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segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22721: Notas de leitura (1393): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
Pode não ser o que se chama uma lança em África, um olhar refrescado sobre tudo o que aconteceu das vésperas da II Guerra Mundial até o continente africano ter ficado praticamente independente, com exceção de algumas poderosas parcelas da África Austral; mas é um documento de trabalho muito útil que permite ao leitor olhar a evolução do continente passo a passo desde o início da descolonização até ao seu termo, entender o contexto internacional completamente alterado depois da vitória dos Aliados, depois da criação das Nações Unidas e de soprarem os ventos anticoloniais, sobre o comando das superpotências. Temos aqui essa marcha imparável com todas as suas etapas após a independência da Índia e a Conferência de Bandung. Um documento que assegura ao leitor os porquês de uma cavalgada da História onde a exceção esteve nas renitências do Estado Novo e no regime do Apartheid.

Um abraço do
Mário



O continente africano no limiar da II Guerra Mundial e depois (2)

Beja Santos

A obra de Marianne Cornevin foi no seu tempo uma iniciativa singular, pela quantidade de informação oferecida sobre a situação política no continente africano antes da II Guerra Mundial, as operações militares que aqui decorreram, as repercussões económicas que o conflito acarretou, os acontecimentos imediatos a que não faltou o grande impulso da independência da Índia e da África inglesa, a marcha para a independência desde a década de 1950 até junho de 1977, dia da independência de Djibuti. Trata-se de uma informação rigorosa que contextualiza o que de primordial ocorreu e que veio justificar a onda descolonizadora: “História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias”, por Marianne Cornevin, I Volume, Edições Sociais, 1979.

Já se aludiu à situação política no continente nas vésperas da II Guerra Mundial, viu-se como África pesou nas operações militares que levaram às perdas do Eixo e prepararam o assalto ao sul de Itália, muitos africanos combateram em diferentes teatros de operações, não só a sua vida mudou como descobriram que tinham direitos à liberdade, à autodeterminação, e daí o conjunto de movimentações no imediato pós-guerra que a autora regista. A segunda parte deste volume vai da independência da Índia e da Conferência de Bandung até às mudanças que se operaram na África Austral, com as independências de Moçambique e Angola.

Essa década de 1950 traz independências em África e aproximam este continente da Ásia, houvera a emancipação do Sudeste Asiático e a proclamação da República Popular da China, a Grã-Bretanha concedeu independência ao Império das Índias, ou seja, quatro quintos da população do Império Britânico; a mesma década vai trazer calafrios à política francesa por causa da Indochina, como observa a autora, um salto terrível: “Os números oficiais indicam 15 mil africanos mortos na Indochina, ao lado de 11 600 legionários, 26 mil e 600 franceses da metrópole, 26 mil indochineses do exército francês, 17 mil e 600 soldados dos estados associados”. Uma década em que houve mudanças na Palestina e no Egito e a Conferência de Bandung (1950) não foi meramente simbólica. As superpotências, já em confronto, deram conta de que os países afro-asiáticos tinham querer. Depois da Conferência espalhou-se no mundo que a África colonizada iria fatalmente seguir o destino da Ásia. Aos olhos de muitos autores, Bandung apareceu como o pendente exato do Congresso de Berlim, em 1885, a África fora colonizada porque era colonizável, em 1955 a África iria ser descolonizada porque se tornara descolonizável. Como aconteceu: Líbia, Egito e Sudão; os combates sanguinários na Argélia que levarão à sua independência em 1962; a emergência de uma literatura negra sobretudo de expressão francesa e inglesa; Nkrumah é quase visto como um Messias, ele lança ideias de federação e de unidade entre Estados, uma fórmula de exponenciar potencialidades dos recursos; haverá mudanças no Togo, na Costa do Marfim, nos Camarões, no Senegal, no Quénia, no Uganda.

E a autora escreve:
“Os dez anos que se seguem à Conferência de Bandung vão assistir a um refazer total do mapa político da África. De quatro em 1955 (Egipto, Etiópia, Libéria, Líbia) e cinco se contarmos com a União Sul-Africana, o número de Estados soberanos passará a 36 em 1965, 38 se contarmos com a República da África do Sul e a Rodésia. Dos quatro grandes conjuntos coloniais africanos em 1955, apenas restará em 1965 o português. A África belga já não existira, da África francesa restarão os minúsculos territórios de Djibuti e das Comores; da África inglesa apenas subsistirão os três territórios do Lesotho, Botswana e Suazilândia”.
A previsão dos novos ventos da História concretizou-se, com muitas dores de renúncia, como a Argélia, com atribulações sangrentas, como o Congo e com os holofotes apontados aos resquícios do colonialismo, nomeadamente a África austral. O trabalho de Marianne Cornevin discreteia sobre as independências proclamadas antes de 1960 e as posteriores: as catorze independências da África francesa, o Congo belga, a Somália; mas também outras independências como a Nigéria, a Serra Leoa, o Tanganica, Ruanda e Burundi, Argélia, Uganda, Quénia, Zanzibar, Niassalândia-Malawi, Rodésia do Norte – Zâmbia, Gâmbia, Rodésia do Sul – Rodésia.

Inevitavelmente, o termo da obra foca-se na África a sul do Zambeze até à independência de Moçambique e de Angola, dando atenção aos acontecimentos da África do Sul, da Namíbia, do Lesotho, Botswana, Suazilândia, o que se passou na Rodésia entre 1965 e 1975.

Falando de Moçambique e dos dez anos de guerra, a autora observa que não foi nada de surpreendente a guerra de libertação se ter iniciado quinze dias após a independência do Malawi, como nada tem de espantoso o facto de ser essencialmente entre os Macondes que a guerra se tenha desenvolvido. Depois do morticínio de 1960, os Macondes tinham passado em massa o rio Rovuma e juntaram-se na Tanzânia, a Frelimo era produto da união de vários movimentos e tinha como líder Eduardo Mondlane assassinado em 1969. O 25 de abril de 1974 coincide com um período de intensa atividade da Frelimo, atacando as vias férreas que partem da Beira para a Rodésia e para o Malawi. Ao contrário de Moçambique, onde foi a Frelimo que combateu sem nenhum outro apoio interno, e que se apresentava como o partido “único, supratribal e nacional”, a questão angolana foi mais complexa pelo facto de existirem três movimentos que se guerreavam entre si, tendo havido a habilidade das autoridades portuguesas em explorar tais dissensões. A autora enumera os acontecimentos a partir de 4 de fevereiro de 1961, quem era quem no MPLA, na FNLA e na UNITA. E tece o seguinte comentário: “Do ponto de vista militar, é incontestavelmente o FNLA que apresenta em 1974 as perspetivas mais favoráveis. O FNLA dispõe de três campos de treino situados no Zaire que pertencem, na sua quase totalidade, à etnia Kongo. A UNITA é certamente o mais fraco dos três movimentos. Os efetivos do exército do MPLA ou FAPLA são nitidamente inferiores aos do FNLA”. Refere igualmente o espetacular desenvolvimento de Angola no final do período colonial, graças ao petróleo, a riquíssima jazida de minério de ferro de Cassinga e os diamantes. O livro termina com a II Guerra em Angola em 1976, com a vitória do MPLA, a sua admissão como membro da OUA e o seu reconhecimento a partir de 17 de fevereiro pela CEE e Portugal.

Mapa político de África depois da descolonização.
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22697: Notas de leitura (1392): "História da África Contemporânea, da Segunda Guerra Mundial aos nossos dias", por Marianne Cornevin, I Volume; Edições Sociais, 1979 (1) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 7 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21147: (In)citações (164): Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

Paulo VI em Fátima
Com a devida vénia a Renascença


1. Em mensagem do dia 6 de Julho de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto a que deu o título: Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonialal.


Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial

Há 50 anos, o Papa Paulo VI tramou Marcelo Caetano, o regime e semeou os ventos da tempestade da mutação de Portugal.

Foi o primeiro Papa a visitar Portugal e Fátima, em Maio de 1967, a contragosto do Governo de então, Salazar considerava-o um “cidadão estrangeiro perigoso” e o seu ministro Franco Nogueira passou a imputar-lhe agravos gratuitos, inúteis e injustos a Portugal.

Salazar fora derrotado pela velha cadeira do Forte de Santo António da Barra e o Papa Paulo VI, tendo recebido em audiência o Ministro Rui Patrício, em 25 de Maio de 1970, que rendera Franco Nogueira, que lhe foi abordar a agenda da nossa guerra africana, no dia 1 de Julho de 1970 e, sem invocar a inspiração divina, recebeu em audiência privada (na Sala dos Paramentos?) e abençoou os três líderes da guerra colonial Amílcar Cabral (PAIGC), Agostinho Neto (MPLA) e Marcelino dos Santos (FRELIMO), este em representação do operacional Samora Machel, indisponível por estar a braços com o General Kaúlza de Arriaga e os 8000 militares portugueses, investidos na extensa e impetuosa “Operação Nó Górdio”.

Para o efeito, essa “troika” de exilados portugueses (só perderão a nacionalidade em 1975), ora líderes independentistas africanos, forjados na CEI, Casa dos Estudantes do Império e nos quartéis do Exército Português, aproveitara a dinâmica da II Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colónias Portuguesas, convocada pelas centrais sindicais italianas CGTL, CISL e UIL em Roma, que teve o concurso de 177 organizações de 64 países, incluindo os exilados políticos de Portugal, do PCP de Álvaro Cunhal, da ASP de Mário Soares, da FPLN de Piteira Santos e Manuel Alegre, órfã de Humberto Delgado e militantes do Movimento a Favor da Paz, fórum lisboeta de católicos vanguardistas, segundo uns e de “cristãos pagãos” segundo outros, motivados pela encíclica “Pacem in Terris" do Papa João XXIII e a “Populorum Progressio” do Papa Paulo VI.

