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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10816: Do Ninho D'Águia até África (36): O Life Boy (Tony Borié)

1. Novo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:


Do Ninho D'Águia até África (36)

O Life Boy...

...Namorava, e não namorava uma das filhas do Libanês!

Podia dizer-se, que namorava semana sim, semana não, pois quando estava de bem com ela, era só sorrisos, abraços e talvez alguns beijinhos, dizendo que era a rapariga mais bonita e jeitosa que havia no mundo, e quando estava zangado com ela, dizia que ela era muito feia, que era só perfumes e pinturas, que era “um paninho de armar” e que se fosse sorrir, lá para os da terra dela, pois ele era europeu, como se isso tivesse alguma influência em ser europeu. Mas dizia sempre que era europeu, pois a sua cara tinha feições “achinezadas”, pelo menos nos olhos, e alguns diziam:
- O Life Boy, deve ser filho de algum chinês.

O Curvas, alto e refilão, ao ouvi-lo, dizer todas estas coisas, cheio de experiência, pois passou a sua juventude, em algumas ruas escuras de Lisboa, respondia-lhe, na linguagem que todos lhe conheciam, mais ou menos nestas palavras:
- Caral... ta fo.., não percebes mesmo nada de “garinas”, tu não vez que apesar do teu focinho ser achinesado, és branco e europeu, e estás aqui de passagem, essa rapariga, que por sinal até é bastante bonita, e não digo que não daria uma boa esposa, é do tipo que, primeiro uma aliança no dedo, depois sim, vem o namoro, e se der para o torto, manda-te dar uma volta ao bilhar grande, que tu, apesar dessa cara achinesada, és um “patêgo”, não tens sensibilidade para acariciar uma mulher daquelas, nem sabes o que isso é - e logo de seguida - pois não está para aturar um palerma como tu, arranja outro, que goste mesmo dela, que saiba acariciá-la, e que a faça feliz!. Nem tu nem ela sabem se gostam um do outro, na cama. Sabes o que tu és em questões de amor? És um atrasadinho mental!


Chamavam-lhe o “Life Boy”, talvez por vender entre outras coisas, barras de sabão “Lifebuoy”, e era um soldado condutor, de uma companhia de artilharia, que estava estacionada no aquartelamento, também talvez tivesse uma costela de “Libanês”, pois tinha no aquartelamento, um pequeno negócio, onde vendia braceletes para relógios, pasta e escovas dos dentes, que só os furriéis, sargentos e oficiais lhe compravam, lenços tabaqueiros que era o melhor negócio, pois quase todos os soldados usavam, ou ao pescoço, ou no bolso dos calções, com um bocado de fora para se ver, ou pendurado no cinto das cartucheiras, quando saíam em patrulha, e diziam que era para lhes dar sorte, sabonetes “lifebuoy”, carrinhos de linhas, e agulhas, alguns botões, baterias para o rádio portátil e outros produtos que se usavam no dia a dia, também conseguia relógios de pulso de contrabando, com cronómetro da marca “Cauny”, mas só por encomenda, e também outros produtos, que não interessa agora mencionar.

Tinha conhecimento com dois tripulantes do navio “Ana Mafalda” que visitava a Guiné periodicamente, descarregando militares e equipamento bélico, seguindo depois a caminho da América do Norte, onde normalmente ia carregar tabaco ao porto de Philadélfia. Na altura em que este navio atracava na capital da província, o Life Boy ia ver o Pastilhas, dava parte de doente, indo no carro dos doentes à capital abastecer-se de todo o seu material.


Era um pequenino negociante dentro do aquartelamento, estava tudo bem para ele, pedia desculpa, trocava os produtos, se pudesse cobrava duas vezes, em caso de dúvida, ele era o culpado, emprestava um lanço de linha, com uma agulha na ponta para pregar um botão, depois tornava a vender o carrinho de linhas e a agulha, como se fosse novo, ia vendendo, e no fim do mês metia mais uns “pesos” na conta, se dessem por ela, pedia desculpa, se não dessem, era lucro para o negócio. Talvez não acreditem, mas certa manhã, o Cifra foi ao estabelecimento do Libanês, comprar alguns rebuçados, pois ia visitar algumas bajudas e crianças à tal aldeia com casas cobertas de colmo que existe próximo do aquartelamento, foto do Cifra em cima, e sem querer ser “coscuvilheiro”, nem coisa que se pareça, pois eles estavam à vista de toda a gente, só não via quem não quisesse, mas o Cifra encarou-os, e deu assim um sorriso um pouco malicioso, tal como aquelas velhas “coscuvilheiras” da aldeia, quando viam um casal de namorados, que os fez baixar os rostos, talvez com um pouco de vergonha, e então aí o Cifra, que repito, não era nada “coscuvilheiro”, viu-os com os seus próprios olhos que a terra há-de comer, sim, eram eles, os dois juntos, o Life Boy com a filha do Libanês.

Estavam em frente um ao outro, ela dentro, e ele fora do balcão, mas olhando-se de frente, nos olhos, pois tinham reparado no Cifra, mas agora não reparavam em mais ninguém, estavam concentrados um no outro, com as mãos juntas, passando os dedos um no outro, tal como se via nos filmes em cenas de amor, o Cifra não sabe se o Life Boy já a sabia acariciar, e estavam acariciando-se e trocando promessas de amor eterno, e fazendo juras de que seriam um do outro para o resto das suas vidas, pois o Cifra estava um pouco retirado e não conseguiu ouvir, e também não era “coscuvilheiro” a esse ponto, ou se nesse momento, o achinesado Life Boy, estava tentando roubar um anel muito lindo, com uma pedra azul turquesa, que ela usava no dedo, mas o Cifra, sempre ficou convencido que ele estava pedir-lhe para convencer o pai a lhe dispensar uma caixa de sabonetes, gravura ao lado, para ele vender no aquartelamento, pois pela manhã tinha-lhe pedido uma barra de sabão, e ele já não tinha produto para as encomendas no aquartelamento, já que o navio “Ana Mafalda”, só tornava a passar pela Guiné, talvez para no mês seguinte. Mas duma coisa estava o Cifra certo, nessa semana sim, namoravam e pelas feições das suas caras, o futuro parecia risonho.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)

sábado, 15 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10805: Do Ninho D'Águia até África (35): Boas Festas, camaradas amigos (Tony Borié)

1. Mais um episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta vez versando a época natalícia:


Do Ninho D'Águia até África (35)






Boas Festas, combatentes amigos!

