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terça-feira, 16 de novembro de 2021

Guiné 61/74 - P22722: A nossa guerra em números (5): o Vera Cruz, o Niassa e o Uíge foram, de um frota de 15 navios, requisitados à marinha mercante, os que asseguraram o transporte de 3/4, da tropa mobilizada para o Ultramar

 

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambuejira e Serra do Calvo aos seus combantentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013, numa iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira de Serra Local.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-me], / Que eu hei-de regressar"... No chão, em calçada portuguesa, lê-se: "Em defesa da Pátria". Abaixo do painel, há um livro metálico com os nomes de todos os nossos camaradas, naturais das duas povoações, que combateram no Ultramar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > N/M Niassa > 24 de maio de 1969 > O cruzeiro das nossas vidas... Uma imagem repetida até à exaustão ao longo da guerra colonial; o transporte de tropas era feito em navios mistos, de carga e passageiros, adaptados... As condições a bordo eram inumanas... Neste caso foram transportadas 13 companhias independentes. num total de 1735 homens. As praças eram acomodadas em beliche, nos porões, como animais. Com capacidade para 3 centenas de passageiros, além de cerca de 130 tripulantes, o N/M Niassa, de 10 mil toneladas de arqueação bruta, a caminho do TO da Guiné aumentava a "carga humana" 5,4 vezes mais (!)...

O Niassa era um dos navios da marinha mercante que foram requisitados para transporte de tropas para a guerra de África, e em especial para o TO da Guiné. Foi o navio, com o Uíge,  que mais viagens fez para a Guiné. Os grandes paquetes, como o Vera Cruz (com capacidade para transportar mais de 2000 passageiros), não podiam operar no Porto de Bissau. O T/T Vera Cruz fazia viagens para Angola e Moçambique.

Foto do livro "Histórias da CCAÇ 2533" [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



N/M  Carvalho Araújo a caminho da Guiné. A 26 de abril de 1970, avistámos à ré o N/M  Vera Cruz (a caminho de Angola ou Moçambique, presumivelmente).

Foto (e legenda): © António Tavares (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

  1. E se tivessem ido ao fundo, por acidente, ataque  ou sabotagem, estes três navios que eram a espinha dorsal da frota de navios requisitados à Marinha Mercante para o transporte de tropas durante a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial?

Recorro, mais uma vez,  ao nosso "enciclopédico" Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África" (Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 3906 e ss.), que tem informação preciosa sobre esta matéria no seu capítulo IV (As despesas da guerra).(*)

Escreveu ele: "Estes três navios que asseguraram 75% das viagens de ligação de Lisboa para África realizaram 146 viagens para Angola, 50 para a Guiné e 30 para Moçambique" (pag. 306). 

Analisando o período entre 1965 e 1970 (seis anos), o autor apurou que o número médio anual de viagens foi 18, 8 e 5, para Angola, Guiné e Moçambique, respetivamente (pág. 307).  A média de militares transportados (ida e volta), por ano foi a 70 mil: mínimo, 54 mil em 1966, máximo, 74,9 mil em 1969.

Discriminam-se a seguir os navios que transportaram tropas enter 1961 e 1975, por ordem descrescente do nº de viagens, com destaque para o Vera Cruz, o Niassa, o Uíge e o Ana Mafalda, com mais de duas dezenas de viagens:

Vera Cruz: 85;
Niassa: 66;
Uíge: 47; 
Ana Mafalda: 22;
Índia: 13;
Cuanza: 11;
Império: 9;
Pátria:7;
Carvalho Araújo: 5;
Total=265.

Estes nove  seriam os principais navios afetos ao transporte de tropas... Mas o autor fala num frota de 15... Há outros que fizeram viagens esporádicas: Arraiolos (em 1961, para Angola, e depois em 1974, para a Guiné); Sofala (em 1963, para a Guiné)...Cita ainda o Timor: 2 viagens para a Guiné em 1967;  outra, em 1969, para a Guiné; em 1970, para Angola; em 1971, outra para Angola e Moçambique,

Mas há mais: em 1974, os navios Bragança, Cabo Bojador e Alcobaça, fizeram uma viagem para a Guiné; e em 1975 realizaram uma viagem a Angola e Moçambique os navios Lendas, Beiras, Amarante,  Infante D. Henrique, e o Serpa Pinto. E ainda em 1975, mas só para Angola, viajaram o Papacostas, o Panarrange (duas viagens), o Lobito, o Novo Redondo e o Leixões (pág. 309), nomes de navios de que nunca tinha ouvido falar...

Mas, no caso de transportes de tropa para a Guiné (e da Guiné), há omissões, não sendo referidos o N/M Angra do Heroísmo, o N/M Rita Maria e o N/M Alenquer. O N/M Lima não sei se alguma vez foi à Guiné. Mas há ainda o N/M Alfredo da Silva (que viajava para a Guiné, era da SG / CUF)... e se calhar outros que não nos vêm à memória.

Vejam-se aqui as referências todas que temos no blogue aos navios N/M (, às vezes designados por T/T no texto), por ordem decrescente de referências:

N/M Uíge (54)

Segundo a fonte que  temos vindo a citar (Sousa, 2021, pág. 309),  o Uíge (com lotação de 571 passageiros e 139 tripulantes)  fez mais viagens (28) para a Guiné do que o Niassa (22). O Ana Malfada também fez muitas viagens para a Guiné, "sobrelotado com unidades dos Açores e da Madeira, chegando a levar duas companhia (cerca de 300 homens), apesar de a sua lotação ser apenas de 52 passageiros e 47 tripulantes".

O N/M Funchal nunca transportou tropas que eu saiba, era um navio de cruzeiro... Transportou, sim, em fevereiro de 1968,  o alm Américo Tomás, e sua comitiva na visita presidencial à Guiné, ainda no tempo do gen Schulz. Daí ter uma referência no nosso blogue.

Nunca, ao longo da nossa história secular, recrutámos, mobilizámos e transportámos tantos combatentes, para teatros de operações,  distantes, em milhares de quilómetros, em África, como durante o período de 1961/74. Basta recordar que nos três teatros de operações (Angola, Guiné e Moçambique) estiveram empenhados cerca de 800 mil militares portugueses: cerca de 70% provenientes da metrópole, e sendo os restantes do recrutamemto local (pág. 199).

Nessa época Portugal tinha uma belíssima  frota da marinha mercante, à qual podia requisitar navios para transporte de tropas, material de guerra e outros meios logísticos. Em 1971, o país aumentaria a sua capacidade de transporte por via áerea, com a aquisição de dois aviões Boeing 707, por parte dos TAM - Transportes Aéreos Militares. Começaram a operar na ligação Lisboa-Luanda, trajeto que faziam em 10 horas (, enquanto o Vera Cruz demorava 10 dias). 

É bom recordar aqui a demora média das viagens para os três teatros de operações, por via marítima:  9/10 dias, Lisboa-Luanda; 5/6 dias, Lisboa-Bissau; 19/22 dias, Lisboa-Moçambique (dependendo do porto de desembarque) (pág. 307). 

Vinheta de propaganda da ARA,
referente à sabotagem do navio
de mercadorias Cunene, Lisboa,
em 26 de outubro de 1970.

