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sexta-feira, 12 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19972: Notas de leitura (1197): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (14) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Março de 2019:

Queridos amigos,
Santos Andrade nunca escondeu que não procurava fazer poesia mas simplesmente narrar ou fazer crónica. Estou a tomá-lo a sério, em breve a história do BCAV 490, que o nosso confrade Carlos Silva tão amavelmente me emprestou, virá à baila, será companhia até final do relato.
Na batalha do Como serão convocados Armor Pires Mota e Alpoim Calvão, temos textos de altíssima qualidade. Por essa altura, se acaso este modo de abordar as coisas for aliciante para a nossa sala de conversa, já muita gente entrou em cena, com depoimentos, fotografias, comentários alusivos à crónica do nosso bardo. Oxalá que assim seja, tanto pelo dever de memória como pelo vigor da recordação dos vivos, que aqui estamos a homenagear.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (14)

Beja Santos

“A missão continuou
sofrendo-se grande emboscada.
A Companhia do Ventura
foi muitas vezes atacada.

A 3.ª Companhia
à meia-noite saiu
e de manhã cedo se viu
um bando cheio de rebeldia.
O Moita fogo fazia
e um terrorista tombou
uma arma lhe apanhou
e os enfermeiros dele trataram
e como prisioneiro o levaram.
A missão continuou.

Por um carreiro tudo caminhava
e chegou-se a uma povoação
que só tinha habitação
quando a noite chegava.
De dia só quem lá estava
era uma velha de pele enrugada.
Foi por nós interrogada,
mas pouco descobriu,
e para a mata connosco seguiu,
sofrendo-se grande emboscada.

Na mata o ataque se deu
às 3 horas do dia.
Houve 11 feridos na Cavalaria,
incluindo o que morreu.
O Joaquim da Costa muito sofreu
precisamente nesta altura.
Também sofreu muita amargura
o amigo José Revez
pois atacada em Morés
a Companhia do Ventura.

Não tinham água para beber
e já havia poucas munições.
Por intermédio das transmissões
veio a avioneta abastecer
onde trouxe também comer
porque não tínhamos nada.
Uma coisa tão amargurada
não esperavam de passar.
E a 489 com azar
foi muitas vezes atacada.”

********************

O bardo não esconde as agruras da vida operacional, ora encetada, o Morés era o osso mais duro de roer. E viaja a recordação para outro livro de Cristóvão de Aguiar, de nome “Ciclone de Setembro”, com primeira edição em dezembro de 1985, três partes com títulos saborosos: "Terra de Ventos"; "Os Ventos da Guerra" e "O Futuro de Ventos". Obra da qual mais tarde o escritor açoriano irá buscar o barro para o livro “Braço Tatuado”.
Logo um texto de enorme ferocidade, tem a ver com o drama de um guia prisioneiro:
“O prisioneiro está sentado num abatis. Continua algemado e assim ficará para todo o sempre. Guarda-o o soldado Capitão Castelar. Segura-lhe a ponta da corda amarrada à cintura. Daqui a pouco vai morrer. A este nem lhe dão tempo sequer de regressar ao aquartelamento.
O furriel enfermeiro, criatura a quem a guerra apurou os sentimentos humanitários, e outros, lembrou-se de ir dar de comer ao guia algemado. Leva-lhe o comer à boca. Tem a ração de combate aberta sobre um corpo decepado. Volta-se, tira uma garfada de atum, corta um pedacito de bolacha, e deposita tudo na boca do prisioneiro. À ilharga do indígena, o soldado-sentinela não está gostando da brincadeira. Nota-se-lhe o enfado na cara. E a revolta. Sempre que o enfermeiro se volta para se fornecer de alimento, aproveita o soldado a ocasião para calcar os pés do indígena com as botifarras, às vezes com a coronha da G3. Da boca do guia nem um ai se ouve, sorri apenas.
Vejo a cena, vou-me aproximando. Continua o soldado, mesmo verificado que o encaro com acinte e raiva, pisando os pés do prisioneiro. Estão já em sangue. O furriel, embebido no que está fazendo, não dá por nada. Ao abeirar-me da sentinela, não em contenho e dou-lhe uma funda bofetada. Tenta ripostar-me. Não lhe dou tempo e prego-lhe outra ainda mais rija e ameaço-o com a Parabellum: Se continuas a fazer tal filhadaputice, ponho-te em sangue, meu cabrão nojento.
Ele nem tentou reagir, mas disse-me: O meu alferes é tão turra como ele, se não o fosse, não me tinha batido, ameaçado com a Parabellum e escarrado na cara; é por causa deles e de outros como ele que andamos neste martírio; o meu alferes vai-me pagar”.

É nestas andanças que o horror muda de figura, aqueles militares ficam horrorizados com a tragédia que houve na frente da coluna:
“De súbito, um forte estrondo na direcção em que seguiram as duas viaturas. O nosso Capitão Farias fica lívido e ordena-me: Ó Mendonça, siga você com o seu grupo de combate nas respectivas viaturas e veja-me o que sucedeu. Arranco com o meu pelotão, vamos todos sem pinga de sangue, em silêncio. Nunca mais se escutou qualquer outro rebentamento nem tiroteio de resposta. Os Unimogs voam aos solavancos pela picada adiante. Ao longe, muito ao longe, principiamos a divisar as duas viaturas. Estão imobilizadas. Cada vez nos vamos aproximando mais. Alguns soldados descem dos Unimogs em andamento. Querem, à fina força, ser os primeiros a chegar ao pé das outras viaturas para darem a notícia. E ela vem de imediato: Meu alferes, estão todos mortos na primeira viatura; na segunda não há ninguém, nem rasto de sangue, foram, com toda a certeza, todos apanhados à unha e levados pelos turras.
Tenho a bússola dos sentidos desorientada. Não sei para que lado me hei-de virar. Os mortos já não precisam de auxílio, estão como hão-de ir. O pior são os outros, os da viatura rebocada. Será que fugiram? Será que foram feitos prisioneiros? Os pensamentos atravessam-me a cabeça em farrapos.
Todo eu sou aliás um farrapo. Chega o capitão com o resto da coluna. Vem pálido mas aprumado. Desce do jipão e vai de imediato espreitar os estragos. Após curta vistoria, vira-se para mim e ordena: Alferes Mendonça, nomeie meia dúzia de voluntários para ir para dentro da viatura dos mortos; quero os cadáveres alinhados no estrado da carroçaria. 
Chegámos a Piche à boca da noite. Os outros dez já lá estavam há muito. Fizeram cerca de vinte quilómetros em pouco mais de hora e meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura. O Pombal, soldado condutor da segunda viatura, foi o primeiro a lá chegar. Ao entrar dentro do arame farpado que rodeava o aquartelamento de Piche, caiu redondo no meio do chão. E só deu acordo de si muito depois de termos lá chegado”.

É a hora da despedida de Cristóvão de Aguiar, com outra recordação deste mesmo livro, uma consideração bem difundida sobre as atribuídas valentias do soldado português, sabemos bem o porquê de tal exaltação, uma forma de anfetamina que procurava resultados, e que alguns deu:
“Em campanha, disse-me um dia o segundo-comandante do Batalhão, o nosso soldado é o melhor do mundo. Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele. Veja, nosso alferes, quem são as pessoas que se abalam por problemas psicológicos e têm, na sua maioria, de ser evacuados para a psiquiatria: alguns furriéis milicianos e uma chusma de oficiais do quadro complementar, sobretudo os provenientes das universidades, abarrotados de filosofices políticas e antipatrióticas. O mesmo já não acontece, por exemplo, aos graduados vindos da Academia e dos seminários. Esses são compenetrados de dever e resignação, habituados à dureza e à disciplina da vida, formados no amor à Pátria. Mas é no nosso soldado, bronco e simples, que se encontra o nosso melhor material humano e logístico. Vê na tropa um súbito céu de fartura. Por isso, nosso alferes, nunca viu nenhum soldadinho sofrendo da caixa dos pirolitos. Logo que se lhe dê vinho, rancho e correio a tempo e horas, nada o derrubará”.

O bardo fez recruta e especialidade, que formou Batalhão e rumou para a Guiné, conta as horas difíceis vividas em Bissorã e nos arredores, afinal há temíveis emboscadas, mas nada comparado com o que dentro de alguns meses irá ficar conhecido pelo nome da Batalha do Como.

