo desgaste psíquico, físico e mental. Com o calor que se fazia sentir, o corpo já tinha começado a decompor-se. A família, num cantochão, misto de prece e oração, lamentava em conjunto a sua morte. Toda a noite, sem descanso, sem tréguas, sem intervalos. De madrugada, [eu] tinha os nervos arrasados. O enterro constituiu mais uma provação.

Mas voltando a Aldeia Formosa e à noite das facas longas, findo o tiroteio e após ter passado pela enfermaria, dirige-me à sala de operações onde se encontrava reunido o comando do batalhão. O comandante propôs-me então que se esquecesse o que se tinha passado, não informando Bissau do sucedido.

Ao que lhe respondi que não precisava ele de se preocupar em prestar qualquer esclarecimento, pois a essa hora já por toda a cidade de Bissau se sabia o que se tinha passado, com base no agente da PIDE, em Aldeia Formosa.

− E mais, temos de nos preparar para amanhã receber a visita de Spínola.

E assim foi. Formadas as unidades, Spínola determinou que os comandantes das companhias fizessem sair os cabecilhas. E quando viu que os elementos da 18, que tinha mandado sair, estava um cabo com uma cruz de guerra (que ostensivamente colocara), dirigiu-se-me dizendo que não era forma de tratar um herói nacional. Ao que eu respondi:

−Que em matéria de cruzes de guerra, ele ainda ficava a perder comigo.

A verdade é que Spínola estava absolutamente determinado a arranjar alguém que arcasse com as culpas e, se eu não lhe tenho respondido com a mesma arrogância, ele tinha-me passado por cima.

Embarcados os elementos que tinham sido dados como cabecilhas, Spínola regressou a Bissau.

De seguida, mandou quês e apresentasse em Bissau o comandante do [BCAÇ] 3852 e enviou, para Aldeia Formosa, o brigadeiro Ramires, comandante do CTIG, que, tendo como escrivão o major Carlos Azeredo, elaborou o auto respetivo. (Aliás, Carlos Azeredo conhecia muito bem Aldeia Formosa, pois tinha aí comandado um COP).

Ouvidos exaustivamente todos os possíveis intervenientes, foi o comandante punido. Salvo erro, com 12 dias de prisão disciplinar, findos os quais, foi mandado regressar à Metrópole.

No rescaldo, a vida regressou a uma efetiva normalidade, melhoram as relações entre militares, e eu sentia que o grosso que tinha que fazer naquela comissão já estava feito.

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Parênteses retos / Negritos , para efeitos de publicação deste poste:  LG]

2. Comentário adicional do editor LG:

Chama-se a atenção para o facto de haver outras versões dos acontecimentos acima relatados, que podem divergir, nalguns aspetos circunstanciais ou até essenciais, da versão do Rui Alexandrino Ferreira. Costuma dizer-se que quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto. Neste caso, ver por exemplo:

(i)  o testemunho do soldado do pelotão de morteiros que estava a altura em Aldeia Formosa, fotógrafo amador, e amigo do coamndante da CCAÇ 18, de seu nome Joaquim dos Reis Martins: ele próprio doou sangue para fazer uma transfusão ao furriel Spencer, assistido de imediato pelos quatro médicos do batalhão, por sorte todos reunidos nesse dia festivo em Aldeia Formosa: levado de helicóptero para o HM 241, logo no dia seguinte de manhã,   foi recuperando dos ferimentos de bala; mas terá morrido de uma hepatite no hospital (in "Quebo: nos confins da Guiné", op cit, 2014,  cap 12º, ponto 10.5. A Revolta dos Militares Nativos, pp. 330-335).

(ii) ou ainda a versão do nosso camarada Manuel Gonçalves, já aqui citado (**):. 

(...) Oficialmente, o exército considerou a  (...) morte   [do furriel mil Spencer] como "acidente". Na realidade, ele terá sido assassinado, quando circulava pela tabanca com a sua motorizada. Era um guineense, de origem cabo-verdiana,  sendo natural de Nª Sra. Natividade, Pecixe, Cacheu.

Era o único militar, ao que parece, que possuía uma motorizada  [o alf mil João Marcelino, da CCS, também tinha uma Honda, não sei se nessa altura, se mais tarde... LG] . 

Para o Manuel Gonçalves, terá sido morto mais provavelmnete morto por alguém da sua própria companhia. a CCAÇ 18,  As praças da CCAÇ 18 viviam na tabanca, estando por isso armados.

A haver crime. não se apurou o móbil do crime, nem se identificou o autor do disparo.. Pode-se pôr a hipótese de vingança ou racismo. Esta história acabou por ser um "pretexto" para uma "insubordinação militar", com o pessoal da CCAÇ 18,  a revoltar-se e virar as suas armas contra os "tugas" da CCS/BCAÇ 3852.

Foi preciso mandar avançar uma Panhard para serenar os ânimos... Isto passa-se na véspera de Natal, na noite de Consoada, 24/12/1971. O Spencer, evacuado para o HM 241, em Bissau, acabou por não resistir aos ferimentos, três semanas depois. (...)

Há outras referêcncias a estes acontecimentos da noite de Natal de 1971 em depoimentos prestados no livro do Rui Ferreira por militares que o conheceram e que com ele conviveram em Aldeia Formosa, quer pertencentes à CCAÇ 18 quer ao BCAÇ 3852. Não vamos, por ora, citá-los. Os seus depoimentos são importantes para se melhor conhecer o homem e o militar que foi o Rui Alexandrino Ferreira.

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Notas do editor:

(*) Último poste da sérue > 24 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)

(**) Vd. poste de 12 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19006: (De) Caras (120): A morte do fur mil, da CCAÇ 18, Virgolino Ribeiro Spencer, em Aldeia Formosa, em 15 de janeiro de 1972... Acidente ou homicídio na Consoada de Natal de 1971 ? A versão do Manuel Gonçalves, ex-alf mil manutenção, CCS/ BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73).

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23813: In Memoriam (462): Rui Alexandrino Ferreira (ex-Sá da Bandeira, Lubango, 1943 - Viseu, 2022), ten cor inf ref, ex-alf mil inf, CCAÇ 1420 (Fulacunda, 1965/67); ex- cap mil, CCAÇ 18 (Aldeia Formosa, 1970/72); autor de 3 livros de memórias: Rumo a Fulacunda (2000), Quebo (2014) e A Caminho de Viseu (2017)




Viseu > Regimento de Infantaria 14 > 4 de novembro de 2017 > Sessão de apresentação do último livro do Rui Alexandrino Ferreira, "A Caminho de Viseu" (Coimbra, Palimage, 2017, 237 pp. ) > Um abraço do João Marcelino (que vive na Lourinhã, esteve presente no VII Encontro Nacional da Tabanca Grande, em 2012, e que é amigo do autor desde a Guiné, tendo estado os dois juntos em Aldeia Formosa: o Rui como comandante da CCAÇ 18, o João Marcelino, "Joneca", como alf mil, CCS/BCAÇ 3852).