A ideia do aproveitamento dessa Conferência para uma audiência papal foi da inteligência revolucionária de Marcelino dos Santos, residente em Paris, em Janeiro desse ano encetou em Roma as diligências, mas a sua materialização será devida a Amílcar Cabral, que persuadiu o Bispo de Conacri, Raymund-Maria Tchimdibo, a negociá-la com o Vaticano e mobilizou a jornalista e militante católica progressista Marcella Glisenti, sua amiga desde 1968, Presidente da Associação Italiana dos Amigos da “Presence Africaine” (revista da negritude francófona, editada em Paris e Dacar), que, no maior segredo, se encarregou de toda a logística e de manipular com um perfil de líderes cristãos e democráticos o ex-Núncio no Senegal, Cardeal Giovanni Benelli, o segundo na hierarquia do governo do Vaticano (o Secretário de Estado, cardeal francês Jean Villot, estava ausente).

Às 12H00 foi-lhes franqueada a entrada pela Porta de Santa Ana, o Pontífice recebeu-os afectuosamente às 12H30 e mostrou-se particularmente deferente com Amílcar Cabral, que serviu de porta-voz, em francês.

A notícia correu o mundo, sem fotos, com o registo do embargo de um monsenhor português da Pontifícia Comissão para a Comunicação Social ao acesso dos jornalistas, Marcelo Caetano soube do caso logo na manhã do dia 2, informado pelo jornalista americano Dennis Redmont e a Censura congelou a notícia até ao dia 5.

A Comunicação social não teve acesso, não puderam tirar fotos, mas os audientes tiraram. No seu livro “Crónica da Libertação”, Luís Cabral reproduz a primeira página do boletim “PAIGC actualités” com uma foto dos intervenientes, no primeiro patamar da escadaria interior do Vaticano (de acesso à Sala dos Paramentos?), com a Marcella de costas e Amílcar Cabral em destaque…

Todo o mundo os conhecia como marxistas-leninistas ortodoxos e ateus confessos, do género de não olhar a meios para atingir os fins, não entraram na Santa Sé como “penetras”, o Governo protestou a ofensa da Igreja à sua “Nação Fidelíssima”, a comunicação social do Vaticano, em vez de invocar a sua “inspiração por Deus”, ridicularizou-se com a afirmação de que o Papa ignorava quem eram, a sua diplomacia a negar uma audiência no sentido do termo e a fazer passar a mensagem do carácter religioso do acontecido.

Com a devida vénia a Fundação Amílcar Cabral

Os muros de Roma e da Praça de S. Pedro apareceram pichados de “Viva il Portogallo”, o corte das relações diplomáticas esteve iminente, a diplomacia desempenhou o seu papel, as relações voltaram “à cordialidade antiga”, o evento passou a “facada pelas costas” ao Papa e Marcelo Caetano tramado.

Essa audiência papal no dia 1 e a morte de Salazar no dia 27 desse mês serão o início da contagem decrescente do fim do regime do Estado Novo. Com o “Botas”, o desfecho seria o mesmo? Em apenas 7 minutos, aqueles protagonistas da audiência papal fecharam o ciclo histórico de 545 anos de cumplicidade da Igreja com a afirmação do Portugal africano, estabelecida pela Bula “Romanus Pontifex” do Papa Nicolau V ao rei D. Afonso V, O Africano, e ao infante D. Henrique, O Navegador, – o documento de direito internacional da escravatura da raça preta pela raça branca.

Os três líderes independentistas que o Papa Paulo VI recebera e abençoara tinham a força do “espírito do tempo”, eram senhores da guerra, com as mãos manchadas de sangue dos seus próprios compatriotas. Não eram da dimensão política e humanista do bem-aventurado Nelson Mandela.

Em Fevereiro de 1964, no I Congresso de Cassacá, Amílcar Cabral introduziu a pena de morte no normativo jurídico do PAIGC, julgou sumariamente e mandou executar de imediato alguns compatriotas e correligionários (o regime de partido único e ditatorial do irmão Luís Cabral aplicá-la-á a alguns milhares, arbitrariamente, sem qualquer julgamento); montara uma cilada e em Abril de 1970 ordenara o assassinato de 4 oficiais do Exército Português e seus impedidos, que ousaram ir desarmados ao encontro do PAIGC; havia montado uma cilada e, na véspera de partir para Roma e ao encontro do Papa, ordenara a execução do seu conterrâneo bafatense, enfermeiro Paulo Gomes Dias, seu opositor anti-marxista, então presidente da FLING Progressista, um partido moderado sediado em Dacar; mandara executar imediatamente o “sniper” do PAIGC que, por rebate de consciência, não eliminou o General António Spínola de visita à sua tabanca; etc.

Marcelino dos Santos era “a FRELIMO sou eu”, segunda figura de partido único e ditatorial, pela aplicação seus pressupostos ideológicos e implementação do “socialismo científico” tornou-se responsável, no mínimo moral, da guerra civil subsequente à independência, que devastou Moçambique e dilacerou os moçambicanos durante 17 anos.

Agostinho Neto, pela recusa à coexistência e com a perseguição sanguinária aos seus adversários políticos FNLA e UNITA, tornou-se responsável pela guerra civil, subsequente à independência, que devastou Angola e dilacerou os angolanos durante 27 anos, que lhe imputam a assinatura em branco de cerca de 25 000 sentenças de morte de angolanos, no contexto da “crise fraccionista”, espoletada pelo seu opositor Nito Alves; etc.

A História reflecte o seu autor, mas não se reescreve. Alçados ao poder em Angola e Moçambique, em 1975, mandatados pelo MFA, deriva das FA Portuguesas, aqueles líderes de Angola e Moçambique, por convicção ideológica, não fizeram os caminhos da Paz na base da Verdade, Justiça, Caridade, Liberdade e do Desenvolvimento e dos Direitos Fundamentais dos dois Povos, paradigmas daquelas duas encíclicas que evocavam.

O Cardeal Benelli, que o Cardeal Villot censurara de abusador da sua ausência, notabilizar-se-á na promoção eleitoral dos Papas João Paulo I e II; o Bispo Tchimdibo, admirador de Amílcar Cabral, passou 9 anos como prisioneiro do sanguinário ditador Skou Touré; tido na consideração do mais talentoso e moderado dos “três líderes terroristas”, Amílcar Cabral morreu às mãos dos seus correligionários, diz-se que a impulso do mesmo Sekou Touré, mas o insuspeito Agostinho Neto, no seu relatório de Presidente da Comissão Internacional de Inquérito à sua morte, diz ter colhido em Conacri os depoimentos de 500 dos seus correligionários, 325 exprimiram-se abertamente contra Cabral e apenas 20 a seu favor; Marcella Glisenti continuou activista, católica progressista e livreira na sua “Paesi Nuovi”,envolvida na revista “Presence Africaine" pela negritude, émula dos textos de Albert Camus, de Jean-Paul Sartre e dos poemas de Leopold Senghor; Agostinho Neto foi morrer a Moscovo; Marcelino dos Santos morreu de velhice, na sua cama; Marcelo Caetano morreu exilado no Brasil; e o inclusivo Papa Paulo VI, pela sua áurea de anti-colonialista, de progressista, no entanto condenatório da regulação artificial da natalidade, subirá aos altares, beatificado em 2014 e canonizado em 2018, pelo Papa Francisco.

O ano português de 1970 foi tempo de mutação.

O desgaste físico e moral pelos 10 anos de luta evidenciava-se nos três teatros de guerra no Ultramar, com ambos os beligerantes a braços com a sua rejeição, a falta de recursos humanos, refractários, deserções e aquela audiência papal teve repercussões nas chancelarias internacionais e na própria Igreja portuguesa.

Os sacerdotes deixaram de invocar o auxílio do “Deus dos exércitos” e alguns sacerdotes mais corajosos falavam abertamente contra a guerra ultramarina nas suas homilias, havia excursões populares às suas missas, lembro os padres Feliciano Alves, os capelães militares Mário de Oliveira e Arsénio Puim, estes dois camaradas da Guerra Guiné, expulsos do Exército e do sacerdócio.

Nesse mesmo ano, Maurice Schumann, notável ministro francês e um dos pais da União Europeia, veio a Lisboa instar Marcelo Caetano, estava na altura da solução política, para não deitar tudo a perder, incitou-o a imitar ofereceu a ajuda da França e da CEEE, este confidenciou-lhes a sua impossibilidade, alegando o impedimento do Exército e o seu receio da separação transformar Moçambique num estado racista, apoiado pela África do Sul, sendo plausível que respaldado no facto de, em Janeiro, os USA terem reatado o fornecimento de material militar, abrindo as portas ao rearmamento tecnológico das FA Portuguesas, designadamente de aviões Mirage e da panóplia de mísseis. Havia um ano que a Força Aérea alertara o Governo da forte possibilidade de o PAIGC vir a dispor de aviões MiG e da nova geração de mísseis antiaéreos soviéticos.

Como Alto-comando funcionava e decidia em Lisboa, com o Decreto-Lei 49 170 de Junho, Marcelo Caetano cometeu a responsabilidade das operações nos três teatros de guerra ultramarina aos respectivos Comandantes-Chefes e investiu três provincianos nesses cargos, a nata do corpo de generais de Portugal – António de Spínola, Guiné; Kaúlza de Arriaga, Moçambique e Costa Gomes, Angola.