Mas, fazendo aqui um parêntesis: felizmente que nunca ocorreu nenhum acidente, ataque ou sabotagem
aos navios de transporte de tropas, entre 1961 e 1975... O que podia perfeitamente ter ocorrido, dada as enormes distâncias, a percorrer, nos oceanos Atlântico e Índico, entre Lisboa, Guiné, Angola e Moçambique, a par do contexto geopolítico hostil a Portugal durante esse período.

O único navio que foi alvo de sabotagem, quando atracado no porto Lisboa, foi o Cunene, em 26 de outubro de 1970. Mas o alvo inicial, ao que parece,  seria o Vera Cruz, atracado ao lado.  O Cunene sofreu um rombo, no costado, atrasando a sua partida por alguns dias. Não era um navio de transporte de tropas, era um navio de carga, de 16 mil toneladas, construído na Polónia, e que se preparava para partir para África, com material de guerra e outros meios logísticos, Era considerado o mais moderno cargueiro das linhas de África, e pertencia à SG - Sociedade Geral, do grupo CUF.

Houve ainda, por parte da ARA,  duas ações,  contra navios, o Muxima e o Niassa, que transportariam também material de guerra para a África. Mas as cargas explosivas foram detonadas no sítio errado.  

Entretanto, a sabotagem, com maior impacto, mediático e político (, pela ousadia e os avultados prejuízos materiais) foi a levada a efeito pela ARA contra a Base Aérea nº 3, em Tancos, em 8 de março de 1971. Não afetou, porém, a capacidade de transporte aéreo entre Portugal e os territórios ultramarinos. 

A Acção tinha como nome de código "Aguia Real". Resultados: num total de 28 aeronaves atingidas, 12 ficaram totalmente destruídas: dois helicópteros Puma (SA-330) e outros quatro Alouettes III; e seis aviões de vários modelos (quatro Cub, um Auster e três Dornier DO-27); um outro aparelho ficou “irrecuperável”, havendo mais 15 atingidos, ainda que recuperáveis, segundo balanço feito, no dia seguinte, por um relatório secreto da Secretaria de Estado da Aeronáutica,

Há ainda notícia de uma acção das Brigadas Revolucionárias (BR), a  9 de Abril de 1974, contra o navio Niassa, que se preparava para sair de Lisboa com tropas para a Guiné. "A bomba foi colocada no porão adaptado a dormitório dos soldados e estava preparada para explodir às 18 horas. Uma hora e quinze minutos antes, as Brigadas telefonaram para o Porto de Lisboa a reivindicar a colocação da bomba e a alertar para o navio ser evacuado, o que permitiu que não houvesse acidentes maiores ou danos mortais. Os danos acabaram por ser apenas materiais e depois de reparado o rombo provocado, o navio partiu para a Guiné. Poucos dias depois dá-se o 25 de Abril." (Fonte: Ana Sofia Matos Ferreira, "Luta Armada em Portugal (1970-1974)", Tese de doutoramento em História Contemporânea. Lisboa: Universidade NOVA de Lisboa, 2015, pág. 300).

2. Excerto extraído da página CD25A / UC - Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra, relativamente aos transportes de tropas, marítimos e aéreos, durante da guerra colonial (com a devida vénia...) (P1299)(**)

(...) As guerras de África implicaram a manutenção da maior força armada no exterior, que Portugal alguma vez formou ao longo dos seus oito séculos de história. (...) O seu simples transporte e apoio logístico era problema de grande envergadura para um país das dimensões de Portugal e com os seus recursos, mas sem esse problema ser resolvido não podia haver guerras de África.

Podemos dizer que a solução começou a ser pensada logo após a Segunda Guerra Mundial. Em 1939-45, tornou-se evidente que um dos pontos que criavam maiores dependências do país em relação ao exterior, em alturas de crise, era a falta de uma marinha mercante e de ligações regulares com o império. Durante a guerra, por exemplo, os produtos de Angola apodreciam nos portos e, embora fosse possível comprar petróleo, não se conseguia assegurar o seu transporte.

O Governo decidiu dar prioridade à resolução desse problema. Logo em 1945 foram aprovadas duas medidas que implicaram vultosos investimentos nesse sentido. A primeira foi o despacho de 10 de Agosto do ministro da Marinha, onde se previa a ampla renovação da marinha mercante nacional por meio da construção de 70 navios, com apoio do Estado, entre os quais nove grandes paquetes. A segunda foi a decisão de criar uma companhia aérea do Estado (a TAP), com a prioridade de iniciar as operações da chamada linha imperial, de ligação regular com Angola e Moçambique.

Em finais dos anos 50, depois de investimentos públicos de grande envergadura, a marinha mercante portuguesa teve o seu desenvolvimento máximo. Contava, nomeadamente, com 22 paquetes, no total de 167 000 toneladas. Entre eles estavam os quatro gigantes: Santa Maria, Vera Cruz, Príncipe Perfeito e Infante D. Henrique, com cerca de 30 000 toneladas cada, capazes de transportar mais de 1000 passageiros ou mais de 2000 soldados.

Muitos destes paquetes foram requisitados em diversas ocasiões para transporte de tropas, muito especialmente na fase inicial da guerra, e as restantes unidades da marinha mercante seriam essenciais para manter o esforço em África. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíge.

O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias por nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que a força expedicionária em África crescia (...).

Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império, tendo mais de 90 por cento da carga e de 80 por cento do pessoal metropolitano empenhado na guerra sido transportado em navios.

A linha aérea imperial começou a funcionar em 1947, mantida inicialmente pelos velhos Dakotas da TAP, que asseguravam a ligação a Luanda e a Lourenço Marques (5). Em 1948, os bimotores foram substituídos pelos quadrimotores DC-4 Skymaster, com os quais se conseguiu, pela primeira vez, a ligação semanal regular com o império.

Mais tarde, os DC-4 foram substituídos pelos Constellation e, desde, 1955, pelos Super Constellation, que transportavam 83 passageiros para Luanda em menos de 24 horas. Só em 1965 estes aparelhos foram substituídos na TAP pelos Boeing 707, os primeiros aviões a jacto de longo curso usados por Portugal.

O esforço de guerra não podia ser mantido só com a linha da TAP e assim a Força Aérea, desde muito cedo, tentou desenvolver os transportes aéreos estratégicos, missão entregue aos TAM (Transportes Aéreos Militares), que começaram a operar na primeira metade dos anos 50 a partir do AB1, em Lisboa, para o que usaram dois C-54 (o equivalente do Skymaster), cedidos pelos americanos para uso nos Açores. Em 1955, os TAM contavam já com uma frota de 11 C-54 ou DC-4, mas todos antiquados.

Quando a luta armada rebentou em Angola, os Constellation da TAP foram requisitados e fizeram viagens como transportes de tropas, enquanto os C-54 dos TAM tentaram manter a ligação regular com Luanda, em voos que demoravam 22 horas. As dificuldades eram muitas para os velhos aviões e quatro deles perderam-se em acidentes. (...)

Fonte: Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra (2006)



Ministério do Eército > Direção do Serviço de Transportes > Ordem de Transporte nº 20, de Lisboa para o CTIG... Total de militares: 1735. Cópia de documento gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, 1º ten RN 1965/72, Guiné, NRP Orion, 1966/68.