Foto (e legenda): © Márcio Veiga / Rui Alexandrino Ferreira (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. O Paulo Santiago deu-nos ontem à noite a triste notícia e o João Marcelino acaba de a confirmar junto da família: morreu o nosso Ruizinho, como era carinhosamente tratado o Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022).

Estava reformado como ten cor inf. Foi alf mil inf, CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67; cap mil da CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72). É autor de três livros de memórias.



Rui A. Ferreira
Nota biográfica:

1943 - Rui Alexandrino Ferreira nasce na antiga Sá da Bandeira (hoje Lubango), Angola.

1964 - Integra o último curso de oficiais milicianos que reuniu em Mafra a juventude do Império.

1965 - Rende, na Guiné-Bissau, o alf mil Vasco Cardoso [CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67], dado como um desaparecido em combate.

1970 - Frequenta o curso para capitão em Mafra, seguindo em nova comissão para a Guiné-Bissau [CCAÇ 18, Aldeia Formosa/Quebo, 1970/72].

1973 - Regressa a Angola em outra comissão.

1975 - Retorna a Portugal.

1976 - Estabiliza em Viseu, onde continua a residir. é ten cor ref.

2000 - Publica, na Palimage, o seu 1º livro, Rumo a Fulacunda: crónicas de guerra 

2014 - Publica o seu 2º livro. Quebo: nos confins da Guiné, igualmente sob a chancela da Palimage.

2017 - Lança um 3º livro, A Caminho de Viseu, nas instalações do RI 14 de Viseu, e sob a mesma chancela, a Palimage.

2022 - Morre, em Viseu, de doença crónica degenerativa (Parkinson); tinha inúmeros amigos e camaradas que o estimavam, acarinhavam e admiravam; era um dos históricos  da Tabanca Grande, tem cerca de 80 referências no blogue.

Para a família e amigos e camaradas mais íntimos, fica aqui esta nota de pesar pela sua perda mas também a nossa homenagem a um grande militar, um bom homem e um melhor amigo que soube partilhar, connosco, em vida, as suas memórias da Guiné. LG

PS - Não temos informação sobre o local e a data das cerimónias fúnebres.
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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23654: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (97): os geradores militares: contributos para a história da eletricidade no território (Manfred Stoppok / José Nunes / Eduardo Estrela / Fernando Gouveia / António J. Pereira da Costa / Carlos Silva / Cherno Baldé / José Colaço / Magalhães Ribeiro / Valdemar Queiroz / Manuel Gonçalves / Luís Graça)


Guiné > Região do Oio > Porto Gole > Março / Abril de 1968 > CART 1661 > Trabalhos de electrificação do aquartelamento a cargo de uma equipa do BENG 447, onde se integra o José Nunes, autor desta imagem... (José Silvério Correia Nunes, ex-1º Cabo Mecânico de Eletricidade,  BENG 447m Brá, 1968/70: esteve na Central Elétrica do Quartel General, em Bissau).

Foto (e legenda): José Nunes (2009).  Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentários ao poste P23647 (*): 

(i) Manfred Stoppok, antropólogo social,  Universidade de Bayreuth, Alemanha

Muito obrigado pelos vossos valiosos comentários! Posso partilhar aqui algumas informações sobre a evolução do sistema de eletricidade na Guiné:

Distribuição e iluminação publica em Bolama e Bissau a partir de 1930; em Bafatá a partir de 1933. Nos anos 1920 já tinha iluminação de alguns prédios em Bubaque, e provavelmente também em Bolama, mas não foi uma distribuição publica.

Em outros lugares somente depois da segunda guerra mundial, respetivamente a partir de 1947 foram instalados geradores em vários sítios (cerca 20 lugares).

O fornecimento de energia elétrica 24/7 somente realizou se em Bissau. Existiam planos para criar uma rede de distribuição em alta tensão mesmo para o interior – mas não foram realizados. A administração optou pelo sistema de pequenos geradores em todos lugares, porque no curto prazo foi o mais viável, o mais barato, o mais rápido. Mesmo que, já naquele tempo, se subesse que um sistema assim iria criar muitas problemas na manutenção e  ser muito fraco ao longo prazo.

Deve ser por isso que os militares instalaram a maior número de geradores no país na sequência da guerra.

A fonte sobre os geradores no país é um relatório do engenheiro José Correia da Cunha Barros,  de 1969. Em anexo ao relatório há uma tabela que lista 73 lugares, dos quais 59 têm gerador. E daqueles, a maioria eram propriedade do exército. Naquele tabela constam de mesmo os nomes e números dos geradores – tudo bem detalhada.

Barros, José Correia da Cunha (16.07.1969): Problemas eléctricos na Província de Guiné - Visita efectuada de 18 a 30 de Junho de 1969. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), PT/IPAD/MU/DGOPC/DSE/1579/00782.

Bem, foi este fonte que me avisou, que os militares têm um certo papel na história da eletricidade na Guiné. E parece que este papel foi maior de que somente iluminar os próprios aquartelamentos.

Sie alguém está interessado nos detalhes dos geradores,  posso partilhar o relatório com a tabela numa versão digital. Parece que esta lista não é completa. Como eu li nos comentários havia mais aquartelamentos, e todos tinham um gerador.

Em geral, o engenheiro Cunha Barros descreve o sistema dos geradores como um sistema muito degradado já no final dos anos 1960. Falta de peças, faltas de manutenção, diferentes marcas, mal instalados, sistemas avariados há muito tempo e ele não entende porquê. Ele deu algumas ideias para melhorar o sistema (entre outras, unificar os geradores, ter somente uma marca, e somente três, quatro diferentes potências), mas aparentemente não se realizou antes da independência.

Depois, aquele sistema de geradores caiu totalmente. Por outro lado, o sistema é persistente. Ate hoje, a distribuição elétrica na Guiné funciona a partir de pequenos grupos de geradores, são frequentemente adquiridos novo grupos, instalados, abandonados, degradados, um circulo vicioso. Mas é desta maneira que o sistema de eletricidade funciona principalmente até hoje. O fundo do poço foi em 2008, quando mesmo a cidade de Bissau raramente tinha luz – isso melhorou bastante desde 2014/15.

Por isso o meu projeto fala de um período de eletrificação (até os anos 1980): eletrificação (anos 1980 – até 2008) e re-eletrificação (a partir de 2008),  na Guiné-Bissau.

Neste sentido, quero comprender melhor qual foi o impacto da electricidade fornecida pelas forças armadas.


(ii) Eduardo Estrela:

Os geradores que operavam no interior do quartel de Bolama, alimentavam os candeeiros de iluminação pública da cidade.

(iii) Fernando Gouveia: 

Tanto quanto me lembro, em Bafatá acontecia um caso curioso. Ali, em 1968/70, o quartel, pelo menos o do Comando de Agrupamento nº 2987 e o do Esquadrão de Cavalaria ao lado, recebiam a energia elétrica pública da Administração a troco do combustíbel para os geradores.

