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quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20102: Da Suécia com saudade (59): E agora também dos States, Florida, Key West... ou entre renas, palmeiras e daiquiris: Morreu o blogue, viva o blogue!... Afinal, os velhos soldados nunca morrem... (José Belo)



J. Belo, em Key West, Florida, EUA (2018)


1. Mensagem do José BeloJoseph, na Lapónia...


Em termos sintéticos, o nosso Zé Belo:

(i) é o português mais 'assuecado' (ou o sueco mais 'aportuguesado') da Tabanca da Lapónia e da Tabanca Grande; 

(ii) ex-alf mil inf da CCAÇ 2381,Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, cap inf ref; 

(iii) jurista, vive na Suécia há mais de 4 décadas, e onde constituiu  família: reparte os dias do ano entre a Suécia, o círculo polar ártico e a Florida, EUa,  onde a família tem negócios; 

(iv) tem mais de 130 referências no nosso blogue; entrou "de jure e de facto" para a nossa Tabanca Grande em 8 de março de 2009

(v) é mestre na arte e na ciência da simulação, camuflagem, guerrilha e contra-guerrilha, e bem como da criação de renas, e ainda arranja tempo para beber uns daiquiris à sombra das palmeiras de Key West, curtindo a sua musiquinha; pode estar meses 'desaparecido' e 'incontactável' mas volta sempre ao 'local do crime',  quer dizer, a este blogue, ao seu blogue, ao nosso blogue, aos seus velhos camaradas; afinal, "os velhos soldados nunca morrem, podem é desaparecer"... por uns tempos.



Data: terça, 27/08/2019 à(s) 13:37

Assunto: Tentar um debate , apesar das férias, das idades e da distância



Entre renas, palmeiras e daiquiris


Ao visitar, quando as minhas transumâncias atlânticas o permitem, o blogue Luís Graça  & Camaradas da Guiné, vem-me à memória a frase:
- Os velhos soldados nunca morrem, eles apenas desaparecem.

Este blogue, qual velhinho tarimbeiro, tem já sobre os ombros algumas décadas de serviço. O seu sucesso deve-se aos laços muito especiais que ainda hoje ligam todos os que serviram na Guiné. Inferno da Guiné, dirão alguns dos que o que passaram de armas na mão em postos isolados na mata. Experiência da Guiné, poderão dizer alguns outros mais felizardos. De qualquer modo as recordações da Guiné aparentam ir acompanhar-nos até ao fim.

O blogue tem sabido evoluir adaptando-se à passagem dos anos. Não menos quanto aos mais variados  temas "politicamente correctos" que, como tudo o resto,vão sendo inexoravelmente substituídos .

No início deste blogue muito se escreveu sobre as suas funções... quase psiquiátricas! Veio permitir, aos que nele participavam, uma verdadeira catarse analítica, de outro modo impossível de efectuar numa sociedade que (então?) pouco ou nada se preocupava com os antigos combatentes, seus traumas, dramas sociais, e consequentes doenças.

Creio ter este blogue ajudado a muitos ao permitir-lhes "atirar cá para fora" muitos dos seus pesadelos e frustrações.

Entre os blogues nacionais deste tipo, o somatório de informação, relatos pessoais, conhecimentos, histórias,e acima de tudo História, dá-lhe com justiça lugar único. 

As experiências das já longas vidas, todas diferentes em factores sociais, geográficos e ontológicos, leva-nos por vezes a debates mais intensos, piropos, e algumas picardias. Será também este um dos factores que torna o blogue... vivo! No fim, todos ou quase todos, acabamos por nos sentar pacificamente à sombra do nosso poilão africano. 

E, a propósito de debates neste local constituído por velhos soldados de Portugal, continuo a ter dificuldades em compreender o esquecimento a que é votada a perda da Índia Portuguesa, em período não tão afastado da nossa História.

Estaremos hoje de acordo que a tal descolonização africana "exemplar" terá tido um pouco de tudo menos o... exemplar!

O servilismo de alguns a interesses não nacionais; o vedetismo ignorante e criminoso (mais de militares do que de políticos "bem sabidos") terão levado a uma tragédia cujas dimensões ainda hoje alguns se recusam a compreender.

Tendo em conta as circunstâncias internacionais (e internas) terá sido a única política possível de aplicar? Talvez.

A "palavra de ordem" então muito usada, "Nem mais um soldado para as colónias!", terá tido muito maiores resultados negativos quanto ao funcionamento da instituição militar do que se poderia esperar.




Cabeçalho de panfleto do PCP (m-l) (Partido Comunista de Portugal, marxista-leninista) com a palavra de ordem "Nem mais um só soldado para as colónias"... Data: 26 de abril de 1974.

Fonte: com a devida vénia ao Gualberto Freitas: 1969 Revolução Ressaca [documentos para a história de uma revolução]




Olhando as realidades de então, e as evoluções mundiais futuras, as guerras coloniais estavam perdidas mesmo antes de iniciadas. Outras visões teriam sido necessárias, para além de um certo "nacional saloiismo iluminado" do governo da ditadura.

E lá voltamos ao Estado da Índia. O papel preponderante de Goa, sua cultura e gentes, na nossa História foi sempre de nível não comparável com as colónias africanas.

Como terá sido possível ao ditador, que se crê ter tido inteligência superior à mediana, não ter sabido "ler" e acompanhar as evoluções de fundo surgidas internacionalmente?

Esperar, como o fez e disse publicamente, que a "aliada" Inglaterra lhe proporcionasse apoios políticos?

A mesma Inglaterra que curtos anos antes se vira obrigada a abandonar a sua(!) Índia? Os Estados Unidos dos anos sessenta na sua pseudo-cruzada anti-colonial?

Politicamente, a União Indiana oferecia nas Nações Unidas outras saídas. Entre elas a garantia de uma vasta autonomia para Goa, garantia apoiada tanto pela Inglaterra como pelos Estados Unidos e França.

O ditador recusou todas as soluções negociadas ou negociáveis. O Afonso de Albuquerque pairava certamente na sua cabeceira. Resistência exemplar e morte heróica foram exigidas ao Exército.
Um Exército armado, ou antes desarmado, com espingardas de modelo anterior à primeira guerra mundial, cujas munições guardadas em paiol não funcionavam por há muito terem ultrapassado o seu tempo útil.

Aviões, blindados e artilharia digna do seu nome... não existiam. O governo estava disso bem informado. O resto é História.

Muito dramática para os que por lá sofreram e, não menos, para os que foram acusados posteriormente dos erros criminosos do ditador.

Ele... "passou entre os pingos da chuva"!...

A evolução dos armamentos da guerrilha na Guiné e o nosso não acompanhamento do mesmo por motivos económicos e políticos, acabariam por levar em futuro próximo a novos bodes expiatórios militares (!) das incapacidades do governo central.

Governo central que, e mais uma vez, se preparava para não assumir as suas responsabilidades políticas quanto ao evoluir da situação no terreno da Guiné. Spínola ter-se-á apercebido que alguém acabaria por ser um novo e muito conveniente... Vassalo e Silva.

Mas, e voltando à questão inicial, o que levará a muitos dos tão agressivos críticos de políticas posteriores ao... esquecimento, desculpa, ou desvalorização... de alguns destes criminosos erros anteriores?

Certamente que muitos terão melhores ideias, opiniões e conhecimentos sobre um assunto importante e passível de DIÁLOGO.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Guiné 61/74 - P20064: Manuscrito(s) (Luís Graça) (163): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte V - De 41 a 50 de 100 pictogramas)


India > Goa > Volta ao Mundo em 100 dias a bordo do mavio de cruzeiros "Costa Luminosa" > 19 de novembro de 2016 > Cemitério  > Lembrando o 10 de junho, "dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas"... Lembrando ainda os portugueses e seus descendentes que ficaram nos antigos territórios portugueses de Goa, Damão e Diu.  Aqui se dizia, antigamente: "Na Índia os mais vivem de esperança, e o comum morre sem paga"...