A nossa geração de antigos combatentes da guerra que Portugal manteve com as suas então Províncias Ultramarinas, sofreu muito, não há nenhuma excepção, todos, mesmo todos, os três ramos das forças armadas, desde os militares do quadro permanente aos milicianos, desde alguns generais aos soldados, que alguns só com o exame da segunda classe da instrução primária, estavam ali firmes, a receber ordens que não compreendiam, e saíam a destruir bases de guerrilheiros, só com um bocado de pão rijo no bolso para entreter o estômago, todos, nos melhores anos das suas vidas, principalmente dos milicianos e soldados foram interrompidos, para irem para um local de onde não sabiam se sairiam vivos, é verdade, os africanos também sofreram, lutando e morrendo por um ideal de liberdade, as enfermeiras paraquedistas, em lugar de mostrarem a sua juventude em festas, junto de suas famílias, interromperam essa mesma juventude e foram salvar vidas, com o risco da sua, as populações civis, interromperam a suas tarefas, e muitas abandonaram o seu local de sustento, passaram fome e perderam os seus haveres, todos de uma maneira ou de outra sentiram o “ferrete” espetado nas costas, ou o “espeto” nas unhas, de muitas injustiças que viram e sofreram, sentem a dor no coração de verem o camuflado do companheiro e amigo, sujo de sangue, com restos de carne humana, muitos não mais se “acomodaram”, sim é verdade.

As mães, os pais, as noivas, os familiares de uma maneira geral, choraram as ausências, muitos, principalmente militares do quadro permanente, andaram com a “casa às costas”, os filhos frequentaram diferentes escolas, em diferentes locais, tiveram uma vida de “saltimbancos”, com diferentes climas e costumes, também é verdade, alguns contraíram doenças, devido a estarem expostos a diferentes climas, sofreram cicatrizes no corpo de estilhaços de granadas, balas, ou outros objectos que se usavam em cenário de guerra, muitos viram ser-lhes amputados membros do seu corpo, e outros única e simplesmente morreram, em combate, por acidente e por doença, tudo isto é uma pura verdade.

Mas alguns de nós sobrevivemos, e estamos agora aqui vivos, com alguma, às vezes pouca saúde, mas estamos aqui, temos boca, falamos, às vezes exaltamo-nos e desabafamos com a pessoa que estiver mais próxima, nem sempre somos correctos, até dizem que é “stress de guerra”, pois que seja, mas estamos aqui.

E de quem foi a culpa? De ninguém que esteja vivo, pois já lá vão tantos anos. Talvez do primeiro marinheiro europeu que desembarcou na África, com uma espada na mão e com uma cara de guerreiro, que passado um segundo depois de pisar terra firme, já estava a praticar um acto de injustiça, que se prolongou por séculos, e que a nossa geração sofrendo, terminou.

Calhou-nos a nós, e é aí que me quero referir, pois estamos aqui, e se o nosso pensamento tiver alguma força e poder retornar umas décadas atrás, veremos que tirando a passagem pela guerra até vivemos numa época em que o mundo desabrochou, e mostrou-nos umas certas regalias, pois muitos da nossa geração, não tinham nunca usufruído de por exemplo, a electricidade nas casas, principalmente nas aldeias, o fogão a gás ou eléctrico, o frigorífico, o veículo automóvel, as lojas de roupa, e mercados de géneros alimentícios, os laboratórios descobriram novos medicamentos e salvam milhões de pessoas, os aviões com acesso a quase todo o mundo, o homem pisou a Lua, existem satélites que vigiam o mundo e sabem a milhares de quilómetros de distância o que se passa na nossa rua, comboios super rápidos, e ultimamente o mundo dos computadores, onde se está em todo o mundo em segundos, e de uma maneira ou de outra sobrevivemos e estamos aqui.

A guerra voltou ao mundo há mais ou menos uma década, e não sabemos se os nossos filhos, netos e bisnetos, vão passar ao lado dela, oxalá que passem, pois eu não desejo ver o meu filho, o meu neto, nem o meu bisneto, dentro do arame farpado, como eu estive por dois anos, sempre cheio de medo, e oxalá que usufrua de todos os comboios rápidos, dos super-aviões e toda a tecnologia deste mundo moderno.


E só para terminar, vejam os felizardos que somos, reparem nesta fotografia que ilustra este texto, onde um ser humano, hoje, neste mundo que será dos nossos filhos, não tem uns simples sapatos, pois improvisou umas garrafas de qualquer refrigerante vazias e com uma corda feita de ramos de arbustos imitando uma sandálias, para proteger os pés.

BOAS FESTAS, companheiros combatentes, do
Cifra amigo!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 8 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (34)

Aquela garotada 



Quase sempre ao domingo, e quando estava de folga e livre das suas tarefas, o Cifra dava o seu passeio habitual pela tal aldeia, com casas cobertas de colmo que existia próximo do aquartelamento. Parava aqui e ali, já conhecia alguns habitantes, e as crianças andavam sempre em seu redor, pois sempre trazia no bolso rebuçados que comprava na loja do Libanês.


Atrás das crianças, foto com o Cifra acima, vinham os adultos e sempre se passava um pouco de tempo, falando disto e daquilo, e algumas “bajudas” eram uma companhia agradável, mas por favor, não sejam mal intencionados nos vossos pensamentos, pois o Cifra, sempre respeitou a dignidade e o forte carácter dos naturais, que muito admirava, alguns até o tratavam por “irmão”, e sempre seguiu as leis, as ordens e os ensinamentos dos “homens grandes” que, com toda a sua sabedoria, e com muitas “chuvas” no corpo, que deviam de ser anos, apontando com uma espécie de bengalim, com que afugentavam algumas moscas, e batiam nos cães, que famintos se aproximavam das “moranças”, que eram as suas casas cobertas de colmo, e que entre outras coisas, pronunciavam num português acrioulado, que o Cifra compreendia perfeitamente, e não se podia duvidar das suas palavras, pois eram sinceras, e para mais vindas de um “homem grande” para o “irmão Cifra”, e diziam, olha aquela ali... “cabaço ká tem”... anda para aqui... aquela “bajuda” além... “mama firme”... porque depois de... “tem manga di sabe sabe”... ela precisa de... está na altura de... “conversa giro”... e o irmão Cifra é que... fica no Guiné, “ca bai” no Portugal..., e quando se despedia, agarravam-lhe na mão e diziam, Cifra “ca bai”, e davam-lhe “mantenhas”, e às vezes até ficavam “tchora”. Bem, é melhor ficarmos por aqui, pois o Cifra, está com um pressentimento, que os seus amigos antigos combatentes e não só, já estão a sorrir com alguma maldade e a pensar coisas, que não eram.


