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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7528: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (9): O dia no Xitole e o regresso a Finete


1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Dezembro de 2010:

Malta,
Espero que quem tenha vivido no Xitole venha participar na descodificação das imagens captadas neste dia. Até agora não se encontrou nada tão bem conservado.
O Xitole merecia um projecto da recuperação, em nome da memória de todos nós que ali combatemos. Vamos ver se a ideia pega.

Um abraço do
Mário



Operação Tangomau (9)

Beja Santos

O dia no Xitole e o regresso a Finete

1. O Tangomau levanta-se cedo, a sua preocupação é contemplar o nascer e o capitular do dia, captar as cambiantes de luz, ouvir as vozes dos humanos e as sonoridades da fauna, impressionar-se com aquela bola de fogo que desaparece no horizonte como avião bombardeiro incendiado a despenhar-se na grande e maciça floresta. O dia de hoje era suposto prolongar o de ontem, continuar-se no Cuor. É indispensável espiolhar Finete, falhar com o chefe de tabanca, mesmo que pareça surrealista perguntar-lhe se ele cede terreno para que o anarca Jorge Cabral ali construa uma casa. E para que as peripécias ganhem sumo, pedir orçamento a quem de direito, não basta fazer contas a tijolos de adobe, chapa zincada, ripas de cibe para o travejamento, divisórias para os quartos, cozinha e casa de banho, há que pensar que o glorioso antigo comandante do Pel Caç Nat 63 terá uma cozinha, pisará lajedo, é admissível o conforto de um gerador. Por ora nada mais, quanto a Finete. Mas há Madina de Gabiel, Sansão, Maná e Canturé. Afinal, o Tangomau rende-se ao que o homem grande Fodé Dahaba decidiu, vai-se ao Xitole. Antes, fazem-se compras para o Bairro Joli e acolhem-se surpresas. A primeira, é receber a visita da família de Quebá Soncó, o primogénito do régulo Malã Soncó. Faustosas, apresentam-se Nhali Cassamá e Bantã Aiderá, Nhali estava na bolanha quando o Tangomau visitou Missirá. Fanta, a outra mulher de Quebá, está em Bissau. Falou-se do passado e das amarguras do presente. Nhali sabe que o filho Bacari telefona regularmente de Saragoça para o Tangomau, Nhali pede um presente muito especial ao filho, um telemóvel, toda a gente já tem telemóvel menos ela…

Bantã à esquerda, Nhali à direita, à porta da casa de Fodé Dahaba. Enquanto fomos ao Xitole, elas passaram o dia com Aidjá. Não podiam adivinhar que no dia seguinte o Tangomau iria aparecer de motocicleta em Missirá, vindo de Canturé e Maná. Passou de raspão em Canturé, haverá depois uma visita com pompa e circunstância, ali ia morrendo numa mina anticarro e Canturé é local muito belo, um quase obrigatório ponto de passagem para ir para Mato de Cão ou Finete.


2. Sai-se do Bambadincazinho e o Tangomau teve a vaga reminiscência das colunas de abastecimento ao Xitole. No interior do carro de combate cresce uma gritaria infernal, a comitiva de antigos combatentes rememora episódios de idas ao Cossé e ao Xitole. O importante é que depois de Samba Juli se vai em direcção a Cambessé, ali Dauda Seidi preparou a recepção. Lamentavelmente, perderam-se as duas imagens do evento, uma delas com a família do Dauda, chefe de tabanca e homens grandes.

O que mais impressiona em Dauda Seidi é que parece que o envelhecimento estar centrado nas linhas acentuadas do rosto e no esbranquiçado da barba. O resto, é o mesmo Dauda de há 40 anos, bastou dizer-lhe: “Não te mexas!”, Ei-lo hirto com a sua majestade natural. Parece que com os reis disfarçados de povo é sempre assim.


3. De Cambessé, o carro de combate dirigiu-se para Sinchã Indjai, a tabaca de Albino Amadu Baldé. Chegou o momento de um desabafo muito íntimo: o Tangomau deve-lhe muito, era ele que fazia a gestão efectiva do pelotão de milícias de Missirá. Possui uma comunicação fluída, é um português com as sílabas descascadas, sem nenhum travo do crioulo. Sempre possuiu um olhar místico, de quem regularmente fala com Deus. Era pragmático, jovial, tinha sido professor e educado por missionários. O Tangomau chorou convulsivamente quando se apercebeu da vida miserável que ele leva e a discrição com que esconde os revezes da vida. Levou-lhe livros e escreveu mesmo uma dedicatória muito especial: “Ao Albino, um irmão do coração, da solidariedade de Missirá, a minha dívida não tem fim e a admiração é inesgotável”. Como é habitual nestes eventos, primeiro saúdam-se os homens grandes e a autoridade, a seguir os camaradas reúnem-se com o anfitrião. Inevitavelmente, Fodé discursou, Mamadu Djau pôs-se a seu lado. Albino olha-nos como se estivesse estado todos estes anos à espera de uma justa reparação ou da minha visita.

“Sabia que me trazias livros, mesmo com muita dificuldade, encontro nas leituras o meu alimento preferido. Arranja maneira de me mandar mais livros. Eu prometo escrever-te. Desculpa se te pedir ajuda, tudo é muito difícil, não tenho mais ninguém a quem pedir ajuda”. À despedida, o Tangomau beijou-lhe a testa e ele respondeu: “Domingo vou passar o dia contigo, meu irmão”.


4. É um prazer inexcedível conversar com Albino Amadu Baldé. Ele tem sempre resposta para tudo o que intriga o Tangomau. Do género: “Quando eu digo mãezinha, estou a falar da irmã da mãe que me pariu”; “Está descansado, hei-de descobrir os dois Ieró Djaló, vivem muito longe, vou mandar mensagem”; “Pode-se escrever que o régulo de Taibatá era Carfala Baldé, confirmo que Cherno Baldé era o comandante do pelotão de Demba Taco e o comandante da milícia de Amedalai Mamadu Baldé, todos já morreram”; “Sim, Abás Jamanca era sargento das milícias de Finete, depois da guerra foi viver para Galomaro, desapareceu, tens de ver que depois da guerra procurámos reconstruir as nossas vidas, fomos para as tabancas das mulheres ou dos irmãos, ali tínhamos paz e não fomos perseguidos”.

