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domingo, 1 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12372: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (4): K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água

1. Em mensagem do dia 25 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, inevitavelmente dedicado ao resort do K3.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

4 - K3, Maio de 1966 - Um dia de serviço à água

Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando.

Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas.

Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então, trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60.
Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei precisamente no local onde me encontro na foto em anexo e tirada uns dias antes para publicidade turística e lá ficou a gabardina com que dormira, cheia de avermelhada lama.

Reparem: eu sou aquele tipo elegante bem parecido e risonho, que está com o pezinho apoiado, mão direita na cintura, assim estilo varina. Notem também o nº 1421 no chão, que eles sim, (CCAÇ 1421) é que iniciaram a construção do hotel subterrâneo.

Resort do K3 - Veríssimo Ferreira em primeiro plano junto à entrada do seu bedroom

Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador.
Tomei o petit-déjeuner composto por sopas de pão duro com açúcar por riba mais dois ovos inteiros, fora a casca, e de galinha pedrês, tudo ensopado depois pela cerveja preta de 6dcl, que lhe verti dentro.
Esta era a minha costumada dieta e o encarregado barista, bastava ver-me que logo disponibilizava os ingredientes atrás referidos, para que eu sorvesse com a ajuda duma colher de prata, aquela fugaz e simples refeição matinal de todas as manhãs ao amanhecer.

Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia.

Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte.
Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos.
Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina.

A tarefa da recolha aquífera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço e o prato do dia era bem bom: o já célebre feijão com dobrada liofilizada à chef.

A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três quilómetros (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas... "précurávamos" as minas picando só na primeira passagem, já que depois haviam sempre patrulhas de dois ou três devidamente de braço dado com as acompanhantes de luxo, as G3.

A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores.
Estes, qu'até, ao apanhar os bicharocos, choravam lágrimas de pescador.
Liquidá-los não era fácil pois exigia a perícia de lhes fazer entrar uma bala entre os olhos, ou em luta corpo a corpo, espetar-lhes uma faca assim como aquela que usávamos lá no meu Alentejo para capar grilos, mas muito maior e no coração.

Vendiam a carne e o bife tenrinho era bestial; o coração feito guisado ou à chanfana não lhe ficava a dever nada.
Negociavam também a pele do monstro, depois de seca;
Monstro que crescia apanhando sol, debaixo do olhar atento da mamã e que nascera dum ovo pequenino;
Pele seca que terminava os seus dias nas montras dos estabelecimentos de malas, sapatos e cintos.

Tal como ontem era... hoje também esse será o fim de todos os mauzões, que por aí andam, só que a estes não se lhes compra a pele, reza-se por ela.

PROFUNDO ESTE FINAL, não é?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3

domingo, 24 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12336: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (3): 1966, ano da construção do primeiro restaurante do K3

1. Em mensagem do dia 17 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Fragmentos de Memórias, este dedicado às artes da construção civil, mais propriamente à militar, e afins.


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

3 - K3, 21 Fevereiro 1966 - Projecto para o primeiro restaurante local

Nessa tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã".

Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus 24 anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis.

Impunham-me sim, mais sob-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e os lavatórios panelaeiral e marmital.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência.
E porquê eu? Devido ao facto de saber o que era um tijolo? O cimento? A areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse.)

Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados. Mas então... disse o arquitecto vaidoso, que gostaria de ser, para o engenheiro cheio de cagança, que nunca serei:
- É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces.

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça, mas apenas para não criar complicações com estes dois estúpidos do caraças e vendo que até era capaz de resultar, dei razão ao primeiro e assim melhor ficou a minha reputação na resolução de conflitos.
Criei então, uma equipa de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores.

A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas...
Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes. Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não.
In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a primeira a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os mais que centos de jagudis que por ali andavam.


K3 (Saliquinhedim) - Veríssimo Ferreira e as suas construções
Fotos: © Veríssimo Ferreira. Direitos reservados.

Instalações modulares do aquartelamento do K3
Foto: © Carlos Silva (2008). Direitos reservados.

Considerando que os "marmelos" iam tiroteiando de noite, o que fizéramos de dia, tive uma excelente ideia, própria do génio que sou ainda hoje, (marado completamente) e que passo a contar.
Tínhamos na Companhia, um soldado da secretaria, que houvera sido pintor de adereços e de cenários para revistas do Parque Mayer. Com ele falei, adorou a minha extravagante ideia, aderiu e comprados que foram sacos e sacos de pano, ele foi pintando e à noite "pendurávamos-ius" num local visível da mata.
Na verdade até parecia que ali estava um belo e espaventoso edifício. Primeiro nada aconteceu, mas depois lá mandaram fogaracha que se desunharam e deixaram esburacados os paninhos pintados com tanto carinho.

Nós no dia seguinte, voltámos lá a colocar outros mas agora com novas cores ainda mais vistosas mas pintadas já em oleados. E eles, pimba, catapultavam. Quando perceberam que não conseguiam vencer-nos desistiram sem nunca terem percebido, como era possível construir tão bem e depressa.
Porém, não sem que antes e tendo nós detectado em que local se posicionavam, lhe não tenhamos deixado de enviar umas morteiradas 60 que decerto lhes acertaram porque as marcas ficaram lá bem visíveis. Mas o abandono daquelas malévolas tentativas de destruição só acabaram quando postámos do lado de Buro, um desenho bem real que até parecia estar mesmo ali um tanque de guerra, e do lado do Olossato, um contratorpedeiro cheio de canhões cinzentos e qu'até o próprio vento fazia com que parecesse que estavam a mover-se na direcção dos ceguetas.

Tal como diz o ditado: "Um bom estratega é com panos e bolos que engana os tolos"

(continuará ? sim... se tiver pelo menos 5 comentários)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

domingo, 17 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12309: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (2): O meu amigo felupe, o 44

1. Em mensagem do dia 11 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o segundo episódio da sua série Fragmentos de Memórias, dedicado ao seu amigo 44:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

2 - O meu amigo felupe, o 44

O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me a arreliadora matacanha.

Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama, sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada. Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco 12 anos, que era dia de festa. enquanto ele me olhava sequiosamente esperando também anestesiar-se.

Disse-lhe:
-Tira lá essa porra sem me magoares, que bebes a seguir...

Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Pé com matacanha* 
Fotos reproduzidas, com a devida vénia, de: (Parasitoses-astrópodes)

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível.

Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia.
No fundo, o meu também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo.

Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra".

Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena.

Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125g de manteiga, ou mais, dependendo do número de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou.

E mais ainda... ao saber que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me.
O que se passava é que a coisa era pois para ser de borla para os necessitados, mas o senhor padre queria uma contrapartida e por isso abandonei a confissão da fé.

Mas mais lhe disse. Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver as miúdas internas do colégio, que bem lindas eram e se apresentavam, com aquela farda própria... mostrando a perna até ao joelho, que na altura era só o que nos ofereciam de engodo.

Mais lhe contei sobre o dito que as mães e avós diziam às "piquenas":
- "Até ao joelho é para quem quiser ver, do joelho para cima só para quem merecer".

De qualquer forma, continuei. O teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto, tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comeres, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

- Mas "nôsso furié"... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça...

E enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento.

- Ganhaste malandro, pensei... mas deixa que havemos de voltar ao assunto.

 Grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular:
- "Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo" - parecia ele dizer olhando para a mata.

Aí aprendi com ele a disparar com arco e seta o que me fez sentir o Robin dos Bosques.
Muitos pombos verdes comemos assadinhos na brasa ou fritos e apanhados sem gastar balas e sem ruídos.

O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.
Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura.

Por acaso até nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água.

Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim, partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido.

E se há quem pense que não há estrelas cá em baixo na Terra, desiluda-se, porque já dizia o poeta: 
- NUM MONTE DE PEDRAS PODE NASCER UMA FLOR

(continuará ?)
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 17 DE OUTUBRO DE 2010 > Guiné 63/74 - P7138: Doenças e outros problemas de saúde que nos afectavam (2): Matacanha (Rui Silva)

Último poste da série de 10 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

domingo, 10 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12274: Fragmentos de Memórias (Veríssimo Ferreira) (1): Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

1. Em mensagem do dia 8 de Novembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o primeiro episódio da sua nova série Fragmentos de Memórias:


FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS

1 - Chegada a Bissau e deslocação para o Óio

24 de Agosto de 1965

Chegado a Bissau, levado pelo Niassa, despejaram-me na Amura.
A viagem foi pior que má, fui sempre deitado, enjoado e só m'alevantava nas horas das refeições, qu'eram cinco diárias. Gostei particularmente dos almoços e jantares, porque aí davam "buída tinta", para o mal estar... e "pescada au meuniére".

