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domingo, 31 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13552: Directivas emanadas pelo COM-CHEFE, Brigadeiro António de Spínola em 1968 (2) (José Martins)

1. Segunda parte da publicação de mais um trabalho de pesquisa do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), desta feita dedicado às Directivas de 1968 do COM-CHEFE do CTIG, Brigadeiro António de Spínola.


Directivas do CTIG emanadas pelo COM-CHEFE, Brigadeiro António de Spínola, no ano de 1968


Directiva 20/68 
Estudo da remodelação do dispositivo da Guiné 

I. Generalidades
Dispositivo é a articulação dos meios para o cumprimento de uma missão, segundo uma ideia de manobra. E, como a ideia de manobra evolui, no espaço e no tempo, com as reacções do IN, o dispositivo tem necessariamente de ser flexível por forma a acompanhar a evolução da conduta da manobra ou alteração da própria ideia de manobra. O dispositivo deve obedecer aos seguintes requisitos: materializar a ideia de manobra; respeitar os princípios básicos da doutrina.

II. Esboço da manobra

1. Ideia geral
É minha intenção: cortar os eixos dos reabastecimentos do IN; subtrair-lhe a população e as áreas economicamente mais ricas; e tornar-lhe a vida insustentável no território nacional, até que perca a vontade de combater. Para tanto, impõe-se dividir o Teatro de Operações (TO) em áreas bem definidas, nomeadamente: áreas com população sob o nosso controlo (área azul); áreas com população sob duplo controlo (área amarela) que em função da reacção futura da população se transformarão em áreas azuis ou em áreas vermelhas: áreas para aniquilar o binário «população-IN» (área vermelha).

2. Esquema da manobra
Exercer o esforço de contra-penetração nas zonas fronteiriças, sobre os corredores de Sambuá, Sitató, Canja, Guilege. Exercer o esforço de defesa das populações no «chão» dos fulas, dos manjacos e dos felupes (reordenamento, auto-defesa, socorro por intervenção das NT, etc.). Exercer o esforço de acção psicológica sobre os manjacos, balantas, e mandingas do «chão» fula, com prioridade para os primeiros. Exercer o esforço de aniquilamento, inicialmente, na área de Bianga-Mata-Pecau-Casciana-Churo-Jol-Có, adensando desde já o dispositivo nesta região, a fim de aliviar a pressão do IN sobre a região dos manjacos; e, ulteriormente, na área a leste da primeira, entre os rios Cacheu e Mansoa, englobando a região do Oio. Economizar meios nas regiões a sul dos rios Geba e Corubal, com excepção da região de Quinara, tomando naquelas regiões uma atitude defensiva. Exercer uma acção dinâmica e permanente de contraguerrilha nas restantes regiões a atribuir às forças terrestres. Reservar as áreas que ultrapassem as possibilidades dos meios terrestres, para acções de intervenção ao nível do Comando-Chefe. Reorganizar os comandos das forças terrestres, mantendo um comando de agrupamento (tipo normal) no Sector Leste, com sede temporária em Nova Lamego; criando um comando de agrupamento para o Sector de Bissau; ficando os sectores Oeste e Sul na dependência directa do CTIG.

3. Confirmação e completamente de determinações anteriores 
Independentemente dos reajustamentos a efectuar com base no esboço da manobra expresso na alínea anterior, confirmam-se e completam-se as determinações anteriores, escritas ou verbais, relacionadas com a remodelação do dispositivo, nomeadamente: Transferir o estacionamento de Madina do Boé para a região de Cheche Norte a norte do rio Corubal, garantindo a passagem do rio. Remodelar o dispositivo na região de Aldeia Formosa, dentro do princípio da economia de meios. Desocupar as áreas de Sangonhá e Cacoca, transferindo a companhia ali estacionada para o Sector Leste. Remodelar o dispositivo na região de Empada, abandonando os estacionamentos do Gubia e Ualada. Desocupar a ilha do Como, transferindo a companhia ali estacionada para o Sector Leste. Reajustar o dispositivo na área de Cabedú, hipotecando àquele estacionamento o mínimo de forças necessárias para a sua defesa, recuperando uma companhia. Reduzir a zona de acção da companhia estacionada em Jolmete e recolher à sede daquela companhia o pelotão destacado em Pelundo, passando esta localidade a depender de Teixeira Pinto. Reajustar o dispositivo da companhia de Xime, dentro do princípio da concentração de meios, reagrupando as forças estacionadas em Ponta do Inglês e Samba Silate. Rever a localização da companhia com sede em Mansambo, e ocupar Galomaro com efectivo de valor que permita exercer uma acção dinâmica. Remodelar o dispositivo da companhia com sede em Geba, dentro do princípio da concentração de meios. Reajustar os limites entre as companhias de Xime (destacamento de Finete) e de Porto Gole (destacamento de Enxalé). Reajustar o dispositivo da companhia com sede em Quelifá, recolhendo aquela companhia e pelotão destacado em Ponate, e rectificar o limite das zonas de acção das companhias de Canquelifá e Piche. Reajustar o dispositivo do batalhão de Nova Lamego, em ordem a possibilitar uma acção dinâmica permanente na área de Chanha. Transferir, em fase ulterior, os estacionamentos das NT de Gandembel e Guilege, para Salancaur e Nhacobá, devendo proceder-se, desde já, ao estudo da localização e das vias de comunicação.

III. Missão genérica das forças em sector
As forças em sector podem competir, no todo ou em parte, entre outras, as seguintes missões genéricas: Exercer o controlo da população, estabelecendo contactos, permanentes e activos, por forma a realizar uma acção psicológica dinâmica e eficiente. Efectuar acções permanentes de contraguerrilha em toda a zona de acção que lhe for atribuída, contra o IN referenciado e suas instalações, por forma a aniquilá-lo ou a tornar-lhe a vida impossível. Opor-se em permanência, à infiltração do IN através das zonas de fronteira, vigiando continuamente as prováveis linhas de trânsito clandestino. Efectuar acções de reconhecimento em toda a zona e acção atribuída. Apoiar as autoridades administrativas e os serviços oficiais da Província, em todas as acções que visem a contra-subversão. Assegurar a autodefesa das povoações (tabancas), socorrendo-as quando atacadas. Exercer uma campanha psicológica sobre o IN. Assegurar a posse e garantir a segurança de áreas de interesse económico. Defender pontos sensíveis. Proteger as vias de comunicação, assegurando a liberdade de movimentos. Pesquisar notícias sobre o IN e dados sobre o terreno e populações.

IV. Princípio doutrinários a respeitar
O TO da Guiné deve, tanto quanto possível, ser compartimentado em função da fase de subversão em que se encontram as diversas regiões da Província, sem todavia deixar de se atender a condicionamentos de natureza física, económica e militar. Assim, os diversos compartimentos apresentarão necessariamente características diferenciadas. A cada um deles - sectores e zonas de acção de companhia - deve ser atribuída uma força de valor ajustado à missão específica que lhe for atribuída, e por cujo integral cumprimento é responsável o respectivo comandante. Reconhece-se que o estudo do problema não é fácil, porquanto no seu equacionamento interferem diversos factores de valor variável, os quais por sua vez reagem entre si também com valores variáveis e, por vezes, em sentidos contrários. Enumeram-se alguns aspectos que condicionam a implantação de um dispositivo de contra-subversão:

1. Na guerra subversiva o objectivo principal dos dois partidos em presença é a conquista das populações, o terreno vale pela população que nela está implantada. Assim, a ocupação das áreas sem população não tem significado prático imediato. À luz desses princípios doutrinários, essas áreas deveriam ser abandonadas em benefício das áreas ocupadas pelas populações, ficando as primeiras entregues à Força Aérea, não se excluindo todavia a hipótese de nelas se realizarem acções de tipo «golpe de mão» sempre que surjam oportunidades remuneradoras. Dentro desta orientação, deve apenas hipotecar-se estas zonas o mínimo possível de meios, a que devem ser atribuídas missões estáticas (missão de soberania).

2. Ao compartimentar o TO deve ter-se em consideração o grau de evolução da subversão nas diversas regiões da Província, que, em última análise, se objectiva do de reacção do binário população-IN. Neste aspecto, as áreas do TO podem apresentar-se com as seguintes características:
a) Com população controlada pelas Nossas Forças (NF): sem reacções favoráveis (fulas, felupes e bijagós); com reacções sob reserva (manjacos); com reacções suspeitas (ilhas de Bissau e de Bolama).
b) Com população sob duplo controlo: com o IN presente na área; com o IN itinerante.
c) Com população controlada pelo IN; sujeita a coacção (recuperável); totalmente identificada com o IN (irrecuperável).
d) Sem população: e sem actividade do IN; e com actividade do IN.

3. As missões visam a consecução duma finalidade a atingir e esta varia de zona para zona consoante as reacções do binário população-IN.