 O General Costa Gomes, com a prestação do General Bethencourt Rodrigues (que virá a render Spínola na Guiné), resolveu a guerra em Angola; o General Kaúlza de Arriaga encostou a FRELIMO às cordas da derrota com a “Operação Nó Górdio” (os seus detractores dizem que não, mas o comandante seu oponente, o insuspeito Presidente Samora Machel, afirmou que sim), mas foi “derrotado” pelo massacre de Wirimau); e o General António de Spínola, o mais politizado, idealista e “romântico” dos três, não fez o caminho da derrota militar do PAIGC, antes fez o caminho da promoção social das populações e do progresso do território, falhou a manobra no Chão Manjaco (a tragédia dos 3 Majores), logrou um êxito parcial na “Operação Mar Verde” a Conacri (libertação de cerca de 3 dezenas de prisioneiros militares portugueses), mas foi “derrotado” pelo assassinato de Amílcar Cabral.

Um exército pode levantar-se contra a invasão de outro exército, mas não contra a invasão de uma ideia (Victor Hugo).

E a Guiné, calcanhar de Aquiles do Ultramar (Amílcar Cabral), passou a cancro corrosivo das FA Portuguesas (Saturnino Monteiro).

Grandezas e misérias da espécie humana.

Manuel Luís Lomba
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Nota do editor

Último poste da série 13 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21071: (In)citações (163): Sermão antirracista do Padre António Vieira: "Cada um é da cor do seu coração" (seleção: António Graça de Abreu)

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
"A Crónica da Libertação" é uma narrativa que o Presidente Luís Cabral, preso na Fortaleza da Amura, foi esboçando, com recurso a memórias. Liberto, teve alguns apoios e esclarecimentos sobre os factos descritos, ele fizera a sua narrativa sem qualquer documentação. Daí o texto, hoje obrigatório para o estudo da luta armada não ter rigor na sequência histórica, nomeadamente quanto ao período que está aqui a ser analisado, entre 1964 e até princípios de 1966.
A despeito destas lacunas, Luís Cabral evidencia a estratégia gizada para o Sul que, diz ele, ultrapassou todas as expetativas postas por Amílcar Cabral, quer quanto ao vigor da desarticulação como quanto à possibilidade de abrir ligações e canais de abastecimento entre a República da Guiné e um conjunto de bases que permitiram a implementação do PAIGC apoiado por populações no Sul e junto do Corubal, acrescentando-se a esses sucessos de 1963/1964 a região do Morés.
Releva a chegada do armamento pelo canal marroquino e as armas e demais material soviético que começa a chegar em grandes quantidades ao porto de Conacri, já em 1964.
É uma escrita de cunho vitorioso em que o acento tónico é posto na profunda admiração de Luís Cabral sobre o seu irmão.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (46)

Beja Santos

“Muito tempo eu andei
com um braço engessado.
De ter a mania de palhaçar,
tive este mau olhado.

Sargento Pedro me convidou
para ir ginástica treinar
e um dia fomos falar
com quem o treino organizou.
O Isaac não rejeitou
e nesse dia comecei.
Umas sapatilhas calcei
e vesti também um calção,
e efectuando a instrução
muito tempo eu lá andei.

A 16 de Abril, a praticar
no Benfica de Bissau,
o caso esteve muito mau.
Quando um pulo fui jogar,
entrou comigo o azar,
caindo desequilibrado.
No chão fiquei deitado,
e alguns gemidos lançava
e ao fim de dias andava
com um braço engessado.

Para o tratamento fazer
na Amura eu fiquei
e todo o tempo andei
sem o braço poder mexer.
Mal podia escrever:
para a família não duvidar
tinha osso fora do lugar
que o braço não endireitava
e só assim eu deixava
de ter a mania de palhaçar.

Os médicos me receitaram
supositórios para tomar
e ondas curtas ia levar.
Mas com isso não me curaram.
Muitos dias se passaram
e o osso continua rachado.
Talvez seja ainda operado
mas não sei quando é
pois na Província da Guiné
tive este mau resultado.”

********************

Deixemos o bardo em paz com os seus trambolhões, de braço ao peito. Continua de pé esta necessidade de dar amplitude à compreensão da guerra em que o BCAV 490 este envolvido, muitas vozes se têm alevantado para contar o rol de peripécias do que foi aquela luta pela independência, como vimos o rol é mais minguado no que tange a tornar compreensível a reação das forças portuguesas. A um desequilíbrio notório no volume das vozes, há que fazer o desconto a omissões e ao som estereofónico da propaganda. Manda a elementar justiça que o contraditório esteja sempre em cima da mesa, e é com essa preocupação que se releva agora um depoimento de quem acompanhou muito de perto Amílcar Cabral, o seu irmão Luís escreveu a “Crónica da Libertação”, publicada em Portugal em 1984. Deposto pelo golpe de 14 de novembro de 1980, preso e acusado da mais alvar tirania, Luís Cabral entendeu responder refugiando-se na história do PAIGC por via da ação e do pensamento de quem tudo inspirou, por toda a crónica é sempre o líder fundador quem está no palco. Veja-se resumidamente o que ele nos diz de 1962 até aproximadamente ao tempo em que teve termo a comissão do BCAV 490.

Em 3 de agosto de 1961, o PAIGC decretara a passagem à ação direta. Em outubro desse ano, Amílcar Cabral assinava uma carta aberta ao governo português, propunha negociações, sabendo de antemão que não ia obter resposta, ao tempo Rafael Barbosa e o seu núcleo iam sensibilizando a população de Bissau, a PIDE, que vira os seus efetivos aumentados, assaltou a base clandestina do bairro de Cobornel, Rafael Barbosa e outros dirigentes foram presos, deu-se a detenção de mais de mil militantes e simpatizantes. Vindos da formação da China, um punhado de guerrilheiros avança em direção ao Sul e à região de Morés. O armamento é frágil, Osvaldo Vieira, completamente cercado no Morés, teve que fugir para o Senegal, onde foram presos pelas autoridades e conduzidos a Dakar, o que obrigou a nova intervenção de Cabral. Tudo era difícil para a subversão. Tentara-se ingloriamente um levantamento no Gabú, os guerrilheiros tiveram que fugir precipitadamente. No Sul, Vitorino Costa é capturado e morto. Como escreve Luís Cabral, a notícia da sua morte levou centenas de combatentes do Sul e do Centro-Sul a abandonarem as suas bases para aguardarem na fronteira a chegada das armas. Enquanto tudo isto se passa, Amílcar Cabral estreita o seu relacionamento com o MPLA em Conacri, lançam as bases de um movimento em prol da independência das colónias portuguesas. Assim nasceu a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, Mário de Andrade e Viriato da Cruz eram os representantes do MPLA e Marcelino dos Santos da FRELIMO, os escritórios da organização ficavam em Rabat. O reino de Marrocos cede armas que depois de algumas peripécias que podiam ter custado caro ao movimento liderado por Cabral, no final de 1962, começam a ser distribuídas pistolas-metralhadoras. Luís Cabral não data os acontecimentos, mas está inequivocamente demonstrado que mesmo antes das frentes estarem abastecidas de armas, já no segundo semestre de 1962 houvera importantes destruições de pontes e pontões e destruídas as fontes de comunicação. Ganhava-se experiência e criavam-se bases de guerrilha onde se acreditava que o inimigo só dificilmente lá podia chegar. Mas o quadro de repressão intimidava profundamente as populações.

Luís Cabral nos últimos anos de vida

E ele escreve:
“Com a chegada de armas automáticas – entre as quais a ‘patchanga’, com os seus carregadores de 72 balas, que era altamente temida pelo inimigo – tudo isso acabou. Começaram a surgir vastas regiões completamente libertadas, onde só imperava a autoridade do partido; organizaram-se nas tabancas os Comités do PAIGC, para o controlo da vida das populações e do abastecimento da guerrilha. Cada família era obrigada a ‘medir’ uma certa quantidade de arroz ou outro alimento, para a base mais próxima da tabanca. Os responsáveis muitas vezes obrigavam jovens a regressarem às suas casas porque o número de pessoas nas bases aumentava sem parar e era preciso garantir os trabalhos do campo e não despovoar as tabancas.
Centenas de homens vinham a diversos pontos da fronteira para carregar armas e munições: o entusiasmo dos combatentes era tão grande que alguns responsáveis escreviam ao Secretariado para afirmar que, com mais duas dezenas de pistolas-metralhadoras, seriam capazes de libertar toda a sua área. As forças colonialistas encontravam-se incapazes de reagir; foram surpreendidas pelo aparecimento de armas automáticas potentes em várias zonas do país e tiveram muitas baixas”.

Luís Cabral revela que Amílcar Cabral estava admirado de tudo estar tão bem. O que se estava a passar no Sul revelava-se surpreendente e Domingos Ramos enviou Abdulai Barry para o outro lado do Corubal, para a Mata de Fifioli. É nesta fase que em Samba Silate, não longe de Bambadinca, houve grande repressão depois de denúncia de jovens que estariam a frequentar as bases da guerrilha, havia na povoação uma missão católica e um padre de nacionalidade italiana, António Grillo, denunciou a violência cometida e foi expulso da Guiné. Formava-se um grupo de guerrilha na região do Xime, tentar-se-á durante toda a guerra destruir estas bases, em vão.