(iv) António J. Pereira da Costa:

Nos quartéis onde estive, quem trabalhava com o gerador era um soldado que tinha jeito e tinha aprendido a reabastecer, mudar o óleo e vigiar os manómetros... Era como se fosse uma viatura. Recordo-me que em Cameconde, os dois condutores "residentes" eram os responsáveis pelo motor.

(v) Carlos Silva:

No meu Sector O2 - Farim que compreendia, além de Farim, o subsector de Jumbembem onde estive 18 meses, o aquartelamento era dotado de um gerador que apenas funcionava durante a noite e a população que até meados de Setembro também beneficiava da iluminação porque estava enquadrada dentro do aquartelamento. Com o reordenamento a partir de meados de 1970 a população ficou fora do arame farpado e, como tal, deixou de beneficiar de iluminação, excepto as tabancas que estavam próximas do arame farpado.

Creio que esta situação também se verificava nos aquartelamentos de Canjambari e Cuntima. Estive no mês de Novembro de 1969 no K3/Saliquinhedim, e o abastecimento/funcionamento eléctrico era igual.
Os frigoríficos eram alimentados a petróleo.

Quanto à vila da Farim onde estive 4 meses até Dezembro 1969, os edifícios militares dispersos, e os arruamentos tinham iluminação pública abastecida por uma central eléctrica que lá existia / existe junto às piscinas. Actualmente creio que não funciona, mas existe iluminação com a implantação de postes solares.

Os comerciantes, alguns, tinham geradores.

Mas para mim, presumo que a electrificação ou fornecimento de energia nos aquartelamentos em toda a Guiné, era semelhante com recurso aos geradores excepto nos grandes aglomerados, como Farim, Mansoa, Teixeira Pinto, Bafatá, Nova Lamego, Cacheu etc, etc

Portanto para mim, esta era a característica geral da Guiné no que se refere à energia.

(vi) Cherrno Baldé:

No quartel de Fajonquito (sede da companhia) situado ao lado da aldeia, havia um pequeno e barulhento gerador a diesel que servia para iluminar dentro e à volta do aquartelamento que, se a memória não me falha, chegou em meados de 1968/69, antes utilizavam-se candeeiros vácuos em alguns sítios (para iluminar a zona do refeitório e a messe de oficiais e sargentos, entre outros). Havia um militar encarregue especialmente dos seus cuidados de manutenção.

Após a independância, ainda funcionou durante alguns meses (penso que enquanto durou a reserva de combustível deixado pela tropa portuguesa), mas com a decisão de acabar com o aquartelamento e centralizar tudo na sede do Sector (Contuboel), destruiram as instalações que eram antigas casas comerciais e levaram consigo o gerador. Ninguém deu satisfação à populaçao local, também não fazia muita falta, porque nunca tinham beneficiado dos seus serviços, salvo a criançada que procurava as zonas iluminadas para brincadeiras nocturnas.

De qualquer modo a nossa aldeia ficou mais escura e triste com a partida da tropa e, mais tarde, da confiscação do gerador. Sou de opinião que a tropa metropolitana concentrada mais nas manobras da sua retirada e regresso a casa, nao teria qualquer interesse em retirar os geradores nos aquartelamentos que já tinha entregue, de forma pacifica e amistosa, aos guerrilheiros.

(vii) Tabanca Grande Luís Graça:

Obrigado, Cherno, mais uma vez, pela partilha das tuas memórias de menino e moço em Fajonquito. Também me parece que, com a retirada das NT, ao longo de julho/agosto/setembro de 1974, o essencial do equipamento (geradores, incluidos...), tirando o armamento, ficou lá nos quartéis do mato, e naturalmente em Bissau... Era um gesto de paz e amizade, depois dos acordos de Argel...

De resto, o custo de transporte para a metrópole era elevado, para não dizer proibitivo...nem havia meios de transporte suficientes... Para os guinenenes, o grande desafio era depois a manutenção... E aí foi um desastre, o PAIGC foi um "bluff", não tinha quadros para desempenhar tarefas, aparentemente tão simples como a manutenção e reparação da "rede elétrica" deixada no mato... Confiaram nos amigos russos, suecos, cubanos e outros... Em Bissau, não sei como foi, mas pelo que vi, "in loco", em 2008, era uma dor de alma aquela cidade... Não consegui sequer entrar nos meus antigos aposentos, em Bambadinca, tive vontade de chorar...

(viii) José Botelho Colaço

Luís,  nem dá para comentar,  é do conhecimento geral o PAIGC só foi rico em propaganda antes da independência, porque após independência não preservou nada, foi a  degradação total tanto de móveis como de imóveis. Enquanto durou e funcionou OLm  a seguir sucata ou ruinas. Veja-se a linda cidade colonial de Bolama como eu a conheci, hoje um abandano total de ruínas, mas é que não foi só Bolama foi a totalidade de quase tudo para não dizer tudo, o que os tugas lá deixaram. É desolador.

(ix) Eduardo Magalhães Ribeiro:

Em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, naquela que era a central eléctrica, localizada entre o quartel e a cidade, ficaram perfeitamente funcionáveis 2 geradores movidos a diesel, não me lembro se eram de 0.8 ou 1,1 MW. Dias antes e uns dias após, foi explicado e estiveram em estágio conjunto de formação aos futuros donos da central vários elementos da tropa portuguesa e do P.A.I.G.C.

A CCS do BCAÇ 4612/74 e toda a tropa ainda estacionada em Mansoa abandonaram o quartel no dia acima indicado. A CCS a que eu pertencia,  foi deslocada para o Batalhão de Engenharia 447 em Brá.
Três dias depois estava eu de sargento de dia, junto à porta de armas, quando surgiu um jipe com 4 PAIGC a pedirem para falar com o nosso comandante. Perguntei qual o assunto que pretendiam os trazia ali. Resposta de um deles: "Os geradores deixaram de trabalhar."

Liguei então, via telefone, ao coronel Américo Varino a narrar a informação recebida. Passado um tempo vem o nosso furriel mecânico com 2 soldados num jipe dos nossos que seguiu atrás dos PAIGC.

Horas mais tarde surge o nosso jipe. Perguntei ao furriel: "Então, pá, o que se passou?"... Resposta: "Aqueles nabos trocaram tudo. Meteram diesel no depósito do óleo, água no sítio do óleo e óleo no depósito do diesel. Está todo partido por dentro e sem reparação possível."

PS - Ainda me segredou que os PAIGC  murmuraram que foram os nossos homens que sabotaram os ditos geradores. Coisa que eu nem vou comentar aqui, para não meter nojo, claro.

(x) Valdemar Queiroz:

Julgo que em Nova Lamego o gerador produzia electricidade para os civis e para a tropa, e penso que a manutenção e a segurança eram feitas por gente da administração e sipaios. Digo isto por, nunca a minha CART 11 ter feito segurança ao gerador, mas montava emboscados e rondas nocturnas como o pessoal do Batalhão.