3. Diz o ten cor (na reserva), doutorado em história e ex-professor da Academia Militar, Padro Marquês de Sousa, no livro supracitado, que no transporte de militares,  "era sempre excedida a lotação de passageiros dos navios" (pág. 306), o que todos nós sabemos pro dura experiência própria... 

E dá, como exemplos o Vera Cruz e o Niasssa. Este, com lotação de 322 passageiros e 132 tripulantes). "chegou a transportar oito companhias e outras unidades mais pequenas, o que implicava cerca de 1500 homens"... 

Na realidade, em 24 de maio de 1969 partiram de Lisboa, com destino a Bissau, 1538 militares, conforme relação  da Companhia Nacional de Navegação (, referente à viagem nº 101), que a seguir se transcreve... Mas, no Funchal, no dia 26, de manhã, embarcou mais um companhia, a CCAÇ 2529 / BII 19, ou seja, mais 158 homens, como aliás estava previsto na Ordem de Transporte nº 20, já atrás reproduzida. (**)

Em resumo, a "lata de sardinhas" viu aumentada em 5,4 vezes mais a sua "lotação", passando dos habituais 322 passageiros para os 1739 (!).(***)

E lá fomos nós, "cantando e rindo", com partida de Lisboa, do Cais da Rocha, no dia 24 de maio de 1969, às 11h05, e chegada da a Bissau a 29, às 22h50... O navio esteve fundeado nessa noite e só atracou no dia seguinte, às 8 da manhã...

Garante-nos o Manuel Lema Santos que  T/T Niassa foi escoltado na ida (e na volta), entre Bissau e o Farol do Caió, pela LFG Cassiopeia.




Companhia Nacional de Navegação > N/M "Niassa > Viagem nº 101 > Relação dos militares embarcados em Lisboa, com destino a Bissau > Cópia de documento gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Lema Santos, 1º ten RN 1965/72, Guiné, NRP Orion, 1966/68. (**)



Alguns dos nossos T/T... Cortesia de Carlos Pinheiro (2012) /  Sítio Navios da Marinha (que não já existe, alojado no Sapo).

Ver aqui o Álbum dos Navios da Marinha Mercante Portuguesa
Publicado pela Junta Nacional da Marinha Mercante em Junho de 1958


(...) No final da década de 60 do século XX a Marinha Marcante Nacional atingia o seu apogeu, quer em número de navios existentes (mais de 100), em construção e em compra a outras marinhas e/ou estaleiros, quer em transporte de passageiros (com uma capacidade superior a 8.000) quer ainda de carga (com uma arqueação total superior a 1 milhão de T.A.B) o que fazia dela, Marinha Mercante, mas apenas de per si, uma das melhores da Europa e das mais reconhecidas, quer pelas qualidades dos seus profissionais, quer pela apresentação e qualidade dos seus navios.

Logo no início da década de 70 do século passado, o crescimento abrupto, inesperado, mas eficiente e ultra rápido do transporte aéreo de passageiros, com a ocorrência dos motores a jacto, tornaram o transporte marítimo de passageiros rapidamente obsoleto, quer em tempo (7 dias de Lisboa a Luanda via marítima contra 7 horas via aérea) quer em preço, conseguindo as companhias aéreas oferecer valores de transporte aéreo inferiores aos do marítimo. 

Assim e de uma assentada, ainda antes da fracturante data de 1974, praticamente todos os paquetes foram vendidos (“Santa Maria”, “Vera Cruz”, “Pátria”, “Império”, “Uíge”, “Angola”, “Moçambique” “Índia “, “Timor”, Angra do Heroísmo”, “Amélia de Melo”, ficando a agonizar os “flâmulas” “Infante FDom Henrique”, “Príncipe Perfeito” e “Funchal” (este o último e único existente, mas de duvidoso futuro…) (...).

___________

(**) 21 de novembro de  2006 > Guiné 63/74 - P1299: Antologia (54): Transporte de tropas, por via marítima e aérea (CD25A / UC)

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22626: "Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar" (texto cedido pelo escritor ao José Martins para publicação no blogue) - Parte V: Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)


N/M "Ana Mafalda" (1951-1975): navio misto (mercadorias e passageiros), que tinha o comprimento (fora a fora) de um campo de futebol... Alojamentos para 16 passageiros em primeira classe, 24 em segunda e 12 em terceira classe, no total de 52... Nº de tripulantes: 47...


1. Continuação da (re)publicação do "Diário de Guerra" (*), do nosso camarada açoriano e escritor Cristóvão de Aguiar (1940-2021), que faleceu na passada  dia 5, aos 81 anos (*). Organização: José Martins; revisão e fixação de texto (para efeitos de publicação no nosso blogue): Virgínio Briote. 

Estes excertos, que o autor cedeu amavalmente ao José Martins, para divulgação no blogue,  fazem parte do seu livro "Relação de Bordo (1964-1988)" (Porto, Campo das Letras, 1999, 425 pp). (**)



Cristóvão de Aguiar.
Foto: Wook (com a devida vénia...)


Diário de Guerra

por Cristóvão de Aguiar


(Continuação)

1965

Lisboa, 17 de Abril 1965 - Sábado de Aleluia

Com repiques ao contrário den­tro de mim. Acabei de embar­car com a minha Companhia Independente de Caça­dores número oitocentos. Vamos com destino marcado para a Guiné. O "Ana Ma­falda" vai cheio de carne para canhão e ainda se encontra atracado no Cais da Ro­cha.

São três as companhias de caçadores e parte de uma de coman­dos e serviços de um batalhão. No salão de primeira classe, há pouco, houve discursos e vinho do Porto e uísque e sal­gadinhos.

Uma falta de respeito. Mal acabou a cerimónia, en­fiei-me no meu ca­ma­rote de primeira, pois en­tão! Morra Marta, mas morra farta! Estou para aqui so­zi­nho, la­vado em lágrimas, en­quanto os outros oficiais meus ca­ma­radas, talvez mais corajosos, se en­contram na amu­rada do navio nos últimos acenos de despedida. Puta de Pátria a minha!

Já fora Barra do Tejo, no mesmo dia, à noite

BARCO DE ESPERANÇA

Fizeste um barco de esperança e partiste
Ao longo de um mar verde de ternura.
Ficou no cais ainda o eco triste
Do mar acalentando a aventura...

Geme agora o mar contra a noite escura,
Num beijo sincopado de segredo...
E a alma num alentejo de secura
Cai de joelhos tran­sida de medo.

Medo da longa noite onde me canso,
Comprida noite onde nunca há descanso,
Nem estrela, nem barco ou gaivota...

E o mar que nos meus olhos cabia inteiro,
É agora um soluço de guerreiro,
Caindo em duas lágrimas de derrota.


18 de Abril - Mar e céu

Neste Domingo de Páscoa triste, cele­brada com amêndoas amargas que nos serviram à sobremesa do almoço para que hou­vesse sabor a festa. O navio não dá um balanço sequer. No porão, os soldados jo­gam às car­tas e fazem algazarra. Ouço-os do deque de primeira. À mesa, o capitão só diz as­neiras com ar compenetrado e sábio.

22 de Abril - Véspera de chegada.

Ainda se não adivinha terra nem rumor dela. Após a última refeição, passeio no deque, obstinada­mente, como um burro à roda da nora. Houve mudança súbita de ventos, o que fez com que logo cor­resse o boato de que estaríamos mudando de rumo.