O Tangomau pediu ao Albino que se pusesse de pé, há que confessar que ao menos se devia ter esperado que Fodé Dahaba tirasse a mão do olho, paciência, salva-se a espontaneidade do momento. Este é um dilecto amigo martirizado, o Tangomau já suspira por domingo, têm tanta coisa para conversar…


5. A próxima etapa é o Xitole. Preparem-se, aqui não se estragou nem uma só fotografia. O que se lamenta é que o guia não identificou claramente todas as instalações visitadas. Ao que parece, o que a imagem regista terá sido uma instalação do comando. Dignidade não lhe falta. O que o Tangomau logo recordou, assim que pôs os pés em terra, foi o ritual da coluna vinda de Bambadinca a chegar ao Xitole, a cabeça da coluna logo se posicionava para o regresso e este edifício foi rapidamente relembrado.

O que o Tangomau mais gosta é o haver na edificação qualquer coisa na casa portuguesa. Mas também qualquer coisa que a memória gravou das vezes que se foi ao Xitole. Só faltou gritar: “O nosso capitão está aí?”.


6. Mas a mágoa vem logo a seguir, não há direito de não aproveitar este espaço, de o habitar, o Tangomau circula por um Xitole fantasma, parece que ficaram ali algumas almas do outro mundo que condenaram estes edifícios à indiferença mortal.

Terá sido caserna? Arrecadação? Ao menos aqueles que viveram no Xitole venham a terreiro e identifiquem a função deste espaço que fazia parte do destacamento. O incrível é que o edifício está telhado, mesmo vazio e sem préstimo aparente. Andava o Tangomau a deambular quando chegou uma motoreta com uma autoridade local. A conversa foi cómica, a autoridade nada sabia sobre o local, parece que o Xitole está à espera que tudo isto apodreça.


7. Súbito, Calilo Dahaba grita: “Velho, parece que está aqui uma daquelas coisas que andas à procura!”. Temos finalmente sinal de vida, uma inscrição da CCaç 1551. Isto facilita as coisas. Quem pertenceu à CCaç 1551 que se apresente e fale, as imagens vão dar vida e cor às suas memórias. Do lado do visitante, ponto final.

Foi um trolha que, à semelhança dos construtores das catedrais da Idade Média, deixou este sinal incisivo para a posteridade, à entrada de uma porta. Não se encontrará no Xitole outra marca parecida.


8. Prossegue a deambulação, mais um edifício do quartel. O guia é categórico: “Não sei para que servia, mas que era do quartel era”. O Tangomau está confiante, em breve vão aparecer comentários esclarecedores, talvez o comandante de companhia aqui desse despacho, nunca se sabe.

Fica-se com a ideia que há presença humana neste Xitole do passado, alguém se aproveita deste arvoredo frondoso. Há até mesmo a secreta esperança de que o Xitole poderá vir a ser recuperado, exibido como um quartel da guerra que mudou a vida a dois países. Vestígios não faltam e o Xitole já existia, já tinha importância muito antes da guerra.


9. Terá sido um refeitório, houve mesmo quem dissesse que a cozinha estava ao lado, o guia mostrou os restos de um abrigo, a pouca distância. Quem viveu no Xitole tem um imperativo de nos ajudar, a interpretar este vestígio arqueológico, o edifício já se esboroou, o desaparecimento total é uma questão de anos… ou de meses.

A Natureza é uma entidade superior, os edifícios demolem-se, apodrecem, as árvores crescem, imparáveis. Mamadu Djau comentava que era mesmo um refeitório e havia uma cozinha, o Tangomau aquiesceu.


10. Não é de mais insistir que os itinerários estão alterados, o que aqui se vê é a entrada de Canturé, hoje Gã-Turé. Neste sombreado explodiu uma mina que fez várias vítimas, uma delas mortal. Mamadu Djau reconstituiu para todos os presentes o que se tinha passado no final daquele dia 16 de Outubro de 1969. Quem vê estas fotografias não pode imaginar o tanto sofrimento havido. O Tangomau só se lembrava de Cherno Suane, que aqui desapareceu e ressurgiu. E rezou por Manuel Guerreiro Jorge, as fotografias não revelam o som dos gritos dos moribundos.

A explosão da mina anticarro deu-se exactamente no canto direito do querentim, a vedação típica feita com os caniçais. O fundo é um belo arvoredo, é uma avenida de poilões que vai até Finete. Mais bonito, mais esplendoroso, só a entrada do Enxalé, onde o Tangomau irá amanhã, antes de ir conhecer em tempo de paz Cabuca, Madina e Belel.

Perderam-se as imagens do regresso a FInete, o Tangomau di-lo abertamente, com o coração contrito. O que se perdeu: a ladeira de Finete para Canturé, com Malandim à esquerda; o registo da nova tabanca e a conversa com o actual chefe de Tabanca; a casa do Sr. Biloche, um dinâmico empreendedor e conhecido construtor civil a quem se pediu orçamento logo que o chefe de tabanca de Finete garantiu que oferecia o terreno para a casa do Jorge Cabral. Pois ficas a saber, meu estimado anarca, que a tua casinha em adobe, com uma boa cobertura de cibe e chapa zincada, as paredes interiores todas cimentadas, o chão ladrilhado, uma cozinha e uma casa de banho, pelo menos 4 janelas bem rasgadas, a porta da rua e a porta para a horta, é qualquer coisa como 5 mil euros. Depois, tens que contar com o gerador, o equipamento de cozinha e o da casa de banho, põe mais 2 ou 3 mil euros. Obviamente, tens que pensar no transporte, na governanta, na dama de companhia e no guarda-nocturno. É bem possível que vivas ali muito mais barato do que em Lisboa, com vista desafogada, a 70 quilómetros de Bafatá e a 2 horas de Bissau. O ideal é que vás escolher o terreno, marcas a data da viagem, o Sr. Biloche explicar-te-á tudo ao pormenor…


11. E assim se regressou a Bambadinca. Chegaram mais visitas, vou fotografar Califo Djau, da secção de Bacari Soncó. Ele recordou ao Tangomau um pormenor: trouxe uma carta que o coronel Mamadu Jaquité, de Madina, lhe deixara em Canturé, a anunciar que o iria matar. Curiosa é a coincidência, esteve hoje no local em que o carrasco esteve quase a praticar a execução. Calilo Dahaba apresentou ao Tangomau Lânsana Sori, um jovem da Guiné Conacri que tem motoreta e se oferece para o levar a Madina e a Belel, amanhã. Fodé Dahaba está furioso, esta independência do Tangomau é quase intolerável. Anoitece, chegou a hora de regressar ao Bairro Joli, os anfitriões querem saber sempre ao detalhe como se passou o dia. O Tangomau está excitado, Madina é o grande mito não revelado dos lugares míticos. A grande aventura está prestes a acontecer, é só uma questão de horas. E pela primeira vez na sua vida, o Tangomau vai atravessar a savana numa motocicleta.