4. Diferenciar bem as missões de natureza estática das missões de natureza dinâmica. Às primeiras deve corresponder forças de fraco efectivo, cujo potencial defensivo é aumentado com a organização do terreno (é uma troca de homens por «cimento» e armamento adequado à defesa). Às segundas devem corresponder forças de valor mínimo de companhia, a fim de possibilitar a permanência de acção dinâmica na respectiva área.

5. Ter sempre presente que concentrar meios aumenta possibilidade da acção dinâmica e que a dispersão é um hipotecar de forças ao estatismo. A existência de forças de pequeno efectivo só se justifica se lhe for atribuída uma missão estática de defesa de pontos sensíveis, ou de pequenos núcleos populacionais com o fim de os moralizar ou reforçar a sua autodefesa.

6. Adensar o dispositivo nas zonas de esforço, com forças em missão dinâmica, em detrimento das zonas consideradas de interesse secundário. Estas últimas devem ser guarnecidas com forças em missão estática.

7. O valor da força (efectivo/meios de fogo) deve ser fixado em função dos seguintes factores principais: características da missão (dinâmica ou estática); tipo de reacção do IN na área (reacção em força ou reacção fugindo ao combate); extensão da área de responsabilidade e natureza do terreno; valor da população e seu comportamento.

8. As ZA das unidades devem ser fixadas em função da possibilidade do comando responsável cumprir integralmente a sua missão. Admite-se que determinadas áreas não sejam atribuídas às forças sem sector, ficando reservadas para zonas de intervenção do comando-chefe.

9. Respeitar, em princípio, a divisão administrativa nas áreas onde há população e autoridade administrativa; e evitar a divisão de etnias, e em especial de regulados.

10. Respeitar os laços orgânicos das unidades, não sendo de admitir a divisão dos grupos de combate, a não ser em casos excepcionais (reforço temporário da auto-defesa de tabancas). 

11. As áreas de actividade normal, ou previsível, do IN devem ficar a cargo das forças que tenham maior facilidade de acesso, em tempo, a essas áreas. É de admitir que alguns limites sejam alterados no período das chuvas.

12. Os estacionamentos das NT nunca devem estar localizados nas proximidades de um limite de ZA, a fim de se tirar completo rendimento das possibilidades operacionais das NT em todas as direcções.

13. Evitar a localização de estacionamentos das NT nas proximidades da fronteira, dado que as coloca em manifesta desigualdade de reacção em relação ao IN. Entre o local de estacionamento das NT e a fronteira deve existir o espaço da manobra necessária à sua reacção, e à intervenção da Força Aérea - em tempo oportuno - sobre os possíveis itinerários de retirada do IN.

14. Dada a exiguidade de meios, todas as subunidades do CTIG devem ter uma ZA a seu cargo, isto é, devem entrar em sector. Estas subunidades, embora em sector, são «pedras de manobra» dos comandos de batalhão para a realização de operações na sua zona de acção. Não se exclui, todavia, a hipótese de poderem ser atribuídas forças de intervenção aos comandos do sector para execução de operações nas suas áreas, em cumprimento de missões normais ou das que especificamente lhes forem determinadas. Na presente fase de disponibilidade de meios, o conceito puro de forças de intervenção só tem aplicação ao nível Comando-Chefe, que centralizará todos os meios de intervenção da Guiné, nomeadamente: potencial de fogo da FA (ZILIFA e ATIP); batalhão pára-quedista; fuzileiros especiais; comandos; batalhões e companhias independentes, a nomear.

15. Respeitar o princípio da massa no emprego da Artilharia, evitando dividir as suas subunidades, e nunca, em qualquer caso, fraccionar os pelotões.

16. As subunidades blindadas de Cavalaria destinam-se fundamentalmente a cumprir missões de: abertura e vigilância de itinerários, reforço temporário de pontos sensíveis ameaçados, escoltas e colunas de reabastecimento ou transporte de forças operacionais. Assim, estas unidades não devem ser hipotecadas a missões que não permitam tirar pleno rendimento das suas características; em qualquer caso, nunca devem ser fraccionadas abaixo do escalão pelotão.

V. Execução da presente directiva
1. Compete ao CTIG estudar a remodelação do dispositivo com base nas seguintes hipóteses.
Hipótese A. Com meios actualmente atribuídos, excluindo o batalhão de Bissau, o batalhão de Brá, e as companhias de comandos que passam a reserva do Comando-Chefe.
Hipótese B. Com os meios da “Hipótese A”, reforçados com os que julgue deverem ser propostos ao SDN. Em ambas as hipóteses, excluem-se as forças de intervenção do comando-chefe.

2. O estudo deve ser completado com a atribuição de missões às unidades e a preparação em tempo de remodelação proposta.

3. O CTIG consultará o CZACVG e o CDMG sobre todos os aspectos que careçam da coordenação, competindo àqueles comandos dar toda a colaboração pedida pelo CTIG na fase de estudo da remodelação do dispositivo.

4. Integrado no presente estudo de remodelação do dispositivo do TO, o CDMG actualizará o estudo do problema fluvial da Província, apresentando uma proposta sobre as condições de utilização de rede fluvial por parte dos nativos, e o a procedimento a adoptar em cada uma das zonas do TO em matéria de fiscalização e disciplina do tráfego de canoas.

5. O CZACVG colaborará com o CTIG, em especial, nas áreas referidas em IV 2 e áreas a reservar para acções de intervenção do Comando-Chefe.

6. Este estudo deverá estar terminado em 11 de Agosto de 1968.

Bissau, 25 de Julho de 1968,
O Comandante-Chefe
António Sebastião Ribeiro de Spínola,
Brigadeiro

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Directiva 30/68 
Espírito de missão

1. A grande maioria das operações realizadas no TO da Guiné não obtém êxito, nem do ponto de vista da acção directa sobre o IN, nem tão-pouco indirectamente através dum eficiente reconhecimento das áreas percorridas pelas NT. Entre os inúmeros motivos que estão na origem do baixo rendimento das operações, o principal é a falta de espírito de missão.

2. Uma tropa empenhada numa operação tem uma missão a cumprir, que em última análise se traduz, ou numa missão específica de combate perante um IN com reacções imprevisíveis ou numa missão de reconhecimento de determinada área que também reage imprevisivelmente em função dos inúmeros «trilhos» que o IN nela implantou. Desta forma, não é possível fixar a priori o prazo de duração de uma operação, dado que este depende, directa ou indirectamente, de factores imprevisíveis.

3. É evidente que a realização de operações «a horário» não permite que uma tropa, internada no mato, explore devidamente todas as possibilidades que lhe surjam no quadro do integral cumprimento da missão que lhe compete desempenhar. Há que substituir a rigidez do «espírito de horário» pela flexibilidade do «espírito de nomadização», que neste tipo de guerra está na base do verdadeiro espírito de missão.

4. Nestas condições determino:
a) As operações no TO da Guiné nunca terão duração inferior a dois dias, devendo as forças transportar no mínimo dois dias de ração de reserva.
b) Para o transporte de equipamento e rações poderão ser utilizados carregadores nativos.
c) Se em face do desenvolvimento da acção se tornar necessário aumentar o prazo de duração da operação, as forças serão reabastecidas por via aérea, no caso de impossibilidade da via terrestre.
d) Em qualquer caso, fica interdito a fixação a priori do prazo de duração das operações, o que evidentemente não implica que no planeamento não se considere, em previsão, determinado prazo.

5. Todas as acções com duração inferior a dois dias não são classificadas como operações, mas apenas acções de patrulhamento ou de reconhecimento.

6. As acções de escolta a colunas não devem também ser classificadas de operações, passando a designar-se por escoltas.

Bissau, 11 de Setembro de 1968,
O Comandante-Chefe,
António Sebastião Ribeiro de Spínola,
Brigadeiro

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Directiva 33/68 
Exercício do comando na conduta de acções de combate 

1. Dos vários relatórios de acção que tenho lido, de relatos verbais feitos por comandantes de subunidades e por praças feridas em combate, concluí que na generalidade as NT cometem erros graves frente ao IN, de que resulta: não se cumprirem integralmente as missões; um gasto exagerado de munições; um aumento desnecessário de baixas; e, em consequência, um muito sensível abaixamento moral das NT que, na generalidade, se encontram complexadas perante um IN melhor armado e manobrador.

2. A primeira condição de êxito de uma operação reside no seu eficiente planeamento que, necessariamente, se baseia: num perfeito conhecimento do IN, em ordem a permitir a formulação de uma hipótese realista sobre a sua localização, potencial e previsível reacção; num perfeito «conceito de operação» ajustado à hipótese formulada sobre o IN e às reais possibilidades das NT; na articulação dos meios (forças terrestres e fogos aéreos) no espaço e no tempo, em conformidade com o «conceito da operação», o que necessariamente impõe a adopção de medidas prévias de coordenação, que, em última análise, estão na base de um bom planeamento. Porém, mesmo admitindo-se que a operação se encontra tecnicamente bem planeada, esta nunca poderá ter êxito se a acção não for devidamente conduzida. Na presente directiva focam-se os erros de conduta mais correntemente cometidos em acções de combate no TO da Guiné.