Mas adiante, pois já nos estamos a desviar do principal, que era aquela garotada.
As crianças tocavam em tudo o que reluzisse da farda do Cifra, como por exemplo a fivela do cinto, os emblemas da boina, os ilhós das botas, os botões, o relógio de pulso, que algumas vezes usava, e faziam mesmo guerra, entre elas para andarem em redor do Cifra. Numa dessas vezes, estando elas em pleno convívio, e com alguma algazarra própria de crianças, de repente, desaparecem, começando a correr, cada uma para junto da sua “morança”.


O Cifra admirado com esta situação, abre os braços e pergunta a uma das “bajudas” que estavam presentes, qual o motivo desta atitude, e uma logo lhe respondeu, numa linguagem que se compreendia perfeitamente:
- O lobo do mato que come criança, anda por aí!

Fazendo um gesto em círculo com o braço, e o lobo do mato, a que se referia a “bajuda”, era uma hiena que há algum tempo andava a rondar a aldeia, e diziam que já tinha levado um bebé a uma mãe menos cautelosa.

O Cifra, como não tinha ouvido nenhum ruído, nem nenhuma movimentação em seu redor, ficou admirado como era possível as crianças, foto com o Cifra em cima, terem dado pela presença da referida hiena. Ainda hoje não sabe, só tem uma explicação, talvez o olfacto ou o instinto natural de protecção que um ser humano tem, mas só sensível em alguns. Era mesmo uma hiena, pois passados uns minutos ela passou um pouco ao longe, com o rabo curto, caído e quase entre as patas traseiras.

O Mamadú, um caçador que costumava passar as madrugadas esperando que os animais viessem beber a uma pequena bolanha que havia para os lados de Porto Gole, onde caçava as suas prezas, um dia apresenta-se no aquartelamento, dizendo:
- Pessoal vai buscar lobo do mato que está morto e não come mais criança!

E lá foi a caminho da casa do Libanês, levando outra preza que era uma gazela morta, pendurada à tiracolo, pela levou uma nota de cinquenta pesos, embrulhadinha e metida na sacola do seu farnel, onde não faltava coca que mascava quase vinte e quatro horas por dia.

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

sábado, 8 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10773: Do Ninho D'Águia até África (33): O Grupo do Cifra (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 4 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (33)

O Grupo do Cifra

Perdoem lá, mas este texto é um pouco mais longo, pois o Cifra quer apresentar-vos as personagens que o acompanharam durante dois anos neste conflito, em que esteve envolvido, sem nunca ter dado um tiro, e para ele uma granada, era um bloco de ferro que o Curvas, alto e refilão às vezes carregava no bolso.

O Cifra tem fotografias de alguns, mas como devem compreender, não as pode publicar, pois não sabe se estão vivos, o seu estado de saúde, ou o seu estado social, portanto não quer de maneira alguma ferir a sua muito digna personalidade, oxalá estejam vivos, leiam estes textos e se retratem nestas personagens, pois foram os seus companheiros, os seus “heróis”, dos quais guarda as suas imagens, no fundo do seu coração, e o acompanharam em momentos de angústia, amargura, também com muitos sorrisos e às vezes até chorando, durante o tempo em que esteve neste conflito. Esta é a homenagem que lhe presta. Portanto cá vai, com a vossa também muito digna compreensão.

O Setúbal, para o Cifra, era mais do que o companheiro, o militar, o guerreiro ou o amigo, era qualquer coisa como aquele “garoto”, que todos nós tivemos na infância, que vivia na porta ao lado da nossa casa, na mesma rua ou na mesma aldeia, com quem brincávamos, jogávamos à berlinda, à bola, roubávamos fruta do quintal do vizinho, às vezes zangávamo-nos e andávamos à porrada, mas sempre amigos. Sim, era isso tudo, mas adultos e confidentes, pois o Setúbal, contava coisas ao Cifra da sua vida privada com aquela que iria ser a sua esposa amada, e que às vezes o Cifra não queria ouvir e lhe dizia:
- Essas coisas não se devem contar, são coisas tuas e da tua noiva, pensa nelas, nesses momentos que são única e simplesmente vossos, e que ao pensar neles, mais faz fortificar o desejo de a tornar a ver, e deste modo, não a vais esquecer nunca, e o amor entre vocês, cada vez vai ser maior.

Ele ao ouvir isto, começava a chorar, mas ao fim de algum tempo, voltava ao normal, e com a chegada até eles do Curvas, alto e refilão, que vocês já conhecem a sua desafortunada história, de relatos anteriores, que foi abandonado pela sua mãe, que andava “na vida”, ainda criança, e viveu “ao Deus dará”, como é costume dizer-se, sem nunca ter um carinho ou alguém que lhe limpasse o ranho do nariz, e sem nunca ter conhecido a palavra “mãe” ou a palavra “família”, passando quase a sua adolescência em escaramuças, negócios ilícitos e em esquadras e cadeias da capital, a perguntar:
- O que é que passa com este agora? Eu não disse, que depois que veio de férias e viu a noiva, veio um pouco “amaricado?

Mas adiante, o Cifra, o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, eram amigos e faziam um grupo unido, era uma espécie de “Trempe”, era um “Triângulo”, a quem outros companheiros, às vezes queriam modificar, como por exemplo, o Mister Hóstia, a todo o momento, nunca perdendo nenhuma oportunidade de tentar convertê-los em bons cristãos, dizendo-lhes:
- Toda a vossa força unida tem que estar ao serviço de Deus, rezem e ajoelhem-se perante Jesus, que é o vosso Salvador, no lugar de andarem sempre a fumar e a beber, só pensarem no mal e nas “bajudas”, que vão ser a vossa perdição.

Como isto não chegasse, o Pastilhas, sempre que via qualquer um deste grupo aproximar-se da enfermaria, logo ia esconder o frasco do álcool, e dizia:
- Bêbados, vão morrer queimados por dentro e eu tenho muito prazer em ir ao vosso funeral.

Claro que o Curvas, alto e refilão, logo lhe respondia, naquela linguagem porca e agressiva:
- Oh pastilhas, deixa-te merdas, pois nós sabemos que às vezes ao fim da tarde, essas faces rosadas na cara, não são só do sol e o teu nariz às vezes também vermelho não engana, o que tu queres é o álcool só para ti.

O Furriel Miliciano, era tratado por este nome, porque era o seu posto militar, mas no tratamento, era simples, amigo, parecendo mais um companheiro, soldado combatente e sofredor. Do seu grupo de combate fazia parte entre outros o Trinta e Seis, o Marafado, o Setúbal, o Mister Hóstia e o Curvas, alto e refilão, e diziam que esse sim, era o líder. Quando saíam em patrulha, ele gostava do grupo, convivia, pois via neles uns “gajos fixes”, que fumavam cigarros feitos à mão, e sempre prontos para uma farra.