(continua)
____________

Nota do editor

Poste anterior de 5 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 11 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19969: Notas de leitura (1196): "SE SENTES NÃO HESITES", por Manuel Clemente; alma dos livros, 2019 (Mário Migueis da Silva)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Guiné 61/74 - P19949: Notas de leitura (1193): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (13) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A malta da BCAV 490 já está a beber o seu cálice de fel, o bardo Santos Andrade não pára de nos contar desditas, apanham-se armas na guerrilha, morre-se de ambos os lados, há sol inclemente, mosquitos cruéis, emboscadas e patrulhamentos, caminhamos para o final de 1963, em Bissorã, em 14 de janeiro irão todos do cais do Pidjiquiti até ao Como, começando por desembarcar na Praia de Caiar.
Faz-nos hoje companhia um escritor açoriano com vários regressos literários pela Guiné, desta feita "Braço Tatuado", conta-nos histórias avulsas, o drama central é o do Niza, que não se conformou que a sua Lena desse o dito por não dito, era uma espera longa demais, o Niza não suportou a rejeição, aqui temos o relato de toda a tragédia que chegou a Dunane num aerograma. Histórias de guerra que todos conhecemos. Mas aqui, a qualidade literária de Cristóvão de Aguiar impõe-se por si só.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (13)

Beja Santos

“Amigo Diogo Augusto
duas armas apanhou
foi este rapaz louvado,
bom serviço desempenhou.

Foi ao pôr do dia
que saiu o 1.º e o 3.º pelotão.
Junto ao senhor Capitão,
todo o pessoal seguia.
Ele nos carreiros os metia,
por entre qualquer arbusto,
muitas vezes, com muito custo,
avançavam pelas bolanhas.
Tem para contar muitas façanhas
amigo Diogo Augusto.

Até ser de madrugada,
numas tabancas estiveram,
mas dormir nunca puderam,
por causa da bicharada.
O Tavares, bom camarada,
muitas picadas levou:
o clarim adormecido ficou
a um canto encostado
e nesse dia o tal soldado
duas armas apanhou.

Quando os aviões chegaram,
voltaram à mata de Fajonquito
onde houve conflito
quando os bandidos os avistaram.
Ao 185 apontaram,
mas falhou a escorva do malvado.
Ele voltou-se para o lado
matando dois dos três.
E a 18 deste mês
foi este rapaz louvado.

O Furriel Pacífico se feriu
quase no último dia,
feriu-se um rapaz de Artilharia
quando a mina explodiu.
O pelotão de António Mestre seguiu
socorrendo o que se passou.
O Varela e o Joel alinhou
com o Diamantino, boa pessoa,
que entre Bissorã e Mansoa
bom serviço desempenhou.”

********************

Entrou-se na rotina da guerra, patrulha-se, fazem-se colunas, captura-se armamento, explodem minas. Refletia sobre as atividades da CCAÇ 675 em Binta, sob o comando do Capitão do Quadrado. E nisto a memória esvoaça para outras paragens que as de Bissorã ou Mansoa ou Farim ou Guidage, vai-se para o Leste, há um alferes que vive em Dunane, dá pelo nome de Arquelau de Mendonça, é o escritor Cristóvão de Aguiar, aqui será várias vezes invocado, hoje circunscrito a coisas que escreveu no seu romance “Braço Tatuado”, 1.ª edição em 2008:
“Os camiões estão estacionados em frente do ex-estabelecimento comercial de um libanês, transformado em edifício de comando e secretaria. Os motores aquecem, roncando. Tudo a postos: rações de combate, cartucheiras à cinta de cada combatente, sacos de campanha cor de azeitona, com alguma roupa interior, maços de cartas e aerogramas amarelos, a cor do desespero. Só falto eu. Acabei de atravessar a parada, ainda me vou demorar um pouco na secretaria, tenho de ultimar, com o nosso Primeiro Gervásio, a guia de marcha do pelotão: ‘Por ordem de S. Ex.ª, o Comandante-Chefe, segue para a sede do batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o Primeiro Grupo de Combate desta Companhia, a fim de reforçar, sempre que necessário, as forças estacionadas no sector militar constituído por Nova Lamego, Piche, Canquelifá e Buruntuma. Vai abonado, assim como todos os seus homens, de alimentação até hoje inclusive…”.
Um pouco antes, o autor já apresentara a CCAÇ 666, o mesmo número da Besta do Apocalipse, a última parte do Novo Testamento que revela o mistério de Deus julgando e destruindo o mal, a fim de implantar o Seu Reino sobre a Terra.
E apresenta-nos Dunane:  
“Fica num mamelão da planície que se alonga de Piche a Canquelifá. Pode-se avistar léguas de terra arborizada, por vezes concentrada em mata virgem, outras raleando nas lalas, ou despindo-se por completo nas bolanhas, rios secos que, na época das chuvas, se transmudam em pântanos onde o indígena cultiva o arroz, praticamente abandonado nesta zona de ninguém e armadilha para os grupos de combate que aí se atolam até ao pescoço”.

O autor é expedito em contar histórias avulsas, sem rigor de espaço e de tempo. Uma para exemplo:
“O Alferes Leite morreu cerca de um mês antes do regresso definitivo a Lisboa. Tinha o seu grupo de combate intacto – um pelotão independente de artilharia sediado no destacamento de Cambaju há cerca de dois anos. A zona era pacífica e assim havia de continuar por bastante tempo.
Passeavam-se pelas tabancas ao redor, mantinham estreitas ligações com a população indígena, composta sobretudo pelas etnias Fula e Mandinga.
Duas vezes por semana, às quartas e sextas, quase todo o grupo de combate ia ao rio abastecer-se de peixe. No destacamento só ficavam os rancheiros, o radiotelegrafista, o cabo cripto e os faxinas de serviço. O alferes acompanhava o grupo da coluna. Ele próprio conduzia o jipe, os restantes iam num Unimog velhinho e lá seguiam na sua rotineira missão piscatória. Em vez de se lançar a rede às águas, lançavam-se duas ou três granadas ofensivas que explodiam debaixo de água. Pouco depois, aparece à tona uma espessa toalha de peixes mortos. Escolhem-se os mais grados e de melhor qualidade e deixam-se os restantes para serem comidos pelos jacarés ou debicados pelas aves de rapina… Desta vez o Alferes Leite foi estraçalhado por um crocodilo. O calor chicoteava a pele tisnada e ele quis, como de costume, dar um mergulho para se refrescar. Mergulhou e nunca mais apareceu. Quero dizer, apareceram mais tarde os restos de uma perna e um pedaço de tronco. Vieram encaixotados para a metrópole”.

E irrompe o cenário da tragédia, o seu personagem chama-se Niza:
“Na mão direita a carta já desdobrada. Pelos vincos se nota que deve ter sido lida e relida. Procura em mim uma testemunha ou um confidente que lhe confirme ou arrede a teia das desconfianças urdidas no íntimo com babas suspeitas…
‘Ó meu alferes, faça-me o favor de ler esta carta e diga-me depois com toda a franqueza se a Lena não está, por meias palavras, dando o dito por não dito…’. Ao fim de a ler, fiquei com a certeza que estava. Mas não lhe disse. Procurei antes, à minha maneira, tanger-lhe os bordões de um invisível instrumento a ver se lhe arrancava o tom de outra melodia. Fui dizendo que tivesse calma. A Lena, notava-se nas entrelinhas da carta, gostava muito dele, só que estava cansada de esperar e tinha de esperar outro tanto e quem espera, meu amigo… Terminei a cantilena com um lugar-comum, desses que se lançam à água como bóia de salvação, ‘Hás-de ver, Niza, que na próxima carta ou aerograma tudo se compõe e ela muda o seu pensar, ora se muda. E o namoro fica de pedra e cal…’
O Niza desesperou, o alferes Arquelau de Mendonça apercebe-se que se chegou ao último acto quando viu o destacamento em reboliço, toda a gente a correr para se esconder, o Niza de arma apontada ameaçando quem ousa aproximar-se. Até o cozinheiro deixou os caldeiros ao lume. O Niza avisa que dispara se o alferes der um passo adiante. O alferes tenta parlamentar, o Niza ameaça, e despeja para o ar, em rajada, quase todo o carregador da espingarda. ‘O meu alferes é o maior culpado da minha desgraça; se me tivesse proibido de fazer a tatuagem, já havia remédio; agora que estou fodido não vou nem quero ficar sozinho – vão todos ficar fodidos comigo…’. Rasga a manga da camisa, aos palavrões principia a esfolar o local da tatuagem. Nesse instante caiem-lhe três homens em cima, o Niza é imobilizado. Segue para os serviços de psiquiatria do Hospital Militar. “Três dias após a chegada ao hospital, o Niza apareceu morto. Enforcou-se com os lençóis da cama. Quando o encontraram pendurado, já enegrecido, um dos furriéis enfermeiros, atraído pelo vermelho vivo do sangue ainda a escorrer-lhe do braço direito, ainda conseguiu soletrar as palavras insculpidas na pele – Amor de Lena...”