Abandonado em terra... amanha-te... e isso fiz embora antes e da Metrópole tenham partido de avião, os oficiais, milicianos e tudo, bem como os sargentos do Quadro (Secção de Quartéis lhes chamaram) com a incumbência também de me prepararem a recepção e instalações tão condignas qb, próprias de quem como eu, se julgou com direito a pelo menos uma cama para dormir, à semelhança de todos os outros que a tal privilégio tiveram acesso.

Depois... um ou outro pelotão lá ia sendo destacado para aqui e para ali e o meu (o 1.º) foi-se passeando e com a prestimosa ajuda dos guias turísticos (CART "ÁGUIAS NEGRAS") por Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo (apenas a minha Secção), Jolmete e por fim reunimo-nos de novo (a CCAÇ 1422) em data que não posso precisar, mas julgo que nos finais de 1965.

Mas em Bissau e porque ali permaneci oito dias, acabei por e em companhia doutro amigo furriel miliciano acabei por, repito, conhecer a cidade e todas as malandrices que escondia. Nada me parecia ser perigoso e inquiria-me mesmo se haveria guerra, apesar do tiroteio que lá longe se ouvia.

No aeroporto vi os T6, que partiam com bombas agarradas e chegavam sem elas... vi a chegada dos aviões a hélice com o regresso de férias dos militares, conheci um ou outro civil residente, notei que mulheres brancas Portuguesas haviam poucas e miradas como se duma espécie rara fossem.

Impressionava-me ter de dormir com mosquiteiro, inútil que a bicharada entrava mesmo, embora em mim picassem só que morriam de seguida ao absorverem o meu venenoso sangue azul de "Marquês da Pedreira", que fora e que um dia conto como lá cheguei, à nobreza entenda-se.

Pedreira, no rio Sôr, aonde ia pescar barbos de meio quilo... e menos.

************

Setembro de 1965

Dizia-se que o baptismo de fogo era sempre e também, uma das situações que nos tornaria finalmente combatentes a sério.

Comigo aconteceu logo no início de Setembro de 1965, quando convidado, que fui, para ir tomar conta dos pertences militares usados por uma Companhia, que iria regressar a casa.

Foi ali um pouco antes de Mansabá, junto a umas ruínas ainda fumegantes do que tinha sido uma serração, que nos receberam com uma fogaracha de todo o tamanho. Tinham antes destruído também a ponte que atravessava um riacho não muito caudaloso, mas que nos obrigou depois a colocar cibes e tábuas, para que a coluna de veículos pudesse atravessar.

Localização da Serração. Vd. carta de Farim 1:50.000

Um dos vários pontões existentes ao longo da estrada Cutia-Mansabá.
Foto © José Barros (2011). Direitos reservados

Tudo ajudado por aqueles valentes que nos vieram socorrer em menos tempo do que leva a contar e após terem ouvido os primeiros tiros com que nos emboscaram.

Nada de grave aconteceu... do cagaço não nos livrámos, mas medo que logo passou quando começámos a corrê-los à pedrada. Daí que eles (os turras) se tenham escafedido com o rabinho entre as pernas e de tal forma que nesse dia, nunca mais os vimos. E foi assim que fui baptizado e tal como quando mo fizeram na igreja, nunca vim a conhecer quem foram os padrinhos. Chegados ao aquartelamento fomos recebidos que nem heróis, pelos restantes que ali haviam ficado contrariados e diziam estes "velhinhos" últimos de farda amarela (e eles sim com feitos dignos de registo), que nos houvéramos portado muito bem. Sem que eu imaginasse, apareceu-me um camarada d'armas, amigo já antes e lá da minha terra, o "Manel de Mora" e nem sei se vos diga se vos conte, a tamanha alegria com que nos abraçámos. Depois vieram as suas recomendações, os avisos, as indicações úteis sobre o IN e os locais onde mais costumavam actuar, tudo isto enquanto jantávamos que até nisso, nos recepcionaram melhor que bem.

No dia seguinte dei início à tarefa de que fora incumbido e lá vieram as contagens de viaturas, a observação dos edifícios, a comida que ficava e também a bebida claro, mas o que me deu mais gozo ver em pormenor, foram os dois obuses enormes com grandes rodas e que ao que me foi dito estavam apontados para Morés, onde já tinham feito enormes estragos nos poilões que circundavam aquela base, pois que, ao que se sabia, as bojardas eram de muito difícil penetração onde se pretendia que fossem.

Era fácil mudá-los para outras posições e na verdade recordo que depois um dia até nos ajudaram no K3, quando as bestas quadradas nos visitaram com alguma pretensa agressividade. Quis saber se na verdade trabalhavam e prometeram-me mostrar que sim.
A demonstração chegou logo quase de imediato, quando nesse mesmo dia atacaram a própria Mansabá.
Repelidos foram e a seguir fomos desopilar para o bar e... que bem aprovisionado estava !!!

Ele havia de tudo desde Vat 69, vinhos tintos e brancos, águas Perrier e Tónica, Gin's.... enfim uma parafernália capaz de engrossar a sério e até aliviar aquelas tantas gargantas secas. E foi nessa noite que comecei a tomar aquele especial remédio feito à base de lúpulo, cevada, milho e centeio.

Comecei e hoje passados 48 anos ainda não acabei.

Ao fim de 3 ou 4 dias e já com os bens mudados para o nome dos novos donos e tivéssemos tomado também posse das suites e instalações militares, veio a ordem de que afinal não íríamos ficar por ali, mas sim trocar com a CCAÇ 1421, que tanto estava empenhada em construir e de raiz, um hotel subterrâneo de cinco ou mais estrelas, em Saliquinhedim.

Para lá fomos passados que foram mais dois ou três meses, se me não engano que esse tempo é dos que não me veio ainda há memória.

Tal como me acontecera com o remédio de que atrás falo, sim aquele de grãos de cereais, foi também aqui na zona, mais propriamente em Manhau, que conheci aquele coisa horrível que se chama ódio. Os motivos para o passar a trazer comigo, foram óbvios e ainda hoje quando leio os que lançam lérias elogiosas ao terrorista Amílcar, fico pi-urso e decerto que não se lembram que ele foi o causador de tantas desgraças que aconteceram.

É que combater frente a frente e dando tiros de cá para lá... ainda vá que não vá, mas mandar implantar minas no terreno que ele sabia ir ser pisado porque quem para a Guiné tinha ido, não para atacar, mas mais para defender... era selvajaria... e foi dramático.

Julgo que (aqueles que leio, repito... aqueles que lançam lérias etc, etc.) não pensariam da mesma forma se tivessem estado presentes quando os infortúnios aconteceram... se tivessem que andar a limpar sangue... a juntar pedaços.

MAS CADA UM É COMO CADA QUAL

E mai'nada.

(continuará)

domingo, 20 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12176: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (11): A saga umbilical

1. Em mensagem do dia 14 de Outubro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio, o décimo primeiro, da sua série Pós-Guiné 65/67:


O PÓS-GUINÉ 65/67

11 - A SAGA UMBILICAL

12 DE MAIO DE 1992

É nesta data, já que guerra "ca tem" (aquela por onde passámos, entenda-se) que um grupo, decerto de gentes bem intencionadas, publica uma lei a que chamaram "Objecção de Consciência". Mas que pena não se terem lembrado antes, mais propriamente no inicio dos anos 60 !!!

Agora não valia a pena a rapaziada fugir à tropa embora esta (o serviço militar obrigatório) em 1992, fosse por pouco tempo e onde afinal iriam d'alguma forma aprender a serem homenzinhos, (o que a alguns não conviria, convenhamos).

E pena maior foi a de que não fosse o IN a criá-la então, (anos 60) o que teria evitado que a maioria de nós tivesse de ter que lá ir obrigada, quando afinal até se calhar sem sabermos, ÉRAMOS TODOS OBJECTORES DE CONSCIÊNCIA e utilizaríamos essa prerrogativa..

Contudo valeu a pena. Saiu em Diário da República e até considerada, foi, de acordo com a Constituição.

Tardaram mas acertaram porque agora bastava ter uma daquelas hipóteses ali previstas e nem sequer se pegaria numa espingarda, quanto mais aprender a mexer nela. Ao ler essa preciosidade, (Lei nº 7/92) até me davam a hipótese de escolher o que daria em troca, porque de facto não estavam a fazê-lo, de mão beijada. Haveria de contrabalançar a coisa, por uma das hipóteses previstas e eram tantas. Cá o "Je" ficaria bem contente com a alinea h) que diz:
- Manutenção, repovoamento e conservação de parques, reservas naturais e outras áreas classificadas

E ao declarar-me objector, o que confesso nunca faria, pois que senão e se calhar, andaria pr'ái de arganel... peito, axilas e tudo o mais que tem cabelo... descabelados pois então A minha proveta idade recusa tais coisas nos homens e até já lá dizia uma prima minha, quando falava comigo e de mim:
- Homem que é homem, deve cheirar "suma" o cavalo.