O Arroz com Pão tinha as suas queixas, mas passageiras, e no fundo, tirando o roubo do pão e de algum vinho, até gostava deles, pois às vezes ajudavam a descascar batatas, mas só em última necessidade, mesmo quando não houvesse mais ninguém, pois estragavam mais batatas do que o normal e queriam sempre a caneca do café cheia de vinho, às vezes dizendo:
- Fora daqui, vai-te lucro que me dás perca!

O Trinta e Seis, um soldado telegrafista, era um homem adulto no seu proceder, até responsável de mais para a sua idade, tinha algum poder de influência sobre o Curvas, alto e refilão, que o ouvia e só a ele obedecia, sem refilices. Diziam que quando saíam em patrulha, o Trinta e Seis ia sempre junto do Curvas, alto e refilão, e além de se protegerem um ao outro, o Trinta e Seis, controlava-o nas suas, por vezes, descontroláveis acções.

O Marafado, no princípio era alegre, gostava de vinho, e até cantava uns fados desafinados, mas depois que presenciou uma cena de uns prisioneiros mortos, onde os seus corpos foram queimados e enterrados numa vala, nunca mais foi o mesmo homem, para o final era um homem calado e marcado pela guerra, raras vezes se juntava, passava o tempo ouvindo música, o relato do seu Benfica e notícias no seu rádio portátil.

O sargento da messe compreendia o grupo, facilitava o acesso ao bar dos sargentos, talvez porque precisasse da ajuda do Cifra nas contas, pois era este que lhas acertava todos os meses, pois tinham sempre que terminar em zero, sem lucros nem perdas, e ele não era lá muito bom com algarismos, até diziam que era “burro”, passe o termo, pois era uma excelente pessoa, pelo menos para o Cifra.

O Comandante não queria que lhe fizessem a saudação, talvez para não saberem que era comandante e que dava ordens que matavam pessoas, dizia que estavam todos no mesmo barco mas com diferentes responsabilidades, o Cifra mais tarde veio a saber que era um apaixonado pela arte de fotografar, queria respeito, às vezes quando as coisas não corriam bem ficava com cara de Comandante, e quase todos o evitavam.

Também havia as filhas do Libanês que eram importantes para os militares estacionados em Mansoa, havia até quem dissesse que elas eram as causadoras de os militares tomarem banho mais frequentes vezes, vestirem roupa lavada e fazerem algumas vezes a barba, e pentearem o seu cabelo, portanto tinham mais poder e influência nos militares do que os seus superiores, que podiam dizer mil vezes para terem mais higiene pessoal, que a esses mesmos militares não lhes importava qualquer ordem nesse sentido, e que acima de tudo enchiam a igreja de perfume exótico, também se dizia que se não fossem elas a igreja talvez, em alguns dias, ficasse vazia. Talvez não fosse verdade.

Havia o “Life Boy”, de quem ainda não falei, mas irei falar lá mais para a frente, que veio para o aquartelamento algum tempo depois, que parecia um chinês, já sei que vão dizer que só faltava o “chinês”, e tinha uma costela de “Libanês”, pois passado pouco tempo de ter chegado ao aquartelamento, já se andava a fazer a uma das filhas do Libanês, era um pequeno comerciante dentro do aquartelamento.

A menina Teresa era quem escrevia as cartas que a mãe Joana mandava ao Cifra, tinha alguma influência nas decisões da família do Cifra e as referidas cartas tinham sempre o seu aval final, portanto quando o Cifra lia uma carta da mãe Joana, mais de metade eram opiniões dela, que vai ser protagonista de uma história um pouco bizarra.

Só havia o tal Major das Operações Especiais, o tal que deu uma bofetada, que mais parecia um murro, na cara de um guerrilheiro fardado, com as mãos amarradas, e que caiu no chão desamparado, por lhe ter dito que queria ser tratado como prisioneiro de guerra. O apelido do Major era Sardinha, portanto o Major Sardinha logo foi rebaptizado de Major “Petinga”. Queria a saudação sempre que com ele nos cruzávamos, o Cifra pensava que devia de ter sido promovido há pouco tempo, pois andava sempre vestido de camuflado, com um cinto, onde trazia uma pistola, os galões novos e reluzentes nos ombros, as botas sempre engraxadas, e como no comando a que o Cifra pertencia, tirando militares condutores auto, era tudo pessoal de gabinetes, que não deviam de saber acertar com um tiro duas vezes no mesmo sítio, alguns nunca tinham pegado numa G-3 nem nunca tinham tirado uma cavilha a uma granada, aquele Major vestido assim e com aquelas atitudes, fazia rir o pessoal, portanto, com tanto exagero, tornava-se ridículo.

A apresentação das personagens vai já terminar à frente. Um dia, este grupo do Cifra, do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, mais o Trinta e Seis, regressando da sede do Clube de Futebol, juntos, passa pelo tal Major, que logo diz, com uma cara séria, mostrando autoridade:
- Vocês não podem andar assim em grupos, portanto a partir de agora separem-se, só podem andar dois militares juntos.

Nesse momento, o tal Major estava na companhia de mais dois ou três militares graduados, e o Curvas, alto e refilão, como era seu costume, pois não recebia ordens, logo lhe respondeu, colocando-se na posição de sentido, com a sua medalha Cruz de Guerra ao peito, fazendo o tal Major “Petinga”, também colocar-se na mesma posição, dizendo com a maior das calmas:
- Essa lei é só para nós ou para todas as patentes militares?














O Major “Petinga”, que era muito mais baixo na estatura, virou os olhos para o chão e respondeu:
- Vão lá embora, por esta passam.

Pouco depois, o Curvas, alto e refilão, quando junto do seu grupo, disse:
- Gostava de apanhar este filho da p..., lá no mato, debaixo de uma emboscada dos guerrilheiros, pois deixava-o lá sozinho.

Passado uns dias, quando o Cifra foi entregar uma mensagem decifrada no comando, o major “Petinga”, pergunta ao Cifra:
- Ouve lá, sabes se aquele soldado, a que chamam Curvas, alto e refilão, já matou alguém? Ele olhou-me com uma cara!

Pronto, já ficaram a conhecer esta “cambada”, que se forem simpáticos, pacientes e se também tiverem um pouco de heróis combatentes, mas mesmo muito pacientes, ao ponto de terem pachorra e resistência para estarem tanto tempo sentados e ler até ao fim estes textos, que às vezes a brincar, conta a verdade das situações de dor, sofrimento, angústia e também de algumas ocasiões menos más, não muitas, que todos nós vivemos nessa maldita guerra, na então província da Guiné.