Ainda se não perdeu a crença num súbito milagre que nos leve à Ilha do Sal, nosso primordial destino! Só assim, so­n­han­do, se aguenta esta patriótica estopada.


23 de Abril - Bissau

Evola-se desta terra avermelhada e ressequida um bafor que se transmite ao corpo e o faz destilar rios de suor. Logo após o de­sem­bar­que e com as tropas já aquarteladas na Amura, fomo-nos apresentar ao co­mando mili­tar. Desconhe­cia pura e simplesmente a nossa existência. Que não nos des­tiná­vamos a esta guerra, mas à da Ilha do Sal − foi-nos dito na secre­taria, antes de apresentarmos cumprimentos ao comandante.

Ainda olhámos uns para os outros com um pequeno clarão nos olhos, mas depressa nos desiludiu SEXA, refastelado no seu gabinete, com ar condicionado, onde pouco depois entrámos, perfilados. Ti­nha na verdade havido um pequeno deslize de informação, mas iria ser ime­diata­men­te remediado. Ficaríamos, para compensar, à or­dem do comando-chefe. Uma honra para a nossa com­panhia, que tinha vindo da me­trópole para defender este tão pátrio chão.

26 Abril - Carreira de tiro

Fomos todos para a carreira de tiro treinar a ponta­ria e experimentar pela primeira vez as espingardas G3, que se utilizam nesta guerra. Nos cur­sos de preparação, em Mafra, Tavira e Santarém ainda se treina o pessoal com a Mauser da última guerra mundial. Que se divide em dez partes, a saber: cano com es­trias, coronha, gatilho, guarda-mato, etcetra e tal.

29 de Abril - Ordem unida na Amura

Houve tentativa de levantamento de rancho na nossa companhia. Como ninguém se tivesse acusado como cabecilha da frustra­da rebelião, o capitão, furioso por não ter bode expiatório, deu como castigo aos três pelotões ope­ra­cio­nais, neles incluindo cozinheiros e outras especialidades não béli­cas, oito horas se­guidas de ordem unida, entremeada com passo de corrida.

Para que não hou­vesse que­bra de ritmo nem de suor, ordenou que os quatro alferes des­sem, à vez e na ordem in­versa da sua antiguidade, duas horas de in­s­trução cada um. Ainda se acre­dita pia­mente, na tropa, que a ordem unida é a mãe de todas as virtu­des mili­tares, sobretudo da disci­plina.

No quartel da Amura, os velhos de caqui amarelo, que aguardam em­bar­que de regresso após dois anos de comissão, olharam para nós, maçaricos, vesti­dos de verde-bilioso-vomitado, como se pertencêssemos a outra ga­lá­xia.


5 de Maio - Primeiras baixas, nos arredores de Bissau

O nosso capitão e o seu guarda-costas foram feridos numa operação-treino nos arredores de Bissau. Foram ambos transportados de ur­gên­cia, de helicóptero, para o hospital militar. O primeiro, com estilhaços fin­ca­dos por todo o corpo; o último, sem as duas pernas dos joelhos para baixo e com as tri­pas de fora e sujas de terra. Como oficial mais antigo, tomei o co­mando da com­pa­nhia.


8 de Maio - Em Bissau, como Cmdt da CCaç 800


Recebi um rádio do gabinete do comando-chefe, anun­ciando a transferência para a metrópole do capitão e do seu soldado guarda-costas. Es­tou fragilizado e com muito medo. Não nasci para comandar tropas.

Para me sen­tir mais aconchegado e protegido no meio de toda esta engrenagem de insegurança e de morte pressentida, escrevi uma longa carta a meu tio Fran­cisco, que mal conheço, de­vido às zangas fraternais entre ele e meu Pai que se estenderam du­rante quase toda a minha vida. Agora estão de bem um com o outro. Fizeram as pa­zes há cerca de dois meses, após meu tio ter frequentado, durante três dias, um Curso de Cris­tan­dade na Ilha, na estância termal do vale das Furnas.

Soube-me bem acolher-me ao robusto tronco fami­liar, durante as duas breves horas de escrita epistolar, regada a lágrimas sa­borosas. Pressinto a morte, muito perto, rondando-me os gestos, as pa­la­vras e os pas­sos.


10 de Maio de 1965 - No HM 241


Hospital Militar de Bissau, para uma pequena in­ter­venção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século. Saí do hospital pouco depois e vim para o quartel da Amura, sem sequer sentir necessidade de me ir recostar na tarimba. Fui antes para o bar dessedentar-me e dar umas boas tragaças, que o cigarro tem sido para mim um ex­celente camarada de armas...

24 de Maio de 1965 - Bambadinca


Veio a companhia por aí a cima, sob o meu co­mando, escoltada por outras tropas e por brigadas especializadas na de­tecção e le­van­tamento de minas e armadilhas, atravessando terra-de-ninguém de Man­soa até aqui, em não sei quantas viaturas, abarrotando de tudo quanto é ne­ces­sário para ins­talar uma companhia operacional no mato, desde tarimbas de ferro até tachos e pa­nelas, pas­sando por móveis para a secretaria, que, na guerra, a papelada tem grande impor­tân­cia. Chamam-lhe mesmo a guerra dos papéis, por vezes ainda mais renhida do que a sua irmã colaça.

Chegámos à margem esquerda 
[, o autor queria dizer direita.. ] do rio Geba, es­tava um capitão, Ga­briel Tei­xeira,  de sua graça, com duas secções à nossa es­pera. Pertencem ao batalhão ao qual vamos ficar logisticamente ad­s­tritos, uma vez que, operacional­mente, conti­nuamos à ordem do comando-chefe.

Ainda temos, porém, de atravessar tudo de jan­gada para a outra mar­gem  [, a esquerda...] , incluindo as viaturas, a fim de seguirmos para Bafatá e de­pois para Con­tu­boel, nosso des­tino. O rio Geba está su­jeito ao regime das marés, nesta altura vivas, aqui chamadas macaréu, de forma que vamos demorar muito tempo até nos passar­mos to­dos para o lado de lá.

Bambadinca, 25 de Maio de 1965

A TUA AUSÊNCIA

A tua ausência
É este estar nu por dentro,
E ter um rosto velho
Gretado de suor
Do sol dos prados
E das manhãs
Que nunca tive...

Em cada segundo te habito
Como a loira canção das abelhas
O indomável cio
Das flores abrindo-se
Loucas de tesão...

(Continua)
__________

Notas do editor:

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22098: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte V: Destino: Xime.... E um levantamento de rancho que acabou à bofetada...


Foto nº 1 >  O alf mil Crisóstomo, em primeiro plano...

Foto nº 2 > Regresso de um patrulhamento no subsetor do Xime...

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Guiné > Região de Bafatá > Sector L1  (Bambadinca) > Xime > CCAÇ 1439 (1965/67) > Agosto de 1965 >  O primeiro contacto com as terras do Xime...


Fotos (e legendas): © João Crisóstomo (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. Continuação da publicação da série CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) (*)



CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) : a “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque)


Parte V - Destino: Xime...


A viagem do Funchal para a Guiné decorreu sem grandes problemas . A CCaç 1439 embarcou no navio Niassa no dia 2 de Agosto de 1965 . A nossa Companhia era de rendição individual e talvez por isso o nosso comandante, Capitão Pires, tinha saido mais cedo para " preparar a nossa chegada”.