Havia apenas um pequeno óbice e refiro-me ao artº 13º, qu'a determinada altura dizia que o mânfio que utilizar esta forma de fugir (entre aspas) não poderá ter porte d'arma de qualquer natureza. Ora lá me estavam de novo a lixar, pois que eu, ao escolher a citada alinea h) queria manter o equilibrio nas florestas e não seria deixando proliferar as lebres (e não coelho, animal qu'agora abomino)) que tal equilibrio se manteria, dado que comem que nem umas bestas e daí e porque são umas glutonas no que se refere à destruição dos vegetais das hortas e ervinhas próprias das reservas e parques.

Lebres de que tanto gosto, quer com arroz, quer também com feijão e couve. Arroz cozinhado com o próprio sangue da saborosa bicha. Sangue que também se mistura na feijoada com lombarda. (Só de pensar nisto, até fico ougado !!!)

É também neste ano que finalmente usufruo duma vida mais desafogada e até comecei a ter uma noite para ir aos fados e com tanta sorte que até aí a GUINÉ ESTAVA PRESENTE.
Uma fadista cantava:
- "Volta atrás vida vivida", ao que eu retorqui alto e bom som e em tom fadista brigão ao desafio:
- "Ó quem me dera ter outra vez 20 anos".

Ainda nesse ano, estando em reunião, eu Sub-Gerente. com o Gerente, (Ex-Alf Mil que também havia estado na Guiné) apercebi-me que ao balcão perguntavam e alguém para mim apontou.
O perguntador apresenta-se bem vestido e engravatado e de feições e cor, que me indicavam ser da Guiné.

Quando disponível fui ao seu encontro e surpreendido fui pelo seu grito de alegria inusitada:
- Paizinho... e dirigiu-se-me de braços abertos.

Ainda me voltei para trás não fosse outro o papá, mas o puto que me parecia ter pr'ai 17 ou 18 anos, permanecia sedento de me abraçar e continuava:
- Paizinho... que prazer em conhecê-lo.
- Porra - disse eu em silêncio, estou feito ao bife... e os 23 colegas emudecidos e embevecidos.

Peguei no rapaz, levei-o para o "Filadélfia" para indagar do que se estava a passar.

- Djubi, conta lá ao que vens?

Começa a desbobinar uma tal lenga-lenga bem urdida, com citações ao K3, Tabanca de Farim e à "lavadeira" sua mãe que a páginas tantas, comecei a ficar mesmo atravancado e já me via com mais um filho bem grandote, mas enfim, "cá se fazem cá se pagam".

Eis senão quando, resolvo amandar-lhe com duas ou três perguntas:
- E a tua mãezinha Fulana (dei-lhe um nome falso) e o teu tio Cicrano (outro nome falso).

Ao que ele respondeu citando-me:
- A minha mãe Fulana faleceu em 1978, não sem que antes me tenha dito quem era o meu pai branco... o meu tio Cicrano está lá para Varela.

Ao mesmo tempo entram no bar três manguelas, o Mendes Ferreira e outros dois que também tinham sido Combatentes na Guiné, tudo gente boa com quem partilhava galhofas aquando do chá das cinco e riam... riam. riam.

Pois é... os safardanas haviam planeado a coisa e cá o artista, esperto que nem um calhau, caiu que nem um patinho.

E foi a partir daí que segui o conselho macacal do ouve, vê e cala e nunca te alambazes nas descrições de engatatão.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12146: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (10): O meu umbigal mau feitio

domingo, 13 de outubro de 2013

Guiné 63/74 - P12146: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (10): O meu umbigal mau feitio

1. Em mensagem do dia 9 de Outubro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio, o décimo, da sua série Pós-Guiné 65/67:


O PÓS-GUINÉ 65/67

10 - E A SAGA UMBIGAL CONTINUA

O MEU UMBIGAL MAU FEITIO

15 DE SETEMBRO DE 2013

Assentei-me no meu sofá de peles, de cabra e bode, qu'até já está roto aqui no apoio do braço direito devido ao uso, tal qual como acontece ali em cima onde encosto a cabecinha mas aí porque o redemoínho eriçado o pica, como é próprio do cabelo assim estilo porco espinho, com que nasci.


E A GUINÉ SEMPRE PRESENTE
É o dia 15 de Setembro e sempre dedico uns minutos para relembrar aquela manhã desta mesma data mas de 1965, em Bissorã.

É que quando em treino operacional, com uma Companhia ali estacionada e que nos ia mostrar como era aquela guerra, mas em local menos perigoso (se é que os havia) fomos, o pelotão dos velhinhos e o meu, surpreendidos por uma feroz emboscada em local onde nunca até então se tinham atrevido incomodar as NT.
Recordo que atravessámos para lá um rio com pouca água, mas que no regresso e por mor da maré, estava cheio e alguns não sabiam nadar. Tudo correu bem, as coronhas das G3 serviam de amparo a esses enquanto nós os puxávamos segurando no cano. Lembro-me que um Fur Mil do meu pelotão aprendeu nesse dia a nadar, dizia-o ele depois já no quartel.
Só passou por essa, pois que logo a seguir foi para a Rádio em Bissau.

Foi a primeira vez debaixo de fogo, baptismo lhe chamavam, mas não gostei. Muito menos que nos tenham perseguido.
Recordo sempre com muita saudade os locais por onde passei e de alguns más recordações também. Duns também as memórias que me mantém vivo, apesar da dor, como sucede com quase todos nós que fomos lá por imposição e estivemos debaixo do fogo IN, e perdemos até amigos de coração.


22 DE SETEMBRO DE 1965

Da dor que falei atrás, tenho esta bem grande que não me abandona, bem como a revolta que cada vez aumenta mais.
Nesta mesma data mas de 1965... saímos de Mansabá com destino a MANHAU, noite chuvosa... operação a iniciar-se... e mesmo à saída do aquartelamento... uma "bailarina" e... O HORROR... O HORROR.

É então que a raiva nasce em mim.Alguma permanece ainda.


21 DE ABRIL DE 1967

Desembarque em Lisboa.
Estive quase a ficar no Exército, e até aliciado fui por emissários que sondaram alguns de nós, no sentido de virmos a preparar tropas d'outros Países. Mercenários nos ficaríamos a chamar mas receberíamos acima do que seria possível imaginar.

A Pátria Portuguesa ao que parecia, não estimulava, não permitia, mas fechava os olhos. Da minha CCAÇ 1422, houve um rapaz que enveredou por aí e passados poucos meses, visitou-me, trazia nova proposta e as condições monetárias que me propunham, eram excepcionais. Andei baralhado e quase a aceitar, mas contive-me e se calhar fiz mal, mas o que lá vai lá vai.

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Li muito desde novo, e porque até nem havia televisão, que nasce já tenho 16 anos. Na minha terra para além da Biblioteca Municipal, ia também semanalmente a carrinha da Gulbenkian.
Desde Emilio Salgari e o seu Sandokan, Hall Caine, Júlio Dinis, Eça, Camilo, Camões, Bocage... enfim tudo o que de bom havia e que me ajudou a ter uma diferente visão do que era o Mundo dado que o meu se resumia ao rame-rame duma terra da Província que todavia tinha caminho de ferro e carreiras bissemanais para a capital do distrito.

Até que já quase nos 20 de idade, descobri Sven Hassel, que escrevia com fino humor, sobre a II Grande Guerra mais especificamente e tendo como protagonistas os alemães.
Deste, "O Regimento da Morte" serviu-me de Bíblia na Guiné. Influenciou-me, até que um dia descobri outro Senhor que é ainda hoje o meu preferido, chamado Hans Hellmut Kirst e que para além de várias obras vendidas em Portugal, tem outras que foram adaptadas para o cinema.

O seu, "Os Lobos", representam o máximo do que gosto e escolho. Incontáveis direi, as vezes que já o reli, e sublinhei. Tem frases que bem dão para pensar.

Motivado por tais leituras, decidi-me um dia escrever um conto infantil, com ele concorri e foi-me comunicado que só não ganhara porque o fim não se adequava bem às idades para quem se destinava. Na realidade a narrativa era ternurenta demais e o próprio título era bem interessante.

Chamei-lhe a "HISTÓRIA DUM PASSARINHO QUE ESTAVA, TADINHO, TODO MOLHADINHO EM CIMA DUMA ÁRVORE", inspirado que fui por aquele jagudi sacana que na Guiné me quis debicar quando adormeci à sombra dum poilão, no K3.

Conforme reparam está tudo dito na capa, só que depois no desbobinar, acrescentei várias peripécias entre as quais: "Subi à árvore; apanhei o jovem pardal de telhado; aconcheguei-o ao peito; cheguei a casa e embrulhei-o num cobertor quente; acendi o lume para que se secasse e no fim, quando a minha mãe chegou disse-lhe: 
- Mãe, se fizer o favor ponha aí uma frigideira a jeito, que vou depenar este petisco".