Escreve a Luís Cabral que do Morés a luta ia-se alargando ao longo de 1963 para a área de Biambi e dali até Canchungo (Teixeira Pinto). É neste período, em fins de 1963, que Luís Cabral visita pela primeira vez a zona do Quitafine, que fazia fronteira com a República da Guiné. Descreve esta viagem e o seu encontro em Cassaca com Manuel Saturnino Costa, que era irmão de Vitorino Costa. Segundo Cabral, a população do Quitafine tinha aderido massivamente à luta. É nessa altura que Luís Cabral se apercebe que havia situações anormais na vida da guerrilha, ninguém era muito explícito mas deduzia-se que havia jovens dirigentes que praticavam atos despóticos que intimidavam as populações. E assim germinou a ideia de fazer um encontro de dirigentes que ocorreu num local chamado Cassacá, a cerca de quinze quilómetros do Como, esse encontro decorreu em fevereiro, enquanto se combatia na ilha, como é sabido o encontro transformou-se em congresso, levou à reestruturação das forças armadas e à punição dos elementos criminosos.

Depois de algumas tiradas propagandísticas sobre os acontecimentos da batalha do Como, Cabral refere a consolidação do posicionamento do PAIGC no Sul, era uma área que compreendia os setores de Cubucaré, Quitafine, Balana e Como. Um cineasta de nome Mário Marret, por essa época, visitou as zonas onde o PAIGC era preponderante e recolheu o material sobre o primeiro documentário cinematográfico com o título “LALA QUEMA”, seria o primeiro instrumento de sensibilização da opinião pública internacional.

Entretanto, chega o apoio do armamento soviético, o equipamento para o exército altera-se profundamente e Luís Cabral relata a vida em Conacri, a reorganização administrativa do partido no exílio, as visitas de Cabral às diferentes frentes, e a criação de um novo palco de guerra no Boé. Cabral dá igualmente conta da continuação de tensões com outros partidos políticos rivais, desta vez em Dacar. E descreve a formação dos quadros, a abertura de escolas, a criação de pessoal na área da Saúde, é o que ele vai esmiuçar num capítulo intitulado “Criar uma vida nova em cada parcela libertada”. Por razões que seguramente se prendem com a falta de documentação, dado que esta crónica foi escrita na prisão, dá alguns saltos bruscos em termos cronológicos, fala-se dos bombardeamentos na área do Morés, a aprovação da Lei da Justiça Militar, a expansão da frente de Leste, a morte de Domingos Ramos em Madina do Boé, a formação de quadros cabo-verdianos em Cuba, enfim, está literalmente a diluir-se a cronologia dos acontecimentos, ganha uma certa opacidade a evolução militar entre 1964 e 1965.
É talvez por isso desejável fazer-se recurso de novo à tese de doutoramento de Leopoldo Amado que seguiu metodicamente as vicissitudes do calendário.

Chico Mendes (Chico Té), depois da morte de Domingos Ramos era comandante da região do Boé

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 14 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20649: Notas de leitura (1264): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (45) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 17 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20660: Notas de leitura (1265): Dicionário de Paixões, por João de Melo; Dom Quixote, 1994 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19807: Notas de leitura (1179): “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”, Fundação Calouste Gulbenkian (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Foi uma reunião ímpar, pela qualidade dos intervenientes, pela substância dos depoimentos. Enquanto crescia a crispação política que abria caminho ao PREC, os cientistas permutavam ideias sobre o papel da língua, os manuais escolares, o uso do português fundamental, a reformulação das instituições científicas, o modelo colonial caducara. Fizeram-se sugestões pertinentes, e a Fundação Calouste Gulbenkian deu forma de livro ao encontro, hoje uma longínqua memória, agora é possível aquilatar do que se perdeu por não ter tido em conta diferentes sugestões sobre a lusofonia e investigação científica africana.

Um abraço do
Mário


O papel da lusofonia na aurora da descolonização (1)

Beja Santos

Entre 20 e 22 de Janeiro de 1975, enquanto a classe política entrava ao rubro com a questão da unicidade sindical, na Fundação Calouste Gulbenkian reuniam-se pesos pesados da investigação africana para debater o futuro da lusofonia no ensino, o que se iria passar no sistema educativo nos novos países de língua portuguesa, quais as contribuições portuguesas para as ciências humanas em África, quais as perspetivas que se rasgavam para cooperar no campo do ensino com a África lusófona. A Fundação Gulbenkian convocara um grupo seleto para o debate. Por parte da Fundação estavam Victor de Sá Machado, José Blanco, Luís de Matos, Mário António, Fernandes de Oliveira, o Embaixador Fernando Reino representava o Ministério da Coordenação Interterritorial. Os participantes eram, entre outros, Orlando Ribeiro, Ilídio do Amaral, Teixeira da Mota, René Pélissier, Douglas Wheeler, Albert Tévoédjrè e Gerard Bender. Daí resultou um livro editado em 1979 “Colóquio sobre Educação e Ciências Humanas na África de Língua Portuguesa”.

Nos cumprimentos de boas vindas, Sá Machado justificou um encontro pelo facto da Fundação pretender trazer ao processo de descolonização um debate no quadro da construção das novas nações africanas. “Pretendemos que este encontro fosse o mais restrito possível para lhe conferir o máximo de eficácia”. Orlando Ribeiro lançou o repto aos investigadores dos territórios ultramarinos: “Nós só desejamos uma coisa: poder continuar; mais do que continuar poder intensificar esses estudos e fazê-los em proveito da ciência em primeiro lugar”. Referiu as dificuldades da investigação em Portugal e a necessidade de saber criar uma boa articulação com as universidades existentes em Angola e Moçambique e outras que possam vir a surgir. A discussão passou imediatamente para a problemática de que português se iria ensinar, como os Estados africanos iriam viver ou não o bilinguismo e a multiculturalidade, aí alguns participantes referiam casos concretos de experiências em curso.

Teixeira da Mota interrogou-se sobre o crioulo, tanto de Cabo Verde como da Guiné-Bissau: “Durante muito tempo, na esteira do que lia e ouvia dizer, considerei o crioulo como um dialecto do português. É o que está escrito, por exemplo, num estudo que fez sobre o crioulo de Cabo Verde o Professor Baltazar Lopes. Há uns anos, tive oportunidade de ler dois trabalhos, independentes um do outro, feitos quase na mesma altura por dois autores, Chataigner e Wilson. Ambos estudam o crioulo da Guiné, e mostram que ele não é uma língua europeia, antes uma língua africana, na medida em que a sua estrutura gramatical é predominantemente africana, ainda que pelo léxico seja sobretudo uma língua românica. Portanto o crioulo, pelo menos o crioulo da Guiné é uma língua africana, na sua estrutura gramatical. O crioulo apareceu na zona da Guiné, de Cabo Verde, porque havia aí uma grande pulverização linguística. As populações, no período da escravatura, em que houve grandes deslocações de indivíduos e consequentemente múltiplos contactos novos, tinham necessidade de se entender e criar uma língua franca, utilizando estruturas gramaticais africanas com um vocabulário em que há muito do português”.

Mais adiante, Teixeira da Mota falou do Instituto de Línguas Africanas e Orientais, instalado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que antigamente era a Escola Superior Colonial, a atravessar uma crise gravíssima. Mário António Fernandes de Oliveira referiu que tinha havido alterações depois do 25 de Abril, tinham sido eliminadas todas as matérias que diziam respeito às colónias. Nesse instituto, continuou o interveniente, nunca houve qualquer pesquisa que se pudesse considerar científica. A pessoa mais qualificada era o Professor Sá Nogueira que preparou um dicionário de ronga, uma gramática de ronga e uma sintaxe de ronga. Impunha-se, em seu entender alterar o conhecimento das línguas ali ensinadas. Deslocou-se o debate para a questão do bilinguismo e da necessidade de ter em conta os idiomas falados nos Estados fronteiriços, havendo ainda que ter em consideração se é pertinente pôr enfâse numa segunda língua europeia no ensino africano.

A questão dos manuais escolares à luz das novas realidades dos países independentes entrou no debate. O PAIGC, o MPLA e a FRELIMO dispunham de manuais impregnados de uma ideologia libertadora, havia que refletir a realidade profunda desses países num contexto em que já e ultrapassar o colonialismo e saber qual a colaboração concreta e ajuda técnica desinteressada que deve ser concedida à produção desses livros. Nesta altura havia na Faculdade de Letras de Lisboa uma equipa liderada pelo professor Lindley Cintra para definir o português fundamental, assim encarado como um instrumento utilíssimo para a alfabetização das massas.

