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quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9052: Tabanca Grande (306): José Santos, ex-1º Cabo Enf, CCAÇ 3326 (Mampatá e Quinhamel, Jan 71/Jan 73)

Guiné > Região de Tombali > Mampatá (?) > CCAÇ 3326 (1971/73) > Ex-1º Cabo Enf José Santos

Foto: © José Santos (2011). Todos os direitos reservados


1. Mensagem, de 14 do corrente, do novo membro da Tabanca Grande, José Santos, que mora em Algés, Oeiras:

Caro amigo Luís Graça, fui 1.º Cabo Enfermeiro da Companhia de Caçadores 3326, de Janeiro de 1971 a Janeiro de 1973 em Mampatá (Aldeia Formosa) e Quinhamel.

Tenho lido algumas descrições da tabanca, e em uma delas fui encontrar o meu colega Brum, rapaz do meu pelotão e que se encontra no Canadá, e a carta foi escrita pela sua filha.

Caro Luís, tenho dois episódios muito significativos para mim, que me ficarão para sempre na minha memória, e são para serem publicados na tabanca caso entendas ok.

O primeiro aconteceu em Mampatá, certo dia estando de serviço à enfermaria cerca das 3 horas da madrugada, foi solicitada a minha presença numa tabanca a fim de dar assistência a uma africana. Quando cheguei encontrei um panorama tremendo, a mulher deu à luz um casal de gémeos que ainda respiravam, e com o estetoscópio verifiquei seus batimentos cardíacos, mas as crianças acabariam por falecer cerca de uma hora depois. A mulher encontrava-se deitada em cima de uma esteira com todo o aparato inerente a uma gravidez.

A mulher teria 7 meses de gestação, mas abortou derivado a ter levado uma tareia do marido. Cuidei dela aplicando-lhe uma injecção de buscopan para as dores, uns comprimidos,  e ajudei a limpá-la pois ainda continha impurezas.

Dias depois de já se encontrar restabelecida, foi ter comigo à enfermaria levar-me uma galinha de mato pelo reconhecimento da forma como a tratei.

O segundo  episódio passou-se em Quinhamel, também uma rapariga apresentava a canela com um buracão, carne esponjosa, ulceração, com as moscas era horrível, levei cerca de 7 a 8 semanas a tratá-la mas ficaria curada.

A seguir a isto tudo, surgiu na enfermaria com uma galinha de mato e uma dúzia de ovos, pela ajuda prestada.

Estes dois casos deixaram em mim imenso orgulho, tanto pessoal como profissional na área da saúde e não só, aliás fui durante 40 anos técnico de farmácia, e um dos meus patrões era enfermeiro diplomado da Cruz Vermelha como seu filho e nora, e aprendi muito com estas pessoas.

Estando em Mampatá fui sempre eu que acompanhava os doentes ao Hospital de Bissau, o capitão não confiava essa missão ao furriel, e assim viajei muito entre a Aldeia Formosa e Bissau.

Amigo Luís Graça,  já nos conhecemos na livraria em Oeiras, e agora vou-te comunicar o seguinte: etou com ideias de ir exercer voluntariado para o Hospital de Cumura, fui convidado por um padre médico que exerce lá esse serviço, já falei pessoalmente com ele, de momento encontra-se cá em Lisboa a fim de recolher medicamentos e material necessário, porque a falta destes é evidente.

Para mim a nível sentimental e profissional é uma enorme alegria, e caso concretize tal acto será sem duvidas poder pôr ao serviço da saúde todos os meus conhecimentos adquiridos, e ajudar e contribuir para as melhoras desta gente tão desprotegida.

Os meus contactos são (...).
 
 Um abraço

Santos

2. Comentário de L.G.:

Deixa-me, camarada José Santos, dar-te as boas vindas em nome de todos os membros da Tabanca Grande que, com a tua entrada, passam a perfazer um total de 526.  Já nos encontrámos, de facto,  na Livraria-Galeria Municipal Verney, em Oeiras, há uns meses atrás. Esse primeiro encontro deu para nos apresentarmo-nos. Depois disso já temos falado (e continuaremos a falar) ao telefone.

Ficas formalmente apresentado aos amigos e camaradas da Guiné que fazem parte deste blogue. Conheces as nossas regras de convívio [, que consta da coluna do lado esquerdo do blogue,] e comprometes-te a colaborar connosco sempre que achares oportuno e necessário.

Para já ficam aqui as tuas primeiras fotos e histórias. Mais tarde falar-nos-á com mais detalhe da tua CCAÇ 3326, e dos sítios por onde andaste. Julgo que és o primeiro da tua companhia a figurar na nossa Tabanca Grande. Se não erro, só tenho uma ou duas referências à CCAÇ 3326.

Aproveito para acrescentar algo sobre esta subunidade (que, tanto quanto sei, era independente):

(i) Foi mobilizada pelo BII 17 (Angra do Heroísmo);
(ii) Partiu para o TO da Guiné em 21/1/1971 e regressou quse 24 meses depois, a 7/1/1973;
(iii) Esteve em Mampatá e Quinhamel;
(iv) Comandante: Cap Mil Art José Carlos de Paula Carvalho.