Foto: © António Graça de Abreu (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Cemitério de Paredes de Viadores > 1 de novembro de 2017 > O mais sumptuoso jazigo, da família da "Casa da Igreja", em estilo revivalista, neogótico > Inscrição em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" (Lembra-te, ó homem, que és pó e que em pó te hás-de tornar)....

Até na morte os homens tentam reproduzir as desigualdades sociais que existiam em vida: esta capela, dos "fildalgos" da Casa da Igreja é a única que existe, para além da de outra família, neste pequeno cemitério rural, cuja construção remonta a 1894... Logo nos finais do séc. XIX, os ricos e poderosos procuraram contornar a aplicação lei liberal do enterramentio público (que proibia o enterramento em espaço privado: palácios, conventos, igrejas, ermidas, capelas...) erigindo no espaço do cemitério público uma "jazigo capela", uma espécie de minicasa de Deus, reservada aos seus mortos queridos...

Há algo de patético neste encarniçamento em manter, na morte, a segregação socioespacial que existia em vida...  Mas, na relidade, s cemitérios públicos, que só surgem no séx. XIX, com o liberalismo, são (ou deviam ser) verdadeiros "campos da igualdade", já que metaforicamente falando, a gadanha da morte ceifa tudo e todos, ceifa rente a vida, e não poupa tanto a espiga de trigo como a erva do campo, o rico e o pobre, o herói e o cobarde, o novo e o velho, o são e o doente, o amigo e o inimigo... Afinal, "na morte ninguém finge nem é pobre"...


Foto: © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde [em 100 pictogramas]
Texto (inédito):

© Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados.


(Continuação)

[...] 1. Domingo à tarde… Sempre detestaste os domingos à tarde: ou chovia ou fazia vento e um cão uivava na vinha vindimada do Senhor. Nada acontecia, no domingo à tarde, e até o tempo parava no relógio, sonolento, da torre da igreja da tua aldeia.[...](*)



41. Havia a assistente social que fazia o inquérito de saúde aos indigentes, porcionistas e pensionistas e só em caso de vida ou de morte é que um pobre de Cristo ia parar ao Real Hospital de São José, lá longe na capital do reino, a três horas de distância da camioneta do João Henriques. Parava na Rua da Palma, mesmo pertinho do hospital do rei. 


E em Lisboa, era para morrer: que em Lisboa nem sangria má, nem purga boa, abanava com a cabeça o enfermeiro do hospital da Misericórdia. 

42. Havia a escola, primária, do tal Conde de Ferreira, e não chegava para tantos bandos de crianças que precisavam de aprender a ler, escrever e contar, e mais tarde ajudar a dilatar a fé e o império e a cobrar o imposto de palhota ou remendar as malhas que o império tecia e rompia.

Havia uma ala para os meninos, e outra para as meninas, com um muro de Berlim ao meio, os sexos apartados desde a expulsão de Adão e Eva do Paraíso, e onde não chegavam as carteiras para tanto petiz, de pé descalço e ranho no nariz, enfarinhados de pó de giz e de mãos sujas de tinta azul, as cabeças cobertas de piolhos que se matavam com água a ferver, pentes de osso e DDT 
[1]


43. Ah! a tua escola do senhor Conde de Ferreira, que saudades!, construída no tempo da Regeneração, com o remanescente da herança do maior benemérito do Liberalismo, deitada abaixo, mais tarde, pelo desgraçado do camartelo camarário. 


E em frente o carro de praça do ti’ Ad’lino, talvez um velho Ford preto (, lembras-te lá tu agora da cor e da marca!), que viera substituir o coche dos ricos, passando o cocheiro chofer, a chauffeur de praça. Assim, à francesa, chauffeur, como dizia o teu pai e era mais fino.



44. Saudades ?!... Como é que os pobres, com um rancho de filhos, e tantas bocas para dar de comer, tinham saudades da sua pobreza envergonhada?!

Havia a vida privada, por detrás dos muros dos quintais e das paredes dos casarões dos ricos, que os pobres, esses, não tinham vida, e muito menos privada.


45. Havia a alcova, exposta na via pública, o Poço Novo onde as mulheres iam lavar a roupa e os sete pecados mortais, o Poço Novo, grande melhoramento público do Estado Novo. 

Havia o confessor que tinha mau hálito, havia os segredos de confessionário, mal guardados a sete chaves, uma para cada pecado, coisas que se contavam do bom do ferreiro e segeiro da tua rua, que, coitado, tinha fama de fauno, de lobisomem e de beato, batendo a mão no peito, seco, negro do carvão de pedra, uma figura mística, arrancada às tábuas de El Greco [2]. 


46. Havia a guarda, muito pouco republicana e nacional, que estava em pé de guerra contra a comissão fabriqueira da igreja, por ocupar parte das instalações do antigo convento de santo António, velhas disputas que vinham do tempo do mata-frades 
[3]  e da república façanhuda, jacobina, maçónica e anticlerical. E tu, que mais tarde irás ajudar à missa, tomavas o partido de Deus contra o de César. Não podias deixar de tomar partido: não tinhas escolha.


47. Havia o drama dos soldados que partiam para as Índias, Goa, Damão e Diu (sem os enclaves de Dradrá e Nagar-Aveli que o "Pandita" Nehru já nos tinha usurpado em 1954!), os soldados de caqui e farda amarela e botas de polaina, capacete de aço e espingarda Mauser, e as mães da rua dos Valados, comprida, do cemitério ao largo das Aravessas, que, desgrenhadas, roucas, histéricas, rasgando véus, aventais e saias e arrancando cabelos, gritavam, imploravam, praguejavam e até invetivavam Deus e a santa da sua mãe, para que os dois (, juntos, sempre tinham mais força!),velassem por eles, os seus meninos, e os trouxessem de volta, sãos e salvos, no veleiro de torna-viagem.

E voltavam, os que voltavam, mas já não eram os mesmos. E as mães eram as primeiras a dar conta dessa mudança. E ainda não havia a guerra do ultramar, lá longe, em Angola, Guiné e Moçambique, nas terras dos pretinhos, mas hás de lá chegar quando passarem mais outonos e invernos, primaveras e verões, depois da feira de setembro. 

Havia o ditado, de mau agoiro e de negro presságio: À Índia mais vão do que tornam. Se calhar era lembrança dos tempos em que, à Índia, ir e vir demorava dois anos, de barco à vela.

48. Havia ainda a cadeia da c
omarca no largo do convento: tresandava a merda e a mijo, a vomitado e a maresia, a sangue e a suor, e, por detrás das grossas grades de ferro carcomidas pela maresia, uma mulher corajosa, com um filho nos braços, que matara o homem violento, e noutra cela um facínora das Cesaredas, terra danada, diziam, onde as mulheres eram homens e os homens lobisomens, o papão com que te metiam medo, à noite, ao deitar, debaixo dos lençóis, a faca nos dentes, a sangrar, o papão, o lobo mau, o inferno, a danação eterna, o troar dos canhões das trovoadas, dantescas, que faziam estremecer os vidros das janelas, e as missas que tinhas de ouvir por mor da salvação da tua alma, e as orações que tinhas de rezar para alcançares o céu, direitinho que nem um fuso, logo que a alma se desprendesse do frágil e miserável invólucro do teu corpo, na hora da tua morte, ámen! 



49. Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris, lembra-te, meu menino, que és pó e que em pó te hás de tornar!, ameaçava-te o padre pregador franciscano nos sermões da Quaresma,e esse latinório bastava para ficares a entender, aterrorizado, o conceito da tua reles insignificância na periferia do universo que Deus criara, com pompa e circunstância e orquestra.


50. Ah!, e as feiras da tua infância!, não te esqueças de mencionar as feiras, havia as feiras e os mercados, no Rossio, junto ao rio Grande, a merda dos bois e das vacas no terreiro (, caca, que a tua mãezinha nunca te deixaria dizer merda, e de castigo punha-te pimenta na língua!)

E os pobres dos ciganos sem eira nem beira, escorraçados ao fim de três dias, e de quem tinhas medo que te pelavas, quando por lá passavas, nos acampamentos do Rossio, a caminho da Quinta do Bolardo!

Tinham fama, os desgraçados, de desenterrar os animais, mortos por doença, que a fome era negra, e eram tantas as bocas no acampamento.

(Continua)

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[1] DDT (sigla de diclorodifeniltricloroetano) é o primeiro pesticida moderno, tendo sido largamente usado durante e após a Segunda Guerra Mundial.

[2] Doménikos Theotokópoulos, mais conhecido por El Greco (1541-1614): artista plástico genial, desenvolveu a maior parte da sua carreira em Toledo, Espanha.

[3] Alcunha de Joaquim António de Aguiar (Coimbra, 1792 – Barreiro, 1882 [,autor da lei de 30 de maio de 1834 (extinção das ordens religiosa refgulares, e nacionalziação dos seus bens)].

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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série >

11 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20052: Manuscrito(s) (Luís Graça) (159): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte I - De 1 a 10 de 100 pictogramas)

13 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20056: Manuscrito(s) (Luís Graça) (160): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte II - De 11 a 20 de 100 pictogramas)

14 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20058: Manuscrito(s) (Luís Graça) (161): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte III - De 21 a 30 de 100 pictogramas)

15 de agosto de 2019 > Guiné 61/74 - P20060: Manuscrito(s) (Luís Graça) (162): Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde (Parte IV - De 31 a 40 de 100 pictogramas)

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Guiné 61/74 - P19405: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte VII: ten inf Alberto Santiago de Carvalho (Unhais da Serra, Covilhã, 1935 - Damão, Índia, 1961)






1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar que morreram em combate no período 1961-1975, na guerra do ultramar ou guerra colonial (em África e na Ásia).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972. Foi cadete-aluno nº 45/63, do corpo de alunos da Academia Militar.

2. A história da Academia Militar remonta ao tempo de D. João IV, e ao ano de 1641, ou seja, ao início da guerra da restauração: a "Lição de Artilharia e Esquadria" é considerada a primeira escola de formação de oficiais do nosso exército. Mas em 1790, ao tempo da D. Maria, com a designação de "Academia Real de Fortificação, Artilharia e Desenho", é que passa a ser uma instituição de ensino superior das ciências e técnicas militares. 

Em 1837, passa a designar-se por Escola do Exército, por iniciativa de Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo, Marquês de Sá da Bandeira. (Será o seu mais ilustre comandante, entre 1851 e 1876).

Depois teve diversas desinações: (i) Escola do Exército (1837-1910);  (ii) Escola de Guerra (1911-1919); (iii) Escola Militar (1919-1938); (iv) de novo Escola do Exército  (1938-1959); e (v) e por fim Academia Militar (desde 1959 até hoje), com sede no Rua Gomes Freira, em Lisboa, e um polo na Amadora.
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Nota do editor:

Último poste da série 13 de janeiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19399: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte VI: ten pilav António Seabra Dias (Mealhada, 1932 - Serra da Cananga, Angola, 1961)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19147: O nosso livro de visitas (197): Conheci em Angola o cap inf António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, ex-cmdt da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835, que passou por Guileje (1968/69) e que esteve prisioneiro na Índia (1961/62), tendo falecido em 2014 (Fernando Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3380, 1972/74)


Guião do BCAÇ 2835 (Bissau e Nova Lamego, 1968/69): Mobilizado pelo RI 15, partiu para o TO da  Guiné em 17/1/1968 e regressou a 4/12/1969. Esteve em Bissau e Nova Lamego. Comandantes: ten cor inf Esteves Correia, maj inf Cristiano Henrique da Silveira e Lorena, e ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos. Subunidades de quadrícula: CCAÇ 2315 (Binar, Bissau, Mansoa, Mansabá, Mansoa, Nova Lamego, Dara, Madina Mandinga); CCAÇ 2316 (Bissau, Bula, Mejo, Guilejem, Gadamael, Bissau); e CCAÇ 2317 (Bissau, Bula, Mansabá, Guileje, Gandembel, Bula, Nova Lamego).


1. Comentário do nosso leitor e camarada Fernando de Sousa Ribeiro (*)

Chamo-me Fernando de Sousa Ribeiro e fui alferes miliciano em Angola, integrado na CCaç 3535, do BCaç 3880, entre 1972 e 1974 (**).

O primeiro oficial de operações e informações que o meu batalhão teve foi o capitão de Infantaria António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, mais conhecido por capitão Castel-Branco. Em comissão anterior, este capitão esteve na Guiné, onde comandou a CCaç 2316, do BCaç 2835, em Guileje.

A sua passagem por Guileje deixou-lhe profundas marcas psicológicas, que lhe afetaram de forma claramente visível o seu espírito. A sua posterior estadia no meu batalhão em Zemba, Angola, não melhorou em nada o seu estado mental e, ao fim de menos de um ano de comissão, veio evacuado para a Metrópole e internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar Principal, como maníaco-depressivo.

Nunca, repito nunca, ouvi o capitão Castel-Branco fazer qualquer referência a Guileje e à sua experiência pessoal lá. Ele falava da Guiné em geral, contava casos passados em Bissau e noutros lados, mas a palavra "Guileje" nunca saiu da sua boca. Nunca. 

Talvez o facto de ele se ter sentido incapaz de "deitar cá para fora" as suas recordações e os seus sentimentos em relação a Guileje tenha contribuído de forma determinante para a sua degradação psicológica. De resto, tirando o seu estado de espírito alterado, o capitão Castel-Branco foi um oficial de operações muito competente e que deixou boas recordações em quem com ele conviveu em Angola.

Antes de Angola e da Guiné, o capitão Castel-Branco esteve na Índia como alferes ou tenente, encontrando-se em Goa quando se deu a invasão pela União Indiana. Foi prisioneiro de guerra. Enfim, como se costuma dizer, «a sua vida dava um filme».

O capitão Castel-Branco nunca falava de Guileje, mas falava, e muito, de Goa e da sua situação como prisioneiro na Índia. Para começar, ele aprovava a atitude do general Vassalo e Silva, que lhe salvou a vida. O que ele não aprovava, mas compreendia, foi a forma desordenada como se deu a rendição. Segundo o Castelo Branco, os militares portugueses puseram-se em fuga diante do inimigo, em vez de se entregarem, e só a contenção e disciplina das Forças Armadas Indianas impediu que muitos deles fossem mortos. Contou ele que foi uma situação deste tipo: «Onde estão os indianos, estão ali? Então fujo para acolá».

Em resultado de tudo o que viu e viveu, o capitão Castelo Branco ficou a admirar profundamente as Forças Armadas Indianas, cujo aprumo, disciplina e cavalheirismo terão sido irrepreensíveis. Segundo ele, a população civil goesa foi tratada com toda a deferência e os prisioneiros de guerra foram tratados no mais estrito cumprimento das convenções internacionais. Ele mesmo foi tratado como um oficial e não como um prisioneiro. Disse o Castelo Branco que quase a única diferença entre ele e um oficial indiano da mesma patente,  era que ele não podia comandar tropas e não podia voltar para casa. As saudades da família e a incerteza sobre a sua libertação é que foram o que mais lhe custou a suportar.