Os participantes deram novo rumo à conversa, o que fazer da investigação científica. Teixeira da Mota tinha distribuído um documento sobre algumas atividades de organismos de investigação existentes em Portugal no domínio das ciências humanas e sociais de âmbito africano, com destaque para os organismos da Junta de Investigações do Ultramar. Esta Junta nascera em 1936, resultara do alargamento e da transformação de uma Comissão de Cartografia, tinha a ver com a delimitação das fronteiras políticas em África. Não se pode esquecer a Sociedade de Geografia de Lisboa que conseguiu nas primeiras dezenas de anos da sua vida fazer bastantes trabalhos de interesse no âmbito dos estudos africanos. A Junta apareceu pois em 1936 com um pequeno número de setores: zoologia, botânica, geologia e antropologia e depois alargou-se o campo de atividade. É crucial a reestruturação deste organismo, convinha não o fragmentar espalhar os seus vários organismos por outros departamentos do Estado é contribuir para a delapidação de recursos. No seu depoimento, Teixeira da Mota foi fazendo propostas de reestruturação e referiu que existia mesmo um documento que já estava entregue ao governo. Nesta fase da discussão, Ilídio do Amaral sugeriu um debate sobre as realizações e as experiências de outros países quando, pela independência de territórios que detinham, enveredaram pelos caminhos da cooperação e do apoio científico.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Continuo sem compreender como é que este livro não teve editor em Portugal ou Brasil em 2002, atendendo à investigação original e ao ineditismo do seu esquema básico: uma abordagem abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África.
Acresce que se juntou um naipe de oiro de grandes investigadores: Patrick Chabal, ao tempo professor do King's College em Londres, deve-se-lhe àquela que porventura é a melhor biografia internacional de Amílcar Cabral; David Birmingham, da Universidade de Kent; Joshua Forrest, professor da Universidade de Vermont e que deixa aqui um ensaio notável sobre a Guiné-Bissau; e também Malyn Newitt da Universidade de Londres e Gerard Seibert e Elisa Silva Andrade, investigadores com créditos firmados.
Sem hesitação, leitura recomendada para conhecer no grande ecrã 30 aos de história pós-colonial das cinco colónias portuguesas em África.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial: 
Uma investigação de leitura obrigatória (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, o autor principal é Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, aparece neste livro com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Logo nos agradecimentos, Chabal recorda a evolução positiva da historiografia sobre os países africanos lusófonos e apresenta este volume que coordena como uma tentativa de fornecer uma visão abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África, e confessa que se utilizou uma abordagem iconoclástica: apresentação da história dos cinco países a partir de dois anos complementares, o que têm de comum e de divergente da restante África, seguindo-se uma enunciação sistemática dos eventos que ocorreram depois da independência com a utilização de fontes de investigadores, oficiais, semioficiais e até jornalísticas; a procura de um contexto histórico rigoroso articulando o período pré-colonial com o pós-colonial; numa tentativa de ultrapassagem de uma visão estreita do foco lusófono, apresenta-se a evolução comparada e igualmente contrastada dos cinco países. O âmbito do estudo centra-se no período entre 1975 e 2000.

Temos em primeiro lugar o fim do Império e chama-se a atenção para uma declaração do MFA feita em 5 de Maio de 1974 em que é proposta uma nova e fraternal cooperação entre Portugal e Guiné, o que parece ilustrar a contradição entre um regime que existia numa solução militar e um estado de espírito dos sublevados que ofereciam uma colaboração desinteressada como forma de reparar os crimes do fascismo e do colonialismo. Recorda-se que o regime de Salazar e de Caetano recusou sempre negociações com os movimentos independentistas, estas só apareceram de forma muito dissimulada no estertor do regime. Estes movimentos anticolonialistas são encarados em três categorias: os vanguardistas, os tradicionalistas e os etno-nacionalistas. Como vanguardistas são invocados o MPLA, o PAIGC e a FRELIMO, não terá sido por acaso que eram todos provenientes de uma geração jovem, de um modo geral com formação universitária ou bases culturais e com uma preparação ideológica da Esquerda do seu tempo. Entre os movimentos tradicionalistas aparecem agrupamentos com brancos, pretos mestiços e indianos e o exemplo escolhido para movimentos etno-nacionalistas são apresentados a FNLA e a UNITA. Estas guerras foram sempre conflitos políticos, resultantes de uma total incapacidade de o regime de Salazar e Caetano se aperceber da insustentabilidade para as razões da potência colonial teimar em ficar em África. O PAIGC aparece como um movimento mais bem-sucedido quanto aos critérios da eficácia da luta anticolonial: preservação da unidade nacional, a despeito do mosaico étnico; enorme capacidade para a mobilização política das populações rurais; submissão da luta armada a objetivos políticos; eficácia para apresentar na cena internacional as chamadas áreas libertadas graças a um bom uso diplomático. É também observado que o espírito de a missão colonial se foi desgastando ao longo dos anos e no fim da guerra o moral das tropas dava sinais de ser crítico.

O estudo prossegue com uma perspetiva histórica da descolonização a partir do momento em que os movimentos de libertação conseguiram uma plataforma de entendimento, a CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas que gerou um elevado espírito de solidariedade e que permitiu a Amílcar Cabral encontrar formas de comunicação verdadeiramente criativas para sensibilizar a opinião pública em muitos países onde dava entrevistas, fazia conferências, distribuía documentos, conversava e justificava a guerrilha dada a inflexibilidade do regime de Salazar e Caetano. Na hora da descolonização, os políticos portugueses foram confrontados com movimentos nacionalistas influenciados pelo marxismo. Todos eles enveredaram, na fase de arranque da vida independente, por nacionalizações, estatização económica, monopólio de comércio externo, contando com a ajuda dos países da Europa Oriental, Cuba, URSS e China.

Pôs-se, obviamente, o problema da unidade nacional e do Estado-Nação, com disparidade de respostas. No que toca à Guiné-Bissau, a unidade Guiné-Cabo Verde resistiu até 1980, Cabo Verde enveredou pela sua via específica de identidade nacional, no caso vertente da Guiné-Bissau nem o tremendo conflito político-militar de 1998-1999 fez minimamente questionar a afloração de conflitos étnicos, nunca se questionou em propriedade nacional mas também nunca se iludiu a fragilidade do Estado, logo patente nos primeiros anos da era de Luís Cabral em que o PAIGC se desentendeu com a questão rural e as expetativas dos agricultores que recusaram sistematicamente vender ao Estado as suas produções, transferindo-as em muitos casos para os países limítrofes. O livro estuda os efeitos da guerra, as especificidades do nacionalismo revolucionário e dedica um importante estudo à construção do Estado-Nação. Nesta aceção, é sequenciada a história da África portuguesa e as sequelas que deixou nos Estados pós-coloniais, comparando-os com os países vizinhos. A construção do socialismo é igualmente analisada com a deteção dos pontos frágeis e dos obstáculos para os quais os partidos vitoriosos se revelaram incapazes de ultrapassar. Esta construção do socialismo tem uma importante análise do contexto histórico nos cinco países. Chama-se à atenção para a inviabilidade de seguir políticas similares em Cabo Verde e na Guiné: Cabo Verde não podia hostilizar as comunidades sediadas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, para já não esquecer a comunidade cabo-verdiana residente no Senegal; na Guiné-Bissau ensaiou-se um apelo à ajuda internacional dos países socialistas e acenou-se a uma ajuda dos países ocidentais, com os escandinavos e os Países Baixos à frente. Mas é uma leitura estimulante ler toda esta construção da Nação-Estado no xadrez africano, no permanente relacionamento entre os fatores internacionais e as políticas domésticas. Até porque os limites destes nacionalismos surgiram muito cedo quando se verificou que os partidos únicos se revelavam incapazes de conciliar o todo nacional.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

sábado, 9 de dezembro de 2017

Guiné 61/74 - P18065: Bibliografia (43): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo às dez entrevistas que Mário Pinto de Andrade concedeu a Michel Laban, um especialista em literatura africana de língua portuguesa.
Documento importantíssimo não só para a génese do MPLA como para a compreensão do trabalho conjunto desenvolvido, de forma embrionária, pelos líderes nacionalistas no exílio, no Norte de África, em conferências em Londres, na obtenção de apoios financeiros e de formação militar, em que os chineses tiveram um papel primordial.
Pinto de Andrade relata as tensões no interior do MPLA que levaram à sua rutura bem como a de Viriato da Cruz. Pena é que o seu testemunho pare em 1971, por razões de saúde de Pinto de Andrade não houve mais entrevistas, o primeiro presidente do MPLA morreu pouco depois, em Londres.

Um abraço do
Mário


Uma importante entrevista de Mário Pinto de Andrade (3)

Beja Santos

Não se pode estudar em toda a sua amplitude o movimento anticolonial em Portugal sem conhecer o pensamento e ação de Mário Pinto de Andrade, um angolano que veio estudar Filologia Clássica em Lisboa e constituiu amizades com futuros líderes, caso de Marcelino dos Santos, Agostinho Neto e Amílcar Cabral. “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997, encerra dez sessões de trabalho que vão de Março de 1984 a Junho de 1987.

Em textos anteriores[*], falou-se das sua vida em Luanda, a sua passagem pelo seminário, as suas amizades angolanas, com destaque para Viriato da Cruz, a sua vinda para Lisboa, estudar Filologia Clássica que foi um desapontamento, a formação embrionária de grupos inspirados pela independências das colónias que se canalizou no Centro de Estudos Africanos, a dispersão do grupo, a partida de Mário Pinto de Andrade de Paris e a formação do efémero MAC – Movimento Anticolonial, bem como a importância de um evento, o Congresso dos Escritores Negros, em Paris, em 1956. Pinto de Andrade continua como redator da revista Présence Africaine, corresponde-se muito com Amílcar Cabral, com Joaquim Pinto de Andrade e Viriato da Cruz, está já a viver-se uma época de explosão organizacional. Nisto, em 1957, Viriato da Cruz chega a Paris. Em Novembro de 1957, fazem uma reunião a cinco, em casa de Marcelino dos Santos. “Foi talvez a primeira pequena assembleia a ponto da situação do movimento geral das organizações nos cinco países africanos. Nas nossas análises, parcelares para cada um dos países procurávamos sempre determinar e medir a classe operária. Era uma visão muito estreita das forças sociais”. Foi assim que se constituiu o MAC.