3. Antes de tudo, um comandante operacional, seja em que escalão for, deve ter um profundo conhecimento das reacções do IN que tem de enfrentar. Qual a sua doutrina e técnica de combate? Está moralizado? Está animado de espírito ofensivo? É agressivo? Que armas tem? Como as emprega? «É manobrador? Ou, reage estaticamente pelo fogo retirando em seguida (táctica do bate e foge)? É flexível, isco é alerta rapidamente o seu dispositivo de combate? etc., etc. Dos últimos contactos havidos com o IN podemos concluir que este vem aperfeiçoando, de dia para dia. a sua técnica de combate, e que se revela presentemente com elevada capacidade manobradora. Estamos em presença de um IN que cultiva da acção, que tira amplo rendimento do factor surpresa da manobra, e que raramente se deixa fixar. Explora habilmente o efeito da surpresa, conjugando a acção fixante do fogo com uma falsa acção de retirada, para seguidamente voltar a emboscar as NT no seu eixo de progressão ou de retira. Ultimamente tem tentado envolver as NT com vista a aniquilá-las. É esta a panorâmica geral das reacções do IN na presente fase de guerra no TO da Guiné.

4. Na marcha de aproximação. A marcha de aproximação reveste-se da maior importância, dado que a maioria dos insucessos das NT resulta de uma posição de inferioridade, que tem a sua origem em erros cometidos durante o deslocamento. Na maioria dos casos as NT entram escusadamente nas zonas de morte do IN. Na marcha de aproximação registam-se, como mais frequentes, as seguintes deficiências: deficiente escolha e estudo do itinerário de marcha; não se executam medidas de decepção; não se tira partido da noite para deslocar as NT com maior segurança; as forças deslocam-se em coluna cerrada (fila indiana) não se articulando em unidades de manobra devidamente distanciadas; não se evitam as zonas descobertas (bolanhas e lalas); não se respeita a técnica de progressão em zonas descobertas (bolanhas e lalas); não se evita o terreno que não permite o deslocamento silencioso; não se evitam os obstáculos, e não se respeita a técnica da sua transposição; as forças deslocam-se pelos vales (bolanhas e Talas) não aproveitando as linhas de crista (matas); não se utilizam as faixas densamente arborizadas junto às linhas de água; não se adaptam as formações de combate ao terreno, de que resulta as NT deslocarem-se em permanente ambiente de insegurança; não se estabelece uma conveniente ligação entre as forças intervenientes na acção; o pessoal não se mantém em alerta permanente, pronto a reagir rapidamente a qualquer acção do IN; as tropas não observam, não escutam, e não reconhecem os trilhos que se encontraram no itinerário de marcha; o pessoal não transporta as armas em condições de pronta utilização; o pessoal fuma, fala, come e bebe durante o movimento, não cumprindo o princípio da economia de esforço, do que resulta esgotar-se prematuramente; rigidez no cumprimento de um horário pré-estabelecido, de que resulta a tropa deslocar-se com uma velocidade exagerada, esgotando-se prematuramente; não se escolhem devidamente os locais para os pequenos ou grandes «altos»; quando se pára não se monta a segurança próxima; não se marcam os sectores de tiro e de vigilância; utiliza-se no regresso o itinerário utilizado na aproximação.

5. No contacto com o IN. A primeira preocupação de um comandante de forças que foram surpreendidas pelo fogo do IN, é a de fazer uma rápida análise da situação, em ordem a decidir a sua manobra; esta visa libertar as forças fixadas por envolvimento do IN, que se pode obter pela conjugação da acção dinâmica das NT com a acção dos fogos de apoio (fogos de aviação, de artilharia e de morteiro). No contacto com o IN registam-se, como mais frequentes, as seguintes deficiências: as NT manobram deixando-se fixar pelo IN; falta de disciplina no fogo, de que resulta um consumo exagerado de munições. Atiram sem ver os alvos, e se os vêem não acertam por falta de calma; não se articulam as forças para a limpeza do objectivo; não se explora o sucesso perseguindo o IN até à exaustão; não se estabelece uma segurança eficiente imediatamente após a conquista dos objectivos, reconhecendo os vários itinerários de acesso e montando emboscadas ou vigias sobre esses itinerários (500/1000 metros); não se reconhecem minuciosamente os objectivos, em especial a área circunvizinha (500 metros em redor); não se exploram eficientemente os prisioneiros, raramente se levando intérpretes preparados para o efeito; não se sabem referenciar as armas do IN (SOM E LUZ).

6. Esta directiva deve ser difundida até ao escalão companhia.

7. O gabinete militar do Comando-Chefe deve providenciar no sentido de se difundir, com a máxima urgência, os apontamentos elaborados pelo Major de Infantaria Soares Fabião sobre conduta de operação na Guiné.

Bissau. 12 de Setembro de 1968,
O Comandante-Chefe,
António Sebastião Ribeiro de Spínola,
Brigadeiro

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(Continua)
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 Nota do editor

Primeiro poste da série de 30 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13550: Directivas emanadas pelo COM-CHEFE, Brigadeiro António de Spínola em 1968 (1) (José Martins)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Guiné 63/74 - P9634: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (8): Os Oficiais do Corpo do Estado Maior (CEM) no TO da Guiné em 1973/74 (Luís Gonçalves Vaz)

1. O nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG - 1973/74), enviou-nos a seguinte mensagem com data de 21 de Março de 2012:

Os Oficiais do Corpo do Estado Maior (CEM) no TO da Guiné em 1973/74

Os oficiais do QG/CTIG e do Comando-Chefe, na Guiné no ano de 1974, eram quase todos do Corpo do Estado Maior (CEM), inclusive, o próprio General Bethencourt Rodrigues (ver a estrela nas boinas do general Bettencourt Rodrigues e no seu CEM do CTIG, coronel Henrique Gonçalves Vaz). Este Corpo de Oficiais eram na altura considerados uma Elite dentro do Exército Português.  


General Bethencourt Rodrigues e o Coronel Henrique Vaz 

O Corpo de Estado-Maior (CEM) foi criado em 1834, pelo Decreto de 18 de Julho, com um quadro de 8 oficiais superiores, 2 coronéis, 16 capitães e 16 tenentes, num total de 40 oficiais. 


O CEM  consistia num corpo, formado apenas por oficiais de elite, que recebiam uma formação especial para exercerem funções nos estados-maiores das grandes unidades do Exército Português


A sua formação passou a ser feita na Escola Central de Oficiais - mais tarde, Instituto de Altos Estudos Militares. Ao receberem a sua formação, os oficiais abandonavam as suas armas de origem e ingressavam no Corpo de Estado-Maior. 


O CEM foi novamente criado em 1938 e mantido até ao 25 de Abril de 1974. Pelo art.º 6º do Decreto 28.401 de 31 de Dezembro de 1937, passou a ter a seguinte constituição: 12 coronéis, 12 tenentes-coronéis, 20 majores e 40 capitães, num total de 84 efectivos. Considerado muito elitista, o corpo foi extinto a seguir ao 25 de Abril de 1974

Hoje em dia só se fala de CEM, em termos históricos e de investigação militar, sendo assim  o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa, apresenta como Tema de um Projecto de Investigação, o seguinte: "O Corpo do Estado Maior do Exército Português: apogeu e queda", explicitando que "o projecto tem por objectivo o estudo aprofundado da elite do Corpo do Estado-Maior (CEM), no Exército Português, durante o Estado Novo. Em termos cronológicos, o projecto abrange períodos fundamentais na acção do CEM, desde os anos 1940 às guerras em África, passando pela modernização operada com a adesão à NATO e detectando as várias influências doutrinárias estrangeiras." 


[Mais informação disponível em: http://www.cies.iscte.pt/projectos/ficha.jsp?pkid=433. ]

Estes oficiais que entre outros, "aguentaram a Retirada Final", foram também parte daqueles que fizeram o planeamento das operações da Guerra, e que trataram de toda as operações de logística, para que não faltasse nada (ou faltasse o mínimo...) aos militares que estavam na frente de combate, no mato. Como tal relembro-vos o seguinte: 

O Curso Complementar do Estado Maior, no IAEM (Instituto dos Altos Estudos Militares, segundo o General Pedro Cardoso, com o curso (1958/59) foi o primeiro a instruir os oficiais do Exército Português, sobre” guerra subversiva”. 


As tácticas e técnicas para este tipo de conflito foram” importadas” da Inglaterra, com base nos problemas ligados com a Malásia, o Quénia e a ameaça soviética. Segundo este oficial, os Militares Portugueses não foram surpreendidos em África, pois a partir de 1960 os oficiais do Corpo do Estado Maior já saíram com preparação para este tipo de Conflito não convencional. 