Inevitavelmente, este romance de guerra não escamoteia o horror que uma mina antipessoal provoca:
“De súbito, um estampido. Vem dos lados da dianteira da coluna. Num instinto adquirido, toda a gente se manda para o chão. Era a emboscada, já há muito esperada. Não se trata de emboscada. Tão só uma mina antipessoal que explode debaixo de um pé do Furriel Simões. Ao aproximar-me do local, deparo com um homem enegrecido, autêntico autóctone, e fico por momentos mais descansado... Num ápice se desfaz o momentâneo alívio. O sinistrado é mesmo o Furriel Simões. Ficou negro da explosão. Voou-lhe a bota do pé esquerdo juntamente com o pé. Procuram-se ambos, mas tal deve ter sido o sumiço que nunca mais se encontraram. Do tornozelo para baixo, não existe nada. Corre apenas uma bica de sangue. O furriel grita pelos filhos que deixou algures no norte do continente. Acode-lhe o furriel enfermeiro com uma injecção de morfina e estanca-lhe o sangue com os coagulantes que traz na bolsa dos primeiros socorros e enrole-lhe com gaze e uma ligadura a parte final da perna. Por fim, cai num sono de pedra. Vai agora estendido numa maca de campanha transportada por quatro homens”.

Em pinceladas largas, aqui se registam as memórias desse açoriano de S. Miguel, que em breve regressará à nossa companhia para se juntar ao bardo Santos Andrade que em breve nos irá contar a batalha do Como.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 28 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19925: Notas de leitura (1191): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (12) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de julho de 2019 > Guiné 61/74 - P19936: Notas de leitura (1192): “Cambança Final”, por Alberto Branquinho; Sítio do Livro, 2013 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 5 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12794 : Memória dos lugares (264): Contuboel e Sonaco, junho/julho de 1969, ao tempo da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Humberto Reis / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano de operações especiais Francisco Moreira, no meio do Humberto Reis (à sua direita) e do Tony Levezinho (à sua esquerda). O nosso Moreira era o homem de confiança do comandante da companhia, o Cap Inf Carlos Alberto Machado Brito (, hoje cor ref). O Moreira passou por Lamego,  pelo CIOE, tal como o Reis.



Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá)  > Contuboel > 15 de Julho de 1969 > CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (1969/71) > O alferes miliciano Francisco Magalhães Moreira (1º Gr5 Comb), à esquerda, acompanhado pelo Tony Levezinho (furriel) (2º Gr Comb), o António Fernando R. Marques (furriel), o José António G. Rodrigues (alferes, já falecido) e o Joaquim Augusto Matos Fernandes (furriel) (estes três últimos do 4º Gr Comb), preparando-se para sair até Sonaco (a nordeste de Contuboel).




Guiné > Zona Leste > Setor L2 (Bafatá) > Contuboel > "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o alf Francisco Moreira, o Rocha, condutor, o alf Rodrigues, já falecido, e o djubi, manobrador da canoa, de pé" (HR).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos,  entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Sonaco era um destacamento do subsetor de Contuboel, tendo em permanência um grupo de combate da unidade de quadrícula de Contuboel mais um pelotão de milícias. Não me consta que alguma vez tenha sido atacada ou flagelada, tal como Contuboel. (LG)


Fotos: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.


1. A propósito de uma recente referência a Contuboel e a Sonaco (*), dois topónimos de que se fala pouco, aqui no nosso blogue (, e em especial, Sonaco, que só tem meia dúzia de referências)...

O Humberto Reis, autor das fotos que acima publicamos (, que nâo têm de resto, a qualidade a que nos habituou: são de formato reduzido e fraca resolução,,,)  diz que "foi a Sonaco duas, ou três  vezes em passeio", no tempo em que a CCAÇ  2590/CCAÇ 12 esteve em Contuboel, ou seja, menos de dois meses, de 2 de Junho a 18 de Julho de 1969, na fase de instrução de especialidade dos nossos soldados do recrutanmento local . (Só um terço da companhia, os quadros e os especialistas, eram de origem metropolitana).

Sonaco era "um local sem quaisquer problemas", garante o Humberto... E eu confirmo:  pelo menos, não havia risco de emboscada ou de minas, nesse tempo... O braço armado do PAIGC não chegava até lá... Havia vários tampões, entre a fronteria com o Senegal e o subsetor de Contuboel a que pertencia Soncao. A terra tinha vários comerciantes, quer portugueses quer libaneses.

Não sei como as coisas evoluiram, depois... Enfim, era um sítio onde a malta do leste, de outros setores (como o L1,  de Bambadinca)  ia comprar vacas... O Torcato Mendonça, por exemplo, que "vivia" em Mansambo, já aqui referiu que chegou a comer alguns bifinhos das vacas de Sonaco... E eu também, em Bambadinca...

Igualmente havia quem fosse, de Bafatá, a Sonaco para pescar peixe, no rio Geba, à granada...como era o caso do Manuel Mata, (do EREC 2640, Bafatá, 1969/71). (E, a propósito, passei um belíssímo fim de semana na terra dele, o Crato; telefonei-lhe, mas ele já não usa o nº de telefone fixo que eu tinha na agenda).

A CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) realizou os exercícios finais da instrução de especialidade dos seus soldados africanos, entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel.  Andámos por lá a brincar às guerras, com balas de salva (!)... Só os graduados de cada grupo de combate (alferes, furriéis e cabos metropolitanos) levavam nas cartucheiras algumas balas a sério, não fosse o diabo tecê-las...

Em 20/6/1969, escrevi no meu diário:

 "O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias! Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros"...

Tenho ideia de lá ter ido também, a Sonaco, mas não tenho grandes memórias do sitio... Muito menos uma foto, mas pode ser que apareçam mais (**)... (LG)



Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Mapa de Sonaco (1957) (Escala 1/50 mil) > Pormenor da posição relativa de Sonaco, na margem esquerda do Rio Geba, a nordeste de Contuboel... Era uma região bastante povoada e próspera...

Os vagomestres das nossas companhias no leste conheciam Sonaco, onde iam comprar vacas... Pelo menos até ao início dos anos 70, e antes da intensificação da guerra na região fronteiriça, a norte, era um região calma... E acho que continuou calma... até ao fim.

Temos apenas meia meia dúzia de referências a Sonaco no nosso blogue... Era posto administrativo e pertencia ao subsetor de Contuboel. Tenho ideia de que, no meu tempo (junho/julho de 1969) havia lá um pelotão destacado, da unidade de quadrícula de Contuboel (, que já não recordo qual fosse, mas em princípio não podia ser a CART 2479 / CART 11; seria talvaz a CCAÇ 2436, 1968/70: passou por Bissau, Galomaro, Contuboel e Fajonquito; ou ainda a  CCAÇ 2436, que esteve em Quinhamel, Fajonquito, Contuboel e Nhacra; ambas pertenciam ao BCAÇ 2856, sediado em Bafatá).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014).



Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Guão do BCAÇ 3884 (Bafatá, 1972/74) com unidades de quadrícula em Contuboel (CCAÇ 3547), Geba (CCAÇ 3548) e Fajonquito (CCAÇ 3549).
Guiné > Zona Leste > CAOP2 > Setor L2 (Bafatá) > Susetor de Contuboel >   1972/74 > Em Contuboel estava a CCAÇ 3547 (Répteis de Contuboel),   do nosso camarada Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil. (Trabalha, ou trabalhou em tempo, no Hospital da CUF). É membro da nossa Tabanca Grande desde a 1ª série do blogue. A CCAÇ  3547 tem página no Facebook.