Por razões burocráticas,  que nunca cheguei a compreender,  foi-me dado o comando da CCaç 1439 , até que chegássemos a Bissau onde nos esperava o verdadeiro Comandante da Companhia, o  Capitão Amandio Pires .

Embora estivesse mentalmente preparado "para todas as situações", não deixei de ficar surpreendido pelas condições em que o pessoal estava viajando no Niassa. Os “quadros” viajavam em condições aceitáveis, mas custava-me ver os meus soldados nos andares inferiores do barco, quase uns em cima dos outros em beliches que de conforto pouco ofereciam. 

E logo na primeira noite, baixei e fui ter com eles, para lhes dar um pouco de ânimo. Parece que apreciaram verem o seu "comandante temporário" com eles e passado algum tempo começamos a cantar … E cedo era toda a companhia que cantava, até parecia que o nosso destino não era um teatro de guerra , mas sim alguma romaria. 

 Mas a CCaç  1439 não era a única companhia no barco; cedo me apercebi que membros de outras companhias achavam estranho a euforia "daqueles madeirenses" e queriam dormir, pelo que logo decidi não continuar com a cantarolice e regressei ao andar superior.

Mas na noite seguinte repeti. Desci mais cedo, para evitar ser apupado ou incomodar ninguém, ainda pensando que o cantar um pouco antes de dormir ajudaria a moral de toda a gente. Não foi o caso. Desta vez houve queixa mais a sério; quando a companhia estava já toda empolgada a cantar , fui chamado ao comandante do barco. Que admirava muito a manifestação do patriotismo dos madeirenses, mas que havia outras companhias e nem todos gostavam de ser serenados…

Recordo-me vagamente da nossa chegada a Bissau e da transferência imediata para um barco muito chato que eu nunca tinha visto nem ouvido falar. Não me vão faltar surpresas, pensei eu. E logo seguimos Rio Geba acima, esperando que não fossemos atacados mesmo no meio do rio. É que iamos sózinhos... e eu pensava que pelo menos teríamos uma escolta até chegar ao nosso destino em terra, onde quer que isso fosse.

Por volta das 17.00 PM, (segundo um “relatório oficial’ de que não tinha conhecimento e que o Alferes Freitas me amavelmente me facilitou) finalmente paramos: à nossa frente havia um “ cais improvisado” e logo a seguir "meia dúzia de palhotas”. Era o Xime.

Não me recordo das instalações nem das condições… estava pronto para tudo, nada me ia surpreender. Recordo-me, sim, de sermos informados da existência de uma cantina e das facilidades de adquirir uísque e outras coisas a um preço muito barato. E logo na primeira noite, eu estava entre os que tiraram partido dessas “facilidades', comprando a minha primeira garrafa de Drambuie…

Por outro lado também aprendemos depressa a habituarmo-nos à ementa de feijão frade com bacalhau, salada de grão de bico com bacalhau,  feijão frade com bacalhau, grão de bico… e vira o disco e toca o mesmo. E isso estava a causar mau estar em toda a companhia. 

Um dia começaram a manifestar esse descontentamento na hora do rancho, fazendo barulho com as mamitas, utensílios metálicos,  meio pratos meio caixas . Eu estava de oficial de dia; tinha fama , dizem-me, de ser "de bons modos” e querer ajudar . E talvez por isso pensaram que eu pudesse fazer alguma coisa para remediar a situação. O que não era o caso. Não havia outro remédio senão aguentar até que chegasse nova entrega de víveres; e isso não dependia de ninguém na companhia. 

 Por isso pus a companhia "em sentido” e expliquei que compreendia a frustração de todos, que era a minha também; mas que o fazer barulho com os pratos não ia ajudar ninguém. E pus a companhia "à vontade” para começar a distribuição do rancho, talvez fosse outra vez feijão frade com bacalhau, não me lembro.

O que sei é que o barulho das marmitas embora menos intenso,  recomeçou. E eu imediatamente pus de novo a companhia em sentido e disse que não ia tolerar mais qualquer tipo de barulho como estava a acontecer pela segunda vez. E disse "vamos ficar em sentido um ou dois minutos para que todos tenham tempo de resfriar um pouco esse entusiasmo, antes de começarmos o rancho". 

E virei-me de costas para eles; mas logo ouvi atras de mim o que me parecia serem uns sorrisos de troça ; virei-me de repente e mesmo atras de mim deparei com um soldado, o S..., m posição de "à vontade” e a rir numa manifesta posição de galhofa para todos verem.

Sou e sempre fui um pequenitotes, mas no momento nem tive tempo para pensar: de repente espetei-lhe a maior bofetada que jamais pensava ser capaz de dar na minha vida.

Surpreso,  com esta minha reação, ele tentou desviar-se e pareceu-me que ia cair e eu então com a mão esquerda dei-lhe uma segunda no lado contrário para ele não cair. E foi um silêncio completo; mandei recomeçar o rancho, que não teve mais problemas. 

 O S... tinha fama de ser o homem mais forte da companhia e, de vez em quando, “para medir forças”,   desafiava um outro soldado, a quem todos chamavam “o chinês” pela sua força e aparência, a levantarem um pipo que ninguém mais era capaz de mexer. 

 Logo pensei que "um dia destes vou apanhar murro dele e vou aparecer morto em qualquer lado… ou então será talvez no mato… sou capaz de apanhar mesmo um tiro pelas costas” … E era pensamento que de vez em quando me vinha à mente. "Mas nada há a fazer", pensava. "E a verdade é que ele não devia fazer o que fez” .

Passados muitos meses,   um dia deparei com ele mesmo a meu lado no meio duma bolanha que estávamos a atravessar com água pelos joelhos , como por vezes sucedia . E reparei que ele tinha um sorriso, mas que me pareceu um sorriso amigável. E fui eu que puxei a conversa. "Olha, S..., ainda hoje me custa o que sucedeu no Xime"… E ele não me deixou dizer mais nada, pôs-me o braço no meu ombro e só disse : "Ó meu alferes,  tinha razão”! e senti a pressão do braço dele no meu ombro como para me dizer que o assunto estava esquecido. 

A verdade é que nunca mais tive receio de apanhar um tiro pelas costas no meio de alguma operação no mato!

Não me lembro em que dia foi a nossa primeira patrulha/deslocamento a Bambadinca. Mas menciono-a por não esquecer a minha surpresa quando nos disseram que tínhamos de "picar a estrada por causa das minas”.

Eu esperava algum aparato sofisticado, como se usa para detecção de metais, mas em vez disso eram meia dúzia de paus com um bico de ferro na ponta com que se picava o chão esperançadamente para sem as rebentar , detectar alguma mina que tivesse sido posta …

(Continua)

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Nota do editor:

Último poste da série > 12 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22097: Guiné 61/74 - P22051: CCAÇ 1439 (Xime, Bambadinca, Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67): A “história” como eu a lembro e vivi (João Crisóstomo, ex-alf mil, Nova Iorque) - Parte IV: Composição orgânica: na sua maioria, praças naturais da Madeira, e oficiais e sargentos do Continente

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21895: O cruzeiro das nossas vidas (29): Recordando o dia 22 de Julho de 1967, no N/M Timor (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Despedida no Cais de Alcântara


1. Mensagem do nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) com data de 10 de Fevereiro de 2021 com a recordação do sem embarque para a Guiné em 22 de Julho de 1967:



RECORDAÇÕES

Olhando para os longínquos 22 de Julho de 1967, recordo o cais, a imponência do navio Timor, imponência sim, já que alguns soldados nunca tinham visto um navio, que os levaria para terra africanas, mais precisamente para a Guiné.