Obrigado por teres vindo, Califo Djau. Obrigado por me teres lembrado o bilhete do coronel Mamadu Jaquité. Já tinha deixado outro bilhete na fonte de Cancumba, dizendo algo como isto: “Meu grande alferes de merda, andas a desinquietar a vida do nosso povo, vou tratar de ti. Se voltares vivo para a tua Pátria, será grande vergonha para mim. Prepara-te para o castigo. Nem Deus te salva. O meu nome é Mamadu Jaquité, fica sabendo”. O Tangomau apresentou-se no Cumeré, cerca de 20 anos depois. E fizeram uma festa, depois de se ter contado a história daqueles bilhetes: “Sr. Coronel, venho cumprimentá-lo, eu sou o alferes de merda, o de Missirá, não me matou, mas fez-nos sofrer muito. Agora venho abraça-lo”.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 27 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7511: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (8): O primeiro dia no Cuor (continuação)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7514: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (6): Dia 24 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Dezembro de 2010:

Malta,
Um dos aspectos mais empolgantes do nosso regresso à Guiné é captar a vida que nasceu em tabancas que a guerra forçou ao desaparecimento.
O Cuor do meu tempo tinha dois campos demarcados: nós em Missirá e Finete, eles em Cabuca, Madina e Belel, o resto era terra de ninguém. Voltar ao Cuor é sentir a vida palpitante em Madina de Biassa, Madina de Gambiel, Malandim, Gambaná, Canturé, Sansão, Maná, Mato de Cão, Chicri. E ir até aos territórios do então inimigo, ver como se vive e ter tempo para conversar em paz onde antes se passava com mensagens de morte e desolação.
Amanhã, vou até ao Xitole e trarei imagens que talvez tenham muita importância para quem ali viveu.

Um abraço do Mário

 
OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (6)


DIA 24 DE NOVEMBRO DE 2010

Tendo sempre como balcão a bolanha de Ponta Nova e o arvoredo de Mato de Cão ao fundo, ao amanhecer o Tangomau tem sempre aquela vã pretensão de manter a escrita em dia. São amanheceres frescos, o sereno só levanta pelas 8 da manhã. Assim passou uma semana desde que o Tangomau desembarcou em Bissalanca com 40 quilos de bagagem de que já largou pelo menos metade. O pior já aconteceu: a notificação dos mortos, os seus soldados que se preparava para abraçar. Há muita gente dispersa, incomunicável, desde o Domingos Silva, passando pelo Jobo Baldé, os dois Ieró Djaló, Tomani Sanhá, Sila Sabali. Fodé assegura que procurou encontrar toda esta gente, em vão. Em compensação, apareceu Zé Finete, no mercado de Bambadinca há sempre antigos combatentes a apresentar-se, de diferentes proveniências. Dão pelo nome de Demba Embaló ou Demba Djau, ou Miguel Totala Baldé. O Tangomau sentiu-se mal quando foi abordado enquanto fazia compras para família do Bairro Joli por Aliu Baldé, soldado milícia de Finete, demorou a reconhecê-lo e depois abraçaram-se efusivamente. Tinha pedido ao Cherno Suane, seu guarda-costas, para visitar a mulher, Binta Seidi, no bairro de São Paulo. Alguém lhe deu um número de telefone, aqui em Bambadinca: 6672253. Só quando passar os olhos por todo o álbum fotográfico é que ele se aperceberá de imagens para que falta a identificação. Afinal, a idade sempre conta, mudamos muito em 40 anos. O que verdadeiramente não mudou foi esta panorâmica que se desfruta do Bairro Joli sobre os meandros do Geba estreito.


Tudo mudou em Cancumba, a tabanca é de boa dimensão, está espacialmente bem-disposta, dali se desfruta belas panorâmicas em todas as direcções. A fonte impunha-se como uma visita obrigatória, sem esta nascente do precioso liquido não teria havido o destacamento de Missirá. Aqui os guerrilheiros do PAIGC procuraram raptar e intimidar; deixaram mensagens, aqui se instalavam nas mais importantes flagelações. A recordação indefectível que o Tangomau guardara ao longo de 40 anos passava pelos bidões a rolar pela estrada, dois quilómetros para lá, dois quilómetros para cá. Outra recordação eram as armadilhas do alferes sapador Reis, duas delas deram pequenos desastres com mulheres. Aqui, vários soldados dispararam para as palmeiras, em dia de visita do capitão Figueira, parecia um ataque de costureirinhas. O comandante da CCS foi bem praxado… apanhou cá um susto!


Uma outra variante da fotografia que se tirou a Mama Mané, a mãe de Abudu Soncó. Será hoje a mulher grande de Missirá. Está muito surda mas não se esqueceu de fazer a reverência mandinga. Perguntou vezes sem conta quando voltava a ver o filho. É muito provável que não tenha percebido que a enfermidade do filho não permite, por ora, que se corra o risco de uma estadia na Guiné. Enquanto captava esta imagem, o Tangomau não esqueceu a casa por detrás, pertença da família do régulo, lembrava-se perfeitamente da sua existência, resistiu a todas as flagelações e tem conhecido acrescentos, como aliás é patente.