Oh meu Deus, só agora é que vi, o texto é mesmo longo, desculpem lá!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10759: Do Ninho D'Águia até África (32): Falsa notícia (Tony Borié)

1. Trigésimo segundo episódio, enviado em mensagem do dia 1 de Dezembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (32)



O Cifra, já tinha uns meses que estava localizado em cenário de guerra. Estava ainda no período de ambientação e quase todos os meses tinha a missão da entrega do novo código da cifra, pelas diversas unidades de acção, que essas sim, se encontravam na verdadeira zona de conflito.

Não sei se já foi dito, que para esse fim usava os mais variados meios de transporte, eram os que nesse momento se deslocavam de unidade para unidade, tanto podia viajar numa coluna militar como na avioneta do correio ou no helicóptero, mas quase sempre era a célebre coluna militar, e era onde se sentia mais seguro, lá ia, sentado, sempre com a G-3 entre as pernas, que o Setúbal tinha limpado e oleado, dizendo depois que estava operacional.

Ia sempre a tremer de medo, tentando falar sempre com alguém que se sentasse a seu lado, para desanuviar a mente, pois sempre que ouvia um ruído ou um movimento fora do normal, ficava em pânico.

Uns dias depois de ter passado na estrada, que mais parecia um carreiro, entre Bissorã e Olossato, uma coluna foi atacada, havendo alguns feridos entre os militares.

O Cifra nunca soube porquê, mas porque no Olossato estava um companheiro que era da sua zona em Portugal, com quem tinha falado, talvez esse colega tivesse escrito, dando a notícia aos familiares de que tinha havido um ataque à coluna onde houve militares feridos. Daí terá corrido a falsa notícia na sua aldeia, no vale do Ninho D’Águia, que o Cifra tinha sido ferido, e “como quem conta um conto, acrescenta um ponto”, a menina Teresa, a tal costureira solteirona, que por saber ler e escrever, entre outras coisas era a conselheira da família, estava na cabeleireira da vila, a fazer a permanente e a eliminar o bigode, com um produto novo, que cheirava muito mal, que tinha vindo de França, ouviu dizer que tinha morrido um rapaz na Guiné que era do norte da vila, mas não sabiam o nome.

Pronto, foi o suficiente, para chegar ao conhecimento da mãe Joana, que o Cifra, já não tinha sido ferido, mas sim, morto em combate, onde tinha lutado contra muitos guerrilheiros, dado muitos tiros, e tinha morrido abraçado aos restos da bandeira nacional, que estava toda em farrapos dos tiros e da explosão das granadas. Era um herói porque naquela altura a província da Guiné andava nas bocas do povo, como se fosse o inferno, pois alguns contingentes de tropas tinham sido desviados da província de Angola e Moçambique, para irem de emergência, e alguns mal preparados, diga-se de passagem, para a província da Guiné.

Calculam a aflição da mãe Joana, ela não queria saber nada se o filho era um herói, se tinha morrido agarrado à bandeira nacional, nessa altura em farrapos, o que ela queria era o seu filho vivo. A pobre, lavada em lágrimas, foi ao quartel, onde recebia o dinheiro todos os meses, perguntar aflita, onde lhe disseram que não sabiam de nada, mas que iam imediatamente telefonar e que esperasse, que já lhe respondiam.

Era mentira! Estava vivo e sem problemas, pelo menos era a informação oficial. Na próxima carta, que a mãe Joana notou, e que a menina Teresa escreveu, conta-lhe toda a história, e o Cifra manda-lhe um aerograma com as seguintes palavras:

Mãe, estou vivo e com saúde! Morto, só se for afogado em cerveja ou de saudades vossas!

E da unidade militar onde o Cifra tinha sido treinado antes de ir para a província da Guiné, onde talvez tivessem conhecimento das investigações sobre a dita falsa morte do Cifra, a sua mãe recebe uma carta de encorajamento, foto em baixo, onde entre outras coisas, dizia:

“Minha senhora, o vosso filho António..., [...] aqueles sentimentos que dignificam e enobrecem o homem..., [...] a família militar, é uma extensão da família de cada um de nós..., [...] podeis, legitimamente, orgulhar-vos do vosso filho..., [...] aprumado e respeitador, qualidades estas que a par de óptimos sentimentos e carácter, o tornam o digno de ser considerado como um exemplo a seguir pelos seus camaradas e igualmente digno do apreço dos seus superiores. E se uma mãe, se pode orgulhar de um filho assim, permita-me minha senhora que, sem querer ferir a vossa modéstia, afirme que esse filho, se pode orgulhar também de sua mãe, por esta ter sabido educá-lo de tal forma”.

E assinava por baixo, Mário Belo de Carvalho, Major de Artilharia.


Não há dúvida, que estas palavras serenaram a mãe Joana, que já não se lembrava se a bandeira nacional estava em farrapos, o que talvez até já estivesse, pois o povo andava triste, com a guerra colonial a levar os jovens das aldeias, vilas e cidades para a África, ficando assim despovoadas, deixando as raparigas solteiras e sem namorados, alguns não mais regressavam, mas a mãe Joana, agora “babando-se” de orgulho por o seu filho ainda estar vivo. Todos os dias se levantava ao passar do comboio das seis e meia, que ao apitar aflito, ao descer o vale do Ninho d’Águia, em direcção ao mar, a acordava, e mesmo antes de acender o lume na lareira, onde fervia a água para fazer o café de chicória numa grande panela de três pernas, que era o utensílio mais importante da casa, pois era nessa panela que cozinhava todas as refeições, e também “entalava”, alguns vegetais para os animais, acendia uma vela ao Santíssimo e rezava um Pai Nosso e uma Avé-Maria à Nossa Senhora de Fátima, para que o filho regressasse vivo da maldita Guiné!

 (Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10743: Do Ninho D'Águia até África (31): O Movimento Nacional Feminino em Mansoa (Tony Borié)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Guiné 63/74 - P10743: Do Ninho D'Águia até África (31): O Movimento Nacional Feminino em Mansoa (Tony Borié)

1. Trigésimo primeiro episódio, enviado em mensagem do dia 27 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (31)

O Movimento Nacional Feminino em Mansoa

Todos sabíamos que era domingo em Mansoa, e ia haver “manga de ronco”, com o rancho um pouco melhorado, para mais trabalho do cabo do rancho, o bom do Arroz com Pão, que logo pela manhã, andava aflito a procurar voluntários para o descasque de batatas em particular, pois tinha havido missa pela manhã, e o padre tinha dito:
- Tenho o orgulho de dizer que está presente entre nós, Sua Excelência, o Senhor Segundo Comandante do Território e a Digníssima Senhora Presidente do Movimento Nacional Feminino, nesta província.

Isso era verdade, alguns militares já tinham reparado nessas personalidades, embora a maioria deles só tivesse olhos para as filhas do Libanês, que “inundavam” toda a igreja com o seu perfume exótico!