Quando Nova Lamego foi atacada por foguetões122 mm,  os nosso soldados foram fazer a segurança ao gerador, o meu pelotão não foi e não me lembro se estava assim pré-definido ou se foi alguma ordem ocasional. Mas os frigoríficos da companhia trabalhavam a petróleo.

Não vem a propósito mas pode interessar, o sistema de iluminação que estava montado na fiada interior do arame farpado em volta de Giro Iero Bocari era o cúmulo do desenrasca das invenções. Guiro Iro Bari era um destacamento de Paúnca com dois pelotões junto da população, apenas com umas tendas, valas e duas fiadas de arame farpado em todo o perímetro.

Uma lata vazia, das grandes, de doce/feijão aberta ficando a tampa presa por forma a ser dobrada para se aproveitar ao máximo, como uma pala virada para o céu. Dentro da lata uma garrafa de cerveja com petróleo tapada com uma carica furada e uma torcida. Á noite acendia-se a torcida e a luz refletida na tampa da lata dava um bom candeeiro que só dava luz para a frente.

(xi) Manuel Gonçalves:

O nosso amigo e camarada, transmontano de Bragança, Manuel Gonçalves, ex-Alf Mil Manutenção da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (e que estudou nos Pupilos do Exército), disse-me ao telemóvel o seguinte sobre os geradores:

(i) havia dois em Aldeia Formosa, no seu tempo;

(ii) a responsabilidade pela sua gestão era do pelotão de manutenção da CCS/BCAÇ 3852, de que ele era o responsável, enquanto alferes miliciano;

(iii) em caso de avaria, é que se chamava o BENG 447 (que estava em Brá, Bissau);

(iv) funcionavam os dois, alternadamente, até à 1h00 da noite, depois eram desligados;

(iv) forneciam luz para o quartel e parte da tabanca;

(v) não tinham potência para iluminar a tabanca toda;

(vi) ele chegou a sugerir a eletrificação da pista de aviação (onde aterravam todas as aeronaves, exceto o FIAT G-91); mas nunca se concretizaou: em caso de emergência, à noite, usavam-se garrafas a petróleo para balizar a pista (!)...

(vii) ficou de nos dar mais informação técnica sobre os geradores de Aldeia Formosa (hoje Quebo).

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23526: Notas de leitura (1475): BC 513 - História do Batalhão, por Artur Lagoela, execução gráfica no Jornal de Matosinhos, 2000 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Esta preciosidade é uma edição comercial, tiragem de 300 exemplares, com execução gráfica no Jornal de Matosinhos e o autor da obra é o 1.º Cabo n.º 103763, Artur Lagoela, que expressa na introdução a sua grande admiração pelo Comandante do Batalhão. Documento formal, retirado de outros documentos, estruturado quase como um relatório. Trata-se de uma epopeia silenciosa e responde à grande injustiça de se manter no esquecimento o que militarmente se fez, com decisão, firmeza e combatividade no Comando-Chefe, quando toda aquela região Sul parecia imparavelmente na posse dos grupos do PAIGC. Documento de estudo: a adesão dos Fulas, o armamento que possuíamos, o uso de minas antipessoal e fornilhos por parte do PAIGC, as minas anticarro virão mais tarde, como gradualmente os armamentos da guerrilha irão melhorar, com poucas contrapartidas das nossas tropas. Insistia-se em contrariar os corredores de reabastecimento, tinha sido um abandono tão grande que a reocupação de muitos pontos custou os olhos da cara. Tornar-se-á moda, a partir de 1968, denegrir no que se fez e como se respondeu nos primeiros anos. A documentação oficial desmente esse mito e é bom encontrar livros como a história do BCAÇ 513 para se ver o heroísmo de que hoje ninguém fala.

Um abraço do
Mário



Um documento eloquente, peça de historiografia: A história do BC 513 (1)

Mário Beja Santos

Encontrei este livro na Biblioteca da Liga dos Combatentes, tem uma dedicatória do então Alferes Miliciano Sapador José Filipe da Cunha Fialho Barata: 

“Para a Liga dos Combatentes, de todos nós, combatentes do Batalhão de Caçadores n.º 513, que prestou serviço militar na Guiné, entre 25 de julho de 1963 e 25 de agosto de 1965, daqueles que por lá perderam a vida e daqueles que voltaram deixando lá parte dela, aqui fica um muito pouco de nós, num livro chamado "História do Batalhão" e também um grande reconhecimento que os combatentes sabem ter por quem nunca os esquece. 

A nossa história, essa, ficará sempre por contar. Ela seria o enorme somatório de todas as histórias, de todos nós, amalgamadas com todos os nossos sentimentos, todas as nossas indignações, angústias, inquietações, desesperos, raivas, medos, coragens, esperanças, desilusões, amizades, amores, tudo isso unido pela fortíssima argamassa que é a irmandade que nasce e perdura para sempre entre aqueles que foram combatentes”.

Que importância podemos atribuir a este documento? Esta unidade militar faz parte daquele elenco de batalhões que tinham Comando e CCS ao qual se iam agregando diferentes Companhias. Parecia destinada a Moçambique mas a intensidade da luta armada na Guiné exigiu vários desvios, um deles foi o BC 513. Embarcaram em 17 de março, tanto o Comando e a CCS como as CART 494, 495 e 496, como igualmente o Batalhão de Cavalaria 490. Desembarcaram e tinham à espera um graúdo problema logístico, não existiam quaisquer instalações para alojar todo aquele pessoal e guardar o material, estava-se em plena época das chuvas. Houve que distribuir os efetivos por um conjunto de instalações até que em 21 de agosto foram transferidos para a Escola das Missões. Em 31 de outubro, o Comando e a CSS vão para Buba. Fica-se a saber que o capitão Coutinho e Lima, que virá a responder, em 1973, pela retirada de Guilege, é o comandante da CART n.º 494. Às três unidades referenciadas ir-se-ão agregando também pelotões Fox e Daimler, um pelotão de morteiros e outras companhias de caçadores. Era a resposta de juntar com rapidez um conjunto de unidades destinadas a um setor onde campeava em cheio a subversão. Respondia-se à Ordem de Operações n.º 1/63, procurar contrariar a infiltração das forças subversivas, aniquilar grupos de guerrilha, recuperar populações, ocupar espaços abandonados. Havia igualmente que garantir a estrada Buba – Aldeia Formosa e criar condições de utilização da estrada Mampatá – Cacine. As unidades dispersam-se por Cacine, Aldeia Formosa, Ganjola, no setor de Catió. Inicia-se a atividade operacional num território em que há muitas tabancas completamente destruídas, as tropas irão viver nas piores condições, construindo paliçadas, abrigos, pistas para aviões.

O livro reproduz o relatório periódico do Comando, referente ao período de 8 a 24 de novembro de 1963. O inimigo é quantificado e qualificado, existem três importantes zonas de concentração de grupos de guerrilha, duas de simples passagem e uma isenta de atividades. “As áreas de concentração situam-se nas proximidades das regiões ricas em arroz e outros produtos de primeira necessidade, que são precisamente aquelas onde não há forças militares. Assim, temos a região do Incassol, nas margens do rio Corubal (Gã Gregório), a região do Forreá nas margens do rio Cumbijã (Bantael Silá) e a região do Cacine, na orla marítima (Campeane). As zonas de passagem são a região de Buba e a região fronteiriça de Ganturé – Guilege. Como zona isenta de atividade inimiga, temos a região de Aldeia Formosa – Contabane”.