É o último vestígio militar palpável em Missirá. Aqui se hasteava a bandeira portuguesa. Três vezes este plinto se desmoronou e reconstruiu. Tinha as insígnias do Pel Caç Nat 52, uma caveira com tíbias de que nunca o Tangomau gostou. É visível que ainda aproveitaram algumas chapas zincadas que lá se deixaram. A parada desapareceu, era ampla, permitia jogos de futebol, estava cercada de abrigos e moranças. O que não mudou foi o local da mesquita, cresceu e continua virada para Meca. O Tangomau pediu aos homens grandes e ao padre para irem rezar. Foram, todos os seus mortos conheceram a exaltação e pediu-se a misericórdia de Deus


Era tal o temor que esta imagem se perdesse que foram repetidos os disparos. Diga-se em abono da verdade que se perderam imagens fundamentais: a tabanca de Ponta Varela, antes de se viajar até ao local dos ataques aos barcos; perderam-se imagens de Samba Juli, de Finete, do destacamento de Mato de Cão. Quando o Tangomau faz o deve e haver das imagens que trouxe e as que se perderam até se dá por muito contente. Aqui, vinha-se diariamente, haja ou não coincidência, o Tangomau chegou em Agosto de 1968, cresceu assombrosamente o número de comboios de barcos, aliás em 1969, até o porto do Xime ter ganho importância, o movimento de tropas e o frenesim de abastecimentos, o transporte de materiais de construção civil era mesmo diário. O pilar que vemos fazia parte das edificações da missão geo-hidrográfica concluída em 1952. Estes pilares destinavam-se ao estudo da tabela das marés, a imagem capta o Geba na enchente, não dá para perceber que havia pilastras e um caminho de madeira até lá. Era exactamente naquele ponto que se pedia boleia às embarcações, civis e militares.


Perderam-se imagens importantes de Mato de Cão, dois habitantes serviram de guias e indicaram os diferentes pontos onde ainda há vestígios do destacamento onde viveu o Mexia Alves. Este é o que resta de um abrigo. O destacamento estava bem posicionado no planalto de Mato de Cão, a vegetação fora desbastada, tinha a visibilidade do Castelo de Almeida. Agora tudo mudou, está pejado de cajueiros, as panorâmicas que dali se desfrutavam desapareceram. O Tangomau aproveitou para olhar em frente, para a bolanha de Samba Silate, devia lá ter ido, calcorreou aqueles caminhos para desfazer canoas usadas a partir de Madina, os guerrilheiros e civis atravessavam o Geba nesta região, passavam pelos Nhabijões, ali abasteciam e recolhiam informações.


Dauda Seidi ficou muito feliz e sorriu com os poucos dentes que ainda lhe restam quando o Tangomau lhe disse: “Dauda, o n.º 40”. Era diligente, hábil caçador e o Tangomau guardou sempre constrangimento de uma punição que lhe aplicou quando presenciou uma cena de violência doméstica. Foi um grande abraço, Dauda vai regressar a Cambessé e ficou radiante quando lhe dissemos que será amanhã a primeira paragem do carro de combate cheio de camaradas.


O Tangomau sempre conheceu o Zé Finete magrinho mas o brilho dos olhos está muito apagado. Ágil e cuidadoso, pediu para ser maqueiro e tão bem se desincumbiu da missão que lhe chamavam o enfermeiro de Finete. Estagiou na enfermaria de Bambadinca e nunca saia para as operações sem levar um estojo de primeiros socorros. Agarrou-se ao Tangomau com um choro manso, pediu-lhe para o trazer para Portugal, para o ajudar em tudo quanto pudesse. Acabaram por chorar os dois ao mesmo tempo. O Tangomau já não se continha quanto à quantidade e qualidade dos pedidos. Levara meses a preparar-se para esta viagem, nunca acreditou na alta voltagem destas descargas emocionais. O que se pode dizer a alguém que se dedicou incondicionalmente e viveu a nosso lado todos os perigos, sabendo que há poucas promessas de futuro, não há lembranças de gratidão da antiga potência em que o Zé Finete acreditou?


Só quem passou por Finete durante a guerra é que pode encontrar interesse nesta imagem. Aqui se chegava , vindo da bolanha de Finete. Ou daqui se partia, eram cerca de três quilómetros indispensáveis para os abastecimentos de tudo e para todos. Levava-se correio, trazia-se correio. Em momentos cruciais, levavam-se feridos às costas. Lá para Novembro de 1968, o burrinho foi de Missirá até junto ao Geba, transportava-se um Serifo Candé com uma perna que parecia gangrenada. Era uma daquelas doenças tropicais, na enfermaria de Bambadinca fizeram-lhe um emplastro, o Serifo foi metido na canoa e trazido às costas pelo tarrafo e metido no burrinho. Mas o burrinho, obstinado, recusou-se a andar. Houve que trazer o Serifo numa padiola que a meio da viagem se desfez. O Tangomau não esquece o episódio pois alombou com o matulão às costas, só o pôs no chão em Finete, onde ficou. São itinerários que marcam para toda a vida. Quem vê a imagem não lhe pode decifrar os conteúdos. Lorde Torcato inventou as foto-falantes: elas falam ainda mais quando vibram nos escaninhos da memória, ganham vida pois catapultam-nos para o que fomos, justificam no que nos transformarmos.


Outra imagem que exige um comentário, à partida é um caminho como muitos milhares de outros. Quando se chegava a Finete e se ia para Mato de Cão usava-se este caminho que levava a Malandim, daqui se partia para Gambaná, Chicri e Mato de Cão, tudo somado qualquer coisa como 5/6 km. Para o Tangomau, este caminho de Malandim ficou associado a emboscadas sangrentas, a travessias enlameadas pela bolanha, mas era um alívio nos quilómetros que se encurtava, não era necessário ir até perto de Canturé. Em Malandim aproveitou-se os materiais da destilaria e da casa do cabo-verdiano, o Sr. Spencer, que já tinha partido antes da eclosão da guerra.


A natureza tomou conta da casa do Sr. Spencer, em Malandim. Daqui saiu muita chapa, portas, janelas e ferragens para Missirá e Finete. Tínhamos aprendido a não deitar nada fora, o que parecia sem préstimo era literalmente recuperado para casas e abrigos. O Tangomau teve tantas saudades desse momento que não resistiu a captar o vestígio derradeiro da vida que desapareceu em Malandim.