Seguiu para a Guiné, no mesmo navio, com a CCAÇ 3325 (Guileje e Nhacra), a CCAÇ 3327 (Brá, Bachile, Bassarel, Tite, Bissau), e ainda a CCAÇ 3328 (Bula, Ponta Augusto Barros e Bula). A CCAÇ 3325 era madeirense (BII 19, Funchal), e as restantes, açorianas (BII 17, Angra do Heroísmo). 

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Agosto de 2011:

Carlos,
A história da CCaç 2679 tem estado em banho-maria. Agora, ao ter deparado com uma caricatura** de um amigo, resolvi enviá-la e juntei o texto alusivo ao caricaturado.

Pode ser que a seguir dê continuidade a outras estórias daquela história.
Para a coisa ser apresentada decentemente, é obrigatório referir que a caricatura, com 40 anos, foi desenhada com esferográfica sobre aerograma, e saiu das mãozinhas do Zé Tito Martins, um gajo capaz de alindar o mais feio dos mortais.

Um abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (43)

Aquele hôme

Conheci o Abreu no fim do verão de 69, na capital da Pérola do Atlântico, onde fui colocado para dar instrução militar aos mancebos locais. O dito já lá estava. Magricela como eu, enfezava-se na farda número três, ou de trabalho, ossudo de cara, apresentava-se, no entanto, simpático e sorridente, bom companheiro e sempre disposto a alinhar. Não o parecendo, levava uma vida difícil e sofrida, pois apresentava-se obrigatoriamente à hora matinal que a tropa impunha, acompanhava tanto quanto podia os exercícios matinais, quando havia crosses até Câmara de Lobos, desenfiava-se por alturas do Lido num qualquer bananal, e numa qualquer tasquinha de beira da estrada aguardava pelo regresso da tropa corredora e, acautelando-se da vista do BM, integrava o pelotão até ao centro da cidade, onde se situava o 19, e não debandava das teóricas da tarde, apesar de deixar para outros mais jeitosos as explanações que os instruendos não percebiam. Com o fim das actividades diárias, o pessoal retirava-se, cada um ia a casa para o necessário banho, mudança de roupa, e logo se juntavam para convívio, nos cafés e esplanadas em redor da Sé.

Dali partia-se em passeata predadora, trocavam-se olhares e piropos com as jovens da cidade, bebia-se um aperitivo para a janta, vigiavam-se os acontecimentos na "pontinha", e a horas marcadas o pessoal encaminhava-se para a tasca ou snack onde se praticava a arte de jantar. O Abreu, naturalmente, integrava a procissão e contribuía com o sotaque e piadas à moda do Porto para a alegria geral. Depois de jantar, para ajudar a digeri-lo, o pessoal ainda passava por algum café, "boite", ou visitava um dos vários antros de animação noturna, que às vezes mais pareciam pesadelos sem movimento nem alegria. Pelas dez, onze, ou meia-noite, conforme corressem as coisas, o pessoal recolhia a casa para o sono reparador. Mas o Abreu, coitado, tinha responsabilidades, adormecia quase em corrida, porque, pelas três ou quatro da manhã, chegava a menina com quem partilhava a cama, e que já vinha suficientemente excitada do local de trabalho, onde os mânfios a apertavam e apalpavam quanto podiam durante os passos de dança, como meio indemnizatório do excessivo preço do espumante achampanhado, ou das cervejas e cocktails que o Porto Rico cobrava.

Ora, todos sabemos, elas não matam, mas moem.

E foi sempre assim, tanto, que quando chegou a hora de embarque para a Guiné, o Abreu sentiu uma espécie de alívio, uma libertação física.

E lá portou-se bem e com galhardia. Mas sonhava com o Funchal, passou a faltar-lhe o calor da companheira no estreito colchão da tropa, dos cigarros finos que ela lhe trazia das diferentes proveniências do grande mundo, das lembranças traduzidas em isqueiros Dupont, de outros mimos e carícias. Por isso, frequentemente, acordava em erecção, qual espadachim pronto a perfurar o inimigo, mas, desta feita, com boas intenções, oferecia aos camaradas que dele se quisessem servir, um original serviço de chamadanhas para Tóquio, parece que uma cidade de uma ilha distante, nos confins orientais, onde existem belas e sofisticadas mulheres, de proporções e movimentos delicados, capazes de enfeitiçarem os machos latinos.

Não consta que alguém tenha praticado a curiosa interpelação que o Abreu propunha, mas todos os dias era inexcedível na generosidade.

Atirador de Infantaria, palmilhou por trilhos e bolanhas, bebeu do próprio suor nas cálidas caminhadas, deixou uma marca da presença lusitana em terra de fulas e bajudas com corpinho inspirador. Mas o clima e a alimentação agrediam, e o nosso herói acabou por sucumbir a uma dolorosa e prolongada prisão-de-ventre, que o prostrou durante duas semanas, com dispensa de alinhar no mato, ou de desenvolver actividades de exigente verticalidade. As dores dilaceravam-no. Gemia que nem uma piegas. Perdeu o elegante porte de militar brioso. Aos camaradas pedia com aflitivo aspecto, que lhe levassem à cama um caldinho, e mamava uma malga de ervas liofilizadas, uma aguadilha que ele dizia assentar-lhe bem. Um dia, não se sabe como, se impulsionado por dor impiedosa, se por teimosia convicta, saiu da cama, desencantou um penico, e sentou-se nele à espera que provocasse efeito.