Recordo que chagados ao cais de embarque de Alcântara, seriam 10 horas da manhã, uma multidão nos esperava gritando, gesticulando e choramingando, braços estendidos em diracção dos seus entes queridos, meninos e moços feitos soldados à pressa. 

Eu não tinha qualquer familiar presente para se despedir, já o tinha feito uma semana antes. Foi arrepiante o que presenciei nesse dia, ver mães, pais, esposas, algumas já com filhos, num grito lancinante, com a voz embargada e rouca de tanto chamar pelo seu familiar, e acenando os lenços brancos da despedida até o navio desaparecer no horizonte.

Cerca das 12 horas entrou no cais a banda do Exército, sinal de que estavam prestes a começar as cerimónias de despedida das tropas em parada e o consequente embarque naquele monstro flutuante que nos esperava, não sem antes ser tocado o Hino Nacional.

N/M Timor

Às tantas o Timor, depois das escadas e amarras recolhidas, começa a navegar rio abaixo rumando em direcção ao oceano, aquele que para muitos era a primeira vez que viam, levando no seu bojo aqueles jovens rapazes já soldados.
Abel Santos a bordo do Timor

A viagem foi um suplício para a maioria, não foi o meu caso, o pessoal foi distribuído pelos porões, colocado em beliches num navio sem condições para transportar pessoas, a tal carne para canhão. Em relação à alimentação estamos conversados, e como sempre, as chefias tiveram outro tratamento. Ao fim de poucas horas de viagem, já havia camaradas com problemas de enjoo, o que foi provocando um cheiro nauseabundo e pestilento, embora a lavagem dos porões fosse feita em dias alternados.

Naquelas condições, ao fim de sete dias de viagem, pisámos terra firme da Guiné, depois de os batelões nos terem largado no cais onde o Timor não podia atracar.

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Nota do editor

Último poste da série de 24 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21576: O cruzeiro das nossas vidas (28): A Síndrome dos Embarques (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21576: O cruzeiro das nossas vidas (28): A Síndrome dos Embarques (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > "Homenagem da Zambuejira e Serra do Calvo aos seus combantentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013. Foi uma patriótica iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira de Serra Local.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem de 22 de Novembro de 2020, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) traz-nos uma reflecção sobre a síndrome dos nossos embarques a caminho do desconhecido.


A Síndrome dos Embarques

Abel Santos

A curiosidade deixa o pessoal preso à amurada e as madrinhas ficam chorosas e até as pedras dos cais choram baixinho enquanto os familiares dos embarcados se acotovelam na esperança de assinalar o último e doloroso adeus.

O destino é assim mesmo, incerto, melhor do que a provação do adeus será ingrata sorte dos que embarcaram sem saberem para o que vão. Mas nem tudo é tão mau, embora a guerra seja um quadro pintado pela desgraça dos que morrem sem gentilezas da mata que os rodeia.

Muitos amores ficam assim abandonados no cais de embarque, mas serão avivados pelas cartas dos aerogramas, salvo se a fatalidade se intrometer pelo meio. Há que ter esperança, afugentando os sobressaltos dos dias mais custosos. As contingências das missões podem safar os embarcados onde tudo é possível.

A contar com o regresso, muitos destes soldados acreditam no amor que perdurará até ao encontro da moça dos seus encantos. Só por ironia do destino o seu fado será atraiçoado. As despedidas são sempre dolorosas, mas os que partem para a guerra, ainda no tombadilho e encostados na amurada, não pensam nos imprevistos.

Não temos lágrimas sublimes, mas alguns abraços e beijos sem excentricidade e com algum erotismo. De resto, muito daquela gente amontoada no cais vive entronizada nas aldeias, coberta por um manto de virtude e vergada ao trabalho honesto.

Os primeiros arrepios com o embate nas ondas alterosas aparecem à passagem ao largo da Madeira. O convés fica cheio de escumalha viscosa, por causa dos mais indispostos vomitarem. Para muitos, a comida começa a ser um problema, porque quanto mais comem mais vomitam e o navio começa a ficar mal cheiroso, um purgatório para alguns e um inferno para outros. Mas o navio lá ia sulcando as águas do oceano indiferente à má indisposição dos passageiros, agora com águas mais calmas para alívio dos soldados, rumando ao encontro de outro cais, onde iria deixar a sua preciosa carga. Em poucas semanas, os amores do cais de embarque começam a ficar esquecidos, tal é a tormenta das mudanças e o deslumbramento das confusões.

Instalados em diversos aquartelamentos espalhados nos vários TO, há soldados com diversos níveis de formação e padrões de educação, onde a convicção é coisa rara e o idealismo uma abstração. O mundo dos sonhadores começa a desmoronar-se ao som do rebentamento das primeiras morteiradas. Muitos sonhos começam a ficar sem sentido, perante a dureza das caminhadas, o calor e a secura com que o pessoal vai enfrentando. A realidade começa a desgastar as energias próprias da idade, as emoções vão esmorecendo e a rigidez da disciplina e da ordem vão diluindo a educação genética dos ancestrais. As angústias e o medo acabam por sufocar a última esperança de resistir ao amotinar dos desejos e a vontade fica amorfa. A rigidez das regras de conduta em zona de perigo vão-se desvanecendo, e a exposição ao fogo inimigo deixa a morte descansada. Na guerra não há génios, mas pode haver sorte como também há imprevidentes ou incautos. Acontece que os mortos nem sempre são os menos cuidadosos, porque o azar bate à porta de qualquer um, quando as balas são invisíveis e fatais.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 de abril de 2018 > Guiné 61/74 - P18515: O cruzeiro das nossas vidas (27): O meu regresso no N/M Uíge, em 5 de agosto de 1969, com o cap mil médico Carlos Parreira Pinto Cortez, esposa e outros (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

quarta-feira, 25 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20774: O que é feito de ti, camarada ? (11): o que é feito dos mais de 1700 camaradas que fizeram o "cruzeiro das suas vidas", no T/T Niassa, com partida em 24/5/1969, incluindo o Jerónimo de Sousa, hoje deputado e secretário-geral do PCP ?



Torres Novas > 25 de maio de 2019 >  Cinquentenário da partida da CART 2520, para o CTIG, em 24/5/1969 > Reconhecemos: (i) o José Nascimento, o primeiro, a contar da esquerda, na 2ª fila (de pé) ; e (ii) na mesma fila, de pé,o terceiro, a contar da esquerda, é o Manuel Viçoso Soares (hoje empresário, no Porto), ex-fur mil armas pesadas: esteve em Monte Real, em maio de 2017, por ocasião do XII Encontro Nacional da Tabanca Grande; na altura em que foi convidado para se  sentar à sombra do nosso poilão...