À tarde, próximo da igreja, num palanque feito a preceito, foto em baixo, e revestido com folhas de palmeiras e de outras árvores tropicais, onde estavam presentes, estas entidades, o comandante do comando a que o Cifra pertencia, e outros comandantes das forças de intervenção que estavam estacionadas no aquartelamento em Mansoa, mais o Régulo da vila, entre outros.


Desfilaram, primeiro, alguns militares, que foram voluntários, pois nesse momento tinham roupa lavada, onde ia o furriel miliciano, a fumar um cigarro feito à mão, e que, alguns diziam que se queria mostrar às filhas do “Libanês”, também tinham pedido ao Curvas, alto e refilão para desfilar com a sua medalha Cruz de Guerra, ao que ele perguntou se era uma ordem, e dizendo-lhe que não, ele respondeu:
- Só vou no desfile, com a minha medalha Cruz de Guerra, se for com as estrelas de General nos ombros, que é para vos mandar a todos para Portugal e acabar com esta merda de guerra. - Era assim, o homem, rude na linguagem, mas directo.


Em seguida desfilaram os “Homens Grandes”, das aldeias próximas da vila, alguns com cinco e seis mulheres, foto ao lado, com o Cifra, e quando passaram em frente à tribuna, olharam as entidades por segundos, desviando o seu olhar para as referidas mulheres, para que continuassem juntas, querendo mostrar às entidades presentes que as mesmas eram sua propriedade. Depois desfilou um rapaz africano, com um corpo de “campeão de pesos pesados”, foto em cima, quase nu, a soprar num corno, emitindo um ruído que obrigava a tapar os ouvidos, a seguir vem a multidão, que eram os curiosos, como por exemplo o Cifra, o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, alguns naturais, uns descalços, e só com um farrapo a tapar-lhe os órgãos genitais, com algumas pulseiras de missanga nos braços e nas pernas, outros com uma vestimenta branca a cobrir-lhe todo o corpo, e com um gorro de lã na cabeça, algumas crianças, também descalças, algumas com o dedo na boca e o ranho no nariz, e mulheres com bebés amarrados com uma fita de pano nas costas. Também desfilaram alguns naturais que ajudavam os militares, servindo de guias tradutores, fotos em baixo, com o Cifra.


O Curvas, alto e refilão, primeiro dizia que queria ser general e mandar tudo para Portugal e acabar com a guerra, e agora não parava de dizer:
- Isto é tudo fachada! Estão aqui muitos guerrilheiros disfarçados, no meio de toda esta gente. Segurem-me, se não ainda vou buscar a G-3!

Todos nós sabíamos que só saíam bazófias da sua boca, mas adiante, vamos continuar, foram buscar o carro da Psico com a sua aparelhagem sonora, houve discurso a preceito, fotografias, e no final distribuição de lembranças, como por exemplo, lâminas para a barba, cigarros, aerogramas, isqueiros, uns santinhos com a imagem de Nossa Senhora de Fátima em cima de uma árvore e os pastorinhos de joelhos, com o terço na mão, muito tristes a olharem para ela, que alguns militares passaram a usar no capacete quando saíam em patrulha, e que o Mister Hóstia, gravura ao lado, se encarregou de distribuir, umas carteiras em plástico, com um buraquinho, para se aplicar um fio, e pendurar ao pescoço, para guardar os documentos de identificação para os naturais, com o escudo de Portugal, onde se lia, a letras douradas, “Território Português - Província da Guiné”.

Quase ao acabar toda esta cerimónia, uma das senhoras presentes, talvez porque o Cifra andasse por ali, talvez informada, ou única e simplesmente se recordasse da cara do Cifra, porque este, antes lhe tinha pedido um isqueiro para o Curvas, alto e refilão, que andava sempre a “pedir lume” a toda a gente, chama-o e entrega-lhe um embrulho com umas centenas de aerogramas, e alguns isqueiros, dizendo-lhe:
- Por favor leva isto, e distribui pelos militares no aquartelamento.

O Cifra, gravura à esquerda, com a ajuda do Setúbal e do Curvas, alto e refilão, trouxe o embrulho para o aquartelamento, e tal como a senhora lhe tinha pedido, começou a distribuir os aerogramas e os isqueiros a outros militares. Correndo o boato, no aquartelamento, que o Cifra tinha aerogramas do Movimento Nacional Feminino para distribuir, foi distribuindo, até não haver mais.

Quando se acabaram, ninguém acreditava que o Cifra não tinha mais, daí começou novamente o boato que o Cifra era o representante do Movimento Nacional Feminino, que tinha muitos aerogramas e isqueiros, mas que não queria distribuí-los.

Teve o comandante que interferir e colocar uma folha oficial, no refeitório, para todos lerem, em abono da verdade, que o Cifra não tinha mais aerogramas nem isqueiros.

Desses aerogramas, que eram de cor amarela, o Cifra não usou nenhum, só começou a usar aerogramas, quando vieram uns novos com uma cor de azul esbatido. Assim como com os isqueiros, pois o Cifra tinha um, que uma madrinha de guerra de Espanha, lhe tinha mandado com o emblema da ONU, que conservou até final da comissão.

Quando alguém interpelava o Cifra, a respeito dos aerogramas, e o Curvas, alto e refilão, estava presente, ele logo dizia:
- Filho da p....! És pobre e mal agradecido, ainda vais levar com este isqueiro no focinho, se voltas a insultar o Cifra!


Ao outro dia, o Cifra passa na altura em que desmanchavam o palanque e vê dezenas de santinhos pelo chão, pois possivelmente os tinham distribuído aos naturais, foto em cima, que não sabiam o que aquilo era, que o Cifra apanhou, juntou e, como se fosse um baralho de cartas, levou para o Mister Hóstia, que emocionado lhe disse:
- Já vejo que te estás a aproximar de Jesus Cristo, pois tanto tu, como o Setúbal e o Curvas, alto e refilão, já não têm alma, andam em pecado mortal há muito tempo!

(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)  
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Nota de CV:

Vd. os últimos 10 postes da série de:

27 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10578: Do Ninho D'Águia até África (21): O Tabaco, para alguns (Tony Borié)

30 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10594: Do Ninho D'Águia até África (22): Uma história de amor em pleno conflito (Tony Borié)

3 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10611: Do Ninho D'Águia até África (23): O maldito dente (Tony Borié)

6 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10627: Do Ninho D'Águia até África (24): O nosso Cabo Reis (Tony Borié)

10 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10646: Do Ninho D'Águia até África (25): O comboio das seis e meia (Tony Borié)

13 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10661: Do Ninho D'Águia até África (26): Raízes de agricultor (Tony Borié)

17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10683: Do Ninho D'Águia até África (27): O perfume exótico das filhas do Libanês (Tony Borié)

20 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)

24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)
e
27 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10729: Do Ninho D'Águia até África (30): As lavadeiras (Tony Borié)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10729: Do Ninho D'Águia até África (30): As lavadeiras (Tony Borié)

1. Mais um episódio, enviado em mensagem do dia 20 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (30)

As Lavadeiras

Há mil histórias das ditas “Lavadeiras”!
Quase todo o militar dizia:
- A minha lavadeira, é melhor do que a tua!