Quem também passou por Contuboel e Sonaco foi o nosso camarada açoriano, e notável escritor, Cristóvão Aguiar (n. 1940), ex-al mil da CCAÇ 800 (1965/67), uma companhia independente. O seu diário de guerra foi publicado no nosso blogue, organizado pelo nosso devotado colaborador, amigo e camarada José Martins. (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de:

3 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12790: Memórias de um Lacrau (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) (Parte IV): Passaram os quatro primeiros meses... Em Contuboel, ainda longe da guerra...

(...) No romance, os militares pertencem a um CCAÇ 666 (que nunca existiu, no TO da Guiné). O nosso camarada José Martins, entretanto, conseguiu,  com o seu olho clínico, identificar, a partir da leitura do livro (e da consulta do 8º Volume, Tomo II da CECA, Fichas História das Unidades, Guiné, pag. 342), a subunidade a que pertenceu o Alf Mil Luís Cristóvão Dias de Aguiar, e que era a CCAÇ 800 (Contuboel, 1965/67):

Companhia de Caçadores nº 800

Unidade Mobilizadora: RI 15 – Tomar.

A subunidade foi formada com data de 1 de Janeiro de 1965, conforme Ordem de Serviço nº 2 de 4 de Janeiro de 1965 do Regimento de Infantaria 15 de Tomar. Destinava-se, inicialmente, ao arquipélago de Cabo Verde, tendo a partida prevista para a data de 13 de Abril de 1965.

Comandante: Capitão Inf Carlos Alberto Gonçalves da Costa, sustituído em Setembro de 1965 pelo Capitão Miliciano de Cavalaria António Tavares Martins (que tinha vindo da CCav 489/Bcav 490) (...).

Constituíam o quadro de Oficiais subalternos os Alferes Milicianos:

João Belchurrinho Baptista;
Luís Cristóvão Dias Aguiar;
João Faria Cortesão Casimiro;
e João Baptista Alves.

Partida: Embarque em 17 de Abril de 1965; desembarque em 23 de Abril de 1965; Regresso: Embarque em 20 de Janeiro de 1967 (...).

A CCAÇ 800 actuou sobretudo no subsetor de Contuboel, a nordeste de Bafatá.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8423: Agenda cultural (135): Lançamento da Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial, hoje, às 19h00, em Lisboa, Fórum Picoas Plaza





Agenda cultural: Lançamento da Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial,  hoje, às 19h00, em Lisboa, no Fórum Picoas Plaza.

Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial é hoje apresentada em Lisboa,  pelo jornalista Joaquim Furtado, no âmbito do colóquio/debate "Os Filhos da Guerra Colonial: pós memória e representações", organizado pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC).


Segundo notícia da Agenda Lusa, de ontem, publicada nos jornais, a antologia,  organizada pelos investigadores Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi, é constituída por 600 poemas, de 180 autores.

A obra junta autores consagrados, alguns  inesperados (como Jorge de Sena, Paulo Quintela e até Fernando Pessoa, com "O menino de sua mãe") que se inspiraram no temática da guerra colonial, ou que a viveram (Fernando Assis Pacheco e Manuel Alegre, por exemplo, que estiveram  em Angola, logo no início); e muitos outros, desconhecidos do grande público,  que têm poemas dispersos pela imprensa regional, revistas, publicações militares (como a da Liga dos Combatentes), blogues, etc., ou que os divulgaram nas quase sempre obscuras e limitadas edições de autor.


Na perspetiva da investigadora e co-organizadora da antologia,  Margarida Calafate Ribeiro, em declarações à Lusa, tratar-se-ia de "um grande documento da fragilidade humana", nele sendo “expressos sobretudo sentimentos de dor da guerra, mas também de impossibilidade de partilha, incompreensão, nas mais variadas formas poéticas”.

Editada pelas  Edições Afrontamento (Porto, 2011), a antologia  nasceu  no âmbito de um projecto de investigação do CES/UC.





Página de rosto do Projecto Poesia da Guerra Colonial, CES/UC... Projecto com o qual, de resto, o nosso blogue deu a sua melhor e mais franca colaboração, colaborando nomeadamente com um das assistentes de investigação, a Cristina Néry Monteiro bem bem como na conferência de 30 de Março de 2009, realizada em Coimbra, em que participaram o Vasco da Gama e o Zé Manel Lopes.


Além de  outros poetas consagrados  como Casimiro de Brito (n. 1938) ou Gastão Cruz (n. 1941), é de destacar  ainda a existência de um número significativo de mulheres a escrever sobre um tema predominantemente masculino (e quase diríamos... falocrático), como é o caso das poetisas Fiama Hasse Pais Brandão, Sofia de Melo Breyner Andresen, Luíza Neto Jorge, Olga Gonçalves, Maria Teresa Horta e Rosa Lobato Faria, além de outras  desconhecidas do grande público.

A antologia, com c. 650 pp.,  está organizada por áreas temáticas:


Partidas e regressos (pp. 33-86)
Quotidianos (pp. 87-164)
Morte (pp. 165-222)
Guerra à guerra [poemas contra a guerra] (pp. 223-311)
O Dever da Guerra (pp. 313-337) (onde figuram poetas como António Manuel Couto Viana, Pedro Homem de Mello)
Pensar a  Guerra (pp. 339-378)
Memória da Guerra (pp. 379-424)
Cancioneiro [onde se incluem, por exemplo, as letras de alguns fados, como os do Cancionerio do Niassa, mas também o nosso conhecidíssimo Adeus, Guiné", de Mário Ferreira] (pp. 425-483)
Cancioneiro Popular (pp. 485-545)...

Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial será apresentada hoje em Lisboa pelo jornalista Joaquim Furtado, no âmbito do colóquio/debate "Os Filhos da Guerra Colonial: pós memória e representações", organizado pelo CES/UC.

O nosso camarada José Brás comprometeu-se a fazer um apontamento do evento. Da nossa Tabanca é, segundo julgo saber, um dos quatro representantes, juntamente com o Manuel Bastos, autor de Cacimbados (2008), que também é membro da nossa Tabanca Grande, embora tenha feito a guerra no TO de Moçambique onde foi ferido. (Nasceu em Aguim, Anadia, 1950; é dirigente da ADFA, de Coimbra); o Nuno Dempster (que entrou para o nosso blogue em Fevereirossado; é autor do livro de poemas K3; nasceu em Ponta Delgada, 1944); e o Cristóvão de Aguiar (outro açoriano, nascido em 1940).


Também estão representados outros nomes nossos conhecidos como o Armor Pires Mota (que, embora convidado por mim,  não é ainda formalmente membro da nossa Tabanca Grande), o Carmo Vicente (ex-pára-quedista, do BCP 12), o Gustavo Pimenta, o Ruy Cinatti, e outros que reconheci de uma rápida leitura ao índice. Tenho pena que o nosso Joaquim Mexia Alves tenha declinado o convite dos organizadores para figurar na antologia com a letra do seu belíssimo Fado da Guiné...

A selecção (sempre discutível...) dos organizadores baseou-se numa recolha de muitos milhares (sic) de textos poéticos... Pela sua qualidade e autenticidade, alguns dos nossos blogpoetas, ex-combatentes,  como o Josema (José Manuel Lopes) ou o Manuel Maia, podiam e deviam figurar também na antologia... Mas haveremos de fazer... a nossa, a da Tabanca Grande, onde matéria-prima não falta. (LG)
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8420: Agenda Cultural (134): Lançamento do livro Nha Bijagó, de António Júlio Estácio, dia 20 de Junho de 2011, pelas 18 horas no Palácio da Independência (António Estácio)

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6208: Blogpoesia (70): Poemas de José Orlando Bretão escritos na Guiné (Cristóvão de Aguiar)

1. Mensagem de Cristóvão de Aguiar endereçada ao nosso camarada Mário Beja Santos:

Meu Caro Beja Santos,
O José Orlando Bretão foi meu companheiro de República, em Coimbra, nos anos sessenta, antes de irmos para a Guerra Colonial.
Ele pertencia ao Batalhão de Henrique Calado e estava sediado em Farim.
Foi camarada do Armor Pires Mota. Ora, o Bretão, escreveu umn folheto a que deu o título de Três / Tristes/ Tempos, e O Regresso do Melro Preto (folhinhas do esquecimento), só para oferecer aos amigos. O folheto tem apenas oito páginas, mas tem dois poemas escritos na Guiné.
Vou transcrevê-los:


Em redor do silêncio
um imenso vazio
para onde
verso a verso
fatalmente crescerei

Oásis derramado
à volta de uma fonte


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Triste

Primeiro / Tempo

EMBOSCADA


Esperávamos em silêncio
mastigando a memória das coisas
e a Morte claramente apercebida
aguardava confiante o seu quinhão

Pensávamos:
- "Cada coice de Mauser no ombro
é uma carícia da Pátria agradecida" (*)

Mastigávamos a memória
esperando das coisas o silêncio
e a Morte claramente apercebida
recolhia confiante o seu quinhão

- Puta de Pátria que agradece aos coices.