(continua)
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Notas do editor

Jagudi - Foto: © de João Santiago

Último poste da série de 29 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12101: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (9): Continuação do balanço - Usos e costumes

domingo, 29 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12101: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (9): Continuação do balanço - Usos e costumes

1. Em mensagem do dia 23 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio, o nono, da sua série Pós-Guiné 65/67:


O PÓS-GUINÉ 65/67

9 - E A SAGA UMBIGAL CONTINUA

USOS E COSTUMES

(continuação do balanço)

Outro uso esquisito à brava, era aquele de todos comerem no mesmo prato. Punham lá dentro as mãos, embrulhavam a bianda fazendo bolas e metiam-nas na boquinha ávida.
Nisso não havia grandes diferenças com o que fazíamos no meu Alentejo, onde tragávamos todos do mesmo barranhão, mas aqui, cada um ia tirando para a sua própria malga, usando a sua própria colher.
E qu'alegria quando nos calhava também um pedacinho de conduto.

Experimentei, porque a psico assim o obrigava, amassando relutantemente, com o tamanho dos berlindes com que joguei na escola. Isto inicialmente, porque depois e porque o petisco até nem era nada mau... aviava... aviava, acabando por me tornar "garganêro" quanto baste.

E foi assim bastas vezes na tabanca em Farim, do meu amigo Felupe o 44, mas ao mesmo tempo, vinha a galinha de chabéu preparada por uma das suas mulheres e isso sim, era de comer e chorar por mais. Tudo regado naturalmente, com água de Lisboa, que eu levava num garrafão oval de 14 litros, mas do tinto para que não restem dúvidas.

Frango de chabéu - Foto: © Fernando Gouveia

Completava-se a refeição com um pedaço de ouvido de porco, outro da focinheira do mesmo animal, que previamente haviam salgado e cozinhado (ensinara-lhes eu) só para o "furriel", qu'eles não comiam, por via da religião, o que eu achava óptimo. Não comiam eles, mas deglutíamos nós depois no K3 o restante do "ólimal", o que era uma festa e aquela rapaziada estava sempre desejosa que eu chegasse.

Assavam o bicharoco em brasas de lume especialmente acendido para a ocasião, não sem que antes o besuntassem com toda a especiaria picante que por ali houvesse. O frigorífico a petróleo ficava vazio de bazucas nestas ocasiões e o vinho jorrava sim senhor, para além daquela bebida barata (50 pesos), o Vat 69, que nunca provara, mas que vira os cow-boys beberem, enquanto se matavam uns aos outros.

A princípio nem gostei por saber a tintura de iodo, mas depois de lhe ganhar o gosto, jamais abandonei. Hoje sorvo-o por imposição médica e às vezes até biso. A seguir e se houvesse qualquer operação na mata, parece que os IN's eram mais qu'a muitos quando afinal eram só muitos.

Oh maléficos benefícios do álcool!!! Só que então não havia disponíveis os vallium's, lexotans e quejandos.


E DEPOIS DO ABRIL DE 1974 

Passaram-se anos, foi-se tornando mais fraco aquele grito da "luta continua", insisto, curiosamente a mando dos que nunca lutaram... em bocas de quem tece elogios aos desertores e fugitivos e na destes.
Mas qu'a raio percebem eles de luta e do sangue que daí advém?
Calem-se de vez e respeitem os combatentes.
Utilizem "o povo unido jamais será vencido" a outra "o povo é quem mais ordena", ainda a outra "a terra a quem a trabalha" (Tá bem dêxa, - deixem-me rir - e quem é que foi ou vai nisso ainda hoje?).

Tentem que sejam verdades, mas não esqueçam o que disse um Presidente dum País que esteve lá onde se reúnem os deputados, coitados que tão sacrificados e mal vistos continuam. Foi o seguinte: "a política é para os políticos... o trabalho para os trabalhadores".
Outro, 1.º M cá do burgo na altura, ainda foi mais concreto: "não gosto nada de ser sequestrado... Bardamerda".

Era o PREC e hoje pergunto-me: "préc... é qu'isso serviu"?
O pobre povo acreditou, as ocupações iam-se dando numa fugaz tentativa de melhoria de vida e desejo honesto que tal se desse, e as "manifes" no único trabalho útil. Como dizia o antes citado, numa dessas demonstrações populares:
- "È SÓ FUMAÇA"... enquanto iam rebentando uns realmente fumarentos e barulhentos petardos ali mesmo no Terreiro do Paço.

E acrescentou depois: -
"O POVO É SERENO".

O resultado está à vista: Os pobres estão mais pobres, os coitados dos ricos mais ricos e até estes recorrem à sopa do Sidónio, à Cáritas, às igrejas... e alguns até vão de Mercedes, onde transportam as lancheiras que entram vazias e saem cheias.

Azedume? Qu'al quê!!! Realidades que magoam.


6 DE JANEIRO DE 1992

Enriqueci neste dia e o acontecimento para além do mais, fez-me esquecer as baralhações e a inquietude que me acompanharam nestes anos subsequentes à desmobilização e depois, e pior, após a revolução.
Contudo tinha boas vidas, familiar e profissional. Nasceu o meu primeiro neto que, para além do mais, foi um ouvinte atento e A GUINÉ SEMPRE PRESENTE.
Nunca me interrompeu (o que fez, sim, quando começou a falar)... e serenamente adormecia.

Contei-lhe as minhas vivências boas e de tal forma que ele agora ao ler os "Melhores 40 meses da minha vida" apenas diz: "Já conhecia".

Rejuvenesci, foram-se algumas dores d'alma... ganhei nova vida e a alegria foi tanta que proclamei:

- A PARTIR DE HOJE QUE ESTE DIA SEJA RESPEITADO, CONHECIDO E COMEMORADO, COMO O "DIA DE REIS".

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12069: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (8): Continuação do balanço

domingo, 22 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12069: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (8): Continuação do balanço

1. Em mensagem do dia 16 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

8 - A MINHA CICATRIZ RESULTANTE DO CORTE DO CORDÃO UMBILICAL

(CONTINUAÇÃO DO BALANÇO)

Chegado à Guiné, cedo me apercebi (em Setembro de 1965) d'alguns diferentes usos e costumes.
E propus-me vir a praticar aquela religião que permitia que um homem pudesse comprar qualquer mulher e até porque o preço, não me parecia exagerado. Dessa forma não trabalharia mais porque teria as escravas a fazer tudo.

Na verdade, mil e quinhentos e uma vaca estavam bem dentro das minhas posses, pois se bem m'alembro o pré do furriel que fui, andava à volta de três mil e quatrocentos pesos e vacas tuberculosas era pr'ali o que não faltava na mata. Era-me estranho, mas até invejava o macho a descansar à sombra, deitado na sua rede presa entre duas palmeiras e controlando as sete.
Umas apanhando o arroz... outras, arando com aqueles primitivos aparelhos... uma ou outra lavando... outras colhendo alguns tomates que iam nascendo sem serem semeados, mais algumas bananas ou caju (que delicioso e refrescante este sabia, caraças !!! pegava-se-lhe pela castanha... trincava-se... chupava-se tendo todavia o cuidado de não engolir o fruto)... e tudo enquanto o dono mascava a sua noz de cola, tomava o seu vinho de palma... ao mesmo tempo que ia arengando com todas elas.

Tratavam-se de tradições estranhas embora na Metrópole, também as pobres mulheres, estivessem sob o jugo do marido, poucas trabalhavam fora de casa, (tinham a missão espantosa de criar e educar os filhos) e até precisassem da sua, dele marido, autorização para se deslocarem ali ao lado a Badajoz onde iam comprar o café, as gasosas e as meias de nylon. Em boa verdade alguns, nanja eu puritano que continuo, até iam fazendo das suas, mas a esposa verdadeira só podia ser uma e mais nenhuma, o que era desprestigiante para as outras nunca assumidas, embora andassem na boca suja dos maldizentes. Contudo todos fechavam os olhos e até se aprovavam as aventuras de qualquer vangloriante garanhão de raça Lusitana. E quando digo... "puritano que continuo" mas que poderia ter deixado de o ser, pois que e dadas as minhas, popularidade e simpatia, resultantes do facto de ser o vocalista do Conjunto Sôr-Ritmo... com boa voz... boa presença e quiçá beleza... ou seja só me faltava a auréola, porque admiradoras não me faltavam "nã sinhor".

De todo o modo, eu até achei, em Mansabá, onde fui confrontado com a situação em causa, que estava certo comprá-las e mantê-las. Sim porque o facto de as ter adquirido, também lhes dava a responsabilidade de as sustentar senão o vendedor poderia exigir a devolução do bem transaccionado... Convenhamos que dar a papa biandense a sete mais os filhos que iam aparecendo, não era nada fácil.