Um abraço

Fernando de Sousa Ribeiro


2. Há um primeiro comentário do Fernando de Sousa Ribeiro, sobre o cap Castel-Branco Ferreira, com data de 27/7/2018 (**)

Conheci em Angola o capitão de Infantaria António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira, que terá rendido Joaquim Evónio de Vasconcelos no comando da CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835, em Guileje. O capitão Castelo Branco (como lhe chamávamos) foi o primeiro oficial de operações e informações que o meu batalhão (BCaç. 3880) teve em Zemba, no norte de Angola.

Logo desde o primeiro dia da comissão se notou que o capitão Castelo Branco "não batia bem da bola". «Ele esteve em Guileje, na Guiné», dizia-se. «Aquilo foi tão mau, que ele ficou maluco», acrescentava-se. E ninguém se atrevia a contrariar o Castelo Branco, não por receio do que ele pudesse fazer, mas por respeito por alguém que tinha comido o pão que o diabo amassou.

Como pessoa, o capitão Castelo Branco era bondoso e compreensivo, ou pelo menos assim parecia. Quando não se tem responsabilidades de comando de tropas, como ele não tinha, é relativamente fácil ser compreensivo. Não sei como ele se comportaria no comando de uma companhia.

Como militar, o capitão Castelo Branco deu provas de uma enorme competência. O maior êxito que o meu batalhão teve, e que valeu a promoção do comandante a coronel, deveu-se sobretudo à forma cuidada como o capitão Castelo Branco planeou uma determinada operação. Nessa operação, os guerrilheiros da FNLA foram completamente apanhados de surpresa, abandonaram uma vasta região e deixaram de exercer pressão militar sobre o distrito do Cuanza Norte.

À medida que o tempo foi passando, o estado de saúde mental do capitão Castelo Branco foi-se agravando cada vez mais. Ao fim de dez meses de comissão, mais ou menos, teve que ser evacuado para a Metrópole e internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar Principal. Vi-o uma vez em meados dos anos 90 e pareceu-me estar com excelente aspeto. Faleceu por volta de 2014.

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, camarada Sousa Ribeiro, pelo depoimento... O nome do capitão António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira figura na lista dos ex-prisioneiros de guerra da Índia com direito a uma pensão, conforme despacho conjunto  dos ministros da defesa e das finanças.

Identifico igualmente o meu primo, de Ribamar, Lourinhã, Luís Filipe Maçarico... Não vejo o nome do general Vassalo e Silva, que nãio consta da lista pela simples razão de já ter morrido (em 1985).

Despacho conjunto 648/2004

A Lei 34/98, de 18 de Julho, regulamentada pelo Decreto-Lei 161/2001, de 22 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei 170/2004, de 16 de Julho, veio estabelecer um regime excepcional de apoio aos ex-prisioneiros de guerra, nomeadamente a atribuição de uma pensão.

Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei 161/2001, de 22 de Maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 170/2004, de 16 de Julho, e concluída que está a instrução dos processos pelo respectivo ramo das Forças Armadas, determina-se a concessão aos ex-prisioneiros de guerra constantes da lista anexa ao presente despacho, do qual faz parte integrante, a pensão a que se refere o artigo 4.º do referido decreto-lei.

O presente despacho produz efeitos desde 1 de Janeiro de 2004.

15 de Outubro de 2004. - O Ministro de Estado, da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Paulo Sacadura Cabral Portas. - O Ministro das Finanças e da Administração Pública, António José de Castro Bagão Félix.

ANEXO

(...) António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira

Caro Sousa Ribeiro, vejo que és leitor, mais ou menos assíduo do nosso blogue, e já não é o  primeiro contributo que dás para a partilha de memórias entre todos nós que fizemos a guerra do ultramar / guerra colonial (**).  O nosso blogue integra camaradas que passaram por outros teatros de operações, incluindo Angola. Não há fronteiras rígidas. Por razões de "mera economia de tempo e espaço", este blogue tem-se centrado na experiência operacional dos militares que passaram pela Guiné, entre 1961 e 1974. Mas temos falado também de outros territórios, incluindo Angola, Cabo Verde, Índia...

Obrigado por nos teres trazido notícias de um camarada da Guiné, o então cap inf Castel-Branco Ferreira que não conheci, e infelizmemte já falecido, como dizes, em 2014.  Deve ter-se reformado como coronel de infantaria. Conheci, isso sim, em 1969, o oficial que o foi substituir na CCAÇ 2316, o cap art Octávio Manuel Barbosa Henriques, mas noutras funções, como instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga (Setor L1, Bambadinca),

Nessa medida venho-te convidar para te juntares à nossa "caserna virtual" onde cabe sempre mais um camarada e/ou amigo da Guiné. Somos 779 entre vivos e mortos. Tu poderás ser o 780 a sentares debaixo o nosso mágico e fraterno poilão...Só tens que mandar as duas fotos da praxe (uma atual e outra do tempo da tropa), mais o teu endereço de email. Um alfabravo. Luís Graça

4. Ficha de unidade: CCAÇ 2316 / BCAÇ 2835 

Foi mobilizada pelo RI 15, partiu para o TO da Guiné em 17/1/1968 e regressou a 4/12/1969. Esteve em Bissau, Bula, Mejo, Guileje, Gadamael e Bissau. Teve 4 comandantes:

(i) cap inf Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos;

(ii) cap inf António Jacques Favre Castel-Branco Ferreira; 

(iii) cap art Octávio Manuel Barbosa Henriques;

 e (iv) cap cav José Maria Félix de Moraes.

O BCAÇ 2835 esteve em Bissau e Nova Lamego. Tinha como subunidades, além da CCAÇ 2316, a CCAÇ 2315 e a CCAÇ 2317.  Comandantes: ten cor inf Joaquim Esteves Correia; maj inf Cristinao Henrique da Silveira e Lorena; ten cor inf Manuel Maria Pimentel Bastos.

Temos 14 referências à CCAÇ 2316 no nosso blogue, e 20 ao BCAÇ 2835.

______________

Notas do editor:


domingo, 28 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19142: Manuscrito(s) (Luís Graça) 147): Tinha 14 anos em 1961, o "annus horribilis" de Salazar e da Nação... Depois do desastre da Índia, em 18-19 de dezembro de 1961 e de cinco meses de cativeiro, o general Vassalo e Silva e outros oficiais foram expulsos das Forças Armadas, em 22 de março de 1963... Era um aviso sério para os que combatiam em África.



Primeira página do "Diário de Lisboa", de 22 de março de 1963. O jornalismo, censurado, que se fazia em Portugal, o jornalismo das notas oficiosas e dos comunicados do Governo.


Citação:
(1963), "Diário de Lisboa", nº 14464, Ano 42, Sexta, 22 de Março de 1963, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_15253 (2018-10-28)

(Fonte: Fundação Mário Soares > Casa Comum > Arquivis > Fundo: Documentos Ruella Ramos)


O gen Vassalo e Silva, no cativeiro. Foto do Paris Match,
c. 19 de dezembro de 1961.
 Fonte: A toponímia de Lisboa 
(com a  devida vénia...)
1. Com a devia vénia, ao autor do  blogue Archive of Goan Writing Portuguese [Arquivo de Escritos Goeses em Português],  Paulo Melo e Castro,  leitor de Estudos Portugueses [Portuguese Studies],  Universidade de Leeds,  Departamento de Espanhol, Português e Estudos Latino-Americanos [ Department of Spanish, Portuguese and Latin American Studies]...