A cabeça tombava mal sustentada pelo pescoço quase desvitalizado, os olhos murchos exprimiam muito sofrimento dos dias acabrunhados, a boca inclinada deixava escapar uns lamentos quase terminais. Assustava. A fotografia daquela cena foi de imediato transmitida com aflição exagerada por um furriel especialista, a quem perturbava imaginar ter que dormir num quarto onde alguém falecesse, do que resultou uma reacção imediata dos restantes furriéis operacionais, que invadiram o quarto e depressa constataram que a questão metabólica não seria suficiente para levar o Abreu.

Eram jovens os furriéis, havia pouco tempo, ainda se inteiravam das histórias da banda-desenhada e, talvez por isso, algum de entre eles lembrou-se que poderia tratar-se de um problema de mau olhado, ou de perturbação dos espíritos. De inicio não o levaram muito a sério, mas face às insistentes argumentações daquele, e perante o total desconhecimento da causa de tanto sofrimento, lá se desencadeou uma dança com caráter religioso de pedido e desagravo a Manitú, com o pessoal a dançar, ora para um lado, ora para o outro, em redor do Abreu que sofria, e queria cagar-se a rir, mas Manitú não quis saber da solidariedade manifestada, e nem um cagalhãozinho esperançoso lhe deu expectativa de salvação.

O problema acabou por ter solução, mais tarde, já não sei se por causas endógenas, se exógenas.

O certo é que o Abreu deixou de alinhar no mato, passou ao exercício da função não menos digna de vague mestre e, não sei se para não alterar os hábitos da Companhia, o rancho não registou qualquer melhora substantiva, constando, até, que o homem estaria a dar-se bem com a escrita da bianda e dos estilhaços, embora, também corresse a ideia de que ele não mandava nada, nem era responsável pelos mapas contabilísticos. Eu perfilho desta ideia.

O Abreu safou-se, tem levado uma rica vida lá para as bandas do Porto, e nem umas doençazitas que o afligem, são capazes de o demover a comparecer em convívios com os camaradas. Como referiam os madeirenses: "é aquele hôme!".
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8321: (Ex)citações (139): Comentário ao Post 8318 - Notas de Leitura - Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (José Manuel M. Dinis)

(**) Caricatura não publicada por suscitar dúvidas de ser contra à política de conteúdos do Google. O nosso camarada Zé Manel não ficou muito zangado com os editores.
Quem quiser receber particularmente a dita caricatura poderá solicitá-la a mim ou ao camarada José Manuel Matos Dinis.

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7276: História da CCAÇ 2679 (42): A noite em que ninguém queria ir levar o rádio a Tabassi (José Manuel Matos Dinis)

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7256: Cartas, aos netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J.L. Mendes Gomes) (5): A masmorra do BII 19 e a boémia do Funchal











Região Autónoma da Madeira > 2008 > Clichés turísticos da Madeira... Fotos de Luís Graça (Alfragide) e Augusto Pinto Soares (Porto)

 
1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66.


Oficial e cavalheiro (5):  Batalhão de Infantaria Independente nº 19 (continuação)

Era ali que ia iniciar-se, verdadeiramente, a primeira fase preparatória da missão que nos esperaria em África. Pelo menos à maioria anónima dos aspirantes. Sim, porque havia por ali nomes sonantes de filhos-família, como Spínola, Vale Guimarães, Sommer de Andrade e outros mais. Apenas estavam a marcar a presença. Eram o contributo das ocultas famílias poderosas…A sua missão no ultramar não passaria das águas azuis da Madeira ou Açores…

O capitão Câmara de Freitas, estou a vê-lo, um austero militar de carreira, com um bigode retorcido de republicano, bem estendido, entre a boca tapada e um nariz aguçado, em rosto moreno, de olhar fundo, mas doce, já maduro, a recompor-se, na sua terra, da primeira missão de guerra no ultramar. Era o comandante da minha companhia de recrutas madeirenses.

Havia outra companhia, chefiada por um capitão madeirense, este, miliciano. O capitão Pestana. Aqueles vinham preparar-se, ali, para o esforço de guerra que estava a ser pedido ao país. Depois da recruta, receberiam a especialidade e iam juntar-se aos que se encontravam nas frentes da guerra.

O meu pelotão era, mais uma vez, o segundo da companhia. Na primeira semana, ficaram assentes todas as regras de conduta. A maior responsbilidade e uma total confiança na nossa capacidade de chefia. Esta forma de nos considerar vinha ao encontro da maioria de todos nós e isso fazia-nos assumir as nossas responsabilidades de forma inteira.

O plano de instrução da companhia era discutido e acompanhado com o comandante, semana a semana. O dia começava com uma hora de instrução física. Havia que puxar por aqueles corpos em estado bruto, cheios de força descontrolada, oriunda da enxada, nas vertentes alcantiladas, sabiamente aproveitadas para a recolha do sustento da família.