Instituto de Altos Estudos Militares (IAM), Curso complementar do Estado Maior, 1958/59. Capitão Henrique Gonçalves Vaz com os camaradas e professores, no Instituto de Altos Estudos Militares em 1959.  


Curso complementar do Estado Maior, 1958/59. Capitão Henrique Gonçalves Vaz com os camaradas, no Instituto de Altos Estudos Militares em 1959. O Tenente-coronel, Cunha Ventura é o oficial sentado á direita e o Coronel Henrique Vaz é o oficial de óculos a pé frente á porta, na altura capitão.  

Também o Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), em Lamego, criado em 16 de Abril de 1960 pelo exército português, com o fim de ensinar aos militares portugueses as tácticas de contra-insurreição (ou contra-subversão), foi importante na "condução de uma doutrina para a guerra colonial". Como tal, tanto o CIOE como o IAEM tornaram-se  fóruns para exploração e desenvolvimento das estratégias e tácticas mais eficazes contra qualquer conflito não convencional nas colónias portuguesas de então. 


Apresentação de trabalhos no Curso do Estado Maior no IAM, curso de 1958/59, frequentado por dois oficiais do CEM, presentes no TO da Guiné em 1973/74, o coronel do CEM, Henrique Gonçalves Vaz (CEM/CTIG) e o Tenente-coronel do CEM, Cunha Ventura, Chefe da 1ª Repartição do QG do CTIG nesse mesmo ano. 

Na Guiné Portuguesa, a partir da chegada do gen Bettencourt Rodrigues, o Comando-chefe e o QG/CTIG, ficaram sob o comando de oficiais do Corpo do Estado Maior (CEM), formados já para "enfrentarem" uma guerra "assimétrica" como a guerrilha que o PAIGC nos fazia, desde o Comandante-chefe ao Chefe da 4º Repartição, passando pelos seus Chefes do Estado Maior (o do QG do CTIG e o do Comando-chefe), todos eram do Corpo do Estado Maior, ao contrário do anterior Comandante-chefe, o ilustre General Spínola, que era da Arma de Cavalaria. 

O Coronel do CEM Henrique Gonçalves Vaz, CEM do CTIG, e o Tenente-coronel do CEM Cunha Ventura, Chefe da 1ª Repartição, foram do mesmo Curso do Estado Maior no IAEM, Instituto de Altos Estudos Militares, conforme se pode comprovar pela fotografia em anexo. Este oficiais frequentaram o curso complementar do Estado Maior em 1958/59, e logo no primeiro ano do curso, em 1958, realizaram um estágio na Alemanha, numa unidade Americana, no âmbito do Curso Complementar do Estado Maior. 


O coronel Henrique Gonçalves Vaz, como Chefe do Estado-Maior da RMP, acompanhando o  Brigadeiro Comandante da Região Militar do Porto, Eduardo Martins Soares, na visita ao Centro de Instrução de Operações Especiais (CIOE), em Lamego no ano de 1971.

Em 1973/74, eram os seguintes oficiais do CEM (Corpo do Estado Maior) no Teatro de Operações da Guiné:

Comandante-Chefe General do CEM - José Manuel Bethencourt Conceição Rodrigues, o Herói do Leste de Angola;

Quartel General do CTIG:

Comandante do CTIG - Brigadeiro do CEM Alberto da Silva Banazol

Chefe do Estado-Maior do CTIG - Coronel do CEM, Henrique Manuel Gonçalves Vaz, nomeado por escolha.

Sub-chefe do Estado-Maior do CTIG - Tenente-coronel do CEM, António Hermínio de Sousa Monteny;

Chefe da 1ª Repartição - Tenente-coronel do CEM Hernâni Manuel da Cunha Ventura;

Chefe da 2ª/3ª Repartição - Major do CEM Fonseca Cabrinha;

Chefe da 4ª Repartição - Tenente-coronel do CEM  A. Fernandes Morgado;

Chefe de Serviço de Transportes - Tenente-coronel de Infantaria Monsanto Fonseca;

Comando-chefe:

Chefe do Estado-Maior do Comando-chefe - Coronel do CEM Hugo Rodrigues da Silva;

Sub-chefe do Estado-Maior do Comando-chefe -Tenente-coronel do CEM - Joaquim Lopes Cavalheiro;

Chefe da 4ª Repartição do Comando-chefe -Tenente-coronel do CEM - Augusto Jorge da Silveira Reis

Nota 1: Haveria mais oficiais na Guiné do Corpo do Estado Maior, mas não muito mais, pois pelo Decreto-lei nº 46 326 o Quadro de oficiais do CEM só tinha:

12 – Coronéis
12 - Tenentes-coronéis
60 - Majores e Capitães
Total Nacional – 84

Nota 2: Como tal, nem todos os oficiais do CEM eram do "Quadro", muitos eram "Adidos" ou "Supranumerários". 

Bibliografia. Lista Geral de Antiguidade dos Oficiais do Exército (Quadro Permanente), Referida a 1 de Janeiro de 1969, Direcção do Serviço de Pessoal - Repartição de Oficiais, Ministério do Exército. 


Visita a uma unidade com o Comandante-Chefe, General Bettencourt Rodrigues (1973), vendo-se em 1º plano, da esquerda para a direita: Coronel do CEM, Henrique Gonçalves Vaz, general Bethencourt Rodrigues e o Comandante do CTIG,  Brigadeiro Alberto da Silva Banazol. 

A Situação na Guiné era “muito má” em 1973, em termos militares, pois enfrentávamos um inimigo cada vez mais preparado e muito bem equipado, vários especialistas nesta área, afirmam que depois da introdução do míssil Strela, bem como outro equipamento “de ponta” de origem Soviético, a superioridade militar portuguesa até então, deixou de ser efectiva…, como tal, os altos comandos da Nação nomearam para a Guiné Portuguesa, os melhores dos seus Quadros, nomeadamente o General Bethencourt Rodrigues, denominado no meio militar, como o 'Herói do Leste de Angola', onde conseguiu êxitos muito significativos, numa também guerra de guerrilha, na expectativa de aguentarem, ou mesmo superar o inimigo da altura, o PAIGC , que mais do que nunca, estava a ser apoiado materialmente e tecnicamente, por uma das maiores potências militares Mundiais da altura e de sempre, a União Soviética. 

BRAGA, 21 de Março de 2012 
Luís Gonçalves Vaz 
(Tabanqueiro 530) 
___________

Nota de MR: 

(*) Vd. também sobre esta matéria o poste do mesmo autor em:


quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 726 (1964/65) > Vista aérea do aquartelamento e tabanca, após o ataque de 8 de Dezembro de 1964. Foto Alberto Pires (o Teco). São vísiveis os estragos provocados nas moranças, uma parte das quais ficaram totalmente queimadas.

Cortesia da AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (que nos disponibilizou o acervo fotográfico de Guileje, a figurar no futuro museu).



1. Mensagem de António Martins de Matos, ex-Ten Pilav (BA12, Bissalanca, 1972/74):

Amigo Luis Graça (permite-me tratar-te por amigo, já que, não te conhecendo, ambos andámos por terras da Guiné)

Após a leitura do livro A retirada de Guileje, junto te envio um pequeno texto que me senti na obrigação de escrever.
Dispõe dele como melhor te aprouver.

Saudações amigas

António Martins de Matos



2. Guileje vista do céu (*)
por António Martins de Matos

[Título e subtítulos, a negrito, da responsabilidade do editor, L.G.]

Confesso ser assíduo leitor do blogue e ter hesitado durante largos meses sobre a ideia de, um dia, quebrar esta barreira e contribuir, também eu, para esta tertúlia.

A leitura do livro A retirada de Guilege pelo Cor Coutinho e Lima (*) e os vários comentários sobre este tema foram a pedra de toque que me levaram a escrever estas linhas.

Não pretendo demonstrar que a minha verdade é melhor que a verdade de outros; digo-o simplesmente porque, ao contrário da maior parte dos comentadores, participei nos combates em Guidaje, Guileje e Gadamael, com uma visão “de cima”, nunca antes explorada neste blogue.


(i) Conhecer a Guiné de DO-27 e de FIAT G91...


Passada esta introdução, aqui vão as minhas coordenadas:

Era, ao tempo da guerra, Tenente piloto aviador, enviado para a Guiné em 10 de Maio de 1972, aí permanecendo até 10 de Fevereiro de 74.

Em relação à controvérsia (estúpida) instalada a quando do programa PRÓS E CONTRAS da RTP sobre o nome da guerra, Colonial, do Ultramar, ou de Libertação, confesso ter ido para a Guiné pensando que aquele território era Portugal, mas bastou-me uma semana de observação in loco para me aperceber que estávamos lá apenas e só como potência colonizadora.

O que me fez continuar? A ideia de que os 40.000 portugueses espalhados pela Guiné precisavam do meu apoio.