Disse no inicio que me propus etc, etc, e por isso houve que estudar como "religiãonizar-me" mas... se aceites as duas condições qu'abaixo descrevo:
Após demoradas pesquisas, cansativas noites mórbidas, pensamentos enviesados, cheguei à que penso bem elaborada e pior brilhante conclusão final: lá ter sete esposas, tudo bem, mas eu ter de alimentá-las não queria. Daí que só aceitaria se numa primeira fase se acabasse com essa mordomia e qu'elas que adultas são, se desenrascassem.
Numa segunda fase impor-lhes-ia a contribuição de vinte por cento dos ganhos que tivessem e fosse lá da forma como o conseguissem. Afinal adaptando o sistema deles, ao nosso Ocidental, onde já existia uma classe bem posicionada na vida e conhecida por chulos.


JUNHO DE 1967

Acabadinho de regressar e já com as "sódadinhas" iguais às d'agora e porque antes não tinha tido tempo... porque me não apetecera... porque andar na borga era bem mais divertido... porque o que eu queria era ser 1.º trompete lá na Banda Filarmónica da Ponte de Sôr, não estudei o suficiente, na idade própria para tal, mas trabalhei desde os 10 anos, ora bem!!!
Dado que permitiam aos militares no activo e aos regressados, fazer exames liceais em qualquer altura, desde que houvessem passado 60 dias após o último exame, entendi que devia completar o 5.º ano Liceal, Secção de Ciências... qu'a de Letras já tinha e tal impunha-se até para poder subir, através de concursos, na função pública.

Foi canja e em Dezembro desse ano estava feito. Para além da obrigatoriedade de pagar trinta escudos para a Mocidade Portuguesa, os dirigentes dessa e porque eu até sabia escrever à máquina Remington teclado AZERT, pediram-me para ser o elemento que contactaria com outros grupos congéneres, no sentido de se organizarem alguns convívios, com jogos à mistura quer fossem de futebol, ou outro desporto com bola. Para além do mais poderia dar também umas dicas aos moços, sobre alguns aspectos com que eles mesmos um dia se iriam confrontar, se mobilizados.

Ali numa terra perto e tal como eu, havia uma rapaz a procurar saber mais (e que por isso também andava a estudar à noite) e que fora o indigitado para ser o impulsionador do desporto, tal como me acontecera.

Convém acrescentar e elucidar, que qualquer correspondência trocada entre organismos públicos, terminava sempre assim: A BEM DA NAÇÃO.. e por baixo a função de quem escrevia, ou seja "O Chefe (disto ou daquilo) ou o Director, etc etc.
Ora a determinada altura recebi um convite em papel timbrado, onde convidavam o nosso grupo para um jogo, almoçarado antes, e a realizar daí a 15 dias.
Tudo bem... falei com o verdadeiro Cmdt de Bandeira lá do sítio, anuímos mas ri... ri muito. É que o ofício terminava:
"A BEM DA NAÇÃO"
O barbeiro cá da terra.

 (continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12046: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (7): A saga do corte umbilical

domingo, 15 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12046: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (7): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 9 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

7 - E LÁ VOLTA À BAILA A CICATRIZ RESULTANTE.. etc, etc, etc, etc,

1986?

A determinada altura decidi que havia de fazer um balanço sério e honesto do que fora a minha contribuição enquanto Combatente na Guiné. Competia-me a mim analisar e fi-lo seguindo a voz da consciência, que tantas vezes me condena e que n'algumas vezes (o seu lado mau) me tentou empurrar para o descalabro. Só que nunca gostei de ser empurrado e até reajo mal a quem mo faça e se calhar é por isso que ainda por aqui ando e andarei. Quanto mais ruim for, melhor... porque se diz que só morrem os bons.


E ASSIM "FONDO": 

Já escrevinhei como fui prá tropa depois de ter ido "às sortes"... para onde fui e pelo que passei, aprendi e ensinei... pelas amizades conseguidas e também pelos poucos alguns ódios (decerto resultantes da inveja que também é um pecado capital) com que tentaram destruir-me.
Só que e já o Senhor Almeida Garret dizia no Frei Luís de Sousa, pela boca de Telmo Pais: "Ruim terra te comerá cedo, corpo da maior alma que deitou Portugal". Mas enganou-se, no "te comerá cedo", se é qu'a coisa se adapta ao meu caso.

Voltemos ao balanço na guerra, não sem que antes vos pergunte:
SOU OU NÃO ERUDITO?

Começo:
PORQUE É QUE NÃO GOSTO OU GOSTAREI d'alguns países?

Simples... muito simples mesmo:
Porque soube que apoiaram o PAIGC e com isso contribuíram para que tanta rapaziada nossa não tenha voltado com vida e que outros tenham voltado com graves mazelas.

PORQUE É QUE NÃO GOSTEI do chefe inimigo?
Ora, sendo este o causador também dos infortúnios atrás assinalados... e mais... considerando que estudou em Portugal à nossa custa, tirou cursos, trabalhou e conviveu com gentes honradas... porquê enveredar pela luta armada contra militares "DO POVO DAQUI", que apenas foi obrigado a cumprir um dever?
Não me agradou, apesar de tudo, o seu fim mas "Quem com ferros mata, com ferros morre";

PORQUE É QUE DESGOSTEI daquele valente cubano que sempre admirei?
Desgostei eu e o seu líder, que a determinada altura o repudiou.
Eu... porque embora a figurinha me merecesse algum respeito e até alguma romântica admiração mas unicamente até ao dia em que soube que também ele se ofereceu para combater contra nós, o que não foi aceite pelos movimentos que nos obrigaram a defender a Pátria devido à internacionalização da guerra que daí poderia advir, o que lhes não convinha.
O seu fim também não foi do meu agrado, mas todos os sonhadores assim acabam.

PORQUE É QUE CONTINUO A NÃO GOSTAR dos desertores e se calhar nem eles gostam agora de si próprios?
Porque por cada um que fugiu com medo, correspondeu a mais um dia que ficámos nós a penar no inferno.
Perdoo, mas um poucochinho apenas, aqueles poucos que já se retrataram.

PORQUE É QUE NUNCA GOSTEI OU GOSTAREI dos que fugiram? E fizeram-no mesmo sem saber se seriam apurados... sim...  porque se na altura até os medrosos... os mERDosos e os maricas ficavam "livres", porquê ir a salto lá pr'ós bens-bons?
Voltaram e bem recebidos foram... que lhes faça bom proveito.

E PORQUE É QUE NÃO GOSTO d'alguns QU'ATÈ cantam?
Cantam? ná... protestam, ou melhor agora estão mais comedidos, que o dinheiro faz-lhes falta.
Tenho-lhes um pó, que nem vos digo nem vos conto e também tenho nas, rádio e TV, botões que os desligam e dessa forma corto-lhes o pio.

Fim, por hoje, do maldizer que foi a realidade.
Proximamente falarei das boas coisas.

E A GUINÉ SEMPRE PRESENTE
O grupo desportivo do Banco onde trabalhei bem e depressa e por isso também me pagaram e reconheceram o mérito, tinha uma Secção de Judo.
Fui ver... gostei e decidi-me participar, porque e até dado que o "Mestre" tinha sido Fuzileiro Especial e combatera na Guiné.
Pensando nas recordações que poderíamos a vir a desbobinar, lá fui e por lá andei anos a fio... e falámos... falámos, sobre as amargas experiências... sobre outras menos desagradáveis... enfim partilhámos emoções, saudades e o desejo firme de lá voltar sempre presente, bem como a ânsia de regressarmos aos vinte e poucos anos.

Conheci os acontecimentos sobre a operação a Conacry, com maior profundidade e até alguns outros que não mais vi sequer comentados e mais se me arreigou a certeza de que as, valentia e sofrimento das nossas tropas foram bastante superiores àquilo porque eu também passara.
Até que certo dia desisti.
Já não aguentava mais, tanta demonstração (para promoção) e onde me calhava ser sempre eu a cair. É que nem me salvava com aquela máxima judoca que diz: "Quanto maior for o nosso adversário, maior será a sua queda".

Tantas levei qu'agora uso apenas o quimono para avivar a memória cá em casa e numa demonstração de força psicológica - SÓ, pois que a verdadeira foi-se.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12015: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (6): A saga do corte umbilical

domingo, 8 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P12015: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (6): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 4 de Setembro de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

6 - E A SAGA DA MINHA CICATRIZ RESULTANTE, etc etc etc, CONTINUA

FIM DO ANO DE 1966

Baile na UDIB em Bissau, tocava um conjunto de música ligeira do Exército, onde tinha dois estimados amigos, um guitarra eléctrica, outro, organista electrónico. Interpretavam uma linda melodia para dançar à moda antiga (ou seja agarradinhos como convinha), chamada "Aline" e eu volteando com a namorada dum deles que só deixava que fosse eu o seu acompanhante e tal me houvera pedido, coisa que os pais dela presentes também, nem viam com desagrado, pois sabiam que eu era casado... bom rapaz... e conhecíamo-nos todos.