Pinto de Andrade [foto à esquerda] sentia dentro de si mudanças: “Foi-se aprofundando uma contradição entre a necessidade de ação, a disponibilidade para essa ação e o meu trabalho normal, o meu trabalho de assalariado na revista”. Demite-se da Présence Africaine, envolve-se em reuniões internacionais, comparece no Congresso dos Escritores Asiáticos, viaja até à China. África muda de rosto: independência do Gana em 1957, da Guiné Conacri em 1958, esta com a particularidade de ser o primeiro país africano fronteiriço de uma colónia portuguesa. No fim de 58 realiza-se a Conferência dos Povos Africanos em Acra, aí comparece Holden Roberto. Em 1959 realiza-se o segundo Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em Roma. Aí reúnem com Franz Fanon que informa que os argelinos estavam prontos a ajudar na formação político-militar de jovens quadros de Angola. “Este encontro com Fanon reforçou em cada um de nós uma decisão importante: era preciso voltar a África. Não podíamos estar dispersos pela Europa, a Europa era um lugar de passagem, era uma transição para África”.

Em Maio de 1960, estes jovens dirigentes nacionalistas estão reunidos em Conacri: Pinto de Andrade, Amílcar Cabral, Viriato da Cruz e o de Meneses. Eles constituíram o núcleo dirigente de uma nova organização, a FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das colónias portuguesas, que veio substituir o MAC. Todos se metem ao trabalho de agitação numa atmosfera onde já se desenhava a fisionomia repressiva do regime ditatorial de Sékou Touré. Constituiu-se o primeiro comité diretor do MPLA, Pinto de Andrade assegura a responsabilidade de presidência, o secretário-geral passou a ser Viriato da Cruz. O MPLA e o PAIGC coordenavam a sua ação no quadro da FRAIN, que também não terá uma vida muito longa. Observa que a personalidade de Amílcar Cabral fazia medo aos governantes de Conacri, não havia grandes ilusões que em Conacri havia a tentação de se apoderarem da colónia portuguesa da Guiné para criarem a “Grande Guiné”. Serão os chineses os primeiros a apoiarem os movimentos de libertação. “Altos responsáveis, ligados à Grande Marcha e à luta armada, à revolução chinesa, deram verdadeiros cursos de formação sobre a guerra de guerrilha a Amílcar Cabral, Eduardo dos Santos, Viriato da Cruz. Os outros, aqueles que acompanhavam Cabral, ficaram lá, para uma formação diferente – uma formação político-militar de base”. Os chineses deram uma ajuda financeira substancial, tudo em notas de dólar. Mais tarde, esta ajuda será ocultada por causa do conflito sino-soviético e pelo facto da União Soviética ter tomado o primeiro lugar no quadro da ajuda direta. E Pinto de Andrade recorda que a China teve um papel muito importante na formação da FRELIMO.

Pinto de Andrade esclarece que os acontecimentos do 4 de Fevereiro de 1961 foi uma ação interna que ultrapassou a visão da direção do MPLA. Abrem-se expetativas para os movimentos de libertação. “É por isso que organizámos, alguns meses depois do quatro de Fevereiro de 1961, a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, em Casablanca”. Logo a seguir, houve uma conferência de solidariedade em Nova Deli, a questão de Goa não era inocente. Criou-se a FRELIMO. A situação ganhava complexidade: o MPLA concorria com a UPA, o PAIGC, era antagonizado por outros movimentos de libertação, tanto em Conacri como em Dakar, o principal ponto de discórdia era a unidade Guiné-Cabo Verde, mas o facto de o PAIGC começar a ter sucessos militares fez desaparecer a concorrência. Tudo mexia em África: dissensões entre os argelinos, o Congo em chamas, e é neste contexto que se dá a libertação de Agostinho Neto, surgirão tensões insanáveis entre ele e Viriato da Cruz, falava-se que havia um sério desentendimento nas escolhas de alianças, o MPLA tomou a decisão de se fundir com outros movimentos, Pinto de Andrade considerava que eram movimentos reacionários, e então demite-se da direção e como militante do MPLA. Em rutura, Viriato da Cruz aliou-se a Holden Roberto, patrocinado pela CIA. Pinto de Andrade vai para Marrocos, no final de 1963, dirigir os trabalhos da Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, depois muda as suas atividades para Argel. “Sentia-me mais à vontade a escrever textos e a manejar os conceitos e a informação de que estar propriamente no aparelho organizacional. Fiquei em Argel, onde publicámos pequenas monografias sobre a Guiné, Angola, Moçambique”. Retomou os seus estudos. A luta armada alastrava em Angola e então que lhe propõem para ele ir ver e participar, parte para a frente Leste, em 1971, irá tornar-se etnólogo no seu país. Aqui terminam as entrevistas de Michel Laban a Mário Pinto de Andrade, infelizmente o seu precioso testemunho ficou truncado, o seu estado de saúde já estava seriamente abalado, morreu em 1990, em Londres.
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Notas do editor

[*] - Vd. postes de:

18 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17984: Bibliografia (41): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (1) (Mário Beja Santos)
e
25 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18013: Bibliografia (42): “Mário Pinto de Andrade, Uma entrevista dada a Michel Laban”, Edições João Sá da Costa, 1997 (2) (Mário Beja Santos)

sábado, 4 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17935: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (53): Os "comerciantes" e os "outros"... Lá, em Angola, Guiné e Moçambique, muitas vezes mais valia um ano de tarimba do que dez de Coimbra...



Guiné > Região de Tombali > Catió > CCS / BART 1913 (1967/69) > Álbum fotográfico do Victor Condeço > Quartel > Foto 32 A > Pormenor; quatro funcionários dos correios (à esquerda), seguidos de quatro comerciantes, o libanês José Saad (e filha), o Mota, o Dantas (e filha) e o Barros.


 Foto (e legenda) do nosso saudoso Victor Condeço (1943/2010) / Edição e legendagem complementar:  © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.



I. Três comentários do nosso amigo e camarada António Rosinha, ao poste P17920 (*):


1. No início da Guerra do Ultramar houve sempre uma enorme falta de diálogo entre quem chegava ("tropa") e quem residia ("brancos").

Nunca houve diálogo entre os "brancos" e "tropa", antes pelo contrário. A mentalidade de quem chegava para combater os "turras", diziam os oficiais milicianos, e não só, que estavam ali por culpa dos "brancos" que trataram mal os "pretos" e estes revoltaram-se.

Testemunhei isto em Angola, ao vivo e a cores.

E insistia-se,  e ainda hoje se ilude muita gente, que os comerciantes ("brancos") roubavam os "pretos", quando na realidade, para quem viu por dentro,os comerciantes eram os únicos brancos que se entendiam em várias línguas com o povo.

O comerciante que não tivesse uma afinidade e confiança total com o povo, (várias etnias) podia fazer as malas e mudar de vida,  pois falia muito rapidamente

Nem os missionários nem chefes de posto, (metropolitanos, indianos ou cabo-verdianos) tinham o conhecimento e o relacionamento com os povos, igual ao dos comerciantes.

Foi esta gente o grosso dos "brancos", colonialistas, exploradores e futuros retornados,  que nem Spínola, nem Lobo Antunes, nem os alferes-de-coimbra, chegaram a compreender.

E gente como os estudantes do império, Pedro Pires, Amílcar Cabral, Lúcio Lara,  etc. souberam explorar maravilhosamente esse desentendimento, "tropa"  versus "brancos".

Se em Angola, não na Guiné, a "vitória era certa" contra os "turras", u ma das razões que ninguém menciona, era um entendimento mútuo dos comerciantes,  e mesmo capatazes de fazendas, poliglotas, e sua prole, com os povos, que formavam uma barreira onde o adversário era naturalmente repelido.

Claro que muitos comerciantes ficaram reféns, como este Rendeiro, pois tinham família para cuidar.
Só falo do que vi.

2. A maioria dos comerciantes oriundos de Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e gradualmente por aí abaixo, com dezenas de anos de trópicos, com famílias constituidas lá, brancas ou mestiças, tinham opinião bem mais formada do que qualquer Governador, com comissões de 4 anos, ou Generais e Intendentes de passagem como cão por vinha vindimada ?

E que «antiguidade" devia ser um posto?

É que aquela gente sabia bem mais que qualquer PIDE, que mais que evidente, tiveram pouco sucesso, deviam ser aproveitados inteligentemente, como em muitos casos aconteceu em Angola, para na língua materna dos povos se fazer em directo, a tal luta da psico-social.

Falar os idiomas nativos era sucesso garantido para aquela guerra, comprovadíssimo em Angola.

Só eles mesmo é que tinham esse trunfo nas colónias africanas, a tropa nunca entendeu completamente esse pormenor, e em Angola, só a partir de certa altura (1966 mais ou menos)é que aproveitou os imensos poliglotas que eram esses comerciantes e sua prole.

Atenção que, se olharmos para o PAIGC, MPLA e FRELIMO, tinham na sua direcção, filhos ou netos dessa estirpe de gente, (brancos ou mestiços)e vejam quem ficou no "poleiro" em todas as colónias.

No entanto, havia muitos movimentos que ficaram todos a ver navios, eram os tribais.

O  "pau de dois bicos" dos comerciantes não era propriamente dar informações militares aos "turras", até porque a maioria pouco saberiam do que se passava nos quarteis mais do que qualquer garoto que vivia à volta dos quarteis.

O pau de dois bicos constava em simplesmente em fazer aviados de mantimentos aos "turras" sem os denunciar, caso não pudessem evitar. Eram casos conhecidos publicamente, caso de madeireiros em Angola.