O blogue esteve ativo desde dezembro de 2010 até abril de 2015. Foram publicados 460 postes, neste período, com destaque para os anos de 2011 (n=212),  212 (n=127) e 2013 (n=86).

Fomos lá descobrir este inesperado poema, da autoria de Khnata Kharana Kabba, datado de 1980, e em que se defende o general Vassalo e Silva (Torres Novas, 1899 - Lisboa, 1985),  o último governador de Estado Português da Índia,  que se rendeu às forças indianas 36 horas depois da invasão dos territórios de Goa, Damão e Diu, contrariando ordens terminantes do chefe do Governo Português, para resistir até ao último homem... É, como se sabe,  um episódio patético da nossa história do séc. XX, que abriu uma crise grave entre o regime do Estado Novo e as Forças Arnadas.

Este poema terá aparecido na imprensa goesa em 1980. O seu autor, que se expressa em português quase perfeito, é um  nacionalista, indiano de origem goesa, mas que nem sequer tem um nome português. Aqui fica, para conhecimento e apreciação, crítica, dos nossos leitores:



Archive of Goana Writing Portuguese

Monday, 22 August 2011

Khanta Kharma Kabha:

Os que [se] opõem ao Camões ou Vassalo e [Silva,
Só por não serem indianos, mas portugueses,
Saibam que eles só merecem um Viva!,
Por serem amigos de Goa e dos Goeses.

Foi Vassalo quem salvou a nossa Goa
Das ordens da sua destruição
E, quando regressou a Lisboa,
Sofreu a sua condenação.

Não é verdadeiro nacionalista
Quem não o souber admitir e homenagear
E, na sua estreiteza de vista,
Não [o] reconhecer como “political-sufferer”.
Camões, Shakespeare ou Tagore,
Qualquer deles é indiano e universal,
Não há lugar, portanto, para o rancor
Contra Camões por ser de Portugal.



[Revisão e fixação de texto: LG. Nota: "political-sufferer": vítima da política e dos políticos, da injsutiça social e económica, etc.; expressão muito usada na Índia]


2. Comentário de LG:

Eu tinha 14 anos em 1961, ia fazer 15, em 29 de janeiro de 1962... e já  "sabia" que ia parar a África como soldado do Império... quando chegasse a minha vez. Premonições... Lia os jornais, ouvia rádio, via a televisão... Seguia com apreensão o que se passava em Angola, na Índia, na Metrópole... Hoje, tenho a convicção de que foi um "annus horribilis" paar todos nós, e não apenas para o regime...

Manuel  António Vassalo e Silva (Torres Novas, 1899 - Lisboa, 1985), general do exército, foi o último Governador  do Estado Português,e comandante-chefe das forças armadas naquele território, aquando da invasão, pela União Indiana. em 18 de dezembro de 1961.

Uma invasão, de resto, há muito anunciada..., por uma força caricatamente desmesurada (um exército de 45 homens; 1 porta-aviões, 1 cruzador, 3 contra-torpedeiro e 4 fragatas; 50 caças e bombardeiros), contra um punhado de homens mal armados e mal equipados, que estavam a mnaius de 8300 km de distância de casa...

Em 36 horas foi posto  um fim à presença histórica dos portugueses, no subcontinente indiano, de quase 5 séculos (desde 1492, o ano da chegada de Vasco da Gana à Índia). (*)

Vassalo e Silva desobedeceu às ordens de Salazar para lutasse até ao último homem. Ao render-se, salvou cerca de 3300  vidas, a sua e as dos seus subordinados (que vão ficar 5 meses em cativeiro, bem como evitou o massacre da população e a destruição do património de Goa, Damão e Diu (. hoje classificado pela UNESCO como como património mundial da  humanidade, as Igrejas e os Conventos de Goa). É isso que o poema celebra.

Em 22 de março de 1963, Vassalo e Silva (, que ficará com a alcunha do "Vacilo e Salva", entre os  seus homens, )  é  expulso das Forças Armadas Portuguesas. Será reabilitado a seguir ao 25 de Abril de 1974.  A História o julgará.  A História nos julgará. Afinal os regimes, mais do que os povos, precisam de heróis, mártires e vilões... (**)
______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

17 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9219: Efemérides (82): A invasão da Índia Portuguesa em 18 de Dezembro de 1961 (José Martins)

(...) No inicio de 1961, o Coronel Francisco da Costa Gomes, na sua qualidade de Subsecretário de Estado do Exército (56.º Ministério, cargo que ocupou de 14 de Agosto de 1958 a 13 de Abril de 1961), sugeriu a redução dos efectivos naquelas paragens [Goa, Damão e Diu]  para cerca de 3.500 homens, em virtude de se ter constatado que aquele território seria indefensável, perante uma, mais que provável, invasão. Esses efectivos foram deslocados para África, onde se tinham iniciados os conflitos que se prolongariam por cerca de treze anos, e que se propagou a três frentes de combate.

Com uma guarnição de pequena dimensão, mal armada e pouco municiada, dá inicio a alguns combates esporádicos, com forças da União Indiana, em 17 de Dezembro de 1961. Porém, no dia 18, uma força de cerca de 45.000 homens, mantendo na retaguarda como reserva cerca de mais 25.000, dá inicio à invasão simultânea dos três territórios ainda em poder efectivo de Portugal. (...)

(...) 19 de Dezembro de 1961 – O contingente português acabou por se render, tendo o governador, general Vassalo e Silva, ordenado a “suspensão de fogo” às suas tropas. Mais de três mil militares portugueses foram feitos prisioneiros, entre eles o próprio Comandante. O Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar que queria “Só soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos”, puniu e perseguiu alguns dos oficiais em serviço na Índia, o que abriu dolorosa ferida nas Forças Armadas Portuguesas e foi uma das raízes do derrube do regime Salazar, doze anos depois da queda de Goa, Damão e Diu. (...)


(...) Recorde-se que a generalidade dos antigos prisioneiros da Índia (cerca de 3500) foram, no regresso á Pátria, mal tratados, humilhados, abandonados, ostracisados, esquecidos... Para o regime político da época, e para sua opinião pública, eles pura e simplesmente deveriam ter-se deixado imolar no altar da Pátria na defesa da Índia Portuguesa, a "joia da coroa". Por não ter sabido resistir, até á última gota de sangue, Vassalo e Silva, o governador geral da Índia e comandante chefe da simbólica força expedicionária estacionada nos territórios de Goa, Damão e Diu, fui expulso do exército... (...)


(...) Em memória dos camaradas de armas tombados em nome de Portugal, deixamos o registo dos seus nomes, para que a História e os Homens, os não esqueçam, e não se tornem em SOLDADOS ESQUECIDOS:

Militares tombados em Defesa da Índia Portuguesa

Abel Araújo Bastos – Soldado
Abel dos Santos Rito Ribeiro – Alferes Miliciano de Infantaria
Alberto Santiago de Carvalho – Tenente Infantaria
Aníbal dos Santos Fernandes Jardino – Marinheiro
António Baptista Xavier - 1.º Cabo
António Crispim de Oliveira Godinho - 1.º Cabo
António Duarte Santa Rita - 1.º Sargento da Armada
António Fernando Ferreira da Silva - 1.º Cabo
António Ferreira – Marinheiro
António José Abreu Abrantes – Alferes Miliciano Infantaria
António Lopes Gonçalves Pereira – Alferes Miliciano Engenharia
Cândido Tavares Dias da Silva - 1.º Cabo
Damuno Vassu Canencar – Soldado
Fernando José das Neves Moura Costa - Soldado
Jacinto João Guerreiro – Soldado
João Paulo de Noronha - Guarda 2.ª classe
Jorge Manuel Catalão de Oliveira e Carmo - 2º Tenente Armada
José A. Ramiro da Fonseca - Furriel Miliciano
José Manuel Rosário da Piedade - 1.º Grumete Armada
Joviano Fonseca - Guarda-Auxiliar
Lino Gonçalves Fernandes - 1.º Cabo
Manuel Sardinha Mexia – Soldado
Mário Bernardino dos Santos – Soldado
Paulo Pedro do Rosário - Guarda Rural
Tiburcio Machado - Guarda-Rural

OBS: Esta lista pode estar incompleta.