A guerrilha recebe a tropa com flagelações, pretende prejudicar as ligações com Aldeia Formosa, pretende manter inacessível a região do Incassol. As minas anticarro chegarão depois, ao tempo os pelotões Fox e Daimler circulam com perigo mínimo. Procura-se recuperar o chão Fula, atrair populações às tabancas abandonadas, é o que irá acontecer em Colibuia. Será necessário progredir em direção de Guilege, instalando aqui um novo destacamento. Em Aldeia Formosa existe já uma milícia de auxiliares Fulas. A guerrilha pretende manter interdito o trânsito na área do Forreá, embosca frequentemente no eixo Buba – Nhala bem como os patrulhamentos na estrada Buba – Aldeia Formosa. Os fornilhos revelam a sua força destruidora. Nesse mês de novembro de 1963 o Tenente-Coronel Luís Gonçalves Carneiro descreve o estado disciplinar como bom, tem tropas moralizadas mas há preocupantes problemas sanitários.

Bem interessante é o que se escreve sobre a reocupação do chão Fula. São referenciados os regulados de Contabane, Forreá e Guilege, correspondente a uma extensão de fronteira de mais de quarenta quilómetros. No início de 1963, grupos armados do PAIGC atacaram e expulsaram das tabancas os Fulas, pretendiam total liberdade num corredor compreendendo Guilege – Mejo – Nhacobá – Buba – Fulacunda. Fora saqueada a tabanca de Salancaur Fula, onde vivia o régulo de Guilege. Todas estas populações tinham fugido; as casas de construção europeia em Salancaur Cul e Bantel Silá tinham sido destruídas. A reocupação é feita com cautelas, atentas as grandes dificuldades. Em 4 de fevereiro de 1964 reocupa-se Guilege, em 30 de março do ano seguinte a tabanca de Mejo, considerava-se que tinham sido criadas as condições para atingir Salancaur Fula e ligar Cumbijã através de Nhacobá e Samenau. Não havia um único europeu na região. Quando terminar a comissão do BCAÇ 513 ficarão distribuídas 700 armas pelas populações, trinta tabancas em autodefesa.

Os Fulas atuarão praticamente sozinhos, chefiados pelo chefe da tabanca de Mampatá, atuarão na região do Incassol, causando grandes destruições na guerrilha. Em novembro de 1964 começarão os ataques a Guilege, e com destruições.

Todo este período inicial visa a proteção da fronteira sul da Guiné, há as povoações de Cacine, Cacoca, Sangonhá, Ganturé, Gadamael, Guilege, Gandembel está destruída e Mampatá. A subversão manifestara-se inicialmente na região de Sangonhá, primeiro com grupos da FLING que serão ultrapassados pelo PAIGC, com o apoio dos Beafadas da região. Serão assaltadas casas comerciais de Gadamael Porto e Cacoca. O relatório recorda que ao entrar o BC n.º 513 no setor havia uma região totalmente abandonada, Guilege, e uma região totalmente controlada pelo PAIGC – Ganturé, Sangonhá, Cacoca, Cameconde e Campeane, era por esta região que se reabasteciam as bases do Cantanhez. Iremos ver seguidamente como se procurou reocupar a região fronteiriça, em que operações se envolveram ao longo de todo o ano de 1964.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23517: Notas de leitura (1474): "Histórias da C. CAÇ. 2533" - Os belos testemunhos da gentes da CCAÇ 2533 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23139: Notas de leitura (1434): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2022:

Queridos amigos,
O Martins já passou praticamente um ano em Guileje, as flagelações são rotina, um dia estourou uma granada de canhão em cima do abrigo do Pel Caç Nat 51, foi o cabo dos trabalhos; continuam as incursões etnográficas, ele é bom observador; regista o desaparecimento de quartéis à volta, Gandembel, Mejo, Sangonhá, Cameconde, Guileje está cada vez mais exposto na sua posição solitária, prosseguem as colunas de reabastecimento; assiste, atónito, a mais uma aparição de Spínola que vai muito efusivamente conversar com um furriel de nome sonoro, ligado a famílias da banca, coisa curiosa desaparece de Guileje passado quinze dias, todos se indignaram com o escândalo, o descarado favorecimento. "O capitão anda furioso; até já desabafou publicamente a indignação." Estamos em meados de 1969.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (3):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: 

“Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Já estamos em 1969, o aquartelamento de Gandembel foi extinto, a unidade militar transferida para Aldeia Formosa, Martins rememora o calvário das colunas, o Inferno dos primeiros tempos de Gandembel, os rebentamentos de minas, as emboscadas, as flagelações em cadeia. As tropas paraquedistas ainda tentaram descomprimir a pressão, havia um compasso de espera e os guerrilheiros voltavam. Os de Gandembel partiram discretamente, vieram os do PAIGC metralhar um despovoado aquartelamento. Também Mejo acabou em 28 de janeiro. “Tropas, camiões, armas ligeiras e pesadas, tudo, ou a maior parte, recolhido a Guileje, que contra agora mais um pelotão de nativos; já tinha o 51, veio de lá o 67. Igual destino já tivera Sangonhá (29 de julho) e também Cacoca, dois aquartelamentos entre Cacine e Gadamael”. E aproveita para contar a história umas filmagens feitas por suecos, um ataque contra o pequeno aquartelamento de Ganturé, os suecos exigiram filmagens à luz do dia, veio a força aérea e vindimou-os do alto, despejou bombas sob toda a região de Sangonhá, não foi pequena a carnificina.

Relata mudanças no seu pelotão, há gente a entrar e a sair em Guileje, o novo comandante de Companhia é um tenente dos Comandos, exibe garbosamente camisola branca, justa, de meia manga, botas a brilhar, o semblante austero. Houvera um período de pouca frequência nas flagelações, agora recrudesceram, um alferes e um furriel, a trabalharem no obus, foram ceifados por uma canhonada vinda da Guiné Conacri. Fazem-se patrulhas até às margens do Cantanhês, encontram-se umas pirogas. O novo comandante de Companhia parece não gostar do Martins e das suas estadias na tabanca. Cecília Supico Pinto visita Guileje, Martins parte para Bissau, está cada vez mais pitosga, precisa de novas lentes, e conta-nos que tentou no exame oftalmológico fazer-se bem cegueta, a pantominice saiu-lhe caro, foi passado ao contingente geral, “punido por razões de que não quer falar” e dá-nos conta do que foi a sua estadia em Tavira, ali encontrou um antigo colega de seminário que quis desertar e tudo lhe correu mal.