Ordem unida, intensa, com as velhas espingardas Mauser sobradas da última grande guerra de 14/18. Ética militar e cívica e noções de primeiros socorros. Estas eram as que mais se assemelhavam à minha maneira de ser, de tal modo que o matreiro e raiano Gonçalves, avesso às teorias, me pedia para juntar o seu pelotão ao meu.

Durante uma hora extravasava, sem esforço, a minha tendência natural e desenvolvida no seminário, para as prédicas de sabor moralista. Não era por acaso que, de cima da amurada da sala de oficiais, os mais antigos, se entretinham a assistir, como quem não quer a coisa… e eu, também, disfarçadamente, não resistia a picar-lhes as consciências distraídas…

Um mundo novo e surpreendente se abriu, mais cedo do que pensava, para quem pensava que, com o serviço militar obrigatório, iria interromper a sua carreira. Cumpria-se o ditado popular de que Deus escreve direito por linhas tortas

As marchas pelas ruas da cidade, nas deslocações do pelotão para a carreira militar, lá no alto de São Martinho, ou para a indispensável instrução nocturna, na verdejante serra do Monte, eram a gostosa evasão e o complemento necessário para o esforço físico despendido.

Mente sã em corpo são, era agora a realidade da minha vida. No seminário, apenas se cuidava (pensava-se...) da sanidade da mente… muito pouco da do corpo. Os resultados não demoravam a aparecer no desenvolvimento harmonioso e visível dos recrutas sequiosos e dedicados.

Oficial e cavalheiro (6): A boémia do Funchal

Não se sabia que tempo iríamos ficar no Funchal. Com o passar dos dias, às vezes,( tão bem me sentia) dava comigo a sonhar que, com um golpe de sorte, como o que tivéramos em estar ali, até poderíamos nem ir ao ultramar. Para a arraia miúda, eram meros devaneios que, depressa se esfumavam…

A realidade, porém, era que, gratuitamente, ali tínhamos ido parar e estávamos na Madeira. Sabíamos bem que aquele recanto, escondido pelas ondas do mar, apenas, estava ao alcance dos mais endinheirados. Bastava olhar em redor.

A amenidade do clima estava à vista. Saídos de Tomar, coberta pelo gelo de Janeiro, mal chegámos ao Funchal, podíamos deliciar-nos com saborosos banhos de mar, na piscina, no Lido, ali ao pé, ou então nas águas do Porto Moniz, como se estivéssemos a sorver o iodo de São Pedro de Muel ou as cálidas águas do Algarve, em Agosto.

As roupas de inverno voltaram, de novo, para a mala. Só a camisa e uns calções, se quiséssemos. A farda, porém, dava jeito… para vaguear pelas ruelas asseadas do Funchal. Os três aspirantes da companhia do capitão Câmara tornaram-se uma parelha inseparável. O Vale Guimarães e afins, esses, tinham um bruto WolksWagen às ordens e voavam noutras núvens…

Às 5 e meia da tarde, acabava o dia de instrução e clausura na masmorra do BII 19. Um duche rápido na casa da Mariquinhas da Ribeira e,  em dois passos, estávamos, estrategicamente, na esplanada do Apolo, a beber um sumo de maracujá, à espera do remansoso desfile, sempre variado.

Com os tempos, a farda permitia-nos entrar nos gordos paquetes que encostavam bem recheados ao porto. É preciso um grande esforço para reviver tudo aquilo, sem pensar que tudo não passa de um sonho de maravilha…

Mas assim aconteceu. Cada recanto, por mais recôndito, escondia uma surpresa florida. Os ronceiros mas frequentes horários (assim se chamava aos autocarros da cidade) com a bonita modalidade de preços, nunca pensada no continente, a descida custava metade da subida (da metade quando se descia), tornou-nos acessível palmilhar todos os arredores.

Do coração do Funchal à Senhora do Monte, ao Pico dos Barcelos, lá em cima, quase sempre envoltos em núvens leves ou à praia buliçosa da Câmara de Lobos…

Para ir ao campo distante, não demorou muito e tínhamos feito amizade com rapaziada autóctone. Uma carrinha Morris-mini, então na berra, do Fernando do Campanário, foi a nave dos nossos passeios: As alturas do Cabo Girão, os alvores do Paúl da Serra, os furados (túneis) escuros de São Vicente para o Porto Moniz, o Curral das Freiras, a frescura da Serra d`Água, Santana florida, e sei lá, tudo foi batido em exploração estonteante. Acompanhada de saborosas espetadas regadas a vinho, do puro, da Madeira…

Saciada a curiosidade de conhecer aqueles 800 km2 de terra, feita, verdadeiro jardim e bosque paradisíaco, erguido no meio do mar azul e omnipresente, como o sol, dedicámos a maior parte do nossos tempo aos regalos da cidade. Sem dar conta, estávamos assimilados pelas gentes afáveis e saudavelmente resignadas com a sua sorte. O continente éra-lhes um mito de que muito gostavam de ouvir falar. O barbeiro, madurão e todo careca, ali ao pé da Gonçalves Zarco contava-me deleitado as excursões ao Bom Jesus do Monte em Braga, ao majestoso Gerês e ao Buçaco, a Fátima, ganhas, naqueles 6 m2, à custa da tesoura e da navalha …