Os Soldados da Índia só foram “reabilitados” do ostracismo a que foram votados, após o 25 de Abril. Todos os prisioneiros de guerra, foram condecorados com a Medalha de Reconhecimento  (...)  em 03 de Maio de 2003, pelo então Ministro de Estado e da Defesa Nacional Dr. Paulo Portas. (...)

(**) Último poste da série >  26 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19138: Manucrito(s) (Luís Graça) (146): Tinha eu sete anos quando começou a guerra colonial, com a invasão e a ocupação dos "anexos" de Dadrá e Nagar-Aveli, Estado Português da Índia, em 22 de julho de 1954...

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19138: Manucrito(s) (Luís Graça) (146): Tinha eu sete anos quando começou a guerra colonial, com a invasão e a ocupação dos "anexos" de Dadrá e Nagar-Aveli, Estado Português da Índia, em 22 de julho de 1954...




Mapa de Portugal Insular e Ultramarino. Porto: Editora Educação Nacional, [1939]. Excerto: Mapa de Damão, e enclaves de Dadrá e Nagar-Avelli.  Era usado na minha escola Conde de Ferreira, na Lourinhã.


Cartoon de Sant Ana. Diário de Lisboa, 28 de julho de 1954 (com a devida vénia ao autor e editor...): o 'Pandita' Nehru (1889-1964) lançando,com uma fisga, uma pedra ("Dadrá") à cara do gigante Vasco da Gama (Sines, 1469 — Cochim, Índia, 24 de dezembro de 1524), sob o olhar estupefacto do rei Sol... Convenhamos: não terá sido o primeiro "insulto", de parte a parte...

Em 1783, Nagar-Aveli foi cedida aos portugueses, como reparaçãp patrimonial,  pelo afundamento de um navio português pela marinha marata. Dois anos depois, em 1785, os portugueses  compram Dadrá, inserindo o novo território no Estado Português da Índia.(LG)







Diário de Lisboa, 28 de julho de 1954.


Citação:
(1954), "Diário de Lisboa", nº 11368, Ano 34, Quarta, 28 de Julho de 1954, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_19456 (2018-10-26)

(Cortesia da Fundação Mário Soares > Casa Comum > Fundo: Documentos Ruella Ramos)



1. A censura impediu a notícia da ocupação, por voluntários nacionalistas indianos, do enclave de Dadrá , a 22 de julho de 1954 (e não 14 de junho, como refere alguma da nossa historiografia militar...), pelo "United Front of Goans" [Frente Unida dos Goeses], liderada por Francisco Mascarenhas; são assassinados Aniceto do Rosário, o sub-inspetor do posto de polícia de Dadrá, e o soldado António Francisco Fernandes. (Aniceto Rosário,  herói desconhecido, de origem goesa, mascido em 1917, será depois condecorado a título póstumo com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito; tem nome de rua em Lisboa.)

A 28 de julho, mais um punhado de nacionalistas [, do Exército Livre de Goa (Azad Gomantak Dal, AGD, liderado por Prabhakar Sinari) e da Organização Nacional dos Voluntários (Rashtriya Swayamsevak Sangh, RSS; liderada por Raja Wakankar)   cercaram Naroli e  neutralizam as escassas forças policiais que defendiam o território. Não havia forças do exército.

A polícia portuguesa, sob o comando do administrador Nagar-Aveli, o capitão Virgílio Fernandes Fidalgo, concentra-se em Silvassa, e resiste entre 2 e 8 de agosto. Com centena e meia de polícias e alguns voluntários, as forças portuguesas retiram para Khanvel. Encurralado, o capitão Fidalgo acaba por assinar a rendição das suas forças,  em Udva, a 11 de agosto de 1954, em troca da garantia de que os seus cento e cinquenta homens e os que haviam sido feito prisioneiros pelos indianos, pudessem chegar  até Damão, em segurança. Consuma-se a queda de Nagar-Aveli...

A 15 de agosto (, data com grande simbolismo para os indianos, já que comemora a independência da Índia em 1947, e que era desde 1858 a "joia da coroa" britânica), um grupo de "satyagrahis" ocupa temporariamente o forte de Tiracol, a norte de Goa.

Em 10 de agosto de 1954, Salazar dirigiu-se ao país, através dos microfones da Emissora Nacional, falando sobre Goa e a União Indiana.

Acrescente-se mais umas pitadas de história: o território de Nagar Aveli paasou a pertencer à coroa portuguesa, em 10 de junho de 1783. já no reinado de D. Maria I; na sequência do Tratado de Amizade celebrado em 17 dezembro de 1779, no reinado de Dom José I, e como reparação por danos causados à fragata portuguesa Santana pela marinnha do Império Marata, em 1772.   Dois anos depois, em 1785, é feita a compra de Dadrá.  A soberania portuguesa sobre estes "exclaves" de Damão, ereforça-se com a derrota do império marata, em 1818, infligida pelo exército britânico, na III Guerra Anglo-Marata. Entretanto, a Índia torna-se independente da Grã-Bretanha, em 1947, incorporando a nova república todos os territórios até então submetidos à coroa inglesa.  Os territórios franceses são integrados em 1954. Portugal era a última potência colonial na Índia, depois da Ingaterra, da Holanda e da França...


2. Entre 22 de julho e 11 de agosto de 1954 são invadidos e ocupados  os dois enclaves do Estado Português da Índia, situados a sudeste de Damão (também conhecidos como exclaves de Damão, no coração do Guzerate).

Os invasores pertenciam a diferentes grupos nacionalistas (, conhecidos por "satyagrahi", ou seja, reclamando-se dos princípios da resistência não-violenta de Gandhi, a "satyagraha"). Sabemos que beneficiaram da "proteção" das forças da União Indiana que cercavam os enclaves.

Estes acontecimentos podem considerar-se como o início da "guerra colonial" e do "fim do império"...Poucos portugueses ainda se lembram destes topónimos e menos ainda sabem do que é que se passou nestes territórios que faziam parte do mítico Portugal pluricontinental e plurarracional de que ia do Minho a Timor... 

Quando entrei para a escola primária, no ano letivo de 1954/55, ainda tive que decorar estes topónimos e saber apontá-los no mapa... E comecei a ver os meus vizinhos, mais velhos,  a partir para a Índia, "em defesa da Pátria".

(...) Havia o drama dos soldados  que partiam para as Índias,
Goa, Damão e Diu 
(sem os enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli
que o “Pandita” Nehru  já nos tinha usurpado!),
de caqui e farda amarela e botas de polaina,
capacete de aço e mauser,
e as mães da rua dos Valados,
comprida, do cemitério ao largo das Aravessas,
que, desgrenhadas, roucas, histéricas,
rasgando véus e saias e arrancando cabelos, 
gritavam, imploravam, praguejavam e  até invetivavam Deus  e a santa da sua mãe, 
para que os dois (, juntos, sempre tinham mais força!),
velassem por eles, os seus meninos,
e os trouxessem de volta, sãos e salvos,
no veleiro de torna-viagem.(...)