Sendo verdade que todas as noites dormia no ar condicionado de Bissau, também é verdade que, durante o dia, percorria todas as áreas da Guiné, de Susana a Cacine ou de Bubaque a Buruntuma.

Entre Maio72 e Abril73 voava os aviões DO-27 e FIAT-G91.

Voar o DO-27 permitiu-me conhecer todos os aquartelamentos que tinham pista (à excepção de Nova Sintra, vá-se lá saber porquê)

Levei víveres para o Guidaje, correio para o Guilele, comandantes engomadinhos do QG para Tite, Fulacunda ou Cabuca, padres e artefactos de missa para S. Domingos.

Também dormi em Pirada e fiz destacamentos em Nova Lamego.

Para abastecer a messe em Bissau, fui buscar peixe ao Cacheu e carne com moscas a Bafatá.

Fiz muitos PCVs com os Coronéis/Majores a controlarem a guerra de cima (alguns eram completamente enganados pela tropa, outros nem tanto).

Com eles fiz pequenas, médias e grande operações, no Morés, Caboiana, Cantanhez, Porto Balana.

Fui buscar feridos e doentes (militares e civis) a muitas unidades .

Sempre fui recebido nos aquartelamentos com estima e simpatia.

E descobri que quanto pior e mais isolado fosse o quartel, melhor era recebido, Paunca e, em especial os Gringos do Guileje, os campeões.


(ii) A chegada dos mísseis Strella e mudança de 'modus operandi'


Em Abril73, com a chegada dos mísseis Strella passei a voar apenas FIAT-G91.

A Força Aérea foi forçada a alterar o seu modo de operar, deixando de ir a algumas unidades por manifesta falta de segurança na aterragem e descolagem (vide o caso do DO-27 que transportava o Major Comandante do COP de Bigene e que desapareceu ao sair do Guidaje).

No que respeita a apoio de fogo e apesar dos aviões voarem a uma maior altitude e isso ter influenciado negativamente o moral das tropas, as missões passaram a ser muito mais efectivas (novo armamento até aí não utilizado).

Contrariamente ao que é habitual ouvir dizer, a Força Aérea aumentou substancialmente o número de saídas de combate, muitas delas ao estrangeiro ( Kandiafara, Kumbamori, Kandara, ...) o que aliviou a nossa tropa de inúmeros ataques do PAIGC.


(iii) Principais conclusões a retirar da análise do livro do Cor Art Ref Coutinho e Lima

Do que vivi in loco e da leitura do livro leva-me a concluir:

Desde 6 de Maio que os GC do Guileje não efectuavam qualquer saída do quartel (excepção à tentativa de coluna a 18Maio), o que os deixou sem uma segurança avançada e sem saber o que se passava para além do arame farpado.

Ao contrário do que muitos pretenderam fazer crer, o Guileje não podia estar cercado.

Prova disso é o facto de terem fugido cerca de 600 pessoas sem que o IN desse conta. Há mesmo quem afirme que saíram com grande confusão e barulho, o que teria forçosamente de ser notado.

Prova disso é igualmente o facto do IN ter continuado os ataques (sempre e só de artilharia) já com o quartel deserto.

Felizmente que o Guileje não estava cercado pois que se o estivesse ter-se ia verificado o maior desastre da guerra colonial.

Na exploração do inesperado sucesso o PAIGC pretendeu fazer crer à posteriori que teria executado dois cercos em simultâneo (Guidaje e Guileje), o que não é verdade. Duas operações de grande envergadura e em simultâneo não estava ao alcance de nenhum dos contendores.

O PAIGC limitava-se a flagelar o Guileje de longe (morteiro 120, canhão sem recuo, ...), sem mesmo entrar no território da Guiné. Há a confirmação de que as bases de fogo se situariam para além da fronteira (não é fácil transportar centenas de munições e elas não nascem nas árvores).

Com o seu alcance, os obuses de 14cm seriam das poucas armas aptas a contrariar o fogo inimigo. No entanto só muito esporadicamente foram usados. Há mesmo um depoimento de alguém afirmando que o pessoal que as operava nem sequer saía dos abrigos.

Passados todos estes anos ainda hoje não consigo perceber por que razão os quartéis equipados com potente artilharia não se defendiam mutuamente.


(iv) Guileje, uma manobra de diversão, para desviar a FAP de Guidaje...

Os ataques ao Guileje destinavam-se apenas a tentar desviar as saídas da Força Aérea em direcção ao Guidaje, o que em parte foi conseguido, visto que entre 19 e 21 de Maio a FAP foi obrigada a dividir o apoio, com 16 missões no Guidaje e 14 em Guileje, 8 das quais no dia 21.

Pelo acima referido, não se pode afirmar que o apoio ao Guilege tenha sido menosprezado.

A questão que se põe é a de saber porque razão as missões no Guileje não terão tido sucesso?


(v) 'Vamos comprar um B52 e já voltamos'...

A meu ver por falha do QG Bissau que até essa data, e ao contrário do que se passava em Guidaje, não autorizava a FAP a ir ao estrangeiro, e igualmente por falha do Guileje, que já não era capaz de indicar de onde tinham partido os ataques, limitando-se a afirmar “bombardeiem todas as matas à volta do quartel”.

A afirmação do homem do rádio (que no livro vim a descobrir ser o Fur Alfaiate), a mando do seu comandante, de que “não usamos a nossa artilharia para que o IN não referencie o quartel”, resultou na minha resposta, de mau gosto, “vamos comprar uma B-52 e já voltamos”, dita com a raiva de quem sente que o seu apoio estava a ser inútil e era mais necessário noutro lado.

Havendo apenas 6 pilotos de FIAT-G91 a acudirem aos pedidos de apoio de toda a Guiné, a comparação dos números de mortos e feridos em Guilege e Guidage é, por si só, clarificadora do que efectivamente ocorreu nesse período e de quem mais necessitava de apoio.

Ao contrário do que a maioria do pessoal do Exército pensava (pensa), o apoio aéreo em voo baixo, com metralhadoras e foguetes, ainda que possa aumentar o moral das tropas, era, é e será sempre, completamente inadequado.

O facto dos aviões voarem mais alto não tem a ver com a sua segurança mas sim com o tipo de armamento transportado, sendo que um apoio eficaz só poder ser conseguido com a utilização de bombas.

A FAP foi pioneira a ser alvejada com mísseis Strella e igualmente pioneira neste tipo de apoio próximo, procedimentos semelhantes foram utilizados anos mais tarde no Kosovo ou actualmente na Faixa de Gaza.


(vi) Um homem sem perfil, ou um 'erro de casting'


Não obstante já ter feito duas comissões na Guiné, o Maj Coutinho e Lima não tinha o perfil adequado para chefiar o COP 5 e algumas das suas decisões não terão sido as mais correctas.

O estabelecimento da sede do COP 5 em Guileje em vez de Cacine ou mesmo Gadamael, a troca de armamento sem razão aparente, a suspensão da actividade operacional, foram alguns dos factores que contribuíram para o agravamento da situação.

Tais decisões deveriam ter sido questionadas por quem o indigitou para o lugar.

Houve no entanto outros militares que contribuíram para a queda de Guileje, a saber:

- Os que no QG Bissau entendiam que o Guileje era tão só um local para onde mandar os corrécios;

- Os que no QG Bissau não avaliaram correctamente a situação;

- Os que, de uma maneira ou de outra, demoraram a cadeia logística;

- Os que não autorizaram os FIAT a passarem a fronteira (o ataque a Gadamael foi sustido depois de se ter bombardeado Kandiafara);

- Em última análise, a responsabilidade tem de ser atribuída a quem, conhecendo o perfil do militar, o nomeou para o cargo.


Na introdução do seu livro A retirada de Guileje, por Cor Coutinho e Lima põe a questão de se saber qual o termo correcto, entre “amnistiado” e “ilibado”.

Não é minha intenção julgá-lo, mas confesso que me incomoda as várias tentativas que vêm sendo feitas de o apresentar como um herói, que não foi.

Todos nós, que estivemos na Guiné, temos alguns fantasmas que, de tempos a tempos, nos vêm lembrar quem fomos, o que fizémos e como nos comportámos.

Há 35 anos que os meus fantasmas estão em fuga de Gadamael e continuam mortos e entalados no tarrafo do rio Cacine.

Como nota final, a minha homenagem ao BCP 12 (CCP121, CCP122 e CCP123). Sem eles, Gadamael tinha seguido o destino do Guileje.


António Martins de Matos (**)


3. Comentário de L.G.:

Caro camarada:

Não é todos os dias que recebo, na caixa de correio, um texto como o teu: claro, conciso, preciso, assertivo, elegante... e ao mesmo tempo politicamente incorrecto, incómodo, lúcido, desassombrado, sofrido, solidário...