Sede da União Desportiva Internacional de Bissau
Com a devida vénia a Nelson Herbert

Só que:
Eu que nem era atrevidote, ou sequer disso fazia questão, e estava um pouco triste porque a minha mulher e a minha filha haviam regressado para a Metrópole nessa mesma manhã... atrevi-me... e... levei uma tal bofetada qu'ainda hoje a sinto aqui no semblante da face da cara, do lado esquerdo que m'alembro bem.

Apesar disso a noite passou-se depois em beleza, contrastando com o que se passava no mato, embora as comemorações hajam sido feitas um pouco por todo o lado.
Constatei que éramos capazes de esquecer o que de mau se passava, não nos entregávamos ao desalento, lutávamos e uníamo-nos se caso disso, distraíamo-nos quando a oportunidade surgia.
A noite acabou em completa e organizada desordem, própria daquela irreverente mas aguerrida juventude.

As ruas "na" Bissau, ao aparecer do nascer do dia, mais pareciam uma adega de garrafas partidas por tudo o que era sítio, e ali na Praça do Império ressonava-se no chão, vendo-se os três ramos das forças armadas a serem acordados com carinho pelas polícias militares.

Uns lá partiam para o mata-bicho disponível nos cafés das redondezas, outros tremelicando e ora caindo ora se levantando, provavelmente até devido às artroses, artrites, hérnias, enfim!!!

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ABRIL DE 1974

Bom.... depois veio um dia 25, (o que acontece curiosamente doze vezes por ano) em que acordei cedo, ouvi que havia uma revolução e todo contente fiquei, e ainda saudoso dos meus tempos de combatente, até ganhei novo alento e julguei que iria de novo pegar no meu morteiro 60, na minha G3 ou quiçá até, na Parabellum 9mm.
É que lá fora na rua, só ouvia "a luta continua" e para mim o significado de luta era combater contra quem nos emboscava nas matas da Guiné, ou seja responder aos tiroteios.

Cedo me desiludi, pois que afinal "luta" agora era outra coisa nada parecida, mas bem desvirtuada.
Por isso nem gritei VAMOS A ELES, avisando a malta.
Mas lá que foi divertido, foi.

Vi a tropa na rua, a princípio alinhada, disciplinada mas pouco, fardada qb que poucos dias depois desalinhou, indisciplinou-se e tanto andava com barba por fazer, cabelo comprido, G3 engatilhada e usada a tiracolo assim como eu hoje uso o chapéu que levo para tapar o sol na praia e até assisti a um juramento de bandeira na TV, que deveras me espantou dada a desagregação total das práticas constantes no RDM.

Tal rebalderia era vulgar acontecer nalguns aquartelamentos da mata, mas aí nem havia a presença de populações civis, como no caso da minha CCAÇ 1422 quando no K3. Por isso se fechava o olho, permitindo-se o uso de nem que mais não fosse, duns simples calções, bivaques em vez das tradicionais boinas, chinelos de enfiar... mas aqui na Metrópole este abandalhamento chocou-me sim senhor. E será que faria mesmo parte da "revolução em curso" como diziam, alguns dos seus tutores?

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ÓSPOIS

Lisboa transfigurou-se:
Deram-se as províncias ultramarinas... abandonaram-se os seus autóctones Portugueses que combateram ao nosso lado... regressaram os aqui nascidos e que haviam ido em procura de melhor futuro.

Os cais donde partíramos e chegáramos pareciam agora enormes armazéns onde milhares e milhares deixavam os poucos bens que conseguiram trazer. Retornados lhes chamaram, "alguns" daqueles, qu'agora mandavam, eles próprios também retornados, mas do exílio dourado e que foram recebidos como gente importante apesar de... e de.
Claro que também conhecemos as honrosas excepções.

Para além disso, afirmavam estes, os no poder à época, que tudo resultava duma descolonização exemplar.

E eu que revoltado já era, assisti, e como eu outros muitos mais, com muita tristeza e raiva ao que ia acontecendo e à malfadada sorte dos nossos amigos que ficaram lá na sua terra, e AO NOSSO LADO COMBATERAM.

Repito: "tudo resultava duma descolonização exemplar", como afirmavam os no poder à época.

Começaram contudo e felizmente a aparecer vozes discordantes e quem se insurgisse contra o descalabro para onde queriam levar o País... militares guerreiam contra militares... dão-se golpes e contra-golpes... e o pobre povo lá se ia manifestando gritando:
- "A luta continua".

E assim se passaram anos até que certo dia, o meu clube prega uma abada de 7 a 1 a um outro qu'até tinha um emblema com um "pesserinho" pousado em cima duma roda de bicicleta com pneu e tudo, e lá se apaziguaram os ânimos daqueles que com'a mim utilizavam os campos de futebol, para extravasar e largar uns inocentes palavrões.
Tive imensa pena de não ter visto o jogo, mas na semana anterior havia abandonado de vez o futebol que tanto me incomodava psiquícamente. Soube do resultado através do rádio ao vir de Peniche onde fora à pesca... trazia dois baldes grandes cheios de sargos dourados, mas comentei:
- Este gajo enganou-se...7 a 1? Pode lá ser ?

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

domingo, 1 de setembro de 2013

Guiné 63/74 - P11998: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (5): A saga do corte umbilical

1. Em mensagem do dia 26 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

5 - A SAGA DO CORTE UMBILICAL


A outra peça que encontrei, é uma espécie de punhal, feito em ferro pelo meu amigo felupe, O QUARENTA E QUATRO, (como gostava que o chamasse), com a pega adornada em pele estriada e de variegadas cores. A bainha em couro também embelezada da mesma forma.
A lâmina propriamente dita, foi batida a martelo por ele próprio e afiada com esmero.

Foi num dia qualquer de 1966, que ma ofereceu e ma colocou no cinto, tendo o cuidado de me avisar:
- "Furrié" entrará sempre na tabanca, sem problemas e bem-vindo se a tiver à vista e "se a levares pró mato, poderá ser-te útil também".

Sempre fui de não acreditar em amuletos, mas que resultou... resultou. Aquele 44, de quem nunca mais soube, para além de guia, foi também membro da minha Secção de Morteiros e também meu protector quase invisível quando em combate.

Lembro-o sempre com muita saudade e procurei saber do seu destino, através de muitas tentativas mas nunca obtive respostas.

Mantenho preservada apenas uma foto que tirámos, vendo-se Farim lá depois do rio.

Na foto > De pé: (?), Samba, Soares, (?), Nascimento e (?). De cócoras: 44, Tarouca e Domingues

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FOI NUM DIA DE JUNHO DE 1966

Que devo ter chorado tudo o que haveria para chorar, mas de alegria.

Um helicóptero aproximava-se vindo dos lados do Olossato e pairava sobre o K3, deixando a impressão de que iria pousar e pousou.

Tal era inédito e pensámos que seria alguém importante para saber algo sobre os funestos acontecimentos do dia anterior em que mais chorei, mas de dor e raiva.

Ainda atordoado, deixei-me ficar sossegado à porta da minha suite e esperei não ser incomodado, mas fui bíspando o que se passava.

Nisto oiço que me chamam e vejo que indicam a minha mansão a alguém que viera lá do ar.

Era um 2.º Sargento lá da minha terra, que estava sediado em Teixeira Pinto e que viera para visitar o meu "corpo" que ele houvera ouvido dizer, estar também esfrangalhado.

Digam lá se o Mundo e a Camaradagem não eram então coisas lindas?

E foi com um apertado abraço (e gratidão minha) que celebrámos este encontro e foi com esta prova espantosa, que me fez entender ainda mais, o que são as fraternidade e amizade.

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O SOLDADO CHICO QUE ERA PALHAÇO

Este rapaz tinha sido um verdadeiro palhaço e a isso voltou, num dos circos que deambulavam pela feiras da nossa terra e onde eu tanto gostava d'ir, mais pelas pernas das trapezistas... ora bem. Fazia parte da comitiva que comigo permaneceu no Pelundo e conseguiu indrominar e fazer rir de tal forma, quer o homem grande (Ti Vicente se chamava) quer os seus ministros que nem ler sabiam, que decidiram oferecer-lhe algumas benesses em paga da alegria que lhes proporcionava.

Tudo o que tinham de melhor lhe pertenceria se ele ficasse por ali desde já e prontificaram-se a falar com as altas chefias militares.

Davam-lhe as filhas, as vacas e os porcos, a fonte e a igreja, a bolanha e alguns terrenos cultiváveis... parte doutros que iam até Bula, e para comer só do bom e do melhor, nem que para tal, houvessem de se deslocar e aviar onde fosse necessário, para além das fracas galinhas e cabras que lhes pertenciam. Além disso, prometiam-nos segurança ali na zona, que convenhamos, à época era mesmo sossegada, talvez devido ao medo que tinham de nós, gentes aguerridas que éramos, embora não descarte que por vezes, também alguma cagunfa sentíssemos.