Chegou a hora de mostrar o carro de combate, nele sempre cabe mais um. Ao volante vai o Calilo, segue-se Fodé que comprime o Tangomau, até as marcas do puxador ficam na sua barriga anafada. É uma viatura surpreendente. Quando o Tangomau sai, vem imediatamente Braima Fati ajudar o paizinho, o homem grande Fodé Dahaba. O que o leitor está neste momento a ver é Fodé a entrar para o carro de combate, vai começar a peregrinação ao regulado do Corubal. Seremos mais de 10, passaremos por Samba Juli, sempre a acenar. A estrada está em bom estado e em bom estado se conserva até Buba, valha-nos isto. E para que fique exarado em acta, será neste carro de combate literalmente cheio que o Tangomau irá regressar no dia 29 a Bissau, numa atmosfera de múltiplos odores, com estranhíssimos sacos, ouvindo muitos assentos do crioulo na região de Mansoa, até desembarcar, mais moído e morto do que vivo, junto à Pensão Central.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 20 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7511: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (8): O primeiro dia no Cuor (continuação)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dia em cheio. Amanhã vamos para o Xitole. Depois regresso a Finete, visito demoradamente Canturé, vou encontrar um número apreciável de vestígios da presença militar no Enxalé e depois subo até Cabuca, Madina e Belel, numa tentativa de conhecer mais e melhor o Cuor.
No Xitole ainda se encontram bastantes vestígios. Os reencontros com Albino Amamdu Baldé em Sinchã Indjai e Dauda Seidi em Cambessé foram emocionantes.
Dentro da lógica de que era uma viagem de trabalho, afastei a ideia de revisitar Cusselinta, ali tão perto e sempre tão deslumbrante.
O carro de combate do Fodé vai cada vez mais cheio com camaradas do Pel Caç Nat 52 e milícias de Missirá e Finete.
Ao findar do dia, voltei a Finete, à procura de uma casa para o Jorge Cabral.
Estejam atentos.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (8)

Beja Santos

O primeiro dia no Cuor (continuação)



O Tangomau irá recebendo petições da mais variada índole: dinheiro, bolsas de estudo, vistos para Portugal, ofertas de emprego. Haverá situações muito comoventes. No último dia da sua viagem, em plena Pensão Central, Filomeno, que aliás se chama Eufrágio (sim, Eufrágio) Júlio Vinício Júnior, que perdeu os pais no conflito político-militar de 1998-1999, pede a intercessão do Tangomau para ter uma bolsa de estudo, fez o seu liceu com notas brilhantes, julga-se à altura de uma justa recompensa dos seus méritos. Aqui e acolá, e depois de já ter distribuído todos os seus livros e livros alheios reportados à Guiné, os pedidos não irão faltar. Por exemplo o Prof. Moreira Nhaga pede com toda a naturalidade que lhe envie os livros para o Xime, agradece sobe para o quadro da bicicleta, acena ao longe e deixa o Tangomau com mais um pequeno problema para resolver.


Discursava o homem grande Fodé Dahaba quando em toda a sua mansuetude se perfilou diante do Tangomau Braima Mané. Para quem leu o primeiro volume do seu diário, o grito de felicidade que o Tangomau deu quando viu claramente visto que era Braima Mané, que ele julgava falecido, tudo compreenderá sobre os sentimentos humanos. Braima quase que tinha perdido tudo na vida quando o Tangomau o conhecera: repudiado pela família, com um braço inutilizado, o corpo coberto de estilhaços, vivia esmoler. Foi operado em Bissau, conseguiu-se algum trabalho em Bambadinca, aos poucos foi recuperando a sua auto-estima. Poucas pessoas procuravam o Tangomau com tanta alegria e gratidão como Braima Mané. Vê-lo a envelhecer e respeitado foi como se tivesse chegado uma estrela da tarde a cintilar sobre o céu de Missirá.


Que uma alegria nunca vem só comprova exemplarmente esta fotografia de Inderissa Soncó, o irmão mais novo do meu querido amigo Lânsana Soncó, o padre de Missirá. Com toda a sua dignidade, Inderissa encostou-se à parede para não se perceber como todo o seu corpo treme, convulsionado por algum mal parkinsónico. Mantém toda a sua delicadeza, era um agricultor laborioso, hoje reduzido à situação de deficiente imprestável, o grau mais intolerável da hierarquia socioeconómica africana. Não foi por acaso que o Tangomau se deslocou por Missirá de mão dada com este Inderissa que tem a vida num calvário. A seu lado, entregou prendas a Missirá, a começar pelo álbum do primeiro repórter militar português José Henriques Mello que cobriu as campanhas de 1907-1908 mostrando Infali Soncó e a chegada das tropas portuguesas ao Cuor. Missirá mudou muito, ampliou-se em todas as direcções, sobretudo para Sansão que, cem anos antes era a sede do regulado, aí viveu Infali e seu filho Bacari, o pai de Malã.


Aqui fica uma prova provada da revolução de costumes em Missirá: a discoteca. O Tangomau não teve coragem de perguntar nada sobre o horário de funcionamento e a natureza dos serviços prestados.


Diz-se que os velhos perdem a memória. Estou a preparar o caminho para a desculpa. Sei que este homem me disse chamar-se Miguel Totala Baldé, pertenceu ao 3.º pelotão da CCaç 12 e disse-me assim: o meu alferes era o Abel Rodrigues. E disse mais: sou o soldado arvorado n.º 82108769, e o meu telefone é o 002456462497. O Abel que me telefone e que me venha buscar. O recado está dado. O que confunde o Tangomau é como é que esta fotografia aparece no meio das imagens de Missirá, isto numa altura em que nos apontamentos ele escrevia nomes e idades: Lamine Mané, 59 anos; Braima Mané, 70 anos; Ansumane Indjai, 68 anos; Calilo Soncó, soldado de milícias n.º 101, 63 anos. Convém ainda referir que Mama Mané, a mãe de Abudu, tem mais de 80 anos e Ansumane Soncó, que aparece no comité de recepção, também cerca de 80 anos. Não é por acaso que na fotografia do comité de recepção para Iussufo Soncó: ele dirigiu-se em voz alta ao Tangomau lembrando-lhe que era filho de Bacari Soncó, ambos tinham o mesmo sangue, o Tangomau que nunca se esqueça.