 O Cifra depois da fraca experiência, com a sua lavadeira, que afinal era guerrilheira, andou um tempo sem lavadeira, andava sujo, e por vezes usava a roupa do Setúbal, ou mesmo do Curvas, alto e refilão.
Não podia continuar assim, pois não se sentia confortável, e em conversa com o Setúbal, este diz-lhe:
- Porque não usas a minha lavadeira? Creio que ela já desconfiou, que lhe entrego roupa a mais, todas as semanas.

E isso era verdade, pois por vezes, o Setúbal levava alguns calções e camisas do Cifra, para ela lavar, e ela era esperta, pois entre elas falavam, e sabiam quantas peças de roupa, era normal um militar usar por semana. Diziam por lá, que ela era de etnia “Papel”, e como tal muito desconfiada, nasceu na Ilha de Bissau, e tinha vindo para Mansoa, há catorze “chuvas”, que deviam de ser anos.

O que o Criador lhe deu a mais fisicamente, roubou-lhe um pouco na inteligência, e se se lembrasse de dizer que o Vinte e Oito da companhia velha, era o Trinta e Seis do pelotão de morteiros, tinha que ser mesmo, e lá havia um conflito, pois estes dois militares eram completamente diferentes na fisionomia do seu corpo.

Mas continuando com a história, passou a ser também a sua lavadeira, foto ao lado, e como tal, ficou sujeito a todas as anomalias da troca de roupa, e quando ao sábado a vinha entregar, e quando havia alguma confusão, ela logo respondia:
- Mi, lavá roupa para manga de pessoais!

O que era verdade, mas não motivo para entregar ao Cifra, três meias soltas, uns calções, onde cabiam dois Cifras, já sem forro nos bolsos, e sem botões na frente, e umas calças de camuflado, que o Cifra nunca usou, pois o Cifra não usava camuflado, toda a sua farda de camuflado, foi usada pelo Setúbal e pelo Curvas, alto e refilão, e que ela dizia a pés juntos que eram dele. Ao pôr uma mão no bolso dessas calças, encontrar o isqueiro do Curvas, alto e refilão, que já procurava há uma semana, pois “pedia lume”, a toda a gente e dizia:
- Se encontro o filho da p... que me roubou o meu isqueiro, eu máto-o. Cabrão!


Mas havia um dia, em que ela, quase nunca se enganava, e até colocava a tal flor de cheiro sobre a roupa, esse dia era ao final do mês, e antes de entregar a roupa, estendia a mão e dizia:
- Dá patacão, é fim de mês.

Às vezes, pagavam com notas do Banco Nacional Ultramarino, e ela nunca dava o referido troco, e dizia:
- Mi, “patacão ká tem”, está bem assim.

O Curvas, alto e refilão, dizia:
- Filha da p..., para ela, o mês só tem três semanas!. Qualquer dia mato-a!

(Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados) 
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)

sábado, 24 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10716: Do Ninho D'Águia até África (29): Maldita matacanha (Tony Borié)

1. Vigésimo nono episódio, enviado em mensagem do dia 20 de Novembro de 2012, da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.


Do Ninho D'Águia até África (29)

Maldita “Matacanha”

Eram quase cinco da tarde, o pessoal andava por ali, eram quase todos veteranos, estávamos na época quente, no dormitório a temperatura era quente e abafada, ainda bem que não havia portas, pois havia duas entradas ou saídas, depende do que lhe queiram chamar, uma ao norte e outra ao sul, mas não corria nenhuma aragem, uns andavam quase nus, só com uma toalha suja e encardida enrolada à cinta, outros com os calções sobre o corpo, quase ninguém usava roupa interior, pois a experiência dizia-lhes, que depois de andarem durante um certo tempo molhados com o suor e a água da bolanha, ficavam com as partes mais íntimas cheias de “rosetas”, que era umas marcas vermelhas na pele, que cresciam de dia para dia até ficarem com essas mesmas partes inflamadas, fazendo-os caminhar com as pernas abertas, e queixando-se de algumas dores e um desconforto que fazia alguns dizerem:
- Ando com aquela doença, entre as pernas, que na minha aldeia lá em Portugal, dava nos coelhos, e a que chamavam “micose”, ou coisa parecida!

Quando isso acontecia, iam ver o Pastilhas, que depois de os analisar, dizia:
- Abre as pernas, segura no pénis, e fica quieto!

E logo em seguida, ia buscar o frasco da tintura de iodo, e com um pouco de algodão, pintava as referidas partes, que depois de uns segundos de acabar com este curativo, o homem começava aos gritos com dores da forte queimadela que acabava de sofrer na parte mais íntima do seu corpo. Então o Pastilhas, dizia de novo:
- Continua a segurar no pénis, e com a outra mão abana com este bocado de papelão, que a dor vai passar em cinco minutos. E era verdade, e o bocado de papelão em forma de abanador, era uma peça de ferramenta que o Pastilhas tinha feito de uma caixa de remédios, e que lá estava guardado em cima do caixote dos medicamentos. Passada uma semana, a pele caía, e as feridas ficavam curadas.

Mas vamos continuar, pois já nos estávamos a desviar do assunto principal que era andavam por ali.
Era verdade, eram quase todos veteranos, com os dedos amarelos do cigarro, os dentes pretos da água e não só, as unhas grandes e pretas também, o cabelo e a barba grande, o bigode retorcido, que lhes dava um aspecto de pessoas mais velhas, do que na realidade eram, já quase todos tinham chorado de angústia e medo, debaixo de fogo, em emboscadas, conheciam o cheiro do sangue quente e da pólvora, das munições que naquela altura a sua amada G3 com o cano em brasa consumia, alguns já tinham marcas no corpo de estilhaços de granadas, e nos seus ouvidos, já tinha entrado por diversas vezes o som de tiros e gritos de dor e desespero, que alguns seus companheiros, feridos de morte lhe pediam, que deixassem os guerrilheiros em paz, e que lhe dessem um tiro a eles, pois não suportavam mais a agonia das dores.