É um privilégio para mim dar-te, em meu nome e dos meus dois co-editores, as boas vindas à nossa tertúlia ou Tabanca Grande, enfim, ao nosso blogue, que é teu, é meu, é de todos nós... O nosso maior denominador comum é a Guiné (1963/74)... O resto é periférico...

Como já te apercebeste, aqui ninguém precisa de puxar dos galões ou dos títulos ou das medalhas para aceder à palavra: basta entrares, dizeres bom dia ou boa tarde, puxares de um banco e contares a tua história... Eus ei que há diferenças de literacia, de talentos, de conhecimentos... Procuramos atenuá-las...

O nosso blogue serve isso mesmo, serve - modestamente - para a nossa geração que combateu na Guiné (não interessa o posto, a arma, a especialidade, o local, o ano...) contar a história que os outros nunca poderão contar... por nós.

E aqui está, em corpo inteiro, a tua história, a tua personalidade, os teus valores, o teu CV (***)... E com que elegância fazes a tua análise!... Não dizes: "o homem (o comandante do COP 5) era fraco e incompetente"... (de resto, como muitos de nós, a começar por alguns dos homens que nos comandavam....); dizes simplesmente, houve um "erro de casting", o homem não tinha o perfil... Mas a culpa foi de quem o nomeou... (Esclareça-se: quando digo, "competente", referindo-me à generalidade das NT na Guiné, do meu tempo, quero significar "treinado, preparado, equipado, motivado")...

É muito diferente de um "juízo moral" ou de "carácter", que evitamos fazer em relação ao "comportamento operacional" de qualquer camarada, ainda vivo... Coutinho e Lima, ao publicar o seu livro, passa a expor-se em público... E mais, ele pede explicitamente o veredicto do leitor... (Por outro lado, ele não é um operacional qualquer: é um profissional, um oficial superior do Exército, comandante de um COP, com responsabilidades muito superiores às de um simples furriel ou alferes, milicianos; e isso não quer que ele não tenha, da minha parte, a simpatia e a solidariedade que me merecem todos os os camaradas da Guiné que se identificam com este blogue, e que escrevem neste blogue).

António Martins de Matos, camarada e doravante amigo António: Tu és mais do que um leitor atento e interessado do livro do Coutinho e Lima. És um actor de Guileje (bem como de Guidaje e de Gadamael)... És um actor, não és um simples figurante. O teu ponto de vista, ao ser publicitado no blogue, vai ser escutado, analisado, divulgado, discutido, aplaudido, criticado... Vai ser escutado com o respeito que merecem todos os que "estavam lá", no sítio, na hora, na terra, no ar, na água... Só esses podem falar de cátedra... No fim, os que visitam e nos lêem podem concordar ou não concordar com o teu raciocínio e a sua fundamentação...

Tu mesmo o dizes: esta é a minha verdade (leia-se: a minha leitura dos acontecimentos), não tem que ser a verdade dos outros, ou imposta aos outros. Mas o que importa sublinhar é que trazes novos elementos para o conhecimento e o debate sobre Guileje (e não só, sobre os três GG)... Tu és o primeiro "ver Guileje de cima"... (É pena não termos acesso a uma cópia dos registos da tua caderneta de voo nesses dias no subsector de Guileje).

Eu, que não estava lá nessa época nem nesse local (sou de 1969/71 e estive no leste), não posso nem quero "tomar partido"... Nem acho que seja importante "tomar partido": também sou, por princípio, contra programas do tipo Prós e Contras, que fazem do conflito espectáculo, em vez de promover a pedagogia do debate...

Como editor do blogue, também tenho que ser o garante da pluralidade de pontos de vista, logo equidistante, uma tarefa que seguramente não é fácil. Não confundo, de resto, amizade e camaradagem, com objectividade e independência de pensamento e análise...

Também acho que a verdade é uma construção: há o verso e o verso, o texto e o contexto, o discurso e as condições de produção do discurso... A única coisa que detesto, nalgumas pessoas (incluindo algumas camaradas nossos) é a tendência para o juízo sumário (que é sempre uma execução sumária), própria de quem vê o mundo a preto e branco, dicotomizado: o herói e o cobarde, o bom e o mau, nós e o inimigo... Felizmente, não é o teu caso...

Vou publicar o teu texto, com uma ou duas imagens (que irei seleccionar), mais logo... Já está em edição. Mais para o fim da noite, poderás ver o teu texto en linha, no nosso blogue, na série "A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima"....

Em minha opinião, é um valioso contributo para o conhecimento de Guileje e do que se passou entre 18 e 25 de Maio de 1973... De Guileje e dos seus actores. De Guileje visto dos ares.

Espero que aceites ficar entre nós, voltando a dar a cara, a aparecer em público e, portanto, a escrever... O blogue é teu...

Um Alfa Bravo (ABraço). Luís


4. Comentário do co-editor vb:

O artigo do PilAv dos Fiats é valioso. Não só acrescenta inf de um interveniente que via a guerra de cima (e que portanto podia ver os acontecimentos mais a frio, especialmente porque tinha a paz de espírito para o fazer, o que não acontecia com os "despachados" para os Guidajes, Guilejes e Gadamaéis) como também pelos docs a que certamente tinha acesso. É interessante ver a história, ainda a ser feita ainda pelos vivos...Ao nosso blogue o deve.

Um abraço

vb
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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste desta série > 11 de Janeiro de 2009 >
Guíné 63/74 - P3725: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (10): PAIGC dispara um milhar de granadas entre 18 e 22 de Maio de 1973

(**) Quando o meu comentário já está escrito, vim posteriormente a saber, por uma pesquisa no Google, em casa, à noite, que o autor da mensagem é, com muito provavelmente, o tenente general António Martins de Matos, aqui referido numa notícia da Lusa, publicada pelo Público, de 18/12/2006 ("Força Aérea: novo chefe do Estado-maior sublinha unanimidade da sua escolha"):

(...) "A ultrapassagem na antiguidade militar e o carácter eminentemente político da escolha do ex-director-geral de Política de Defesa Nacional terão estado na origem da decisão dos tenentes-generais Hélder Rocha Martins (actual vice-chefe do Estado-maior da Força Aérea), António Martins de Matos (comandante da Logística e Administração da Força Aérea), David Oliveira (adjunto operacional do chefe do Estado-maior general das Forças Armadas) e João Oliveira (comandante operacional da Força Aérea)" (...). (Negritos, da responsabilidade do editor, L.G.)

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3197: Os nossos regressos (16): Bendita hepatite...(Henrique Matos)


Ilustração de Joana Graça (2008), designer e filha do Luís Graça, para "Os nossos regressos". Com os nossos agradecimentos.



Um regresso... inesperado!!!


Nos finais de 1967 (isto de datas e outros pormenores varreram-se completamente da minha memória, vamos a ver se arranjo uma oportunidade para consultar o meu processo) estava colocado no Comando Chefe em Bissau, aquele edifício que ficava nas traseiras do Palácio do Governador.
Tinha como missão preparar as reuniões do então Governador Arnaldo Schultz com os comandantes dos 3 ramos, que se realizavam ao fim da tarde numa sala específica que tinha numa das paredes um grande mapa da Guiné.
O serviço, onde apenas entrava eu, um major e um coronel, consistia em receber os relatórios diários e transpôr para o mapa todos os dados (operações, mortos, feridos, capturas, acções IN, minas, bombardeamentos, etc..) de tal forma que ao fazer uma leitura do resumo no início da reunião fosse rapidamente perceptível a situação no terreno. No mesmo edifício havia ainda pelo menos outro departamento ligado à espionagem.


No jardim do Comando Chefe com um militar da Força Aérea ali colocado.


Já agora uma pequena historieta para desanuviar. Certo dia aparece-me o brigadeiro que comandava o exército com ar irritado e diz:
- Sr. Alferes, vá lá fora e ensine ao sentinela que deve apresentar armas a um oficial superior.
Fiquei admirado com a atitude até porque nem conhecia os elementos que faziam a guarda, mas havia que obedecer e lá fui. Deparei-me com um soldado com todo o aspecto de periquito acabado de desembarcar, tolhido de medo, pois tinha levado um raspanete do brigadeiro, que percebia pouco de manejo de armas e ainda menos de galões, sobretudo quando se tratatava da marinha. Lá lhe ensinei uns rudimentos, mas, como vi que cada vez se atrapalhava mais, disse-lhe:
- O melhor é apresentar armas a toda a gente porque aqui quase tudo é de coronel para cima.
Quando um dia de manhã me apresento, como era habitual, no gabinete do coronel, este fixa-se nos meus olhos e diz:
- Você está com uma bruta icterícia, vá mas é já para o hospital.
Assim mais uma vez entrei no célebre HM 241 e, após a consulta , fiquei logo internado no pavilhão de isolamento onde só havia hepatites. Passados poucos dias vem a notícia que ia ser transferido para Lisboa.