A maioria, porém, contentava-se em sonhar com uma certa inveja de nós… A pressão do cerco do mar era uma realidade geral. O tripeiro Gomes e o raiano Gonçalves eram já uns vividos boémios, aquele das ruelas da ribeira do Porto, este do Bairro Alto e da Madragoa, em Lisboa… Tinham sido interrompidos nos seus empregos pelo serviço militar. O Gomes estudava matemáticas na universidade do Porto, nas horas vagas do trabalho adequado; o Gonçalves era funcionário efectivo na Previdência. Estava cansado de estudar.

Eu estava a dar os primeiros passos, de liberdade condicional. Não, não estive no presídio penal. Acabava, sim, de me evadir do cárcere, nas masmorras do seminário de Vilar e da Sé, no Porto, diabolicamente, farisaicos… Uma vontade telúrica de enterrar aquele pesadelo e tapá-lo, bem fundo, com um curso superior, se possível, em Direito. Não sei porquê. Ânsia de libertação, talvez…Para isso, sentia uma necessidade natural de conhecer as intrincadas regras da sociedade política e administrativa. Por esse motivo, fui sempre capaz de dizer não aos repetidos aliciamentos que aquela leal parelha me disparava, volta e meia.

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Nota de L.G.:


(*) 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7239: Memória dos lugares (110): BII 19, Funchal (José Vermelho, ex-Fur Mil, CCAÇ 3520, Cacine; CCAÇ 6, Bedanda; CIM, Bolama, 1972/74)








Região Autónoma da Madeira > Funchal > Alguns dos belos painéis de azulejos que existem espalhados pela cidade. Estas são imagens de 2005...Em contrapartida, não tenho nenhuma do BII 19, unidade mobilizadora de muitas companhias (ditas madeirenses) que estiveram no TO da Guiné. Faltam-nos memórias do BII 19 (e do Funchal)... Convidam-se os nossos camaradas que por lá passaram a colmatar estas lacunas... Felizmente temos agora o J.L. Mendes Gomes a evocar os tempos, já longínquos (1963), em que por lá passou... Mas também o José Vermelho (1971).

Fotos: © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. 



1. Comentário (*) do nosso camarada José Vermelho (que aqui reproduzo, enquanto aguardo a concretização do meu convite pessoal para ele integrar a nossa Tabanca Grande; na foto à esquerda, ele está de T-shirt às riscas, com o seu e nosso camarada Vasco Santos, em convívio recente do pessoal da CCAÇ 6, Bedanda)

Caro Mendes Gomes: Que delícia de relato. Mais uma vez reavivas as memórias que guardo das 2 vezes que aportei à Madeira a bordo do paquete Funchal. 

Há, no entanto, uma diferença bem grande no que diz respeito ao BII 19. Estive lá de Julho a Dezembro de 1971 e, felizmente, não o conheci com as instalações que descreves mas sim já com novas instalações, perfeitamente adequadas ao fim militar a que se destinavam. Ficava a meia encosta e estava rodeado por campos e bananais.

Voltei lá no ano passado, 38 anos volvidos, para o Almoço anual da minha companhia e que decorreu no quartel. Tivemos honras de 2º Comandante, toques militares, e uma 2ª Sargenta (?), mestre de cerimónias e de refeitório (mas que senhora militar...No nosso tempo não havia Sargentos daqueles). Que emoções!

Afinal desviei-me do tema. Era só para dizer que os campos e os bananais à volta do BII19... desapareceram!!! Agora é só casas e mais casas a toda a volta.

Ah! e desculpa lá, mas o espada preto e o atum gaiado dispensava-os bem, na altura.

Espero novos textos teus. Um abraço para ti, extensivo a todos os camaradas

José Vermelho

Ex-Fur Milº
CCaç 3520 - Cacine
CCaç 6 - Bedanda
CIM - Bolama

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de  8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

Guiné 63/74 - P7238: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (4): O Funchal era uma festa...

1. Continuação da série Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (*). Autor: Joaquim Luís Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, repartindo actualmente o seu tempo entre Lisboa, Aveiro e Berlim e, por fim, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de Tombali (Como, Cachil e Catió) nos anos de 1964/66 (**).


Oficial e cavalheiro (4): O Porto Santo ao longe

Pouco depois de amanhecer, já corria que mais um pouco e a ilha do Porto Santo se iria ver. A manhã estava transparente em todos os sentidos.

O bombordo era o lado preferido de todos os madrugadores. Com os olhos postos ao longe, já se sentia necessidade de ver terra firme para quebrar o primeiro e natural acesso de monotonia. Um vulto mais escuro começou a divisar-se, longe, para a frente do barco, a estibordo, a sair, lentamente, da superfície imensa do mar.

Mais um pouco e um grande lagarto se estendia matreiro e preguiçoso, de areias refulgentes sob o dorso, mais o filhote soerguido, ali, ao pé. Lentamente, foram ficando para trás, sem se esconderem de novo, curiosos. Cada vez mais pequenos.