Foto (e legenda): © José Nascimento (2019). Todos os direitos resevados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



 T/T Niassa > A caminho da Guiné > c. 24-29 de maio de 1969 > Quadros metropolitanos da CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), na viagem de Lisboa-Bissau (24 a 29 de Maio de 1969). Da esquerda para a direita: 2º sargento Videira (já falecido) , furriéis milicianos António Branquinho (já falecido), Tony Levezinho, Humberto Reis, Joaquim Fernandes, Luís M. Graça Henriques e Almeida  já falecido). Na mesa de trás, ao fundo, receonhece-se o fur mil enf  João Carreiro Martins.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2005). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Lourinhã > Zambujeira e Serra do Calvo > 25 de fevereiro de 2018 > "Homenagem da Zambuejira e Serra do Calvo aos seus combantentes"... Monumento inaugurado em 5 de outubro de 2013 (e não em 2015, segundo lapso do nosso colaborador permanente José Martins.). Foi uma patriótica iniciativa do Clube Desportivo, Cultural e Recreativo da Zambujeira de Serra Local.

Desconhece-se o autor do painel de azulejos que representa a partida, no T/T Niassa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, em Lisboa, de um contingente militar que parte para África. Ao canto inferior esquerdo a quadra: "Adeus, terras da Metrópole / Que eu vou pró Ultramar /, Não me chorem, mas alegrem [-me], / Que eu hei-de regressar"... No chão, em calçada portuguesa, lê-se: "Em defesa da Pátria". Abaixo do panel, há um livro metálico com os nomes de todos os nossos camaradas, naturais das duas povoações, que combateram no Ultramar.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Ministério do Exército > Direção de Serviço de Transportes > 19 de maio de 1969 > Ordem de transporte nº 20. Cortesia de Manuel Lema Santos (2007) (*)



1. Mais de 1700 camaradas partiram no T/T Niassa, em 24 de maio de 1969, para o CTIG, incluindo minha CCAÇ 2590 / RI 2 [, mais tarde, CCAÇ 12), entre outras companhias independentes, nove ao todo,  e ainda 2 Pel Mort e 1 Pel Canhão s/r, mais pessoal de saúde e do Depósito Geral de Adidos (DGA)... 

As companhias ditas "independentes" foram:

CART 2520 / GACA 2 [ hoje Escola Prática de Polícia, em Torres Novas]
CART 2521 / GACA 2

CCAV 2525 / RC 7 [Ajuda, Lisboa]

CCAÇ 2527 / BII 18 [Ponta Delgada] [Concentrada no CIM]
CCAÇ 2529 / BII 19 [Funchal, onde embarcou]

CCAÇ 2531 / RI 2 [Abrantes]
CCAÇ 2533 / BC 10 [Chaves]

CCAÇ 2590 / RI 2 [futura CCAÇ 12]
CCAÇ 2591 / RI 16 [Portalegre]  [futura CCAÇ 13]
CCAÇ 2592 / R1 16 [futura CCAÇ 14]

CMP 2537 / RL 2

Outras subunidades:

PEL MORT 2116 / RI 15 [Tomar]
PEL MORT 2117 / BC 10 [Chaves]
PEL CAN S/R 2126 / BC 10

Lembro-me que passámos pelo Funchal, para embarcar mais "carne para canhão": a CCAÇ 2529...

Para a grande maioria de nós, foi "o cruzeiro das nossas vidas"... E, muito possivelmente, o "único"... Íamos todos anónimos, mas com "bilhete de embarque válido", só de ida, que o regresso só seria... quando Deus quisesse, ou na vertical ou na horizontal... 

Entre a gente anónima viajávamos alguns de nós que hoje aqui nos sentamos sob o poilão da Tabanca Grande, aqui discriminados por subunidade:

(i)  CART 2520: o José Nascimento...

(ii) CART  2521: o Constantino Ferreira d'Alva...

(iii) CCAV 2525: não temos nenhum representante...

(iv) CCAÇ 2527:  não temos nenhum representane [embora já tenhamos publicado um poste do Miguel Soares]

(vi) CCAÇ 2529: não temos nenhum representante;

(vii) CCAÇ 2531: não temos nenhum representante;

(viii) CCAÇ 2533: o Luís Nascimento...

(ix) CCAÇ 2590 / CCAÇ 12: o Luís Manuel da Graça Henriques, o Humberto Reis, o António Levezinho, o António Manuel Martins Branquinho (1947-2013),  o António Manuel Carlão (1947-2018), o José Manuel P. Quadrado (1947-2016), o José Marques Alves (1947-2013),  o José Manuel Rosado Piça, o Fernando Sousa,  o António F. Marques, o José F. Almeida, o João Carreiro Martins, o Joaquim Fernandes, o Abel Maria Rodrigues, o Gabriel Gonçalves, o António Mateus,  o José Luís Vieira de Sousa,..., entre outros (estou a citar de cor);

(x) CCAÇ 2591 / CCAÇ 13: o Carlos Fortunato...

(xi) CCAÇ 2592 / CCAÇ 14: o António Bartolomeu. o Eduardo Estrela...

(xii) CMP 2537: não temos nenhum representante,  apesar do convite público ao  ex-sold cond auto Jerónimo de Sousa,   hoje uma cohecida figura pública, secretário-geral do PCP - Partido Comunista Português, e deputado da Nação...

Dos Pel Mort 2116, Pel Mort 2117 e Pel Can S/r 2126... não temos, salvo erro, nenhum representante.

Vamos comemorar os 51  anos do nosso embarque no T/T Niassa... mas com uma terrível pandemia, que ameaça o nosso futuro, a COVID-19. Ocorre-nos perguntar: o  que é feito de vocês, camaradas ? E porque é que não dão sinal de vida ou fazem prova de vida, os que são membros da Tabanca Grande ?

Tirando a malta da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, temos tão poucos representantes do resto da maralha (1700 homens!)  que fez este "cruzeiro" (**).

2. O nosso camarada e amigo Manuel Lema Santos (1º Ten  RN 1965/72, Guiné, NRP Orion, 1966/68) fez-nos aqui uma pormenorizada, deliciosa e preciosa descrição do nosso "cruzeiro" (*)

(...) O T/T Niassa, em Maio de 1969 e conforme reza a Ordem de Transporte nº 20 do ME, transportou a CCAÇ 2590 e também as Unidades indicadas no seguinte quadro, com o itinerário e horários que mais abaixo se discriminam [vd. cópia da ordem de transporte, acima reproduzida]

Tratou- se de uma dupla viagem Lisboa–Bissau–Lisboa–Funchal–Bissau–Lisboa.

Teve início a 5 de Maio, em Lisboa, e terminou, novamente em Lisboa, a 13 de Junho de 1969.
Capitão de Bandeira: CFR Abel da Costa Campos de Oliveira.

Comandante do Niassa – Cmte Arnaldo Manuel Sanches Soares.

As partidas e chegadas em cada escala fizeram-se de acordo com as seguintes datas e horários:

Lisboa (Cais da Rocha) - partida > 071110Z Mai69
Bissau (Fundeado no Geba) - chegada > 121605Z Mai69
Bissau (Atracado) > 121835Z Mai69
Bissau (Atracado) - partida > 150733Z Mai69
Lisboa (Atracado) – chegada > 210645Z Mai69
Lisboa (Cais da Rocha) – partida > 241105Z Mai69
Funchal (Atracado) – chegada > 252357Z Mai69
Funchal (Atracado) – partida > 260135Z Mai69
Bissau (Fundeado) – chegada > 292250Z Mai69
Bissau (Atracado) – chegada > 300800Z Mai69
Bissau (Fundeado) > 021100Z Jun69
Bissau (Atracado) > 05????? Jun69 (não definido)
Bissau (Atracado) – partida > 070135Z Jun69
Caió (Fundeado) – chegada > 080135Z Jun69
Caió (Fundeado) – partida > 080830Z Jun69
Lisboa (Atracado) – chegada > 131110Z Jun69

Transportou de Lisboa, na totalidade, 52 oficiais, 187 sargentos e 1299 praças,  além de 1727 toneladas de carga, depois de corrigidos alguns desvios de última hora à previsão acima feita (...).