DC6 no aeroporto de Bissalanca. Foto retirada, com a devida vénia, do site Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74, criada pelo nosso camarada Victor Barata, a quem mandamos um abraço de parabéns pelo sucesso do seu blogue.


Levaram-me então para o aeroporto de Bissalanca onde já estava um DC6 da Força Aérea a carregar militares, quase tudo feridos graves, vários em macas. Dentro do avião respirava-se um ar pesado, cheirava muito a desinfectantes e lembro-me que quando levantou reparei que um dos motores da asa do meu lado deixava cair óleo e pensei:
- Será que esta traquitana chega mesmo a Lisboa?

E chegou, mas às tantas da noite, indo estacionar no Figo Maduro, longe de olhares. Ao fundo da escada de desembarque já havia ambulâncias e outras viaturas militares onde fomos metidos e conduzidos aos hospitais, a maioria para o da Estrela e no meu caso para o HMDIC (Hospital Militar de Doenças Infecto-Contagiosas). O internamento foi longo mas eficaz, chegando ao mês de Abril do ano seguinte [1968]. Então, como as análises apresentavam valores normais e já perfazia cerca de 20 meses de comissão, carimbaram um papel e mandaram-me à vida.

Henrique Matos
Pel Caç Nat 52 (Enxalé e Porto Gole, 1966/68).

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domingo, 16 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2108: Documentos (3): A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (2) (A. Marques Lopes / António Pimentel)






Conjunto habitacional de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12 (fundador e editor deste bloge) junto a um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta). A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá. O reordemanento desta população, considerada até então sob duplo controlo e pouco colaborante com (e senão mesmo hostil a) as NT, iniciou-se em 1969, sob a iniciatica do Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1970/72), tendo sido continuada pelo BART 2852 (1970/72).




Na foto, vê-se o Fur Mil Henriques num jipe, no destacamento que defendia Nhabijões. Ao fundo, descortinam-se as casas do reordenamento (a que ele na época um verdadeiro etnocídio...). Em 13 de Janeiro de 1971, duas minas anticarro recebentaram à saída do reordenamento, na estrada Nhabijões-Bambadinca (LG).


Fotos: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Reordenamento de Nhabijões> Trocando a espada pelo arado, ou melhor, a G3 pela pá e pela enxada... Pessoal da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) nos trabalhos do reordenamento de Nhabijões, um conjunto de aldeias sob duplo controlo, junto ao Geba Estreito, pertencente ao posto administrativo de Bambadinca, sede do Sector L1, Zona Leste.
Foto de finais de 1970 gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-alf. mil. sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados.


Continuação da publicação do documento Os reordenamentos no desenvolvimento sócio-económico das populações. Província da Guiné, Bissau: Comando-Chefe das Forças Armadas da Guine. Quartel General. Repartição AC/AP. s/d. (2).


Fixação do texto: Virgínio Briote, co-editor


LOCALIZAÇÃO HISTÓRICA E DEMOGRÁFICA (p.4)

1. É difícil fazer uma exacta localização geográfica das diferentes etnias da Guiné, atendendo principalmente ao factor emigração. Efectivamente, mercê de muitas e várias circunstâncias históricas e políticas, os povos guineenses constituíram muitas, e algumas delas significativas, correntes migratórias que partindo do seu chão originário se estabeleceram um pouco por todo o território, por tal forma que se pode dizer que vivem hoje, indistintamente, lado a lado, etnias animistas e islamizados, muitas vezes interpenetrando-se e constituindo, como já foi notado anteriormente, subgrupos híbridos. Uma das circunstâncias mais importantes para o surto migratório foi sem dúvida a eclosão do terrorismo, obrigando povoações inteiras a desalojarem-se e a imigrarem para zonas sob a protecção das Nossas Tropas.


No mapa 1, apresenta-se a localização das principais etnias nos seus chãos de origem.

2. A localização histórica dos povos da Guiné, dada a infinidade de etnias existentes, torna-se difícil. Em apontamentos desta natureza, não cabem pormenores que se destinariam a um estudo aprofundado. Bastará, talvez, dizer que a maioria das etnias aparece como fusão de várias outras que foram as originárias e são referidas largamente pelos navegadores e descobridores nas suas crónicas. Nelas se dá conta de existirem no século XVI Balantas e Papéis na ilha de Bissau e Buranos (nome primitivo dos Papéis) e Felupes na zona do Cacheu. Estas três etnias são das mais antigas, sendo os Felupes considerados os mais antigos dos povos originários.


Alguns outros povos existiam já no actual território da Guiné Portuguesa – colónias de Mandingas e Fulas – aquando da sua descoberta. No entanto, o contacto com eles só se verificou mais tarde, dado o tipo de colonização portuguesa, feita através de feitorias junto aos rios. Assim, o contacto fez-se primeiro com os habitantes da faixa litoral e, mais raramente com povos que vinham transaccionar com os portugueses, de pontos mais afastados do interior.
Já a partir do século XV se inicia a invasão de povos provenientes de vários países do continente Africano. No entanto, só mais tarde há a grande invasão vinda especialmente do Futa-Jalon e territórios limítrofes (Labé, Boé Francês, Futa-Tere, Futa-Quebo, etc.), da Bandú (território situado entre o Alto Senegal e o Alto Gâmbia), Sudão, etc. Fulas e Mandingas instalam-se na zona do Gabú, trazidos por lutas intestinas, pela necessidade de novas almas para a difusão do Alcorão, pelo desejo de novas pastagens para o seu gado e novas lavras. Travaram lutas com os povos aí estabelecidos (os Beafadas principalmente que se viram subjugados pelos Fulas-Forros em Jaladú que mais tarde se tornou na Forro-ia ou Forreá) e conquistaram posições.
[… ilegível].



Mapa 1- Os chãos dos Povos da Guiné


3. Povo nómada, os Fulas emigraram do Gabú para quase todo o território, especialmente o Leste, onde se encontra ainda hoje em força. Mas, de uma maneira geral, como já foi dito, todas as etnias registam movimentos migratórios. Apontaremos dois ou três exemplos:


A região de Mansoa é chão Balanta. No entanto encontramos aí estabelecidas a par da maioria Balanta, Mandingas e Fulas.



  • Na zona de Farim, onde existiam primitivamente os Oincas (ou do Oio, subgrupo Mandinga), encontramos Fulas e Balantas. Aqui, notamos como curiosidade, Balantas e Mandingas permanecem em quase constante conflito, por causa dos roubos que os primeiros praticam por costume tradicional e é condenado pelo Alcorão. Alguns Balantas foram absorvidos pelos islamizados constituindo os Balantas-Mané, que também encontramos em Mansoa.

  • No actual concelho de Bafatá, habitado primeiramente por Beafadas, Mandingas e Fulas, encontram-se numerosas colónias de Manjacos, Papeis, Saracolés e Balantas, estes em maior percentagem.


No mapa 2, podem ver-se, como curiosidade, as primeiras migrações de Mancanhas (ou Brames), Manjacos e Balantas.




FUNÇÕES CIVIS EXERCIDAS POR MILITARES (p 6/7)




1. Estando a Guiné sob a pressão de um estado de subversão que visa a conquista das populações por vários meios, entre os quais a luta armada; existindo um Quadro Administrativo com graves deficiências quantitativas e qualitativas e possuidor da falta de meios para realizar a manobra de contra-subversão em tempo útil e ainda por razões de controle e segurança, não é possível à Administração Civil encarar sózinha, de momento, o esforço que se pretende realizar.


Assim, porque possuidoras de vários meios, humanos, técnicos e de defesa, as Forças Armadas estão aptas a colaborar, com carácter temporário, com as estruturas administrativas na solução dos problemas sócio-económicos. Porque, também, os problemas de desenvolvimento social e económico constituem a manobra da contra-subversão que é preciso fazer rapidamente e pertence à missão das Forças Armadas.


As F.A. são, pois, chamadas a participar temporariamente em funções que seriam da competência civil, se os quadros administrativos estivessem em condições de as desempenhar, e que lhes serão totalmente confiadas quando as condições o permitam. São funções de colaboração e reforço da orgânica...[ilegível].


2. (...) Os civis do Q. A. pensam e actuam de maneira diferente. E a diferença reside em dois pontos distintos: a estagnação e carências várias do próprio Q. A. e no diferente carácter de obrigatoriedade de uns e outros. As Forças Armadas são uma organização profunadmente hierarquizada, com escalões de comando definidos, com leis e regulamentos mais rígidos e pormenorizados, prevalecendo um forte espírito de disciplina. Arreigados a conceitos burocráticos ultra passados e morosos por natureza , regulados por leis mais vastas, com um carácter de disciplina menos acentuado e relativo momento a leis de carácter mais geral, os civis do Q. A. têm um diferente comportamento face a situações que exigem a resolução adequada em tempo próprio. A base de toda a actuação entre militares e civis terá de basear-se na compreensão e na colaboração, já que ambos servem o objectivo comum.