Agora, era um grupo de vultos ponteagudos que iam avançando para o ar e crescendo em tamanho para os lados mais baixos, esverdeados, a descer em grandes rugas pedregosas, até à tona das águas, rendilhadas de brancura. Com a ajuda de binóculos, tão na moda, pudemos antecipar a visão do que pouco depois se alcançava a olho nú. Encostas serranas, bravias e muito alcantiladas, vestidas de verde, a rigor, pareciam tapar qualquer hipótese de ser animado. Um ermo, como era quando a frota do Gonçalves Zarco [c. 1390-1471] lá chegou, séculos atrás [vd. foto da estátua, no Funchal; estátua da autoria de .

Os primeiros barcos a motor, quais formigas brancas, atrevidas, surgiram no horizonte das águas, a dar-nos as boas-vindas e ficaram a rodopiar à volta, sem esforço e destemidos, até ao termo. Um pouco mais adiante ia abrir-se o deslumbramento inesquecível. Uma mancha salpicada de casas brancas e telhados vermelhos, disseminadas, sem regra, pelas encostas ao sabor da mais pequena reentrância natural da encosta, estendia-se cada vez mais densa, desafiando o alcantilado das serras; aqui e ali era o cocuruto de uma igreja que parecia desafiar as alturas da encosta, vigilante das bem contadas ovelhas do seu redil; veredas estreitas serpenteavam por entre aquele casario, orladas de mil flores refulgentes de cor; uma maviosa sinfonia de beleza perfumava e fascinava o nosso olhar boquiaberto.

Apetecia saltar sobre as ondas mansas e correr para aquele pedaço de terra escondido atrás do mar imenso e sem fim. Não demorou muito e o barco, já habituado, entrava docemente num recanto pacato, que fazia de salão de visitas, duma cidade viva e gaiata, a estender-nos os braços acolhedores. Insensivelmente, dei comigo a apertar-me as carnes, procurando provar que tudo aquilo não era um sonho divinal.

O ar, fresco e rico entrava por nós dentro, inebriando-nos dos perfumes da terra, nunca antes saboreados. O imenso quadro polícromo que se desdobrava diante de nós não podia ser mais harmonioso. O fortim secular, altivo e muito bem colocado a meio da encosta foi o primeiro a arrrebatar os meus olhos. Fez-me imaginar as repetidas escaramuças com os visitantes predadores daquele éden, vindos das brumas das águas. A torre da Sé [v. foto acima] erguia-se afável do seio do casario por ela abençoado. As ruas cercadas de frondosas ramagens sulcavam toda aquela metrópole, misto de sabor ocidental e africano, buliçosa nas gentes e nos carros automóveis e, ainda, puxados a bois…

Uma vontade enorme de sair nos invadia e arrebatava. Tivemos de esperar desensofridos as formalidades da ordem. De novo, um carro militar nos aguardava atento e nos trouxe, depressa, para o B.I.I.19 [, Batalhão Independente de Infantaria nº 19], bem dentro da cidade. Depois foi o primeiro contacto com as pessoas já habituadas à surpresa dos recém-chegados. Em cada momento que passava, inflamava-se e acescentava o nosso contentamento, geral e irresistível.


Oficial e cavalheiro (5): O Quartel do B.I.I.19

O carro militar que nos transportava, saíu da rua que contorna o porto e entrou no seio da cidade. A abundância de árvores e jardins, com sabor verdadeiramente tropical e a predominância abundante, de turistas nórdicos, refastelados pelos bancos públicos e nas amenas esplanadas, os grandes e festivos paquetes cor de rosa, de tamanho duplo do nosso Funchal, tornados verdadeiros hóteis flutuantes a bordo, encostados ao cais, foram as primeiras notas de que tínhamos chegado a uma terra, diferente, cheia de encanto, quase irreal.

Subimos por uma rua estreita, à esquerda e parou-se ao meio de muro elevado, bem rentinho àquela. Um militar avançou da guarita e começou a mover a espingarda, que segurava diante de si, em jestos de braços e pernas, decididos e respeitosos. Uns 3 ou 4 vieram, de dentro, postar-se a seu lado, perfilados, também com a arma no ombro, altivos. O carro entrou pelo portão, para uma parada de aspecto sombrio e pardacento.

A primeira sensação foi de pobreza e acabrunhamento, perante as diversas entradas que davam para aquela parada, tosca, de terreiro de pedras negras e irregular. A porta larga que dava para uma cozinha térrea, com cobertura a verem-se os caibros do telhado, enegrecido e gordurento pelo fumo que saía das bocas do fogão gigante e das panelas enormes, os tanques rudes de cimento, junto à parede, para lavagem de todas as loiças e talheres de alumíneo do batalhão, os cozinheiros e seus ajudantes, destacados, por missão ad hoc, com os barretes brancos sujos, nas cabeças e tamancos de madeira engordurada.
Um quadro sombrio que, na metrópole, nos faria remontar à idade média… A adaptação pareceu-me impossível, mas estava muito enganado. Outra porta dava para a oficina dos carros da tropa, em modelos antiquados, com muitos milhares de km a mais que os previstos na origem. Ferramentas ultrapassadas, com muito recurso a cordas e muito madeirame encardidos pelo óleo queimado. Outro quadro de oficina muito recuada nos tempos, já muito ultrapassados no continente.