Canjambari Morucunda /1964

(*) José Rodrigues Miguéis, É proibido apontar.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6037: Blogpoesia (69): O Dia Mundial da Poesia, da Falagueira a Buruntuma (Luís Graça)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6162: Notas de leitura (93): Braço Tatuado, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 6 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
A viagem açoriano prossegue, o vento sopra de feição, não se prevêem os desfavores da meteorologia atlântica.
Continuo suspenso da solidariedade de todos aqueles que eventualmente tenham mais livros publicados nos anos 80 e 90 e queiram ter a amabilidade de me os emprestar.
Aqui estou, estátua de pedra, a aguardar os vossos sinais.

Um abraço do
Mário


O Braço Tatuado:

O criminoso (às vezes) volta ao local do crime

Beja Santos

A expedição de Arquelau de Mendonça em terras da Guiné, publicada em “Ciclone de Setembro” (1985) deve ter sabido a pouco quer ao escritor quer aos leitores. Arquelau é um ilhéu típico: foi à guerra para não se demorar, andou lá a correr, acompanhado de um casal de rafeiros, comandou o 1º grupo de combate da C Caç 666. As suas correrias, tanto quanto parece, centraram-se no Leste, procurou alhear-se da guerra, era impossível, viu execuções sumárias, dez mortos numa emboscada, entre Piche e Canquelifá. Sofreu as solidões do aquartelamento de Dunane, sentiu a sombra da loucura, depois o Niza, o tal soldado do braço tatuado, resolveu suicidar-se quando a Lena (cujo nome estava tatuado) o preteriu por outro. Não é difícil perceber como o episódio do Niza lhe ficou gravado, obriga Cristóvão de Aguiar a revisitações: “Tento de onde estou parado parlamentar com ele. Faço-lhe ver que aquela loucura o poderá desgraçar para o resto da vida. Não me dá ouvidos. Desgraçado já ele estava, nenhuma outra desgraça o poderia afectar tanto. Dão uns passos a medo e muito devagar. Mal nota que me vou aproximando, dá dois tiros para o ar. Estaco estarrecido. Muito subtil, levo a mão ao bolso e palpo a arma. Ele olha-me com a fixidez de um dementado e entende o meu gesto sorrateiro. Diz ele: Se o meu alferes sonha em tirar a pistola, abato-o de seguida... E despeja, em rajada, quase todo o carregador da G-3 para o ar, mas não tanto para o ar que não sinta o assobio de uma bala rente ao ouvido direito. Não me dou por achado, mas entro em pânico por dentro. A minha cabeça é um carrossel de fogo. Mordo os beiços numa tentativa de autodomínio, se calhar de autodefesa. Verifico que o Niza não traz cinturão nem as cartucheiras. Respiro de alívio”.

O Braço Tatuado, garanto ao leitor, ainda tem muito para dizer. Em 1990 vai pela primeira vez aparecer desafectado do Ciclone de Setembro. Tem inúmeras parecenças mas foi à forja, aparece clarificado, tonificado, menos ilhéu. O autor esquematiza menos, aviva detalhes, tece maiores considerações sobre o que os oficiais do quadro permanente pensavam dos outros, os seus subordinados:

“ – Veja bem, nosso alferes, quem são os militares que se deixam abalar por problemas do foro psicológico e têm na sua maioria de ser evacuados para a psiquiatria: alguns – poucos – furriéis e uma caterva de oficiais milicianos, sobretudos os provenientes das universidades de onde saíram abarrotados de filosofices políticas e anti-patrióticas...

O mesmo já não sucedia, por exemplo, os graduados oriundos da Academia, nem aos que saíram, por falta de vocação, dos seminários. Ambas as castas se encontravam compenetradas do dever, da obediência, da resignação, habituada que foi a primeira à dureza da tarimba e às correntes da disciplina da vida militar profissional, formada que foi a segunda no amor e temor à religião dos nossos maiores, no respeito pelo cilício da pátria, que a todos uniu na justa luta.

– Mas é no soldado bronco e simples que se encontra, alferes Mendonça, o nosso melhor material humano e logístico; vê na tropa um súbito céu de fartura, pouco lhe interessando a destrinça entre justiça e injustiça; nem sequer lhe preocupa os porquês desta guerra que de fora nos impõem, o que nos facilita a tarefa de explicar; por isso, o nosso alferes nunca viu nem de certo há-de ver um soldadinho dos genuínos sofrendo da caixa dos pirolitos; logo que se lhe dá vinho tinto ou mesmo branco, rancho suculento e correio a tempo e horas, nada, mesmo nada deste mundo o fará esmorecer...”

Cristóvão de Aguiar cultiva as emoções-limite, os comportamentos da crueldade paradoxal (aquela que precisa de ser vista por detrás do espelho): pessoas ternas, só na aparência, capazes da mais imprevista sanha homicida; o fanfarrão acobardado; a solidão que nos torna mais frágeis quanto, como um raio, nos chega uma notícia aterradora (é o caso do Niza). O suicidado recebe os benefícios da burocracia militar: fora criado na companhia um saco azul (mediante um pequeno desconto mensal no pré de todo o pessoal) destinado à aquisição de urnas de chumbo e caixões condignos. “Teve o Niza um vistoso e moderno caixão de madeira de pau-sangue envernizada que servia de invólucro a uma bem vedada urna de chumbo. O nosso Primeiro Gervásio abateu-o ao efectivo da Companhia 666 em Ordem de Serviço e não se esqueceu de mencionar que o soldado número tantos, barra 64, ia abonado de alimentação e de pré até hoje inclusive...”. Há os ataques de abelhas, as flagelações, mas havia sobretudo o silêncio lunar em Dunane. Mas um ilhéu confessa-se, sempre: “A Ilha espera-me do outro lado do tempo, que já não é o meu, e da palavra, que ainda me vai pertencendo, e com a qual vou procurando ressuscitá-la. Como voltar agora à Ilha, que me espera, sempre me esperou, na sua fidelidade de amante antiga que, de tanta esperança desgastada, põe luto fechado e chora uma morte ainda não acontecida mas já há muito pressagiada?”. O autor está exausto, interrompe a narrativa, estão todos de abalada até Bissau, o Uíge já os espera perto do Pidjiquiti. O regresso parece fácil. Nunca será, há sempre gritos, vozes, incêndios, até animais espavoridos nos seus currais de morte. É uma guerra pronta a regressar, insidiosa, fica à espreita, na penumbra do tempo. Cada um voltou à sua ilha, agarrou no arado, remexeu a terra, fez filhos, teve uma profissão, procurou iludir os tais gritos, vozes, incêndios. Os sons, as imagens, as palavras têm esse condão de regressar e deixar a marca do ferro em brasa. É assim com todos nós. Por isso percebo muito bem este cerco lançado por “O Braço Tatuado” e matéria congénere. É uma questão de vermos a edição seguinte.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6155: Notas de leitura (92): Trasfega, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

1. O nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), enviou-nos, com data de 5 de Abril de 2010:

Queridos amigos,
Tomei o vapor para as Ilhas açorianas, parece que não quero sair de lá.
Para dizer a verdade, a saudade de São Miguel nunca me largou, ali cheguei em Outubro de 1967, lá permaneci até Março de 1968, vim formar batalhão na Amadora onde me classificaram como “Ideologicamente Inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar português”. Como se viu.
Estou a juntar as fotografias daquele tempo magnífico, bem pode acontecer que esta caterva de recordações desagúe no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Cataplasmas para pesadelos recorrentes

Beja Santos

Desde que escreveu “Ciclone de Setembro” (1985), Cristóvão de Aguiar (1940)* nunca mais largou o filão da Guiné, onde combateu de 1965 a 1967. Virá a desafectar de “Ciclone de Setembro” o romance “O Braço Tatuado” (1990), segue-se “Relação de Bordo” (1999), “Trasfega” (2003) e “A Tabuada do Tempo” (2006).