A sua afeição com a gente da tabanca parece inquebrantável, fala-nos amiúde de Suleimane, de Dadanda, de Cumba, Ádama, da criancinha Mauro, compra-lhes presentes no mercado de Bandim e volta de barco até Gadamael. E não deixa de tecer um comentário: “Dos abrigos de Gadamael salta à vista a pouca robustez – uns perfeitos cardenhos. Mas isto não é Guileje; as valas vão chegando para as encomendas. Demais, é vezo dos guerrilheiros errar o tiro, indo as mais das granadas explodir no rio, assustando as ostras. No rio se banha ou chafurda sem temor a tropa, confiada nos hábitos de morcegos dos guerrilheiros, que só se atrevem ao lusco-fusco”. E regressa a Guileje, dá-nos conta das suas observações etnográficas, metido no posto de rádio, alguém diz diga se recebeu, escuto, a resposta sai breve, correto, afirmativo, começara uma nova flagelação, dá-se dois saltos para a boca do alçapão, era a primeira vez que um ataque apanhava o Martins no posto de rádio, uma granada de canhão sem recuo rebenta em cheio sobre as instalações do pelotão 51, foi o terror e a confusão, há que mostrar ao leitor o estado de alma, o olhar atónito, do que se está a ver: “O terrível engenho descarnou a cobertura de toneladas de terra e cimento que formam o essencial da sua estrutura e deixou-a no osso dos troncos de palmeira justapostos, que, a modo de caibros, a sustentam. Ouve um camarada contar como à explosão se seguiu o ranger o de alguns troncos, que estalaram ou partiram, ameaçando ceder. Os abrigos de Guileje perdurarão na memória dos que por aqui passaram; e, mais do que isso, merecem ficar na história dessa guerra.”

Procura entender os ritos dos Islamismo, as preces na mesquita. Refez-se a cobertura do abrigo do pelotão 51, restaurada e reforçada. ‘Cortar palmeiras, carrear os troncos, retirar os velhos e assentar os novos a poder de braço, tudo se fez em três escassos dias; trabalho, dada a pouquidão de meios, pouco menos que ciclópico. Houve ainda que encher a cratera com terra e mais terra estender-lhe por cima nova camada de cimento’. Mas ainda a camada de cimento não tinha totalmente secado e voltaram as flagelações. “Nada mudou desde que o Martins pôs pé em Guileje. A tropa não recua, também não avança, o que só favorece o inimigo, que aposta no desgaste causado pelo tempo a quem não é de cá.”

E assim se chegou a abril e depois a maio, sucedem-se as flagelações, a população continua tranquilamente a sua vida monótona, não deixando de ir cultivas o seu arroz de subsistência, ao amanhecer as viaturas carregadas de bidões vão direito ao poço aberto na brenha, a uns 2 km, operação que requer severa vigilância. Spínola volta a Guileje, assim se descreve o seu regresso:

“Negros como abutres, descrevendo círculos por largo, bem à vista o cano saliente do canhão de bordo, os três passarões assenhoreiam-se destes ares; metem respeito e não admira que os guerrilheiros mais que tudo os temam. E, enquanto dois deles vão dando voltas, agora mais fechadas, sobre Guileje, o outro ensaia a operação delicada de vir a terra; um instante imobilizado, roda agora a ganhar posição, inclina um tudo-nada o focinho, cautamente sondando o espaço em baixo onde pousar. E já vai descendo, em volto grossos rolos de pó que revoluteiam furiosamente no ar agitado do voltear estonteante da hélice. O monstro impõe a sua presença aparatosa. Ei-lo em repouso no chão espanado pela ventaneira”

O comandante de Companhia não gostou da discriminação, Spínola passou por meio da pequena multidão e deu de cara com um furriel do 67, cumprimentos efusivos. “O nome, de todo incomum, ou talvez sobrenome, é o mesmo de uma família da alta roda lisboeta ligada à banca. Coincidência ou não, o certo é que ainda não passaram quinze dias e já o furriel foi de abalada, transferido para zona menos descoberta aos golpes da implacável guerrilha.”

(continua)


Na tentativa de encontrar elementos gráficos disponíveis sobre Guileje, distintos daqueles que já possuímos (e que é um acervo de inegável valor) imergi no Google Maps e apareceu-me um documento com nome Jorge Soares, março de 2018, impressionaram-me estas imagens, e onde quer que esteja o autor peço-lhe a benevolência de aqui as reproduzir, é um dossiê muito belo, aqui fica a minha vénia em nome do blogue
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23131: Notas de leitura (1433): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2022:

Queridos amigos,
O primeiro-cabo Martins ambienta-se a Guileje, dá-nos conta de um pequeno Inferno ali ao lado, a vida em Gandembel, já apareceu o brigadeiro Spínola que deixou cair o monóculo num panelão onde cozia o feijão frade, criou amizades na tabanca, não desgosta da comida local, anda por vezes nos patrulhamentos com o rádio às costas, ajuda a escrever cartas a madrinhas de guerra, já enfrenta com mais serenidade as flagelações. O que vai surpreender o leitor destas memórias é a cultura clássica do Martins, não lhe escapa Ovídio nem Xenofonte, nem António Ferreira nem Tomás António Gonzaga, e não nos indispõe as suas latinidades, vê-se perfeitamente que foi assim que lhe vieram às memórias as recordações de Guileje e arredores. Mas que é uma invulgaridade é, e uma bonita prova de vida contar-nos o que viveu e os afetos que teceu.

Um abraço do
Mário



Uma invulgaridade da literatura da Guerra da Guiné (2):
O Silvo da Granada, por José Maria Martins da Costa


Mário Beja Santos

Uma surpresa, e com aspetos bem curiosos, este O Silvo da Granada, Memórias da Guiné, por José Maria Martins da Costa, Chiado Books, agosto de 2021. O leitor é colhido por uma prosa onde primam citações de clássicos, a começar pelo latim, tudo passa a ser entendível quando se lê o currículo que o autor apresenta: “Natural de Roriz, concelho de Santo Tirso, aí frequentei a escola primária, finda a qual entrei no seminário, mais precisamente no mosteiro da Ordem Beneditina. Saí no sétimo ano, talvez para voltar daí a trezentos anos como o monge de Bernardes. Como trezentos anos demoram a passar, para não estar ocioso entretive-me a tirar o curso de Filosofia na Universidade do Porto, e ainda o de Latim, Grego e Português, e respetivas literaturas, na Universidade de Coimbra. Entretanto, assentei praça no Exército, indo para a Guiné como combatente da Guerra do Ultramar e assentei arraiais civis no Porto, onde casei, fui professor e jornalista. Nesta cidade, tenho levado vida plácida e remansosa, dentro dos parâmetros da Aurea Mediocritas de Horácio. Por falar em Horácio, ia-me esquecendo de dizer que publiquei há anos um livro de poemas intitulado Libellus, palavra latina que tanto pode significar pequeno livro como libelo acusatório. Fora das partes líricas, acusava realmente e castigava alguns dos costumes e vícios da sociedade contemporânea. Queria endireitar o mundo. Mas o mundo ignorou o livro e continuou cada vez mais torto”.