E o lugar para instrução? Aquela parada seria necessariamente pequena para um batalhão. Outra surpresa. Entrava-se por um túnel interior, coberto pelas instalações dos serviços administrativos, militares, salas de oficiais e sargentos, alguns gabinetes; descia-se para um primeiro terreiro interior, ao jeito do claustro conventual, que fora, outrora, cercado de uma beirada de telhado protector nas alturas de chuva, rara; desse terreiro, passava-se, sucessivamente, para mais dois, com a mesma configuração.

Era neles que toda a instrução militar dos vários pelotões se tinha de desenrolar, com muita improvisação. Alguns soldados de aspecto um tanto desalinhado cirandavam por ali. Olharam-nos com um ar nublado de inesperada timidez. 

Fomos levados para a sala de oficiais, depois de percorrermos um corredor e subirmos umas escadas em madeira já muito gasta e empenada. Um pequeno bar, despretensioso, mas com uma óptima esplanada com vista sobre a encosta verde da cidade, servido por um magala mais aprumado. Umas mesas e cadeiras espalhadas. Revistas e jornais com atraso de alguns dias, ao dispor. O transporte do continente ainda era feito apenas pelas carreiras marítimas regulares.

O aeroporto era, ainda, um sonho ou um projecto em concurso. Lembro que as terras de Santa Catarina ou do Paúl da Serra eram as duas hipóteses em confronto. Os camaradas mais antigos começaram a chegar e a meter conversa connosco. A maioria era madeirense e formada por ex-seminaristas do Funchal. Eram uns senhores, para o círculo apertado da cidade. Tinham gozado das bênçãos da venerada herarquia clerical; disfrutavam, agora, das não menores que a farda militar, ali, lhes oferecia. 

Nós beneficiámos, logo, daquela honra acumulada. A nossa chegada até teve honras de notícia, com os nomes e categorias, nos jornais do dia seguinte. Fomos chamados ao gabinete do Comandante do Batalhão, um coronel, já de idade madura, ali, habilmente, acoutado pelas hostes continentais, para cumprimentos de boas-vindas.

Foi agradável e cerimoniosa a recepção. O alojamento tinha de ser custeado por nós, num dos quartos que as gentes do Funchal estavam habituadas a dispensar aos oficiais de passagem. O custo era reduzido, mas a nossa mesada era um suplemento que lhes sabia bem. Eu, o Gomes e o Gonçalves fomos parar a casa de uma solteirona, solitária, com mais de 50 anos, de olhar matreiro… Só dormir e roupa lavada. Andava por lá um cinquentão, vigilante…

As portas estavam à nossa conta. O almoço era por conta da tropa. O jantar era pago, com preços firmados, na hora, pelo antigo cozinheiro, de voz rouca, de um navio mercante. O que pagávamos constituía o bom engodo ara o manter ao seviço na cozinha. Ainda hoje me lembro dos saborosos filetes de espada preto e de bifes de atum, como nunca mais provei.

Os primeiros dias foram para conhecer os bares, cafés, ruas e costumes da cidade, em uniforme militar, como convinha. O café Apolo, com uma boa esplanada, ali juntinho à velha Sé, não podia ser mais acolhedor e melhor situado. Visita diária obrigatória para a nata do Funchal. O Sunny-Bar, na formosa Avenida do Mar [, e que ainda hoje existe]. A rua de Fernão Ornelas, a mais recheada de montras e de comércio, exótico, fervilhante.

O mercado dos lavradores [, foto à esquerda, pormenor de azulejo], mercado municipal, pegado àquela artéria central, onde vinham desaguar as suculentas hortas do campo, em fruta tropical, flores e tudo o mais. O terreiro, ladeado de uma protecção simples, em tubos de ferro forjado, saído da avenida do mar avançava uma centena de metros pelas águas do porto dentro. Era o festivo ponto de encontro de toda a gente, especialmente, no final da tarde e noite dentro. Ponto de mira para as longínquas desertas, erguidas sobre as águas azuis do oceano e, sobretudo, para a vista total da cidade que se estendia mansamente, pelas encostas íngremes da serra, exposta num abraço largo, de beleza surpreendente.

Para as pessoas do Funchal, um passeio descontraído por estes recantos, à mistura com os turistas sempre renovados, sobretudo, pelos regulares paquetes nórdicos, era uma necessidade diária e embriagante.O liceu, as escolas particulares e uma superior de música refrescavam, de juventude, de costumes ainda bem controlados, toda a vida da cidade.

Os carros turísticos de bois, engalanados como os seus boieiros e ajudantas, com as cores garridas das vestes típicas, iam semeando de aromas odorosos, bem tolerados, as lajes escuras das artérias principais. Os jardins recheados de árvores tropicais e abundantes flores exóticas.