Acabam por ser farrapos que se evolam da memória, numa hora incerta entre o dia e a noite, uma mistura de recordações passadas na infância, aos encontrões entra-se na guerra, onde se misturam pessoas, rebentamentos, animais que procuram o afago humano, e o apelo à Ilha, a obsessão açoriana espalhada por dois continentes. Pegue-se em “Trasfega” (Prémio Literário Miguel Torga, Publicações Dom Quixote, 2003). É uma colectânea de contos, muito ao sabor das forças elementares da Ilha. E a culminar a viagem ruminada pela açorianidade, as dores inescapáveis de uma Guiné que não descolam daquele alferes da 666, por acaso o número da Besta, o conto “A Noite e a Sombra”. Alguém acorda estremunhado, chegou a hora da apresentação dos fantasmas, eles caminham nos rodízios da mente, quem está a viver o pesadelo permanente procura afastar as imagens das atrocidades que foram vistas por aquelas terras que têm bolanhas, tornados e até rios sem nascente, um território que mingua ou se expande de acordo com a lei inexorável das águas. Quem acordou até se lembra do Apocalipse, súbito entrepõe-se a recordação do pai, aparece depois o professor das primeiras letras e de novo se escancara a bruteza da guerra, dá pelo nome de Querubim, é chefe de brigada da polícia secreta:

“Vejo-o uma noite, em Bafatá, onde fui por abastecimentos e pelo correio para a minha companhia; está na messe de oficiais com duas crianças negras, os pais haviam sido presos e levados para parte incerta, o destino mais que marcado; na altura, ainda não sei desses pormenores, por isso me enternece a sua atitude para com aquelas duas crianças indígenas, parecem gémeas de pouco mais de seis ou sete anos; dá-lhes de comer e de beber com tanta ternura e carinho, que me vou emocionando com os maternais cuidados do secreta, ao serviço do batalhão e da Pátria... No outro dia, logo ao princípio da tarde, estou eu ainda dormindo a sesta, quando o meu guarda-costas, o Vila Velha, vem acordar-me: tinha chegado uma coluna de Bafatá comandada por um alferes meu amigo, queria falar comigo; levanto-me e vou ter com ele; ele então conta-me: “O Querubim, depois de ter saciado as crianças, cujos pais tinham sido levados para parte incertamente incerta, deu-lhes uma grande bebedeira, como se faz aos perus, e degolou-os a seguir longe da messe e do quartel, fora dos olhares cúmplices da hierarquia militar; no dia seguinte, dá o alarme, dizendo que encontrara duas crianças negras degoladas na orla da bolanha: «São certamente os turras os obreiros de tal tragédia...»; nesta conformidade, elabora um circunstanciado relatório dirigido aos seus superiores hierárquicos, denunciando crime tão horrendo, próprio de gente sem escrúpulos nem sentimentos, devemos exterminá-la sem contemplações; diz-me também o alferes Xavier que o chefe de Brigada de gabara, entre amigos íntimos, «Sempre são menos dois futuros turras para chatear...»”. Depois o pesadelo vai até Coimbra, há histórias que se enovelam, mistura-se a Ilha, os tiros nas picadas, coisas passadas em Buruntuma, quem acordou em pesadelo despede-se da escrita insinuando que regressará a qualquer momento. Como comprovam as notas do diário publicado em 2006, “A Tabuada do Tempo, a lenta narrativa dos dias”, Livraria Almedina:

Janeiro, 11 – Ao regressar da guerra colonial trazia por companhia uma caterva de fantasmas. Um deles até nem era desinteressante. Fazia com que me sentisse enjoado na sala de qualquer cinema. Mas, se fosse assistir, na mesma plateia, a uma peça de teatro, nada me acontecia. Nos filmes, tinha de sair a meio – tonto, agoniado, enjoado. Passei então a levar o meu doce fantasma apenas ao teatro, e risquei o cinema dos meus hábitos. Um dia de intensas intenções, decidi esconjurar-me. Decidi ir a um filme de Chaplin. Vomitei na sala de cinema. A cena passava-se a bordo. O mar revelava-se cavado e de tal forma desabrida se balançava o barco, no ecrã, que o enjoo do Santo Amaro, velho iate de cabotagem entre Ilhas, onde em dia aziago encomendei a alma, foi-me pouco a pouco engulhando o estômago. Não tive mão no mal-estar e lancei a carga ao mar alcatifado da plateia. Não me dei por vencido. Fui outra vez. Senti-me mal, mas, por força de vontade, não arredei pé. Dias depois, nova ida. Saí muito menos agoniado. A partir da terceira vez, deixei de sentir os agudos sintomas de princípio de gravidez. Esta tarde fui ao cinema. Antes de me sentar à banca da escrita, lembrei-me e fui espairecer. Estou já na sala do Avenida. Chato é o filme, desligo-me do ecrã. Presto atenção ao moedouro de dentro. Nas conferências de sete léguas faço o mesmo, mas nunca durmo. A arte de dormir, em conferência, só na têm alguns eminentes eruditos. Sintonizam a ciência do não cabeceamento com a última palavra do orador que os desperta para as palmas e os bravos. O filme continua chato, as imagens rodopiam. E eu, sentado num assento fofo, persigo imagens diferentes em outras telas. O banco é duro e comprido. Estou à ilharga de meu Pai, na sala do teatrinho de Pedreira. Assisto ao primeiro filme da vida, a Quimera do Ouro. Pouco ou nada entendo, mas as cenas esculpem-se-me na memória. O actor de bigodinho, chapéu de coco e de bengala, andar escanchado e as ponteiras dos sapatos enviesadas, parece-se com o mestre ferreiro da Lomba, o mestre Jaime, que ensinou o ofício a meu Pai. Radiante com a descoberta, deixo-me arrastar pela corrente magnética que sai do ecrã ao meu encontro e me vai puxando para o miolo da aventura. Nem o coto de cinza em brasa de cigarro, caído do galinheiro do teatro e que me entra no olho direito, consegue fazer-me afrouxar a atenção. Mau grado o ardume e a gana de esfregá-lo, conservo-me impassível. Almofado o olho com o lenço de meu Pai e o esquerdo faz o serviço de ambos. Saí do cinema há poucas horas, o mestre serralheiro da Lomba subindo a saudosa ladeira da lembrança e o Santo Amaro já atracado há muitos anos ao molhe da doca. Que leveza não sentir o iate de cabotagem encalhado na cova do estômago!

Fevereiro, 4 – Uma enxaqueca de endoidar o juízo, já de si pouco famoso. Três dias seguidos e respectivas noites. Parecia que havia regressado ao pós-guerra colonial, o período mais negro e cruel da minha vida. Até me conduziram ao banco do hospital. Depois de uma injecção na veia, fiquei como se tivesse renascido. Via tudo com cores mais vivas e senti-me subir ao ar como um balão.

Maio, 31 […] Ainda tive de esperar mais de uma hora por um programa televisivo sobre a guerra na Guiné-Bissau. Foi para o ar cerca da meia-noite e tinha por título De Guilege a Gadamael, duas povoações onde existiam dois aquartelamentos portugueses, ao sul – o reino do Nino, hoje presidente da Guiné (o chamado corredor da morte) – bases que foram bem fustigadas pela guerrilha e por fim, quando os ataques eram insuportáveis, abandonadas pelas nossas tropas, para fúria de Spínola. Queria fuzilar os fugitivos... Revivi a minha guerra, a paisagem continua idêntica. Gostei do programa, da confraternização dos antigos guerrilheiros com os ex-combatentes, um deles alferes miliciano na altura, actualmente professor de Liceu e com mais vinte e tal anos em cima do pêlo. Falaram todos sem preconceitos, no local outrora inferno, e ainda com resquícios da velha guerra colonial, abrindo o jogo e falando abertamente sobre o que, na altura, Maio de 1973, presidia às suas intenções. NinoVieira estava presente, fardado de camuflado, comandante supremo, na ocasião, daquela zona sulista. O Viriato Madeira esteve por lá cerca de um ano, na Ilha do Como. O Inferno ao vivo!