Esta é a nova Missirá e estes meninos olham para o futuro. Está na hora de partir, o Tangomau sabe que vai voltar, mais cedo do que a população de Missirá pensa. Até porque há muita coisa para ver nos arrabaldes: Madina de Gambiel, Sansão, Maná. Há uma grande nostalgia por percorrer a velha estrada que ligava Bissau a Bafatá. O Tangomau não sairá defraudado. Toda a comitiva entra no carro de combate conduzido por Calilo Dahaba e marcha-se para Mato de Cão. Ponham-se em sentido todos aqueles que ali vigiaram e viveram!


Lembram-se? Havia umas pilastras que aguentavam uma passadeira de madeira, ali o Tangomau, em cima deste pilar que permite a leitura da tabela das marés, tal como Ponta Varela, pedia boleia aos barcos civis e militares quando era necessário ir buscar comida e aparato bélico a Bambadinca. O nosso Mato de Cão não desapareceu mas está irreconhecível. Da nova estrada até lá são algumas centenas de metros, devido ao traçado da estrada alcatroada. Para se tirar esta fotografia é preciso estar com os pés bem enterrados no tarrafo, contemplar a enchente, este pilar tem vários metros na vazante. Contemplando todo este barro sujo a contrastar com o verdejante arvoredo, o Tangomau deu asas à imaginação, pensando as vezes que aqui veio, contornados, chuvas diluvianas, a fornalha do sol, os entardeceres cálidos, as noites de breu. Conheceu Mato de Cão em todos os segundos do dia. E tem sempre orgulho em dizer que naqueles 17 meses nem um só barco foi atacado nesta entrada do Geba estreito. Para que conste.


Presta-se agora homenagem a quem viveu no destacamento de Mato de Cão. Referenciado o local onde se montava obrigatoriamente a vigilância à navegação, subiu-se ao planalto onde hoje viceja a tabanca e onde vive o régulo Carambá Soncó. Aqui também tudo mudou, ou quase tudo. Havia que identificar vestígios do destacamento. Este é o primeiro, o resto vai aparecer no álbum fotográfico. O Tangomau teve um desgosto: plantaram tantos e tais cajueiros que já não se avista nem o palmar de Chicri nem o palmar orientado para Sinchã Corubal (às vezes, enquanto se esperava a chegada dos navios ouviam-se os tiros dos caçadores de Madina que percorriam esta velha tabanca). Nisto, o anarca Jorge Cabral e o Tangomau cantam à mesma voz: são alguns dos mais belos palmares e panorâmicas da Guiné e do mundo que conhecem.


Aqui fica uma prova de vida em Mato de Cão, um friso de mulheres ao entardecer. Não foi uma visita prolongada, há pouco menos de uma hora de sol, a peregrinação vai findar em Chicri, o Tangomau está trémulo de emoção, Chicri está associado a emboscadas e a sangue derramado, está morto de curiosidade pelo que vai encontrar. E dali sairá consolado.


A seguir a Mato de Cão inflecte-se pela esquerda, é uma bonita e aprazível picada sempre a avistar os campos tratados, os muitos cajueiros e palmares. Coisa curiosa, o Tangomau percepcionou que estava em Chicri independentemente da tabanca nova, havia qualquer coisa na natureza que mantinha o arvoredo frondoso de há 40 anos. Todos saíram do carro de combate, como seria de esperar Fodé Dahaba já tinha preparado um contacto com um parente, prepara-se um cerimonial de recepção, os homens grandes equiparam-se, não escondiam o seu júbilo. Enquanto tudo isto acontecia, o Tangomau afastou-se discretamente e minutos depois olhava para a picada que conduz a Madina. Teve mesmo um assomo, uma vontade súbita de se pôr ao caminho. Perguntou a alguém qual a distância. “É lunge, mais de três horas, andando depressa”. Foi o que o desencorajou, senão tinha cometido a traquinice de entrar na floresta pela noite escura.


Sopram os ventos de mudança em Chicri, os miúdos já se misturam com os graúdos nas fotografias. Tinha acabado a escola, mordidos pela curiosidade, os pequenos vieram até àquela sessão pública em que um branco mostrava livros e fotografias de um passado semilongínquo. O que se avista em todas as direcções é mais do que o verde luxuriante: há os meandros barrentos do Geba, há as palmeiras gigantes graciosamente dispostas, os campos lavrados, o arroz amadurecido na bolanha. Aqui respira-se alguma prosperidade. O dia finda, todos dão sinais de cansaço, há gente que irá de bicicleta para Amedalai. E regressamos a Bambadinca. Em casa do Fodé, Albino Amadu Baldé deixara uma carta que encheu de alegria o Tangomau. Todos à uma tomaram a decisão: amanhã vamos para o Xitole, vamos dar um abraço ao Albino. Como aconteceu.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do Editor

Vd. último poste da série de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7504: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (7): O primeiro dia no Cuor

domingo, 26 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7504: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (7): O primeiro dia no Cuor

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dos dias mais tumultuosos da viagem. É melhor suspendermos a narrativa em Missirá, tenho muitas responsabilidades com a viagem que vou fazer a Mato de Cão e Chicri. Em Mato de Cão vou recolher imagens do que resta do destacamento. E Chicri, asseguro-vos, continua a ser um dos lugares mais belos do mundo.
Tudo isso será contado amanhã, tenho responsabilidades com quem calcorreou estas paragens ou ali viveu.