O de Santa Catarina, de vegetação luxuriante e labiríntica, lá ao cimo da avenida do Infante, sobranceiro ao porto e à cidade, a dar saída para a Câmara de Lobos, o centro piscatório mais próximo; o da Senhora da Esperança, de vegetação densa e cheio de chafarizes a irradiar frescura, mesmo no coração do Funchal.

As duas ribeiras íngremes a escorrer da serra, cobertas por um manto de verdura e flores constantes, cortando as ruas da cidade, até ao mar. As bordadeiras coloridas, a laborar em bancos pequenos, em plena rua, à vista curiosa de quem passava.

As esquinas da Sé e da fortaleza central eram embelezadas pelas vendedoras de formosas orquídeas, tecidas pela mão da natureza, em veludo natural, desenhadas em linhas de traço impecável. O Funchal era uma festa rija e permanente. O trato das gentes era doce e afável, mas envolvido numa subtil resignação, oculta e insular. Tal como a musicalidade da sua voz e o falar entoado e castiço. Difícil de entender, nos primeiros tempos.

 

[Continua]

[ Revisão / fixação de texto / selecção de fotos / título:  C.V.]

____________


Notas de C.V.:

(*) Vd. último poste da série > 15 de Outubro de 2010


Guiné 63/74 - P7131: Cartas, para os netos, de um futuro Palmeirim de Catió (J. L. Mendes Gomes) (3): Oficial e cavalheiro: Cruzeiro até à Madeira, no paquete Funchal






(**) Vd. postes da série Crónica de um Palmeirim de Catió:

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

29 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1634: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (10): A morte do Alferes Mário Sasso no Cantanhez

5 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1646: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (11): Não foi a mesma Pátria que nos acolheu

terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6000: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (1): Por onde andaram e com quem estiveram?

Os Marados de Gadamael
e os dias da
Batalha de Guidaje

Parte I


Daniel de Matos*

Unir as Pontas da Memória


(À laia de introdução)

É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio! Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.

O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.

Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros, depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em… Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?

Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco. Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse históricos).

A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é duvidosa e difícil de explicar a presença d’Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!...

O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web.

Porém, que fique claro que esta nem é a História d’Os Marados, longe disso, muito menos a dos acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo, este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.

Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica, respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta crise…

Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de haver um narrador. Por isso, aqui vai…


Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?

“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão Independente de Infantaria nº 19/BII 19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, a 15 de Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”).

Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de Novembro de 1971.

Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual, em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.

Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç 3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15 horas.

Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas, presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou não fosse também ele um madeirense e, ainda por cima, um líder –perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto.



Foto 6> Cumeré - 26 de Dezembro de 1971 > O General António de Spínola passando revista ao 2º pelotão da CCaç 3518, no Cumeré.

Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24 de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç 2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje).



Foto 12 > O autor, junto às águas do Rio Sapo (afluente do Cacine, que banhava Gadamael Porto).

Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de Reconhecimento Fox nº 2260,  “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso, José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar aí transporte de regresso à metrópole.

O Pel Rec Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).

Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção, Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, – morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina) a 12 de Maio de 1973. Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de Maio de 1973.

Foto 9 > Dois dos melhores soldados milícias que nos acompanharam em Gadamael. O da direita, Camisa Conté, viria a falecer em 1973 quando das batralhas de Guileje e Gadamael.

Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima da Costa e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos, praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português! Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não respeitávamos, como o fazer os africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para poderem tirar a carta de condução.

Foto 8 > Imagem exterior do PEM (Posto Escolar Militar) n.º 23, Gadamael, que ficava ao lado da pista de aviação nova, junto à tabanca.






No Posto Escolar Militar nº 23 (PEM-23, Gadamael) frequentaram as aulas da instrução primária algumas dezenas de jovens alunos (também alguns adultos da população).Não era fácil dar aulas a muitos que não falavam português (nem em crioulo se exprimiam), mas registaram-se muitos casos de bom aproveitamento, concluindo a 4ª classe.

Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé, Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa, Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca.

A zona fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações.

Todo o abastecimento por via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca, através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav 8530, na parte final da nossa estada no sul).

Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas dezenas em toda a zona operacional).

Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como proveniente de um desses engenhos.

Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão, ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas (galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS.

Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele, saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.

Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues, Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias.

É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou.

Algumas das unidades (ou partes delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38, Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria 3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na reserva).

A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav 3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549, BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual, Bajocunda, Sincha Bakar, Enxalé, Ponta Luís…

Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações “Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e 27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil’s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará.

Nestes dias de emboscadas, golpes-de-mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia.

No percurso Mansambo/Jombocari/Mina, vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.

Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes, criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura” no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”…

Também dizem os especialistas que a polícia política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito fraquinhos.

Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa, Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas), outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM).

Em suma, “autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e responsabilizar o PAIGC.

Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos “terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times…

Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras, milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário.

Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e “Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses).

Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974 fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. A CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente alcançado a Rocha do Conde d’Óbidos (Lisboa) a 3 de Abril de 1974.
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Notas de CV:

(*) Daniel Matos foi Fur Mil da CCaç 3518 (1972/74) que esteve em Gadamael

Vd. poste de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5981: Tabanca Grande (208): Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)