E pelo que se deduzia na Guiné em conversas entre velhos comerciantes, após a luta, com Luís Cabral a mandar, aconteceria esse "fenómeno", era o desenrascanço.

Os únicos que já não eram periquitos, eram esses velhos comerciantes do mato, porque até os da cidade nunca chegaram a saber bem o que se passava no cabeça dos indígenas e dos brancos.

Ao fim de 30 anos nos trópicos, sou um periquito, porque nunca falei com um indígena na sua língua.

3. É natural que da maioria dos militares que passaram pelas colónias, mesmo aqueles que tinham papéis de comando, a nível quer de pelotão ou companhia  ou quer a nível de  batalhão, só poucos se teriam debruçado sobre o que era o "comércio de permuta", que se praticava no interior, não nas cidades, no caso da Guiné, Bissau apenas.

Mesmo em Gabu e Bafatá, quer comerciantes fulas ou caboverdeanos que ficaram com as lojas dos europeus, retornados, alugadas ou usurpadas a estes, ainda praticavam em alguns casos , o comércio de permuta.

Isto em 1987, residi um ano em Gabu onde fui inquilino numa casa de um desses antigos portugueses.

Por exemplo uma simples bola de cera de mel de Canjadude, para ser negociada entre a família vendedora e o comerciante, requeria um diálogo em que se discutia o que podia valer de coisas das prateleiras que podiam interessar aos elementos da família.

Desde óleo, sal, panos, chinelos chineses, arroz...e isto tudo usando argumentos em que na colheita anterior bola de cera idêntica ainda estava na memória de todos, o que tinha rendido.

Quem diz uma bola de cera, diz um carneiro, uma vaca, ou o  mesmo saco ou bacia ou balaio de arroz ou mancarra após cada safra.

Quando se diz que o comerciante "roubava na balança", ou no rol, isso era conversa de merceeiro das nossas velhas aldeias, ali essa da balança podia contar para o controle do próprio comerciante, mas não contava nada para o cliente, aliás, na permuta, eram clientes quem estava do lado de dentro ou de fora do balcão.

Quero com isto dizer que para ganhar dinheiro naquele tipo de negócio, era preciso uma especialização para quem saía das nossas terrinhas, algumas destas que arderam agora, nem com coimbra-e-tarimba se chegava lá.

Nem com comissões de dois ou quatro anos de função pública, e canudo universitário se chegava a entender o que era aquele trabalho.

Quando se fala em «periquitos», esta gente seriam aqueles que na realidade não eram periquitos.

E alguns desses comerciantes tinham uma particularidade. é  que chegavam a dominar dois e mais idiomas tribais, porque era-lhes necessário, o que lhe granjeava o respeito muito particular entre os populares.

No caso da Guiné, todos os comerciantes que quiseram ficar, continuavam, após o 25 de Abril, e até com protecção mais ou menos garantida, embora fossem sapos que alguns dirigentes tiveram que engolir.

Só que com o regime comunista/cabralista instalado, já nada compensava insistir em tanta incongruência e desordem económica e a maioria foi saindo de vez.

Além de Spínola, eram os comerciantes aquilo que os guinenses tinham mais lembranças nos primórdios da libertação.

A independência tinha que ser, e o que tem que ser...!

Mas tenhamos mais respeito pela inteligência daqueles povos, já que os vencedores, alguns "Estudantes do Império", se esqueceram tanto desse mesmo povo.  (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31 de outubro de 017 > Guiné 61/74 - P17920: (D)o outro lado do combate (14): a odisseia do português, da Murtosa, Rodrigo Rendeiro: uma viagem atribulada, de cerca de mil km, de 3 a 26 de setembro de 1963, de Porto Gole, onde tínha um estabelecimento comercial e era casado com uma senhora mandinga, de linhagem nobre, Auá Seidi, e tinha cinco filhos,até ao Senegal (Samine, Ziguinchor e Dacar), unindo ocasionalmente o seu detino ao do PAIGC... Relatório, assinado por ele, mas de autenticidade duvidosa...

(**) Último poste da série > 15 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17862: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (52): Das pequenas recordações dos vários quartéis a mais artística que ficou lá a "apodrecer", foi o memorial na ponte de Caium

sábado, 21 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17889: (Ex)citações (325): Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

A história das guerras do império, por vagas sucessivas, envereda pelos seguintes domínios: 

(i) logo a seguir ao 25 de Abril os teóricos à esquerda e extrema-esquerda a desvelar aspetos sombrios do colonialismo, desde a palmatória aos massacres, 

(ii) e o teóricos da direita e extrema-direita a apontar para a tragédia da descolonização; 

(iii) o novo fluxo prendeu-se com o sofrimento daqueles que combateram pela presença portuguesa, perseguidos e executados, isto a par da permanente acusação do dedo soviético e da ganância norte-americana à espreita de petróleo e diamantes; 

(iv) seguiu-se a acusação irrestrita de que a descolonização prejudicou por inteiro os descolonizados; 

(v) no fluxo presente, em que é impressionante o acervo de conhecimentos sobre o que foram as campanhas de África e em que contexto internacional se moveram as decisões de Salazar e Caetano, passa-se banho lustral sobre os fundamentos das lutas de libertação e temos historiadores a falar dos teatros de guerra sem jamais os ter estudado.

Encontra-se no trabalho de Rui Ramos bojardas como a seguinte, a propósito da invasão da Guiné Conacri, em 1970: "O PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos permanentes no interior do território".

Pasma como quebra o silêncio para denunciar a inqualificável besteira.

Um abraço do
Mário


Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos

Beja Santos

Em escassas duas semanas, de quatro proveniências diferentes recebi o artigo que o professor Rui Ramos publicou no jornal Independente em 2006 sobre as guerras que travámos em África:

http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2017/09/oscapit%C3%A3es-de-%C3%A1frica-por-prof-rui-ramos.html. (*)

O documento é naturalmente polémico, será precisamente por isso que anda nas redes sociais, dá satisfação aos descontentes e azedumentos. À pergunta de que aquela guerra fora o simples resultado da natureza do regime político em 1961 ou da idiossincrasia do seu chefe, o historiador não hesita: “Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961”.

E refere as chacinas, os apelos à violência da UPA, incluindo o ideólogo de alguns revolucionários, Frantz Fanon. Na suposição de que o historiador aposta na imparcialidade e na contextualização dos factos, estava sem querer que houvesse algumas palavras abonatórias de que se encetara desde o termo da II Guerra Mundial uma gradual consciencialização anticolonial, que o Estado Novo estava ciente de que vinham problemas do principal anfiteatro planetário, as Nações Unidas, onde as novas nações independentes clamavam pelo fim das colónias.

O Estado Novo iludiu a realidade, e depois de umas largas pinceladas sobre a chegada de colonos a Angola e Moçambique, remata que não teria sido fácil em 1961 o abandono de África, ninguém pensara em retirar nem mesmo o PCP e os demais antissalazaristas. Houve portanto guerra aos movimentos de libertação porque era inevitável, ponto final, foi uma História sem antecedentes, um autêntico conto de fadas.

Rui Ramos fala da evolução da guerra e da estratégia salazarista, cita mesmo Marcelo Caetano em Março de 1974: “Não será por falta de dinheiro que nos renderemos”. Dinheiro houvera muito, mas estava tudo a correr mal desde 72, primeiro a crise mundial de alimentos, dispararam os preços, só baixarão no fim da década, a seguir o primeiro choque petrolífero e o castigo árabe a Portugal, pensou-se em racionamento, houve quilómetros de bicha, candonga a gasolina, se o professor Rui Ramos conversar com alguns do seus colegas e que conhecem economia e finanças, ficará surpreendido como a inflação subiu acima dos 30% no fim do primeiro trimestre de 1974.

Apregoa os mesmos argumentos de que a guerra se apresentava viável, que os principais movimentos de libertação constituíam um complicado folhetim de desânimos, cisões constantes, ajustes de contas sanguinários e deserções espetaculares. Era bom que o professor Rui Ramos estudasse a fundo o que foi o PAIGC, por exemplo, teve altos e baixos mas foi-se fortalecendo e prestigiando, conseguiu os necessários apoios técnicos, em armamento e equipamento, formou quadros e nos últimos anos da guerra fez reverter para o interior da Guiné uma matéria-prima de grande qualidade, os quadros cabo-verdianos que não tinham condições de estender a guerrilha a Cabo Verde.

Não esclarece muito bem o que mudou de Salazar para Marcello Caetano, deste refere novos argumentos, mais complicados, assentes numa solidariedade humanitária, para justificar as operações militares. “Convenceu-se também de que a estratégia da guerra limitada e de longa duração não podia continuar”.

Então, o historiador atira uma régua para cima da mesa, já que era necessário pôr fim à guerra: “Caetano proporcionou aos chefes militares os meios para romperem com a modesta rotina salazarista e tentarem esmagar a guerrilha. O ano 1970 foi marcado por iniciativas dramáticas: a invasão da Guiné Conacri, o grande assalto ao Planalto dos Macondes em Moçambique, e um novo plano de operações no Leste em Angola. Os resultados iniciais não foram maus. Na Guiné, o PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos do território”.

Penso que nunca ficaremos a saber se o académico ilude os factos, é ignorante e tacanho ou consultou os dossiês errados. Tivesse ele procurado ler o que foi o ano militar da Guiné de 1970, e mesmo 1971, e descobriria que o PAIGC não abandonou nenhum acampamento, esquece-se que ainda há muita gente viva que por aqui anda e que os arquivos estão cheios dessa documentação. O académico sugestionou-se, sentiu-se livre para dizer umas bojardas.