In: Luís Graça - Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde.
Texto poético, inédito, 2005, c. 50 pp.


3. Recorde-se que em 11 de junho de 1953, Lisboa e Deli cortam relações diplomáticas. Nehru decreta, no final desse ano, o bloqueio económico aos territórios portugueses.  Não havia, por isso, nenhuma força militar em Dadrá e Nagar-Aveli.

Em 18 de dezembro de 1961, a União Indiana invade e ocupa militarmente os restantes territórios, Goa, Damão e Diu, com uma força caricatamente desmesurada (um exército de 45 homens; 1 porta-aviões, 1 cruzador, 3 contra-torpedeiro e 4 fragatas; 50 caças e bombardeiros). 36 horas foi o suficiente para pôr um fim à presença histórica dos portugueses, no subcontinente indiano, desde 1492, o ano da chegada de Vasco da Gana à Índia.

Em 1955, Portugal tornara-se membro da ONU e logo vai interpor recurso, ao Tribunal Internacional de Haia, com vista a recuperar os territórios de Dadrá e Nagar-Aveli. A sentença,  lavrada cinco anos depois, em 1960, é "salomónica": condena como ilegal a invasão, reconhece a soberania portuguesa sobre os territórios de Dadrá e Nagar-Aveli, mas a União Indiana tem todo o direito... de impedir qualquer acesso (de pessoas e bens) aos enclaves... 

Na Assembleia Geral das Nações Unidas, Portugal começa a ser cada vez mais um país internacionalmente isolado... A intransigência de Salazar (ou a sua incapacidade em negociar uma solução historicamente honrosa com a União Indiana) vai desembocar no "orgulhosamente sós" e na guerra colonial...

 O recrudescer da guerra fria e o peso do movimento dos não-alinhados, a par do apoio da União Soviética e da "neutralidade" da administração Kennedy e do Vaticano, ajudam também a explicar e compreender o desastre (anunciado) de 18 de dezembro de 1961.

Alguns dos meus vizinhos e parentes da Lourinhã ficaram lá prisioneiros, cinco meses, juntamente com mais 3300 camaradas.  Menos de oito anos depois, em 24 de maio de 1969, eu partiria no T/T Niassa (com o Jerónimo de Sousa, hoje líder do PCP, e tantos outros camaradas que ficaram anónimos...) para a Guiné, em missão de soberania... LG

_________________

Fontes consultadas:

Filipa Alexandra Carvalho Sousa Lopes - As vozes da oposição ao Estado Novo e a questão de Goa.
Porto: Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2017 (Tese de doutoramento em Ciências da História, 432 pp, disponível em Repositório Aberto da Universidade do Porto, FLUP - Faculdade de Letras, FLUP - Tese : http://hdl.handle.net/10216/108453)


E ainda "Ìndia, Estado da", in: Dicionário de História de Portugal (coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica), vol VIII, Suplemento F/O, Lisboa: Livraria Figueirinhas,1999, pp. 255-261,

_____________

Nota do editor:

domingo, 24 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18773: Manuscrito(s) (Luís Graça) (142); Autobiografia: no tempo em que havia um santo para cada estação, do são Sebastião ao são João... e os soldados partiam para a Índia



Foto e texto: © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Canaradas da Guiné]



No tempo em que havia um santo para cada estação,
do são Sebastião ao são João… e os soldados partiam para a Índia


por Luís Graça



Domingo à tarde…
Sempre detestaste os domingos à tarde:
ou chovia ou fazia vento
e um cão uivava
na vinha vindimada pelo Senhor,
sobretudo nada acontecia,
de assinalável, 

no domingo à tarde,
e até o tempo parava
no relógio da torre da igreja da tua aldeia. 



Mesmo que a vida tivesse um sentido,
e tu escutasses a boa nova do padre Escudeiro,
no largo do convento,
às vezes soalheiro,
a vida ia no sentido inexorável
dos ponteiros do relógio,
dextrorsum,
aprenderás mais tarde, na escola,
ou, por outras palavras,
do berço à cova,
donde ninguém escapava
,
os novos sucedendo-se aos velhos na fila da morte.
E quem acabava, sua cova tapava.
 



Mentes: pelo menos, havia a bola,
as pequenas alegrias da bola, de trapos,
as paixões da bola,
os cromos do Sporting e do Benfica, e a escola,
(não, nesse tempo não se dizia escolinha!),
o bibe azul às riscas,
mais a sacola
onde levavas o caderno,  de caligrafia,
a tabuada, a caneta de aparo,
o pau de giz, a ardósia,
o pão seco com marmelada,
ou com toucinho fresco, ou salgado,
que era o presunto dos pobres,
e o livro de leitura da 3ª classe
com os meninos, na capa,
da Mocidade Portuguesa,
cantando e rindo,
e, como tu, às vezes,

chorando, suspirando e sonhando. 



Havia o jogo dos cinco cantinhos,
e o da cabra-cega,
mais o berlinde,
o arco e o balão,
o abafa, as caricas,  o pião,
a alegria (e às vezes o medo)
da hora do recreio.
Foi lá que aprendeste
que a vida tem horas
e dias e semanas e anos (…) 



E, com sorte,
haveria o bife ao domingo,
o polvo na maré-baixa,
o bacalhau com grão-de-bico à sexta-feira,
no tempo da quaresma,
se a gente lá chegasse,
ao domingo,
à maré-baixa,
à quaresma. (…)



Ah!, e as feiras!,
não te esqueças de referir as feiras,
havia as feiras e os mercados,
no Rossio, junto ao rio,
a merda dos bois e das vacas no terreiro,
e os pobres dos ciganos
sem eira bem beira,
de que tinhas medo que te pelavas,
mais as labaredas do inferno,
as fogueiras de são João,
a queima das alcachofras,
um tostãozinho para os santos populares,
as bichas de rabear,
o calvário e as suas treze estações,
a rua da Misericórdia,
a rua Grande,
a rua do Castelo,
havia três ruas, não mais, na tua aldeia,
e chegavam… 



A
h!, havia ainda a banda filarmónica,
o ti-nó-ni dos carros dos bombeiros,
a sirene do quartel dos bombeiros
que marcava as doze horas de domingo.
E o sino da igreja da tua aldeia
que tocava a finados
quando morria algum cristão.
E o são Sebastião, no inverno,
em janeiro no frio de rachar,
havia santos para cada estação,
o são João, no verão,
no 24 de junho,
o dia em que os camponeses da tua aldeia
iam à praia molhar os tornozelos,
os homens, de ceroulas arregaçadas,
as calças de cotim, remendadas,
os mais velhos de barrete preto,
e elas, de saias compridas, de flanela,
que não podiam mostrar a barriga da perna,
os matulões pegando nos putos a berrar e a espernear
e batizando-os na água salgada,
do grande oceano,
para que as carnes enrijassem,
e os meninos medrassem,
e lá voltassem pró ano,
todos os anos até ao dia das sortes,
e fossem grandes homens,
fortes e valentes,
marinheiros,  aventureiros,
soldados façanhudos
ou simples cavadores de enxada,
como os seus pais e os seus avós o tinham sido,
que os bisavós e os tetravós,
esses, já ninguém sabia quem eram,
nem de onde teriam vindo,
nem se chorava por eles,
porque
na época do trinta e um,
poucos moços, velhos nenhum
.