Um abraço do
Mário


Operação Tangomau (7)

Beja Santos

O primeiro dia no Cuor

1. Ainda não são sete da manhã, o Tangomau põe-se de sentinela a olhar o sereno, parece algodão em rama muito fino, uma evaporação por cima de Bambadinca e das bolanhas da Ponta Nova e Finete. Antes que cheguem Calilo e Iaguba, convém pôr alguma ordem nos apontamentos dos primeiros dias de viagem. Gente de todas as idades, muitas vezes anunciando-se com cantilenas, descem do Bairro Joli para a fonte de Ponta Nova, para baixo vão lampeiros e coleantes, para cima não dissimulam o peso da água em contentores por vezes desmesurados. O Tangomau interroga-se se deve voltar ao HM 241, quando regressar a Bissau, o que viu na noite da chegada e durante as andanças entre Bissalanca e Bandim justificam, sopesados os argumentos, que não, há um limite para observar as ruinas, os escombros ou até aquele cego desdém ao património colonial. Escreve no caderninho: não voltar, não voltar também ao Mercado Central, recusar uma visita a Bafatá. Pelo contrário, tudo fazer para percorrer a estrada entre Amedalai e Moricanhe. E mais anotou: só para abraçar estes queridos amigos, valeu a pena, o Madjo Baldé, o Djiné, o Zé Finete, o Sadjo, o Mamadu; o ter encontrado Dungo Queta, o guarda-costas do Jorge Cabral, que prometeu entregar a lista dos soldados. Na véspera, o homem grande, Fodé Dahaba, foi categórico: “Amanhã vamos para o Cuor, primeiro vamos a Madina de Gambiel, depois Cancumba e depois Missirá. Ficas a saber que Missirá te prepara uma recepção. No regresso vamos a Mato de Cão e Chicri. Mas se ficarem coisas para ver, não te preocupes, voltamos lá”. O Tangomau replicou, quase indignado, que havia muito mais coisas para ver: Então Finete? Então Malandim? Então Gambaná? Então Canturé? E Gã Gémeos? E as novas tabancas de Sansão e Maná? O homem grande encolheu os ombros, por esta é que ele não estava à espera.

Abudu (Abudurramane Serifo Soncó) em casa do Tangomau, durante uma sessão de preparativos para a viagem. O dia vai-lhe ser dedicado. Ele vai para Lisboa em 1996, na esperança de amealhar uns tostões para educar os filhos. Abandonou a profissão de professor e atirou-se à construção civil em Portugal. Tudo foi bem até aos enfartes do miocárdio. Que ele fique a saber que o carro de combate que leva Fodé, Mamadu Djau, Sadjo Seidi, Madjo Baldé e o Tangomau, entre outros, se encaminha para o interior do Cuor recordando as suas saudades da terra natal. Dentro em breve o Tangomau vai beijar Mama Mané, a sua mãe octogenária, que fugiu espavorida de Missirá, depois do ataque de 19 de Março de 1969.


2. Chegam os meus acompanhantes, nova grande surpresa: Dauda Seidi, que foi soldado milícia em Missirá, e que vive agora em Cambessé, perto do Xitole, vem abraçar-me, vai seguir connosco para o Cuor. Seguimos para as compras, o Tangomau foi estupidamente aldrabado no talhante, deram-lhe carne de vaca podre. No dia seguinte ele irá perorar e imprecar em frente do farsante: “Rachid, que o Profeta à porta do paraíso te obrigue a comer durante um ano a carne que me vendeste!”. A viagem segue o seguinte itinerário: contornando Bantajã, segue-se para a bolanha de Finete; na estrada de Bissau, vira-se à direita, como se fôssemos para Canturé, vira-se então à esquerda e caminha-se já com os grilos estridentes na velha estrada de Gambaná, como se fôssemos para Cancumba. Nova guinada à esquerda, o Tangomau está desorientado e por duas razões: o carro de combate de Fodé vai praticamente com as rodas da esquerda no ar, se ele não morrer de acidente, é fatal como o destino que nunca mais morrerá de acidente; e o que se chama Gambiel vai dar origem a muita discussão, toda esta peregrinação sinuosa anda à volta do rio de Biassa, segue para Sancorlã, o que eles chamam Gambiel é pura fantasia, entrámos nas florestas de algumas das madeiras mais exóticas do mundo, é uma atmosfera de grande aridez, é uma paisagem familiar, fazia parte dos 16 itinerários que o Tangomau traçara para chegar a Mato de Cão. Este era um dos calvários da época seca, sofria-se bastante à ida ou à volta, quando se apanhava a fornalha do sol. O Tangomau gritou até que todos se calassem mesmo os habitantes da localidade: isto não é Madina de Gambiel, é Madina de Biassa!

É aqui que o Geba separa Bambadinca do Cuor. O Tangomau ainda insistiu em cambar para a bolanha de Finete, fazê-la a pé como nos bons velhos tempos de viatura avariada em que toda a gente carregava a comida e as munições à cabeça. Só que o trilho se transformou numa estreita linha de passagem, para quem tem a coluna num oito não é viagem recomendável. Entendeu-se, pois, que se devia aproveitar o alcatrão até perto de Canturé e depois aproveitar as velhas estradas. Começava a peregrinação da rota nostálgica, o Cuor de Finete, o Cuor de Canturé, o Geba em Mato de Cão, o regresso à Jerusalém Celeste, Missirá


3. Primeira discussão do dia com o homem grande Fodé Dahaba. Se ele quer sessão de cumprimentos em Canturé e evento social em Finete, depois só há tempo para ir a Missirá e Cancumba. Ele interpela porque é que se vai a Cancumba, é facto que há lá uma tabanca, mas qual é a importância de Cancumba? Sem perder as estribeiras, o Tangomau recordou-lhe que era dali que vinha a água, sem aquela fonte era como viver num lugar ermo do Sahara, era igualmente dali que vinha o fogo das flagelações, por ali passávamos em patrulhas de nomadização ou num dos percursos de acesso a Mato de Cão. Dada a explicação, desfeitos alguns equívocos, seguiu-se para Madina de Biassa. O que jamais se esquecerá é o encontro com outro soldado milícia, Mamadu Mané. Houve grandes alegrias, o reconhecimento não foi difícil, o Mamadu mantém o ar acriançado. A fotografia era inescapável, guarda estilhaços na região frontal e no pescoço. Não é deficiente das Forças Armadas, não tem direito a tratamentos. O Tangomau tinha a garganta seca: é injustiça demais que este combatente viva com a saúde abalada e nós a ignorá-lo. Ei-lo aqui, para nossa vergonha.

Madina de Biassa é uma das povoações novas do Cuor. Aqui chegou a haver três quartéis durante a guerra: Finete, Missirá e Mato de Cão; o PAIGC acantonava-se em Cabuca, Madina Belel e Banir – eram estas as forças em presença, como soe dizer-se. Com a independência, brotaram Malandim, Mato de Cão, Saliquinhé, Chicri, Gãbaná, Maná, Sansão e Madina de Gambiel. Mas o Tangomau tem de voltar à Guiné pois desconfia que há ainda muito mais vida para pesquisar dentro do Cuor.