Como se vê, a memória de Cristóvão de Aguiar promete. Dizia-se, logo a seguir ao termo da guerra, que ninguém mais queria falar dela. Quem tal prognosticou bem se enganou: deve-se ter escrito mais sobre a guerra colonial nestes últimos dez anos que nos últimos trinta e cinco do século XX. As línguas soltam-se, talvez seja a desinibição da idade, de quem quer deixar as contas em dia, o seu legado histórico ao alcance dos outros. E enquanto esperamos novas páginas de Cristóvão de Aguiar, vamos falar de “O Braço Tatuado”.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 9 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6137: Notas de leitura (91): Depois da guerra, as recordações da região de Cacine... e algo mais , de Luís Rosa - II (Beja Santos)

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6124: Notas de leitura (90): Relação de Bordo, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2010:

Queridos amigos,

Aqui estou, dentro de uma tempestade açoriana, é um anti-ciclone que me irá devastar durante mais tempo. Aliás, a seguir ao Cristóvão de Aguiar vem o Álamo Oliveira. Renovo os meus votos de uma Páscoa renovada no ânimo de cada um.

Se me quiserem ouvir, volto a suplicar que vejam nas nossas estantes quaisquer outros autores que me possam ajudar a compreender quem mais escreveu nos anos 80, sobre a nossa guerra.

Há alguém que me possa emprestar o livro do Rui de Azevedo Teixeira?

Um abraço do
Mário


Mafra, Pico da Pedra, Contuboel, Dunane, Coimbra

Beja Santos

“Relação de Bordo” é o diário de Cristóvão de Aguiar entre 1964 e 1988 (Campo das Letras, 1999). Nascido em 1940, Cristóvão de Aguiar frequentou o curso de oficiais milicianos em Mafra, em 1964. Está na Guiné entre 1965 e 1967. A sua experiência de guerra fornece-lhe material para “Ciclone de Setembro”, que aparecerá autonomizado com o título “O Braço Tatuado”, em 1990. Cristóvão de Aguiar é detentor de importantes prémios literários e Comentador da Ordem Infante Dom Henrique.

Chega a Mafra em 26 de Janeiro de 1964 e escreve: “O casarão do Convento é tão frio e tão feio que tenho o coração a doer e vontade de chorar. Quem me dera agora na Ilha, o ventre materno para onde volto sempre que me sinto abandonado. Fiquei na caserna número 15, no terceiro piso, a maior de todas. Fiquei soldado-cadete número mil cento e catorze, barra sessenta e quatro”. Habitua-se ao toque da alvorada, faz a cama, pertence ao quarto pelotão da terceira companhia. O comandante da companhia, diz ele, é muito aparatoso nas continências, parece um sinaleiro a apascentar o trânsito. A formatura é sagrada: ali ninguém fala, mexe, ri ou pensa. Na instrução, aprende-se o conceito de pátria e fala-se em D. Duarte de Almeida, o decepado, uma verdadeira lição de patriótico amor. Estuda-se a espingarda Mauser, nessa altura a G-3 ainda não é popular. Uma boa parte da existência de um soldado-cadete passasse no corredor La Couture, o tal por onde podem andar jipes e outras viaturas. Anseia-se pelo fim-de-semana, para se sair é indispensável botas luzidias, cabelo e barba irrepreensivelmente cortados. A semana começa com um cross, na instrução da tapada a malta rasteja e dá cambalhotas na lama. Escreve em Março: “Há dois meses com uma farda e uma espingarda que, de tanto andar comigo, já me parece um membro do corpo... Estes instrutores militares são de uma crueldade mazinha. Aos e sábados e às segundas-feiras, a instrução é sempre mais dura do que nos outros dias. Hoje, sábado, o meu pelotão foi para o C.E.M.E.F.E.D., mesmo ao pé do Convento, para fazermos o pórtico. Este consiste em uma estrutura de cimento armado, com mais de três metros de altura, no cimo da qual existe um rectângulo formado por viga com não mais do que trinta centímetros de largura. O exercício consistia em subir lá para cima por umas escadinhas, com a espingarda, e depois andarmos com a arma poisada em ambas as mãos para nos equilibrarmos”. Em Maio, o quartel anda numa polvorosa, apareceram panfletos anti-guerra. A seguir, um major arengou sobre os inimigos da pátria, pediu a todos vigilância sobre o inimigo. Surgiram mais panfletos comentando os comentários do major. Chegou Junho, e com a semana de campo andaram todos a brincar à guerra. Promovido a aspirante, é colocado no Regimento de Infantaria 15, em Tomar. Aqui é chamado ao comandante, fora visto a acamaradar com um cabo miliciano, não se comove com o argumento de que é gente da terra e colega do liceu, um oficial não acamarada com um cabo miliciano em circunstância alguma. Seguem-se as férias de mobilização, no Pico da Pedra, Ilha de São Miguel, são horas de mágoa, recordações de namoros infelizes, relações familiares difíceis. Em Abril de 1965, em Sábado Aleluia, a companhia parte no Ana Mafalda. Chegado a Bissau, vão todos para a carreira de tiro, agora a espingarda é a G-3, e escreve no final do mês: “Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustrada rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões operacionais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não bélicas, oito horas seguidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida. Para que não houvesse quebra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes dessem, à vez e na ordem inversa da sua antiguidade, duas horas de instrução cada um. Ainda se acredita piamente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtudes militares, sobretudo da disciplina”. Como se escreveu na recensão de “Ciclone de Setembro” o capitão fica ferido numa operação-treino em Nhacra. Cristovão de Aguiar fica a comandar a companhia. Em Maio estão a viajar para Bambadinca, seguem Contuboel: “Fui cumprimentar as forças vivas da terra: o chefe de posto, um branco, ex-furriel e ex-seminarista, e dois comerciantes – um português, oriundo do concelho de Góis, ainda novo, e respectiva consorte, e um libanês, cujo estabelecimento fica em frente da messe”. Em Junho vai com o pelotão para Fajonquito e seguem para uma operação no mato do Caresse. Em Outubro, chegou a hora de ir para o destacamento de Dunane, não há população. Escreve: “Eis-me aqui, diante de mim, nu, andrajoso, suplicante, a alma enregelada e crucificada na cruz destes dias sem nome. Nos olhos, uma fornalha de fúria e uma fome antiga situada não sei em que víscera, essa fome de séculos que é já grito milenário de todas as bocas em mim. Eis-me, pois, aqui, disparando bombas de palavras ao concentrar o silêncio da noite”. Depois, em Janeiro de 1966: “Ontem o nosso batalhão, Sete de Espadas, sofreu dez mortos numa emboscada. Tinha ficado com o meu pelotão na base, para montar a segurança e dar apoio logístico, quando, pouco depois de terem partido para uma operação no mato do Caresse, se ouviram grandes rebentamentos. Uma hora e pouco mais tarde, chegou uma viatura com os mortos a trouxe-mouxe sob o estrado da carroçaria. Tinham morrido ali como tordos, depois dos guerrilheiros terem lançado algumas granadas defensivas para o interior da GMC”. A comissão continua em Contuboel e no Sonaco. Em Setembro, os nervos vão-se abaixo, segue para Bissau: “Aqui estou há mais de uma semana em tratamento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa película de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiros de Walter e de G-3. Faziam barulho, mééé, e eu não suportava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G-3. Se era alta noite, gritava pelo cozinheiro e seus ajudantes e mandava que esquartejassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Matava gatos também, mas esses tinham sete fôlegos e levavam muito tempo a morrer: esperneavam e miavam de tal maneira, que quase me endoideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria, com cavalo-marinho, que dei num furriel.” Em Outubro está de regresso a Contuboel. Em Dezembro, visto que era obrigatório que os soldados analfabetos saíssem da tropa a saber ler e escrever, aldrabou com uma professora cabo-verdiana os exames dos ditos: “Encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes”. E depois é o regresso. Em Fevereiro de 1967, recomeçam os estudos. Aqui e acolá, o diário vai falando na escrita, sobretudo das diferentes reacções ao “Ciclone de Setembro”. Aparentemente, este escritor nascido no Pico da Pedra irá andar por outras errâncias, até que, em Julho de 2003 escreve “Trasfega”, uma colectânea de contos, onde em “A Noite e a Sombra” vamos ser reconduzidos à Guiné. Os escritores combatentes podem adormecer, vacilar, iludir, mas a memória e certas solidariedades cumprem inexoravelmente o seu caminho.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6122: (Ex)citações (64): Guerras feitas, amores desfeitos (José Corceiro)


1. Comentário, de 6 de Abril de 2010, do José Corceiro, ao poste de P6115:


Estimados Tertulianos:  Na resenha que o Beja Santos faz do livro Ciclone em Setembro, de Cristovão de Aguiar, refere o drama do Niza (**).