No Funchal embarcou a CCAÇ 2529.

O T/T Niassa Foi escoltado na ida e na volta, entre Bissau e o Farol do Caió, pela LFG Cassiopeia

Foram normalmente distribuídas as ementas das refeições servidas a Oficiais, Sargentos e Praças, sendo que havia alguma diferença nas qualidades das refeições respectivas, correspondentes às classes em que viajaram.

Durante a viagem foram exibidos, nos passatempos habituais, os seguintes filmes:

- Harper, O Detective Privado
- Ninguém Foi Tão Valente
- D. Camilo na Rússia
- Três Vezes Mulher
- A Cidade Submarina
- A Rapariga das Violetas

Foi sorteado um transistor, oferta do MNF [. Movimento Nacional Feminino],  no dia 28 de Maio, à chegada a Bissau.

Foi servido um jantar de despedida oferecido em nome do Comandante do Navio e do Capitão de Bandeira a todas as forças embarcadas, quer na ida quer no regresso, com ementas especiais. (...)

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20636: Agenda cultural (729): Lisboa, 8 de fevereiro de 2020, na apresentação do livro do José Saúde, "Um ranger na guerra colonial": quando o Alentejo e o Gabu se tocam - Parte II: "Lá vai uma embarcação" (, moda alusiva ao embarque de tropas para a guerra colonial, interpretada pelo grupo musical "Os Alentejanos", de Serpa)


  Vídeo (2' 12'') > Alojado em Luís Graça > Nhabijoes (2020)



Lisboa > Casa do Alentejo > 8 de fevereiro de 2020 >  Sessão de lançamento do livro do José Saúde, "Um ranger na guerra colonial: Guiné-Bissau, 1973-1974: memórias de Gabu" (Lisboa, Edições Colibri, 2019, 220 pp.)(*)

Momento cultural: atuação do grupo musical "Os Alentejanos", de Serpa. Moda alusiva ao embarque de tropas para a guerra colonial: "Lá vai uma embarcação / Por esses mares fora, / Por aqueles que lá vão / Há muita gente que chora"... Reproduz-se a letra mais abaixo.

Trata-se de uma homenagem sentida a um combatente da terra, o José Saúde, nascido em Vila Nova de São Bento, concelho de Serpa (em 23/11/1950), mas que foi cedo para Beja, a sua segunda terra, onde ainda hoje vive e onde nasceram as suas duas filhas, Marta e Rita. 

Os dois concelhos viram sacrificados,  no "altar da Pátria", 69 dos seus filhos, durante a guerra do ultramar/guerra colonial: 35, de Beja; 34, de Serpa... Só a freguesia de Aldeia Nova de São Bento teve 10 mortos, uma terra que viu decrescer a sua população para menos de metade em pouco de meio século: 8.842 habitantes em 1950, 3.073 em 2011. Passou a vila em 1988, mas os seus filhos, os que lá vivem e os que estão na diáspora alentejana, continuam a tratá-la carinhosamente como Aldeia Nova de São Bento (, terra onde também nasceu o encenador Filipe la Féria, e onde também poderia ter nascido o António Zambujo, mas por acaso nasceu em Beja, em 1975).

Há uma versão original desta moda, de 1973, gravada pelo  Trio Guadiana e o Quim Barreiros (como acordeonista). Segundo Miguel Catarino, "esta gravação data de 1973 e pertence à Banda 1 da Face A do disco EP de 45 R.P.M. editado pela 'Orfeu, etiqueta da 'Arnaldo Trindade e Companhia, Lda.', matriz 'ATEP 6514', em que o Trio Guadiana, acompanhado pelo acordeão de Quim Barreiros, interpreta quatro modas regionais alentejanas populares, com arranjos musicais do acordeonista. Esta moda é uma das mais pungentes que existe no Cante Alentejano, de seu nome 'Tão Triste Ver Partir', conhecida também como 'Lá Vai Uma Embarcação' ".

Convirá acrescentar que isto não é "cante", mas tem as suas raízes na música tradicional alentejana. No cante, não se usam, em regra, instrumentos musicais. Abrem-se exceções para a viola campaniça... 

A voz é o único (e grande) instrumento do cante, música do trabalho, do lazer e do protesto, cantada nos campos, na rua e na taberna... Em grupo, sempre em grupo.. Homens e mulheres, se bem que os grupos corais femininos só tenham começado a aparecer há 3 décadas, por razões socioculturais... Mas as mulheres sempre cantaram, em grupo, com os homens no duro trabalho agrícola... Em grupo, num coro polifónico, "à capela" que não deixa ninguém indiferente: ou se ama ou se odeia..Um alentejano (do Baixo Alentejo) nunca conta(va) sozinho. No campo, trabalhava-se em "rancho", e cantava-se em "rancho"...O "cante" amenizava a dureza do trabalho e da vida no Alentejo dos latifúnidos...

Mas a propósito desta moda... Recordo que o Zé Saúde já não foi em nenhum T/T "Niassa", "Uíge" ou "Ana Malfalda". Foi num Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares, em 2 de agosto  de 1973... A solução via áerea era mais segura e rápida,  evitando,  por outro lado,  a "maçada", para o regime,  das "cenas de despedida lancinantes", no Cais da Rocha Conde de Óbidos...




Lá vai uma embarcação (**)

É tão triste ver partir
Um barco do Continente,
Para Angola ou Moçambique
Lá lai outro contingente.

Tanta lágrima perdida,
Quando o barco larga o cais,
Adeus, minha mãe querida,
Não sei se voltarei mais.

Lá vai uma embarcação
Por esses mares fora,
Por aqueles que lá vão,
Há muita gente que chora.

Há muita gente que chora,
Com mágoas no coração,
Por esse mares fora,
Lá vai uma embarcação.

É tão triste ver partir
Um barco do Continente,
Para Angola ou Moçambique
Lá lai outro contingente.

Tanta lágrima perdida,
Quando o barco larga o cais,
Adeus, minha mãe querida,
Não sei se voltarei mais.

Lá vai uma embarcação
Por esses mares fora,
Por aqueles que lá vão,
Há muita gente que chora.

Há muita gente que chora,
Com mágoas no coração,
Por esse mares a fora,
Lá vai uma embarcação. 


[Revisão, fixação de texto: LG]

Contacto de "Os Alentejanos",
música tradicional Alentejana, Serpa

Telem: 962 766 339 / 938 527 595

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Notas do editor:

(*) Último poste da série
> 9 de fevereiro de  2020 > Guiné 61/74 - P20635: Agenda cultural (728): Lisboa, 8 de fevereiro de 2020, na apresentação do livro do José Saúde, "Um ranger na guerra colonial": quando o Alentejo e o Gabu se tocam - Parte I: as primeiras fotos