O rapaz pediu-me conselhos e direcções a tomar... prometi apresentar o assunto superiormente... e dar-lhe-ia a resposta um destes dias.

Mas o destino não o quis (e nem ele próprio como mo confessou depois) mas enquanto pudemos fomos aproveitando a maré e usufruindo do que pudéssemos, Pouco tempo depois correm connosco dali, precisamente no dia seguinte a termos ido em visita de cortesia até Jolmete para uma belíssima jantarada que nos ofertaram, só que e porque se resolveram atacar o aquartelamento, pouco comemos.

Safei-me, porque logo que os tiros começaram, guardei nos bolsos, umas perninhas, ou seja, no bolso esquerdo uma de borrego e na direita duas de galinha assadas em brasas de lume, pitéus que continuo a incluir ma minha dieta mediterrânica.

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NOUTRO DIA QUALQUER DE QUALQUER MÊS DE 1967

(O que me lembro é que havia regressado em Abril) e quando me encontrava desempenhando a minha função na Tesouraria da Fazenda Pública em Ponte de Sôr, recebi a visita dum individuo bem trajado que pretendia fazer-me umas perguntas, tendo-se antes identificado como agente da Polícia Política d'então.

Afinal apenas queria saber se tinha sido eu a colocar um qualquer petardo que havia rebentado ali perto da Assembleia Nacional e isto porque ao analisarem a minha ficha cadastral, haviam verificado que eu chegara da Guiné e tinha todas as condições para o ter feito, para além do mais e até, porque eu era especialista de Tancos, com um grau apreciável na preparação de Minas e Armadilhas.

Comprovadamente verificou que não era eu o procurado, e pronto o caso ficou encerrado, embora me preocupasse, porque nessa época, era-se preso por ter cão... e por não o ter.

É nesse entrementes que resolvi ir para a arbitragem de futebol, devido à necessidade imperiosa do "sentir" do perigo.

Cheguei lá... apitei uns jogos da regional... e... levei umas pedradas de quando em vez... e... com um bocado de madeira da bancada do Estádio da Fontedeira em Portalegre doutra vez... e... insultos do piorio... e até que um dia, perante a luta desigual, pois que não podia corresponder... decidi e comuniquei:
- Ou em vez do apito levo uma G3 comigo, ou não quero mais.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

domingo, 25 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11978: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (4): O diacho da cicatriz

1. Em mensagem do dia 19 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos mais um episódio da sua série Pós-Guiné:


O PÓS-GUINÉ 65/67

4 - O DIACHO DA CICATRIZ

E quando contei o acontecido ao meu "velho" ele apenas disse, lá do alto da sua sabedoria:
- Então não és tu, quem está sempre a ajudar os mais pobres do que nós? - E não é ao marido duma dessas, que dás as tuas roupas, mesmo já gastas?

Esclareço que o meu PAI era Homem trabalhador, Técnico Superior na área da construção civil e sem a sua mestria não se fariam ou consertavam casas.
Várias vezes o vi a preparar a massa de cimento, a que adicionava areia qb e água, que misturava com a enxada e a força dos seus braços. A pasta daí resultante, colava os tijolos um a um. Feita, pegava nela em baldes de lata, que transportava aos ombros e vertia junto aos pedreiros.

E estes sempre a pedir mais:
- Ó Manecas traz massa...
- Se queres pressas, vem fazê-la... porra.(não era bem esse o termo que utilizava, só que a minha "superior" cultura não me permite dizer a verdadeira palavra... começada por éfe).
Também caiava casas e ensinou a conduzir, pois que tinha sido condutor na tropa.

No dia em que regressei da minha Guiné, fez questão de fazer uma festa e convidar os que por mim lhe haviam perguntado e até o Senhor Padre Frederico esteve presente, vejam bem !!!
Comeram-se uns barbos apanhados à rede e à socapa, no rio Sôr, umas galinhas assadas na brasa de lenha de azinheira e até uns coelhos mansos, à caçadora, (com sabor a bravos que lhes era e é dado pela carqueja) nascidos e criados à moda antiga lá na capoeira do nosso quintal, onde e para além disso, também tínhamos umas rolas que tão boas eram, fritas em banha.

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Aqui na Enciclopédia que é e será o nosso Blogue, tenho aprendido (e só vou a meio)... muito e devido às publicações de quem por aqui vai dissertando.
Há quem opine, há quem descreva o que passou o que não é fácil... há quem discorde e quem concorde com a guerra, QUE NÃO FOMOS NÓS A INICIAR e também os que nunca desembainharam a espada e dizem o pior dos piores dos que lhe protegeram a vida.

Eu que e apesar de não ter sido voluntário, mas obrigado, (e como eu mais um milhão dos jovens que nunca admitimos a deserção embora o pudéssemos ter feito), apenas cumpri o Dever imposto e com muito gosto.
O que ansiava era regressar para junto das família que deixara aqui e tive sempre presente a frase um Senhor chamado De Gaulle, (pessoa que sendo tão alta, eu nunca convidaria para apanhar figos comigo) qu'até chefiou os destinos da França e que quando da partida das tropas francesas para a Argélia, disse:
- Na guerra, ou matas ou morres.

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E A GUINÉ... SEMPRE PRESENTE

Ao proceder a uns arrumos de caixotes de pau feitos, cheios de teias de aranhas (e até uma centopeia com mais ou menos 15 centímetros de lá saltou e que esmaguei impediosamente com o pé esquerdo pois que o direito mal mexe) encontrei duas fantásticas peças, sendo uma delas importante e de tal maneira me salvou de problemas, que julgo ter de lhe dedicar umas escassa palavras.

Então lá vai:

Quando pediram à minha CCAÇ 1422, para salvar a Pátria e nos colocaram no K3, foram-nos distribuídas armas novas em folha, desde a G3 especial distribuída aos graduados que era aquela, qu'até tinha bipé e fazia de metralhadora, e também virgens eram, os morteiros 60 de origem espanhola e que se revelaram falsos com'ó caraças.
Para quem não saiba, particularmente para os que nunca foram ao mato (mas que tão importantes foram, porque uma guerra sem uma boa retaguarda, não ata nem desata) e nem sequer usaram armas ou meteram uma bala na câmara (não deviam era orgulhar-se disso e há quem o faça) para esses sempre vos digo que o morteiro era:

Assim uma espécie de tubo, fechado num dos lados, e que fazia atirar para cima, uma granada (uma espécie de supositório, mas muito maior) depois de a pousarmos nas bordas desse mesmo tubo e a largarmos e no lado que estava aberto, naturalmente.
Ao chegar lá abaixo e já devidamente programada com uns adicionais para que fosse cair no chão e no local que pretendíamos, ou seja a 100 e por aí fora, metros, ao chegar lá abaixo, repito e ao bater num pinchavelho mais conhecido por percutor, ela (a granada) saía disparada que nem ginjas e lá ia na sua nobre missão de nos defender, qual remédio contra melgas, mosquitos e outros parasitas incomodativos assim "tipo" o IN.

Ao sair provocava um típico ruído, tal e qual como quando descalçamos um sapato apertado... daqueles que fazem calos no dedo mindinho. Era pressuposto fazer tiro a tiro e nunca tiro de rajada.
Devia estar assente em qualquer coisa rija mas não o prato base, qu'era pesado e não levávamos e por isso usávamos o capacete, embora nas bolanhas de pouco servisse, pois que mesmo assim acabava por se enterrar naquela porcaria lamacenta.

Pois e de acordo como lá em cima referi "falsos com'ó caraças", quis eu dizer que o percutor, que nos modelos que usara em treinos na Metrópole era b'óptimo, este, partia à terceira granada disparada, quando não logo à primeira, o que obstaculizava a eficiência da defesa, dado que tínhamos de mudar o dito cujo, usando para isso a tal peça com 10 centímetros de comprimento, que servia para desatarraxar o fundo e colocar um novo e que encontrei, guardei e a quem devo se calhar o facto de estar ainda por aqui.

Vai acompanhar-me d'ora em diante, aqui na minha pasta qu'uso a tiracolo.


FALEI-VOS DA MINHA AMADA CHAVE DE FENDAS.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11951: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (3): O bi-fascita da cicatriz

domingo, 18 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11951: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (3): O bi-fascista da cicatriz

1. Em mensagem do dia 12 de Agosto de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o terceiro episódio do seu Pós-Guiné: 


O PÓS-GUINÉ 65/67

3 - O BI-FASCITA DA CICATRIZ 

FOI UMA VEZ, num dia de Setembro de 1965.

A CCAÇ 1422, é "convidada" a ir até Mansabá, para ir "aprender" com uma das últimas Companhia dos "ÁGUIAS NEGRAS" que usavam, então e ainda, a farda amarela.
Partiriam para a Metrópole dentro de pouco tempo, mas a heroicidade permanecia latente e não se escusavam a manter-se operacionais aguerridos.