Primeiro-cabo Martins já viajou para Guileje, está na fase adaptação, somos levados a supor que este homem que está profundamente impregnado pela cultura clássica, que domina o Latim e alguns dos mais cultores da língua portuguesa trabalha nas Transmissões. De supetão, arribaram três helicópteros, de um deles saiu Spínola, já percorreu o quartel, conversou com os oficiais e decidiu visitar a cozinha:
“Spínola em corpo e alma e rompeu pela cozinha sem aviso, deixando atónitos, presos aos seus lugares, cozinheiros e forneiro; e, depois das saudações e palavra de circunstância e de circunvagar um olhar indagador como a inspecionar as condições de trabalho e de higiene, avança para os fogões, mete o nariz em tachos e panelas. Eis senão quando – caso nunca visto – cai-lhe o monóculo ao panelão, onde, vaporando fortemente, fervia a cachão o feijão frade. Valeu que à ilharga, atento e venerador, estava o cabo-cozinheiro, que, ato contínuo, introduzindo por entre densos vapores a desembaraçada manápula acostumada a queimaduras e escaldões, retira incólume a luneta”. Cumprida a visita, o homem grande de Bissau partiu para Gandembel, e Martins da Costa enquadra o que se passa no Corredor da Morte, ali nas fímbrias de Guileje e um suplício das colunas até Gandembel, todas elas a convidar minas e emboscadas. E anota o esforço hercúleo que custou à tropa edificar um aquartelamento naquele lugar inóspito, desmatar, derrubar palmeiras, erguer as instalações do quartel, sempre com os efetivos do PAIGC a não dar tréguas.

E lembra que ali perto está o rio Balana, todas as colunas de reabastecimento se fizeram com sobressalto, havia colunas que partiam de Aldeia Formosa e dá-nos a saber:
“Entre Aldeia e Gandembel há um sítio, ponte Balana que do rio e da ponte que sobre ele está lançada, a tropa o nome lhe tem dado, sítio com fama de fatídico, tanto como do lado de cá o cruzamento de Guileje. Ali, nomeado mês (terá sido maio de 1968), depois de duas colunas terem passado sem serem incomodadas, a terceira foi o Diabo: quatro mortos, ou talvez mais, de uma assentada. Dias depois, também para as bandas de Aldeia, havia de ser um Inferno, com mais alguns militares para sempre tombados, e outros – dois, três? –, não se sabe quantos – apanhados à mão pelo inimigo”.

A 5 de junho, já o Martins contou que foi bem acidentada. E espraia-se demoradamente a falar da islamização e de alguma etnografia Guineense, ele já percorre a tabanca dominada por Futa-Fulas com quem está a estabelecer uma boa relação. Chegou a vez de ir em patrulha a alombar com o rádio às costas, metem-se pela picada em direção a Gadamael, um corta-mato em que a milícia à frente vai esfrançando árvores e arbustos, foi uma trabalheira, não houve minas nem emboscadas. Volta à descrição da vida da tabanca, bem surpreendido anda com a meticulosidade das rezas a Alá, e nisto saltamos para um naco de prosa de que o autor terá gostado muito, até o pôs na contracapa:

“A morte anda rondando, que bem na sentiu o Martins; passou-lhe por cima do nariz, cheirou-a. Foi há pouca; a tarde declinava, os colmos das palhotas, como negros capuzes de monges, tinham um aspeto contemplativo, misticamente recolhido; a terra abandonava-se a um grave repouso depois de algumas horas de calor emoliente, um pesado torpor ia deixando os corpos. Saído de turno, caminhava para o abrigo o nosso herói, sozinho, passo lento, pálpebras descidas, no enlevo da doce quietação do fim do dia. Senão quando, vindo de trás, pelo ar, um silvo que não era de cobra fá-lo estacar. Não presumiu que o ouvido o enganava, acreditou sem ver: uma granada fendia o espaço sobre a sua cabeça a pouca altura, iria cair dali não muito adiante – cair, explodir, projetar em todas as direções as mil estilhas assassinas em que havia de fragmentar-se. O abrigo era já ali. Mas quem há de estar à mercê de um mortífero estilhaço, já ali, figura-se-lhe no outro lado do mundo. E arrojou-se do instinto ao duro chão. Deitado de borco, rosto em terra, atrás da árvore que ali há, aguardou a explosão com a suprema agonia do condenado que vê o carrasco erguer o machado que o vai decepar. Instantes de Inferno foram esses; mas, em discrepância com o Inferno, tiveram fim. Rebentou o temeroso engenho mais à frente, lá para o arame farpado; os estilhaços não rasam o solo, assim, ileso, e com o alívio de quem vê comutado a pena de morte, ergue-se de salto, voa que não corre para o abrigo”.

Vê-se à vista desarmada que Martins da Costa aprecia a arquitetura vernacular, compraz-se na fluidez verbal, e nos remete em casos muitos ou poucos para a consulta do dicionário. Maturou muito antes de chegar a estas memórias dadas à estampa de 2021, cita sem sobrançaria em Latim, qualquer propósito lhe serve, até fala em Ovídio a propósito da descrição que faz do aerograma e até das madrinhas de guerra. Chegou um comerciante Fula, chama-se djila, não veio nem de avião nem de viatura, há uma vereda só sabida da população, ligando Guileje a Gadamael, e temos mais notas etnográficas, ninguém se assoa a lenços, comprimem com o indicador de uma das mãos a narina do mesmo lado e, inclinando-se um pouco para a frente, sopram pela outra para terra, que tudo absorve e consome. Vai recebendo prendas de quem o estima, é o caso de Mariama que lhe deu um naco de carne de gazela, já lhe tinha sabido bem arroz condimentado com o molho feito de óleo de palmeira, Martins deslumbra-se com a afabilidade desta gente da tabanca.


Estamos na época das chuvas, não é possível andar-se em colunas, fazem-se patrulhas, Martins fica no quartel, mais questionamentos etnográficos. E resolve apresentar-nos o Pel Caç Nat 51, diz quem é tropa metropolitana, os primeiros-cabos são todos nortenhos, de Entre Douro e Minho e conta-nos o que separa estes homens quanto a nomes de objetos, um diz tacho outro sertã, houve para ali discussão séria, ficamos igualmente a saber como é a vida dentro do abrigo, a prosa vai saltitando sobre questões da Guerra Fria, fala-se mesmo de Mário Pinto de Andrade, volta a haver patrulhamentos e desta vez o Martins alomba com o rádio, temos novos apontamentos etnográficos que metem a hierarquia dos homens grandes, a prática de justiça, a educação das raparigas, ficamos cientes que no abrigo dos brancos do Pel Caç Nat 51, à mesa tosca há bastante elevação das conversas e até se apura que o Martins ajuda um soldado da Companhia local a escrever cartas à madrinha de guerra, nova flagelação, que não correu bem ao PAIGC, há para ali um extenso rasto de sangue, escoados três dias e três noites, que perdura na mata. E assim se chegou ao fim da estação das chuvas.