O comando a que o Cifra pertencia, ultimamente retardava as ordens, e só comunicava aos militares umas horas antes de saírem, e como tal, aparece o furriel miliciano, fumando um cigarro feito à mão, entra no dormitório, tira o cigarro da boca, e quase que se queimava com o cigarro nos dedos, pois já só era uma “pirisca”, mas continuava a segurá-la, e de vez em quando chupava-a, e no intervalo dizia:
- Já sabem o costume, saímos às seis da manhã.

O Marafado, diz:
- Eu não posso, ando a mancar, por causa d.... - E não acabou de falar, pois o Trinta e Seis, que dormia a seu lado, e estava sentado na cama, interrompe e diz:
- Ele não pode pôr o pé no chão, tem lá uma “matacanha”, e não a quer arrancar.

O furriel, que já tinha acabado de fumar, e preparava-se para fazer outro cigarro, diz:
- Deixa lá ver essa merda!

E o Marafado mostra o pé, e por baixo de um dedo tinha uma saliência na pele, como se fosse um típico “calo”, mas com uma pintinha preta no meio. O Furriel miliciano, olha para ele e diz, quase a sorrir:
- Marafado, é uma ordem, vai ver o Pastilhas.

E ele lá foi ver o Pastilhas, que ao reparar no pé, logo lhe diz:
- Porco, tens umas unhas que pareces uma daquelas ovelhas do campo, toma lá este alicate e corta essas unhas, javardo.

Depois de cortar as unhas, conforme pode, e sentindo-se um pouco desconfortável, pois as unhas grandes, faziam parte do conforto dos seus dedos, o Pastilhas, derrama um pouco álcool nos dedos, e perante a cara de sofrimento do Marafado, diz:
- É uma “matacanha”, vamos arrancá-la.

Vai à cozinha e pede um pouco de pão e um copo de leite condensado morno, ao Arroz com Pão, ele já sabe, e traz.
- Anda vai depressa que já é quase noite, e depois não vejo.

Deita o Marafado no chão, em cima de uma capa de camuflado, que servia para usar quando chovia, coloca-lhe o pão embebido em leite morno no local da “matacanha”, e passado uns minutos, com uma espécie de bisturi, começa a cortar a pele, com uma habilidade tal, que retira uma bolinha forrada de pele, deixando a marca debaixo do dedo, igual ao formato da bolinha que retirou, que em seguida queimou num pouco de algodão, embebido em álcool.

O Marafado, passado dois dias, estava pronto para ir dar o corpo às balas, com dizia o Curvas, alto e refilão.


Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Guiné 63/74 - P10699: Do Ninho D'Águia até África (28): A avioneta do correio (Tony Borié)

1. Vigésimo oitavo episódio da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, enviado em mensagem do dia 17 de Novembro de 2012:


Do Ninho D'Águia até África (28)

A avioneta



O Cifra, nas suas viagens de entrega de material classificado, que era o novo código do sistema de cifra, todos os meses renovado, e que era entregue por mão a todas as forças militares que se encontravam em cenário de guerra, sob o comando da unidade de que fazia parte, viaja agora, na avioneta do correio. Vai sentado atrás, ao lado dos sacos do correio. Costuma levar consigo, quase sempre uma Kodac, que o Movimento Nacional Feminino lhe ofereceu numa das suas visitas ao aquartelamento.

O piloto era um furriel, a quem carinhosamente chamavam “Pardal”, que todos conheciam no aquartelamento, pelas suas acrobacias. Iam aterrar numa povoação perto da fronteira com outro país africano, foto em baixo do marco da fronteira.


Voavam baixo, pois o “Pardal” conhecia a pista, que não era mais do que uma clareira no capim. Havia alguma água no solo, não se apercebeu, fez-se à pista e tentou aterrar. A roda esquerda do trem de aterragem ao tocar o solo molhado, desequilibrou a aeronave, que voou mais uns tantos metros, rodopia um pouco, para a direita e para a esquerda, seguindo de novo em frente, embora balançando para um lado e para o outro, mas ficando completamente parada e em segurança, um pouco mais à frente.

Por momentos o Cifra, fica como que paralisado e em pânico. Com o impacto do aparelho no solo, devia de ter dado umas cambalhotas dentro da aeronave, ou talvez não, nunca chegou a saber, pois não levava qualquer cinto de protecção. Recupera o seu sentido de orientação, apalpa a cabeça, com as mãos, não vê qualquer sinal de sangue, afasta um saco do correio de cima de si, bate com os pés, não se recorda se era janela ou porta, que estava em sua frente, com tal impacto, se era porta ou janela, abriu-se. Sai, olha para a frente, e vê o militar, que viajava na frente, sentado com a cabeça baixa, sinal de que talvez tivesse perdido os sentidos, abre a porta, e nesse momento o militar olha para o Cifra, assustado, fazendo algumas perguntas, parecendo estar em pânico.

O Cifra ajuda-o a sair e explica que tiveram um acidente. Do outro lado, no assento do piloto, “O Pardal”, que o Cifra nunca chegou a saber se perdeu o controlo da aeronave, ou o seu sentido de orientação, diz, com a maior calma do mundo:
- Qual acidente, qual caral..!. Vai à volta e abre esta merda, que estou farto de empurrar a porta.

Ninguém sofreu qualquer ferimento, a não ser o susto. No dizer do “Pardal”, a aeronave estava operacional. Em seguida, surgem alguns militares, que vinham prestar protecção e levar os sacos do correio. Ajudaram a colocar de novo a aeronave em outra posição, o Cifra, passou para o lugar da frente, levantou voo de novo usando um lado da clareira no capim, com bastante receio do Cifra, que passado pouco tempo, e perante os sorrisos do “Pardal”, aterraram em Mansoa, depois de fazer umas tantas acrobacias no ar, pois sempre que via uma árvore mais alta, dava uma volta a rasar em seu redor, fazendo a passarada fugir. Quando surgia um rio ou uma bolanha, passava a rasar a água, e sempre que fazia estas manobras, o Cifra agarrava-se com quanta força tinha à cadeira, e às vezes até fechava os olhos, e o “Pardal”, logo dizia:
- Está visto que não és um militar de acção.

O tal militar que viajava na frente, a quem o Cifra abriu a porta para sair, e pertencia à companhia local, ficou eterno amigo do Cifra, e sempre que passava no aquartelamento, bebiam um copo juntos, fazendo juramentos de que nunca diziam nada, do medo que na altura sentiram.

O Kodac das fotografias desapareceu, talvez fosse juntamente com os sacos do correio.
O Cifra gostava mesmo daquela máquina, era do tipo que para se tirar uma fotografia, tinha que se puxar uma pequena alavanca do lado do caixote.

(Fotos e Ilustrações: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 17 de Novembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10683: Do Ninho D'Águia até África (27): O perfume exótico das filhas do Libanês (Tony Borié)