3. O tratamento para com as populações terá de ser diferente também. Não se podem obrigar as populações a tomar determinadas posições ou aceitar determinadas soluções pela força ou coacção, excepto quando o determine o interesse colectivo, o bem comunitário. Interessa muito mais usar argumentos válidos, convicentes e visíveis para os levar a optar melhor. No caso concreto das populações com quem vamos trabalhar, há que contar com os seguintes factores de oposição às nossas soluções:



  • São populações menos evoluídas

  • Têm sofrido pressões físicas e psicológicas dos agentes subversivos

  • São muito arreigados aos seus costumes étnicos e às tradições e práticas religiosas

  • São diferentes entre si, na sua evolução natural

  • Duvidam por sistema, devido à estagnação sócio-económica anterior à guerra, às promessas que nunca foram cumpridas antes nessa época e à propaganda inimiga orientada para esse passado.


Sintetizando, é preciso entender os civis do Q. A. e as populações como tal e como tal actuar nas relações com eles.




IMPORTÂNCIA SOCIAL E ECONÓMICA DOS REORDENAMENTOS (p. 6/9)


1. A ideia de se fazer o reordenamento das populações em aldeamentos, tem três razões de ser fundamentais



  1. A defesa e controle

  2. desenvolvimento social

  3. O desenvolvimento económico


Deixando de parte as questões da defesa, vamo-nos debruçar mais [...ilegível]




Mapa 2 - Primeiras migrações


2. A constituição geográfica da Guiné - sulcada de muitos rios, plana, densamente urbanizada-, a exploração agrícola fazendo-se especialmente junto das bolanhas e as diferenças étnicas que individualizam os agregados, conduziram à dispersão por inúmeros núcleos populacionais. Com uma população dispersa em áreas muito vastas, torna-se difícil se não impossível, tomar medidas de desenvolvimento que abranjam a totalidade ou, mesmo a maioria. O esforço económico e humano seria insustentável de momento e, especialmente moroso.


3. O que se pretende, pois, com os reordenamentos? Agrupar as populções de uma determinada zona num só ou em vários agragados populacionais significativos, possibilitando:



  1. A construção de casas com melhores condições de higiene e construídas com materiais mais resistentes aos factores climáticos e aos incêndios.

  2. A construção de condições de protecção social que abranjam um maior número de pessoas (escolas, postos sanitários, fontanários, assistência médica).

  3. A construção de condições de carácter económico que englobem uma população maior (construção de celeiros colectivos, garantia de mercados para venda da produção agrícola, condições técnicas para maior produtividade e outrs possíveis a desenvolver futuramente).

  4. O mais rápido desenvolvimento comunitário considerando um melhor rendimento no aproveitamento dos meios e quadros técnicos empenhados no esforço do desenvolvimento.


4. Pode parecer sem discussão, a priori, que o reordenamento das populações oferecendo tantas vantagens para o seu desenvolvimento, é sempre bem aceite. Efectivamente, nem sempre isto acontece e por várias razões. Vamos apontar esquematicamente, algumas das principais:

  • Motivações étnicas

  • Questões havidas entre grupos de uma mesmo etnia que os opõem e obstam a uma vida comunitária

  • Receio de perda de autoridade dos Chefes tradicionais

  • Proibição dos Guardas do Irã por motivos de interesse pessoal

  • Desejo de não mudar de chão

  • Receio de que faltem, no novo aglomerado, os meios suficientes de subsistência

  • Desejo de não se separarem dos seus haveres

  • Outras que só localmente poderão ser detectadas


5. Não devendo em princípio existir um carácter de obrigatoriedade quanto à deslocação das populações das suas tabancas para um aldeamento, a não ser que o interesse comunitário superiormente o determine, há que empregar meios persuasivos quando se encontre alguma resistência. Para se criar ...[ilegível]


Esquematicamente vemos, assim:


Antes da construção

  • Auscultação das populações (indirecta, directa)

  • Auscultação e elucidação do Chefe da Tabanca

  • Auscultação e elucidação do Guarda de "Irã"

  • Auscultação e elucidação das autoridades religiosas islâmicas


Durante a construção

  • Garantir a autoridade constituída

  • Garantir, tanto quanto possível, os interesses da localização dos aglomerados correspondentes às antigas tabancas, dentro do plano urbanístico

  • Respeitar os usos e costumes das populações

  • Colaborar no transporte de todos os haveres das populações deslocadas

  • Interessar as populações na construção das casas, escolas, postos sanitários, etc., permitindo e desenvolvendo o sentimento de posse.


6. A forma mais prática de se assegurar o deslocamento das populações para os reordenamentos é criar nelas a necessiade desse reordenamento. Para isso é necessário elucidá-las dos benefícios que vão auferir e garantir os seus desejos quanto a aspectos respeitantes aos seus usos e costumes. Será de toda a conveniência o conhecimento das suas motivações religiosas e étnicas. Nos quadros anteriores já foi feito um esquema suficientemente desenvolvido. Em novo quadro, indicar-se-ão as principais motivações a explorar para um útil e efectivo trabalho de consciencialização das populações.


1.BENEFíCIOS SOCIAIS
  • melhores casas

  • escolas

  • postos de socorros

  • assistência médica

  • água


2. BENEFíCIOS ECONÓMICOS
  • melhores lavras

  • celeiros colectivos

  • mercado para escoamento da produção

  • lojas


ISLAMIZADOS


Fulas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os régulos governarão melhor com toda a população junta

  • os fulas têm de voltar a ser senhores dos seu "chão" que o IN quer roubar

  • os antepassados foram valentes


Mandingas
  • construção de mesquitas

  • difundir a religião

  • os chefes poderão dirigir melhor

  • as novas tabancas poderão ter lojas e fazerem comércio para terem riqueza

  • os antigos foram valentes e têm de os saber imitar


ANIMISTAS


Balantas

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o Balanta terá a liberdade na tabanca e no mato, que o IN impede

  • o Balanta vai deixar de ser escravo do IN

  • os Balantas juntos têm força para exterminar o IN

  • haverá sempre muita fartura


Manjacos

  • terão maior protecção dos Irãs

  • juntos terão muita força

  • impedirão o roubo de mulheres quando estiverem juntos

  • poderão fazer comércio

  • cada família poderá ter os seu Irã


Brames

  • terão maior protecção dos Irãs

  • o régulo governará melhor

  • vão ter mais vacas para estrumar as terras e para o choro

  • os Brames não terão necessidade de emigrar porque nada lhes faltará

  • o IN quer escravizá-los e não o poderá fazer estando todos juntos.


_________


Notas do co-ditor vb:


(1) Vd. posts de:


1 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1558: Inesperada visita a Luís Graça, em Nhabijões, na noite de 3 de Fevereiro de 1970 (Beja Santos)


28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos (Luís Graça)23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCIX: Luís Moreira, de alferes sapador a professor de matemática (Luís Graça)


23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)


22 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70) (Luís Moreira)


22 de Setembro de 2005 > (2) Vd. post de 12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2100: A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (1) (A. Marques Lopes / António Pimentel)


Reproduzo aqui o comentário de Abreu dos Santos:

  • Spínola não inventou os Reordamentos, antes reaplicou na Guiné o que anteriormente já o major Hélio Felgas ali havia posto em prática (cerca de 3/4 anos antes);

  • a guerra do Vietname, pelos vistos, continua a ser – erradamente – termo de comparação para quem esteve na Guiné;

  • mais remotamente, foram os romanos quem iniciou por regiões várias a táctica militar da colonização por recurso ao que, modernamente, se passou a chamar aldeamentos estratégicos; e em meados do séc. XIX foi o general francês Bigeaud quem, na Argélia, reformulou na prática tal conceito, retomado em 1955-59 naquele mesmo território através do Plano Challe, com objectivo de conter o alastramento de actos terroristas por parte da FLN;

  • Em Portugal, a responsabilidade pelo estabelecimento de doutrina castrense nesse sentido coube ao então ministro do Exército, na sequência do 1º relatório da missão militar que pouco antes havia concluído em Arzew (na Argélia), um estágio de contra-insurreição. Daí, o CIOE; e, também daí, a origem da instrução ministrada a tropas de Operações Especiais e aos Comandos, como aliás muito bem sabe o editor Briote, ao qual peço que releve quaisquer imprecisões minhas nesta breve resenha, tanto mais escrita directamente para esta janela...


Comentário do co-editor vb: Grato ao Abreu dos Santos, pelo oportuno comentário, que contribui para um melhor conhecimento sobre o reagrupamento das populações.

  • Entre os anos 1965/67, os reordenamentos da população não eram, em geral, muito discutidos no terreno, embora já se vissem esforços de alguns dos nossos militares nesse sentido, e foi até a um ou outro que pela primeira vez ouviu falar das aldeias estratégicas no Vietname.

  • Parece ser aceite que foi com Spínola, como Governador-Geral, que o plano foi implementado e estendido a praticamente todo o território.