(continua)


Corredor de Guileje, 1972. © Fotografia de Fernando Monteiro (1º Cabo Enfermeiro), na imagem com a respetiva mala de primeiros socorros, com a devida vénia
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Notas do editor:

Poste anterior de 28 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23121: Notas de leitura (1431): "O Silvo da Granada, Memórias da Guiné", por José Maria Martins da Costa; Chiado Books, Agosto de 2021 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23128: Notas de leitura (1432): "Os Velhotes: Contos Eróticos" (Alcochete, Alfarroba, 184 pp.), do nosso camarada António J. Pereira da Costa, Tó Zé, para os amigos... Uma pedrada no charco da nossa educação judaico-cristã...

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22916: Antologia (82): Mariema, mãe-mártir... [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]


Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999. Capa de Joana Rodrigues.


Dedicatória do autor: "Ao meu 'irmão' Joaquim Pinto de Carvalho com amizade. (...)  99/11/17"


Dedicatória do autor no livro de teatro "A Máscara": "Ao meu velho camarada de armas, e meu atual e grande amigo,  Joaquim A. Pinto de Carvalho que muito, muito, me tem incentivado em tudo, mormente nas 'coisas' do teatro. Agradecido, o autor  (...)  15/11/2015"

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho (2022). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mais um  tocante poema do Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73, poeta e homem de teatro (dramaturgo, encenador e ator), natural de Vale de Cambra. 

Entrou para a Tabanca Grande a título póstumo (*). É o único representante da CCAÇ 3399.










Fonte: Excerto de Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999, il Honório Rodrigues e Joana Rodrigues, pp. 127/  128.

Seleção e digitalização: Joaquim Pinto Carvalho. (**)
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Notas do editor:


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22897: Tabanca Grande (529): Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), natural de Vale Cambra, o primeiro grã-tabanqueiro do ano, o nº 856, embora infelizmente a título póstumo

 

Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73) >  De pé,  Manuel Gonçalves, alf mil manutenção (CCS); em 1º palano: da esquerda para a direita, Alberto Bastos,  alf mil op esp (CCAÇ 3399) e Carlos Santos, alf mil sapador (CCS)


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73) > Da esquerda para a direita: Mesquita, alf mil (Artilharia antiaérea); Rodrigues alf mil (C CAÇ 3399) Alberto Bastos, alf mil op esp (CCAÇ 3399(; Manuel Gonçalves alf mil manutenção (CCS) (em pé); e António Faria, alf mil cavalaria.


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > CCS/BCAÇ 3852 (1971/73)

Da esquerda para a direita: Mesquita, alf mil (Artilharia antiaérea); Manuel Gonçalves, alf mil manutenção (CCS) (em pé); Rodrigues,  alf mil (CCAÇ 3399); Alberto Bastos, alf mil op esp (CCAÇ 3399); Trindade, alf mil médico (CCS) (em pé); e Carlos Santos, alf mil sapador (CCS).


Fotos (e legendas): © Manuel Gonçalves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Mafra > EPI > COM > 1970 > 3º Turno de Instrução > 6ª Companhia de Instrução > 4º Pelotão > O soldado-cadete  Alberto Tavares de Bastos, nº  127 (Imagem extraída da clássica fotografia de grupo. Cortesia de Joaquim Pinto Carvalho, que também pertenceu ao 4º Pelotão da 6ª Companhia)

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), foi o primeiro camarada da Guiné, que saibamos, a morrer este ano, logo no primeiro dia do ano de 2022 (*).

Foi desde logo nossa intenção, em honra da sua memória, integrá-lo na Tabanca Grande, a título póstumo.  Acabámos de receber  fotos dele do seu do tempo da tropa e da guerra,  enviadas pelos seus camaradas e amigos Joaquim Pinto de  Carvalho e Manuel Gonçalves.

Será, por outro lado,  o primeiro representante da CCAÇ 3399 no Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. O seu lugar, à sombra do nosso poilão, será  o nº 856 (**) . E o seu nome passa a figurar na lista daqueles que "da lei da morte já se foram libertando" (Vd. badana do lado esquerdo do blogue, ou coluna estática).

Poeta  (e homem de teatro: dramaturgo, encenador, ator), com vários livros publicados, foi ele o autor da letra do hino do BCAÇ 3852, datada de 12/6/1971, e reproduzida no seu livro de poesia Alguém (Lisboa, Chiado Editora, 2008, pp. 125/126).

É também autor do poema "Na estrada do Cumbijã", dedicado ao cap mil Vasco da Gama, comandante da CCAV 8351 (Cumbijã, 1971/73), "Os Tigres do Cumbijã" (, já publicado no poste P3640), e reproduzido, a pp. 138/139, no recentíssimo livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina (Guiné, 1972/74)". (Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2021.)

Deste batalhão, o BCAÇ 3852,  temos vários camaradas registados na Tabanca Grande:

  • Joaquim Pinto Carvalho,ex-alf mil at inf, CCAÇ 3398 (Buba) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1971/73) (nº 633)
  • Manuel Carmelita (ex-fur mil mecânico radiomontador, CCS/BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73) 
  • Manuel Gonçalves, ex-alf mil mec auto, CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73) (nº 776);
  • Silvério Lobo, ex-sold mec auto, CCS/BCAÇ 3852, Aldeia Formosa e Buba, 1971/73

Da CCAV 8351, além do Vasco da Gama, temos também o Joaquim Costa (, imagem à esquerda), que todavia não privou com o Alberto Bastos, mas que escreveu no poste P22878 (*), surpreendido pela notícia da sua morte repentino, o seguinte comentário:


(...) "Fomos contemporâneos e pisamos o mesmo chão minado da estrada Mampatá-Cumbijâ. Nunca privei com ele mas era muito conhecido na região. No Cumbijã era conhecido por Poeta.

Vivíamos isolados no nosso buraco, pelo que só nos cruzávamos com camaradas de outras companhias em operações de risco onde apenas trocava-mos algumas palavras de circunstância.

"O poema que dedicou ao Cap Vasco da Gama, para além de pôr em evidência as suas qualidades literárias , mostra um homem atento ao que o rodeia, amigo e fundamentalmente solidário.

"O meu singelo livro de memórias é pequeno para a grandeza do poema que dedicou à CCav 8351 e ao seu Capitão. Como alguém já referiu: Um Poeta não morre.

Joaquim Costa. (5/1/2022)" (...)

O Joaquim Pinto de Carvalho (, imagem  à direita), que o conhecia bem desde o COM em Mafra, e na Guiné pertenceu ao mesmo batalhão, tendo ambos ficado amigos para a vida, fez-lhe o restrato físico e psicológico nestes versos (que constam da contracapa do livro de poesia Alguém, Chiado Editora, Lisboa, 2008);

(...) “Tem a fúria do viver no olhar, como um vulcão,
mas no verbo a leveza da corrente
genuína!

Tem nos gestos a garra e o voo do falcão
e a volúpia da serpente
que nos fascina!” (...)