O que aconteceu depois? Kaúlza e Spínola teriam ficado despeitados por não terem sido candidatos à presidência da República, em 1972 e foi posta a propalar a tese de que o governo não lhe dera os recursos materiais ou as autorizações políticas necessárias. Curiosamente, esta argumentação não bate certo com o que, depois do 25 de Abril escreveram militares como Kaúlza de Arriaga ou Silvino Silveira Marques e mais recentemente um tenente-coronel aviador de escrita alucinada, Brandão Ferreira.

O que escreve sobre o desfecho do regime e a ascensão do MFA é pura pirotecnia argumentativa: os capitães entendiam que a democracia portuguesa se iria fazer abrindo estradas, administrando escolas e hospitais, como se fazia em África. O historiador profere estes dislates, tanto quanto sei ninguém lhe foi ao pelo. Será por indiferença? Segue-se, no termo do artigo, a verrina e a destilação de veneno:

“Só a mitologia de esquerda podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só ultimamente se começou a perceber o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a combater do lado português do que do lado dos partidos armados. Na Guiné, metade dos confrontos com o PAIGC eram da responsabilidade das milícias locais”.

Que ninguém se pasme como se pode ser tão leviano. E nem uma palavra sobre aquele trimestre fatídico para Marcello Caetano, em que mandou negociadores sigilosos falar com o PAIGC, a FRELIMO, o MPLA, a FNLA e a UNITA. Numa entrevista a um jornal brasileiro, Caetano irá com uma certa displicência que era inevitável as independências, era um fenómeno internacional onde já não cabia a argumentação portuguesa em prol de um Portugal do Minho a Timor. (**)
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Notas do editor:

(*) O link constante no texto não funciona pelo que tive de pesquisar na net uma alternativa. Encontrei este: http://macua.blogs.com/files/os-capit%C3%A3es-da-%C3%A1frica-ii---2004.pdf que permite até carregar o PDF.

(**) Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17867: (Ex)citações (324): os memoriais de Buruntuma (CART 1742, 1967/69) e Ponte Caium (3º Gr Comb, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74): Abel Rosa, António Rosinha, Carlos Alexandre e Valdemar Queiroz

sábado, 14 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17861: Notas de leitura (1004): “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, por Hélder Martins; Editorial Caminho, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Hélder Martins, fundador da FRELIMO, foi um estudante ultramarino que chegou a Lisboa em 1953 e a partir dessa data e até 1961 teve um papel ativíssimo na Casa dos Estudantes do Império (CEI).

Em seu entendimento, muito do que está escrito sobre a CEI mostra imprecisões e muito pouco rigor, em certos casos. Levou por diante, com vários apoios, ao levantamento da legislação, ouviu inúmeros participantes, recorreu a ajudas que passaram pela pesquisa dos boletins do Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, e algo mais. O resultado é um testemunho resoluto, amável e desmistificador, porque numa associação de jovens há de tudo e tratar a CEI como uma casa de heróis é desumanizar-nos, protesta ele.

Obra indispensável para quem pretenda saber como é que a CEI foi uma grande escola do nacionalismo africano e serviu para consolidar a consciência anticolonial em muitos estudantes ultramarinos.

Um abraço do
Mário


A Casa dos Estudantes do Império

Beja Santos

De forma irregular mas persistente, estudantes ultramarinos, investigadores e jornalistas, recordam a importância e o significado que teve a Casa dos Estudantes do Império (CEI) na formação anticolonial e na forja das lutas de libertação, pois por aquele edifício passaram figuras como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara, Hélder Martins, Tomás Medeiros e Alda Espírito Santo.

Acaba de aparecer o testemunho de uma das figuras mais relevantes desse período Hélder Martins com “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, Editorial Caminho, 2017.

Hélder Martins nasceu em Maputo, formou-se em Medicina em Lisboa em 1961. Foi um ativista estudantil na Comissão Pró-Associação da Faculdade de Medicina e na Casa dos Estudantes do Império. Incorporado no serviço militar obrigatório, na Marinha, desertou em Novembro de 1961, tendo ido para Tanganica, onde foi aceite na UDENAMO. Foi fundador da FRELIMO e participou na luta de libertação do seu país. No imediato pós-independência foi Ministro da Saúde durante cinco anos. Foi também funcionário sénior da OMS, docente em saúde pública em vários países.

Segundo o título, o seu testemunho centra-se no período que ele viveu intensamente e teve uma participação ativa. Observa que, salvo honrosas exceções, a grande maioria dos testemunhos e trabalhos de investigação histórica e jornalística que existem sobre a CEI, têm pouca informação factual e nem sempre as referências às fontes são rigorosas, têm sido detetadas grandes falhas. Escreve que o seu testemunho procurou incorporar o máximo de informação sobre esse período da vida da CEI, cingindo-se a factos e pondo de lado a fantasia e alguma carga mitológica sobre a convivência havida ao longo dos anos pelos estudantes das colónias.

Em primeiro lugar, refere que há claramente duas fases da vida estudantil colonial, a primeira que se estende dos anos 1940 até aos anos 1950 em que a maioria dos estudantes eram brancos, de um modo geral ligados ao Estado Novo, portanto alinhados com a ideologia política dominante. Basta ver as fotografias desde 1943 em diante. Dizia-se mesmo num boletim da Mocidade Portuguesa que a CEI era filha da Mocidade Portuguesa.

Ainda nos anos de 1940, e depois com maior preponderância nos anos 1950, começam a chegar estudantes negros e mulatos de Angola, S. Tomé, Cabo Verde e Guiné, tudo tinha a ver com o desenvolvimento económico angolano, com bolsas de estudo, etc. Naquele pós-guerra foi-se criando a consciência nacionalista, a PIDE desde 1946 que estava atenta às atividades políticas dos sócios da CEI, havia informações sobre Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Lara, Vasco Cabral, Alda e Julieta Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Hugo Azancot de Menezes, Marcelino dos Santos, entre outros.

Eduardo Mondlane teve uma curta passagem pela CEI, de Junho de 1950 a Junho de 1951, estava à espera de uma bolsa de estudo para os Estados Unidos, o que aliás veio a acontecer. Nos anos 1950, há prisões como a de Vasco Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos conseguem escapar à prisão, irão abandonar Portugal para o exílio. Neste período entra em funcionamento um Centro de Estudos Africanos, ali se reuniam num prédio da Rua Actor Vale Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Amílcar Cabral.

Quem chegava, encontrava o bálsamo do acolhimento e os que gostavam de fazer desporto eram incentivados a continuar. Mário Wilson e Juca foram duas importantes figuras de acolhimento. Formou-se a equipa de futebol de CEI onde jogaram, entre outros, Fernando Vaz, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral.

Uma das maiores lutas entre os estudantes e as entidades governamentais era a permanente exigência para que não houvesse comissões administrativas. Os estudantes ultramarinos juntaram-se aos metropolitanos na luta contra o Decreto-Lei n.º 40.900, de 12 de Dezembro de 1956, destinado a regulamentar o associativismo juvenil, o governo recuou, a CEI passou a ter uma comissão de estudantes, elegeu-se uma direção e a CEI foi reconhecida para a proteção e defesa dos interesses ultramarinos e para o estreitamento dos laços de solidariedade e camaradagem entre os estudantes ultramarinos e metropolitanos, Em ondas, chegam estudantes às revoadas, convivem na cantina da CEI, fazem reuniões, dispõem de uma farta biblioteca, publicam livros.

Hélder Martins é minucioso na composição dos corpos diretivos, no trabalho desenvolvido, na vida cultural que abarcava conferência sobre música e arte, espetáculos de teatro, saía regularmente um boletim, a vida participativa era enorme. A qualidade dos conferencistas era de primeira água: João de Freitas Branco, José-Augusto França, Jorge de Sena, Keil do Amaral, José Palla Carmo, Alexandre O’Neill.

Procura desfazer mitos: nunca se registara qualquer luta pelo poder dentro da CEI, soubera-se operar um espírito de solidariedade inquebrantável; e que era um puro mito dizer-se que a CEI era sinónimo de uma geração de heróis. Descreve taxativamente: “Houve de tudo: bons e maus estudantes, uns que tiraram os seus canudos no tempo mínimo e com boas notas, outros que conseguiram atingir o almejado canudo com notas menos boas e num tempo mais dilatado e ainda os que nunca tiraram curso nenhum. Não fomos diferentes dos outros. Na CEI houve sócios dedicados mas houve também sócios que participavam pouco. Há provas que havia muitos estudantes que tinham fraca participação. Isto faz parte da natureza humana”.

O que o autor mais exalta foi a CEI como centro de convívio salutar.

Em 1961, tudo vai mudar substancialmente, fogem às dezenas os estudantes e com o início da luta armada em Angola apertou-se mais a vigilância à CEI. Outro ponto que o autor destaca é a CEI como escola de nacionalismo africano e de consciência anticolonial bem como a influência que exerceram nas lutas de libertação nacional da diversas ex-colónias.

É uma obra que toca pela serenidade, pelo extremo cuidado na citação dos factos e na busca da legislação certa. Não sendo um mito da geração de heróis, o facto é que pela CEI passaram figuras determinantes de nacionalistas africanos e aquele espaço foi indispensável para consolidar a consciência anticolonial entre muitos daqueles estudantes ultramarinos.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17858: Notas de leitura (1003): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4) (Mário Beja Santos)