Ah, os camponeses e os seus burros
que ainda não estavam em extinção,
nem uns nem outros,
iam aos magotes
até à praia da Areia Branca,
no feriado do são João,
entre brincadeiras e dichotes,
levavam a trouxa e a merenda,
os tremoços e as pevides,
as peras, as ameixas e os abrunhos,
os melões e as melancias,
o pão de trigo do moleiro cozido em forno a lenha,
a broa de milho com sardinha,
as azeitonas mal curadas,
bebiam vinho pelo garrafão de palha,
comiam o arroz de cabidela,
de galo ou de coelho,
misturado com a areia e o vento e as lágrimas de sal, 

e as saudades dos mortos 
e dos perdidos pelos mares 
e pelos quintos do inferno do império...
Comiam o arroz, escuro, de cabidela,
em cima de mantas grossas,
feitas de trapos,
berrantes, multicolores,
e usavam canivetes multiusos
que tanto serviam para limpar a cera dos ouvidos
ou o lixo das unhas,
como para cortar grandes nacos de pão,
ou apanhar lapas e ouriços do mar...

Sangravam de saúde, 
pelo são João,
os camponeses da tua aldeia,
muita saúde, pouca vida,
que Deus não dava tudo,
no tempo em que beber vinho
era dar de comer a um milhão de portugueses
. (…) 



Na Praia da Areia Branca, pelo são João, lembras-te?,
o teu querido ti Silvano,
carpinteiro e cavaleiro,
utilizando-te como escudo
em luta contra as forças de Neptuno.
Foi num 24 de junho
(ou terá sido no dia de são Bartolomeu,
a 24 de agosto?)
de mil novecentos cinquenta e tal,
que passaste a ter medo do mar
e prometeste a ti mesmo
(vã promessa de menino!)
nunca vir a ser marinheiro,
que na água de mares,
não procures cabelos para te agarrares
.




Havia ainda a festa de são Sebastião,
Sabastião, dizia o povo, come tudo, come tudo,
o pobre de Cristo,
coitadinho do soldadinho,
do tamanho de um menino,
com ar de quem não tinha nenhum jeitinho para santo, 

nem muito menos para herói e mártir,
o corpo trespassado pelas setas dos maus,
havia os carros de pão,
as promessas, os leilões, as rezas,
os exorcismos, os amuletos,
os unguentos, as benzeduras da ti’ Adelina, 

(tua vizinha da rua do Clube,
que irá morrer nas Américas)
contra o mau olhado, 

as bruxas, os losibomens, o diabo,
cruzes, canhoto!,
o sarampo,  o sarampelo, a varíola,  a varicela,
a cólera, a raiva,  
a peste, a fome, a guerra, 
e o bispo da nossa terra, libera nos, Domine,
a tuberculose,  o tifo, a rubéola,
a febre amarela, a tosse convulsa, a diferia,
a disenteria, as sezões, e os males de amores,
e ainda estava para vir o ébola, a sida, o dengue
e os quatro cavaleiros do apocalipse. (...)



Havia, por fim, os soldados que partiam para a Índia,
e as mães da rua do Castelo
comprida, do cemitério ao largo das Aravessas,
que, desgrenhadas, rasgando saias e arrancando cabelos,
gritavam
para que a Virgem Maria velasse por eles,
os seus meninos,
e os trouxesse de volta, sãos e salvos,
no veleiro de torna-viagem. (...)

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Excertos:

In: Luís Graça - Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde, 2005, c. 50 pp. (inédito)

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Nota do editor:

Último poste da série > 6 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18491: Manuscrito(s) (Luís Graça) (141): Soneto para ti, Joana, ao km 40 da tua autoestrada da vida

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Guiné 61/74 - P18715: Álbum fotográfico de Virgílio Teixeira, ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69) - Parte XXXIV: Como se faz um alferes miliciano do Serviço de Administração Militar (II)


Foto C64  > Com Salazar, amigo e padre, Santiago de Compostela,  28-4-1965.


Virgílio Ferreira, aspirante a oficial miliciano,
Porto, junho de 1967. Foto para o BI militar,

1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Virgílio Teixeira (*), ex-alf mil, SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69); natural do Porto, vive em Vila do Conde, sendo economista, reformado; tem já cerca de 6 dezenas de referências no nosso blogue.


GUINÉ 1967 /69 1967/69 > ÁLBUM DE TEMAS > T001 – SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO > CURSO DE OFICIAIS MILICIANOS (COM) > EPI | MAFRA; EPAM | LUMIAR, LISBOA - Parte II

Perguntei ao Virgílio Teixeira se não tinha fotos  "à civil", antes da tropa... Como estudante, por exemplo ... Pretendia ilustrar um pouco melhor a sua história de vida antes de ir parar à Máfrica...(como lhe chamava, à EPI, em Mafra, o nosso saudoso Vasco Pires) (*).

Sempre voluntarioso e disponível, o nosso camarada Virgílio Teixeira mandou-me um lote de fotos, digitalizadas, algumas de fraca qualidade, que eu selecionei, editei e mas decidi, de comum acordo, publicar agora...

Afinal, todos temos/tivemos pai, mãe, irmãos, família, namorada(s), vizinhos, amigos, colegas de escola e de trabalhado... Mas. os que ainda estão vivos/as, têm direito à reserva de imagem...

Obrigado, ao Virgílio, por nos mostrar esta parte, mais pessoal e íntima, da sua vida de "paisano" mas que não vamos partilhar com a Tabanca Grande... Fica apenas este registo: a sua vida de mais de 7 décadas (infância, adolescência, juventude e idade adulta...) foi toda passada no Norte.  Recorde-se ainda que  o pai e o irmão velho eram militares (, tendo ambos passado, nomeadamente, pela Índia Portuguesa). O seu irmão Jorge esteve  inclusive no campo de Pondá como prisioneiro de guerra, cerca de 5 meses(1961/62). (*)


2. Notas e lgendagem:

Fotos de civil, anteriores ao serviço militar:

Estas fotos foram agora retiradas do baú com mais de 50 anos, a maioria em mau estado, outras de fraca e fraquíssima qualidade, mas para já foi o que encontrei. Estão numeradas com FC – Fotos Civis sequencialmente, e sem nenhuma ordem de antiguidade.

Foram à pressa digitalizadas sem muitas condições e de muito pequena resolução, foi o meu filho que fez este trabalho, sem os equipamentos necessários, por isso é o que tenho. Para fazer melhores terei de ir ao Porto, deixar lá as fotos, passado uma semana ir buscar, e depois pagar 5€ por cada 3 fotos digitalizadas, e isso fica para outra vez.

As datas e locais podem ser não totalmente certos, pois não há nada escrito nas fotos, só algumas têm datas, mas serão sempre anteriores a 1966. Mas de todas elas, peço-te que publiques apenas a seguinte:

Foto C64 – Foto a cores, da esquerda para a direita, sou eu de capa e batina, o Prior da Igreja de São Tiago de Compostela, depois o Manuel Salazar, um homem à civil, também espanhol, deve ser o Sacristão, e outro estudante de capa, que conhecemos lá. Viajem feita à boleia, com uma agravante de termos ficado ao relento num local depois de Arcos de Valdevez, chamado Extremo. À noite faltou a boleia até Valença, e ficamos no meio do ‘mato’. Uivos de lobos, frio de rachar, passamos a noite na cabina de uma camioneta abandonada, com as capas à volta de nós, para minorar o frio. Depois de manhã rápido chegamos a S. Tiago de Compostela. A foto tem a data de 28-Abril de 1965. Data da revelação. O padre prior depois de contarmos as nossas aventuras, ofereceu-nos estadia e comida para dois dias. Mas passamos mal aquela noite no Extremo, terra que nunca mais esqueci.

(Continua)
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