Em Canjadude, na CCAÇ 5, houve um caso, real, do qual fui testemunha, que eu considero bem mais grave.

Um militar, metropolitano e já casado, faltavam-lhe cerca de três meses para terminar a comissão na Guiné, quando recebeu uma carta dos pais, a comunicar-lhe que a esposa tinha ido a entregar os dois filhos do casal, ainda bebés, aos pais dele, ela abandonou o lar, ausentando-se para parte incerta, na companhia de outro homem.

Também ele tinha uma tatuagem no peito, onde estava rabiscado um coração a ser penetrado por uma seta e dentro deste, as palavras,"amor de esposa", seguido do nome desta. No abrigo onde dormia, improvisado numa prateleira junto da cabeceira da cama, tinha sempre a fotografia da esposa e dos filhos.

Passou um mau momento, muito perturbado, e ameaçava que ia cometer triplo homicídio. Acabou a comissão, nada mais soube [dele].

Um abraço

José Corceiro

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Nota de L.G.:



(...)  E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda,  a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. 

Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. 

Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999. (...)

terça-feira, 6 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai o segundo episódio do Cristóvão de Aguiar, um escritor de tamanhão. Ainda há muita Guiné na sua obra. Como terão oportunidade de ver.
Renovo os meus pedidos, não me canso de bradar no deserto. Quanto aos anos 60, fico grato a quem se lembrar de outros autores para além de Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e Armor Pires Mota. Confio na bondade de alguém que conheça outro alguém que me possa emprestar “O Capitão Nemo e Eu” para se concluir a viagem à volta da obra do Álvaro Guerra.
Estamos já nos anos 80, o Zé Grave anunciou que anda à procura de outros açorianos, para além do Álamo de Oliveira, que o Cristóvão de Aguiar me emprestou.
Aceitam-se sugestões. Não há nenhum bairrismo nesta série de escritores açorianos: é bem possível que haja um cocktail explosivo entre ser ilhéu e ter combatido na Guiné.
Não me compete decifrar o mistério.

Um abraço do
Mário


Companhia Independente de Caçadores 666:

Nomes da miséria, a miséria dos nomes


Beja Santos

Continuamos na boa companhia do Cristóvão de Aguiar e do seu “Ciclone de Setembro”, a obra em que ele, em 1985, regressa à Guiné. A 666, o número da Besta, anda há onze meses na nomadização, um grupo de combate acode aqui, outro além. O aquartelamento está a norte de Bafatá, a Companhia Independente está integrada num batalhão de infantaria. Proceda-se ao primeiro inventário das desgraças, ao tempo: três evacuados, o mais grave com duas pernas amputadas e um falecido de todo. Tudo aconteceu três semanas após o desembarque, era uma simples operação de rotina, um treino em simulacro da realidade, ali para os lados de Nhacra, uma bricalhotice. É durante a comédia que irrompe o drama: “O guarda-costas do capitão, o soldado Barrancos, respirando valentia, despoleta uma granada ofensiva. Segura-a na mão para o que der e vier. Não é precisa. Não há inimigo à vista. Respiramos de alívio. O Barrancos também. Só que, com a atrapalhação, enfia a granada no bolso do dólman. Nunca mais se lembra que lhe havia tirado a cavilha de segurança e que, sem a mão fechada fazendo as suas vezes, ela rebenta. Demora-se no bolso apenas uns segundos, depois explode e, por simpatia, as restantes que leva ao dependuro no cinturão. Os que estão próximos levitam e voam com a deslocação do ar. O Barrancos é projectado para a bolanha ainda seca, a uns 30 – 40 metros de distância... Chego junto do Barrancos. Ele ri, ri às gargalhadas. Ao princípio ainda cuido ser choro convulsivo por causa das dores. Mas não. São gargalhadas perfurantes, acusativas lâminas... Continua rindo, bóiam-lhe nos olhos transtornados ondas de um revolto mar de loucura: Meta-me esta merda para dentro, meu furriel... Refere-se às tripas caídas por terra, dela besuntadas, esguichadas da escancarada buraqueira do baixo-ventre. Só pára de rir após a injecção de morfina, dose reforçada: Oxalá não escape, meu alferes caso contrário nunca será homem que preste”.

As críticas ao oficialato em Bissau não são poucas e a outro mais ou menos na periferia, e mesmo a norte de Bafatá. Cristóvão de Aguiar não é peco no arranjo das imagens e na descrição das misérias temporais, como se segue: “A encenação psicológica dos oficiais da repartição número não sei quantos, nem interessa, descambou no que se acabou de relatar (episódio do soldado Barrancos). Podem todos limpar as mãos à parede esburacada da consciência. Do mesmo modo, pode também o capitão de Buruntuma as mandar limpar ou cortar, como na sentença bíblica. Pertencia ele ao Batalhão Ás de Ouros, nome de guerra do Bat. Inf. 557. Valente Infante com o curso do Estado-Maior, resolveu um dia integrar-se numa operação realizada nos matos circundantes de Canquelifá. O nosso capitão Farias, como responsável pelo gabinete de operações do Batalhão, não tinha qualquer obrigação de acompanhar as tropas em acções no mato. Mas quis dar o exemplo. E deu-o como só um capitão altamente qualificado o pode dar”. No itinerário, rebenta uma mina anti-pessoal debaixo do jipão do oficial de operações do Ás de Ouros. Não houve estragos, apenas estoirou um pneu. Galhardo, o oficial escreveu em letras de imprensa e deixou no buraco: Turras, arranjai minas mais fortes; o Ás de Ouros pode com esta e muitas mais; cabrões de merda. A viagem prossegue, a operação prevista, por razões espúrias, será cancelada. Há viaturas que regressam a Buruntuma, uma delas vai a reboque da outra, avariada, lá seguem vinte homens na escolta, metade em cada uma, regressam com grande alívio, sempre é menos um combate a averbar no calendário da guerra. De súbito, um estrondo, lá na direcção em que seguiram as duas viaturas. O capitão do Estado-Maior enviou o narrador para saber o que se passou, caso tenha sido coisa séria que mande uns tiros para o ar. Avistam-se as duas viaturas imobilizadas. Alguém trás a má notícia: estão todos mortos na primeira viatura, na segunda não há ninguém e com isto atroam os céus e a terra com o sofrimento de quem assiste ao espectáculo daquela carroçaria abarrotando de carne ensanguentada. Não é possível qualquer identificação, tal o número de corpos em minúsculos destroços. Aqui, um pormenor: “O papelinho do nosso capitão do Ás de Ouros ainda se encontra, enfiado no pau, a meia haste, no fundinho da cratera causada pela mina anti-pessoal. A viatura transformada em açougue ficou imobilizada mesmo à sua ilharga”. O capitão do Estado-Maior quer os cadáveres alinhados, assim se cumpre. Os que tinham desaparecido foram encontrados em Piche: “Fizeram cerca de 20 quilómetros em pouco mais de hora de meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura”. O capitão Farias do Ás de Ouros estava prostrado: com tal desastre, lá se ia ao galheiro a promoção a major.

Muito há a contar desse tempo de nomadização: tiros em Pirada, o alferes Leite estraçalhado por um crocodilo quando anda à pesca, um soldado que passou o que era possível passar em Madina do Boé e que caiu à água a bordo do Niassa, chegamos assim ao destacamento de Dunane, situado num mamelão entre Piche e Canquelifá, meio hectare de terra rodeada de arame farpado. O que era preocupação transforma-se no tédio do isolamento. Apareceram lá as senhoras do Movimento Nacional Feminino, o nosso alferes atreveu-se, numa brejeirice, a pedir a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, para sua surpresa foi-lhe enviada pouco tempo depois. Felizmente que os cães dão companhia e ajudam a reconstituir a normalidade: a Andorinha desbarrigou, deu à luz lindos cachorros, é o grande acontecimento em Dunane. E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)