Vista aérea de Mansabá

A minha Secção de Morteiros 60 é destacada para acompanhar um dos seus pelotões, numa operação marcada para essa noite e claro que desejosos de entrar em acção, contentíssimos ficámos por finalmente irmos saber como era aquela coisa da guerra e ganhá-la pois então... e até comprámos dois sacos de adrenalina, na loja dum Libanês.

Chovia tão torrencialmente como eu nunca houvera visto, a selva, pareceu-me e era, escura. a progressão demorada, cheia de silêncios e sem fumar, (o que muito me custou) mas lá chegámos ao objectivo, que rodeámos sem termos sido detectados.
Foi-me determinado que incendiasse as moranças frente do local onde estávamos emboscados, logo após a ordem que receberia depois da fogaracha que iria acontecer e aconteceu e também que disparasse ao ver algum elemento armado o que também fiz. Entretido, dei a determinada altura, que estava só, com os meus oito homens, porque os outros que viera coadjuvar, já por ali não estavam.

Sem guia, sem saber por onde ir, mas temente a granadas que começavam a cair, enviadas pelo IN, decidi organizar a defesa possível, enquanto esperava que alguém desse pela nossa falta e nos resgatasse. Meia hora depois tal aconteceu, vieram o Senhor Alferes, Cmdt do grupo, um guia e o "Manel" de Mora, com quem convivo uma vez por ano e também a recriminação suavizada por ser a minha 1ª vez:
- É pá, f...-se, podias ter sido comido vivo, aquilo era para destruir e abandonar em passo de corrida.


FOI OUTRA VEZ EM SETEMBRO, MAS DE 1974

Depois, veio o não reconhecimento pelo facto de ter cumprido o serviço militar obrigatório e ter cumprido o meu Dever: Um grupo de pobres gentes, manifestavam-se (falo da época das ocupações, lembram-se?) numa estrada em frente a um Hospital e a quem buzinei para passar no meu bólide de 40 contos novo em folha, mas essas gentes resolveram atirar-me pedrinhas o que me desagradou sobretudo.

Claro que saí, e perguntei do porquê, pois que eu nem pertencia à administração, nem enfermeiro era. A resposta veio pela voz de duas mulheres presentes ali na turba, por sinal até ainda ligadas à família, e fascista me chamaram e mais disseram porquê:
- Foste combatente na Guiné, colaboraste com os fascistas, és fascista.

Outra proferiu o seguinte:
- Tens um carro, és fascista.

Pois bem, segundo a maldade que imperava então, só os desertores eram considerados e recebidos com pompa. Foi o tempo da gritaria do "acabemos com os ricos" ao contrário do que hoje acontece em que estão, sem gritar, a acabar com os pobres.

No fundo nada mudou, nem o tratamento que continua a ser dado aos Combatentes, que lá longe no "paraíso" onde estivemos, muito do pior presenciámos. E se então fui vilipendiado, e agora continuo esquecido, é lá com esses, que também morrem.

Por mim, não esquecerei e se por acaso nos encontrarmos no purgatório, garanto-lhes uma recepção digna.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11931: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (2): A minha cicatriz, resultante do corte do cordão umbilical

domingo, 11 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11931: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (2): A minha cicatriz, resultante do corte do cordão umbilical

1. Em mensagem do dia 31 de Julho de 2013, o nosso camarada Veríssimo Ferreira (ex-Fur Mil, CCAÇ 1422 / BCAÇ 1858, Farim, Mansabá, K3, 1965/67) enviou-nos o segundo episódio do seu Pós-Guiné: 


O PÓS-GUINÉ 65/67

2 - A MINHA CICATRIZ, RESULTANTE DO CORTE DO CORDÃO UMBILICAL 

Pois é... já lavei a cicatriz... guardei o cotão, (tem muito para contar e dará muito pano para mangas) mas vou continuar a falar de mim, da Guiné e até ao dia que me cortem o pio.
Continuarei a descrever uma vivida realidade... não falarei sobre as cicatrizes d'outros.
Manter-me-hei atento e venerador ao que escrevem... continuarei a ser o mais honesto possível... não criticarei abertamente seja quem for, mesmo que mais sábios e eruditos, do qu'a mim...

Aqui no blogue, pretende-se deixar algo para memória futura, eu tive a sorte de que publicassem aquelas minhas croniquetas d"OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA", onde e de forma graciosa (pretensiosismo meu) contei o que vivi, sem sangue... sem botas com apenas pés lá dentro... sem corpos dos nossos cortados ao meio pelas balas ou minas inimigas.

Por aí não enveredarei, embora saiba fazê-lo pois que à 4ª classe tirada nas Aulas Regimentais, ajuntei depois mais alguma cultura, com quem era mesmo culto e falo do SENHOR Ferreira de Castro, escritor... dum Senhor Presidente do Brasil, exilado em Portugal e outros que direi um dia, e com quem tive o grato prazer de partilhar apertos de mão e conviver, enquanto "caixa" que fui no Banco onde desempenhei a função, com as mesmas, disciplina e hombridade, aprendidas no Exército.

Em boa verdade, a Guiné esteve sempre presente e continua, como ainda hoje 30/7/2013 ao ir no hospital para uma pequena cirurgia ao sobrolho, após ter caído na rua, sem que alguém me tocasse e apenas porque uma elevação de dois centímetros se opôs à minha passagem. O médico guineense com quem conversei e que vai abrir consultório em Bissau, apesar de tudo e sabendo que eu sou do Sporting, afinfou-me três pontos que permitirão ao meu clube, partir com esse avanço.

Anteriormente, e aquando dum grave problema de comichão na barriga, e deveras parecida com as borbulhagens da mata, e ainda, após dois meses de tratamentos com os melhores e mais dispendiosos, como se chamam?... como se chamam?... ah, já sei... dermatologistas pois então (estive alguns minutos a pensar... e quase a desistir).

Pois como ia a dizer, pedi que me dessem a mesinha da Guiné, que era apenas e só, o 1214 (qu'até dava para se beber na falta do Vat 69), mas foi escusado que ninguém conhecia tal tratamento. Em boa verdade a coisa resultava se besuntada ao mesmo tempo que se tomava, pelos gorgomilos abaixo, uma generosa dose de gin Gordon's misturado com água tónica e cinco pedras de gelo... tudo servido em copo de cristal, feito a partir de qualquer garrafa, que levava óleo quente até ao tamanho pretendido e depois colocada em água fria, partia por aí.

Lá, a segunda parte do tratamento antibiotecário, fiz mas não tendo resultado, falei com um veterinário, que o não era então, aquando fur. mil. no QG do CTIG, expus-lhe a situação, deu-me uma pomada que usava no tratamento de equimoses nos cães e cadelas obviamente, e passou, eia... sus.

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E em 1970 ou 71, fiz amizade, que se manteve por muitos e bons anos, com um Senhor Capitão, acabado de chegar do comando duma CART, operacional. Como não poderia deixar de ser, lá vieram as memórias e alguns relatos, embora a sua relutância pelo narrar coisas que lhe eram dolorosas, mesmo sendo Homem experimentado e esta tinha sido a sua 3.ª comissão.

Criámos um dia semanal para almoçarmos (nesta época os Bancos fechavam para almoço, das 12 às 14 h) e algumas vezes com outros seus camaradas, Oficiais do Quadro e com quem eu aprofundava o mais saber.

Em 1974, quando se deu a revolução, que tantos ódios (esperava-se o contrário e eu próprio, feito tonto, esperei mais amor, mas este foi-se e nunca mais voltou), que tantos ódios, repito, trouxe a este já pobre País, recebia-me ali no QG ali em S. Sebastião da Pedreira. Na porta d'armas identificava-me telefonavam... mandavam-me entrar até que, duas ou três vezes depois:
- Ah... é o "Capitão" Veríssimo... pode entrar... vem para o cafezinho com o Nosso Major.

Bom só vos digo que perante esta tão rápida promoção, até andava ao passo cansativo do bater no solo com os dois pés ao mesmo tempo e se mais tivesse mais bateria. Até a barriga ia mais pra dentro, qu'a cerveja estava dando resultados.

Depois? Pois depois, tornei-me rezingão e não tendo inimigos para combater, criei-os eu mesmo. Só eu tinha razão... só eu sabia e aqui terei necessitado de ajuda.
Foi um curto período mas após um curso de Análise Transacional proporcionado pelo meu patrão, lá dei a volta e consegui abandalhar-me mas com classe, acompanhando o País e o que aqui se passava.

(continua)
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Nota do editor

Primeiro poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11904: O pós-Guiné (Veríssimo Ferreira) (1): A minha cicatriz, resultante do corte do cordão umbilical, está cheio de cotão