4. De Madina de Bissa a peregrinação rumou para Camcumba. A paisagem mudou. Houve um projecto italiano e a fonte está disciplinada. A nova tabanca custou a vida de muitas palmeiras, Cancumba não era assim. O Tangomau não parava de meditar sobre aqueles dois quilómetros que separavam Cancumba de Missirá, os bidões a rolarem pela estrada quando as viaturas estavam avariadas. A tabanca é harmoniosa, fez-se uma breve paragem para saudar os habitantes, ala morena que se faz tarde, agora vamos a correr para Missirá.

Recorre-se a um lugar-comum para dizer que o que se viu há 40 anos foi mudado pela natureza ou pela mão do homem. As recordações de há 40 anos desorientam o visitante. Onde ele se sentiu melhor é naquela estrada que outrora ligava Bissau a Bafatá. É uma laterite muito especial, cheia de terreno pedregoso, faz parte do Cuor árido, mais árido do que aquilo só Cabuca, Madina e Belel. E no entanto o Tangomau extasiou-se com aquela natureza selvagem, a zanguizarra dos grilos em Novembro, as borboletas multicolores, os pássaros, até os macacos. Talvez a delirar, o Tangomau entendeu tudo como uma recepção triunfal, 40 anos depois.


5. Para não entrar imediatamente em pranto, o Tangomau, logo à chegada a Missirá pediu para ir ver o túmulo do irmão, o régulo Bacari Soncó, um irmão profundamente amado e admirado. Aqui se ajoelhou, rodeado dos Soncó, dos Indjai, dos Mané. Deus sabe o que ele deve à dedicação deste homem integro e valoroso. Depois, antes que o homem grande Fodé Dahaba subisse ao púlpito e fizesse novo discurso, vagabundeou pela velha Missirá, a inexistente, onde ele viveu 17 meses a fio.

Os mandingas são sepultados de muitas maneiras. Gosto muito deste cemitério coberto, Bacari tem terra em cima e aguarda a companhia de outros familiares. Deus misericordioso tenha compaixão deste homem bom, meu dedicado companheiro de armas.

Na deambulação, o Tangomau confirmou aquilo que toda a gente sabe: com o velho se faz o novo, basta olhar para aquelas chapas. Aqui, começaram a escorrer algumas lágrimas tímidas, aqui situava-se o seu abrigo, mais à frente a casa do padre, Lânsane Soncó e mais à frente o balneário, um pouco à esquerda, fora desta imagem, um espaço a que se chamava o refeitório que tinha ao lado o armazém de víveres. Mudam-se os tempos, mudam-se as finalidades.


Aqui está o comité de recepção: de pé, a partir da esquerda, Inderissa Soncó, Sana Mané, Ansumane Indjai, Cali Soncó, Braima Mané. De joelhos, à esquerda, Lamine Mané e Iusso Soncó. O Tangomau estava a jogar em casa, estas eram as crianças do seu tempo, uns usaram Mauser, outros sofreram os efeitos das flagelações e dos ataques, outros ajudaram na cozinha ou dela beneficiaram. Lamine lembrava-se do Natal de 1968, recebera prendas. Foi um momento extraordinário, evitámos falar nos nossos queridos mortos, não houve amargor pelas muitas privações porque continuam a passar. A seguir, Fodé Dahaba tomou conta da banda, os Dahaba aqui também pontificam. Aliás, o Fodé tem família em toda a parte. Depois houve discursos, foram entregues petições, o Tangomau comoveu-se quando apareceu Mama Mané, a mãe de Abudu. O passado tornou-se presente, havia que explicar àquela octogenária que o filho não deve viajar, aquelas paragens não são boas para quem já teve dois enfartes do miocárdio.


Mama Mané panejada como se estivesse em cerimónia. Só perguntava pelo filho, irrompemos num choro miudinho, uma mulher grande recompõe-se rapidamente, Mama Mané vem da linhagem real, os reis não devem chorar em público.

Aqui se interrompe a viagem, leitor e narrador têm direito a uma pausa. A viagem é quase interminável, vamos prosseguir amanhã, mesmo que se esteja a meio do dia. E, meu Deus, daqui ainda se vai partir para dois lugares santos: Mato de Cão e Chicri.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Nota do editor:
 
Vd. último poste da série de 18 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7462: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (6): Bambadinca, recordações da casa dos mortos

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7479: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (5): Dia 23 de Novembro de 2010

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Dezembro de 2010:

Malta,
Foi um dia importante para o meu coração.
Lamento, no que toca a Lorde Torcato e àquele senhor que quer uma moradia em Finete, um tal Jorge Cabral, não trazer propriamente notícias animadoras.
Foi o que aconteceu.
Amanhã será diferente. Amanhã contem comigo no Cuor. Amanhã chego a casa, a Missirá.
Antes, serei recebido por um antigo comandante do PAIGC, em Canturé, agora Gan-Turé.
Mudam os nomes mas os lugares conservamo-los toda a vida.

Um abraço do
Mário


OPERAÇÃO TANGOMAU - ÁLBUM FOTOGRÁFICO (5)

DIA 23 DE NOVEMBRO DE 2010

Tudo leva a crer que este dia 23 de Novembro vai ser emocionante para o Tangomau. Ao sair de casa deparou-se o seu querido amigo Mamadu Djau, veio de bicicleta de Amedalai, acompanhado de um antigo soldado do Pel Caç Nat 54. Em casa do Fodé, nova surpresa: o Zé Pereira, primeiro cabo do Pel Caç Nat 52, entre 1968 e 1969. Uma grande, grande surpresa. Depois de alguma negociação com o Fodé, a comitiva vai até ao antigo porto de Bambadinca, o Tangomau pretende registar o que resta desse espaço que justificava idas diárias a Mato de Cão. Todo o abastecimento do Leste, até aparecer, em finais de 1969, o porto do Xime, desembocava aqui. Sobretudo durante as manhãs, era uma roda-viva de Berliets e Unimogs que depois irradiavam para inúmeros regulados. A seguir ao porto do Bambadinca, o Tangomau tem que deixar uma carta em casa do Zeca Braima Sama, veio do seu amigo Humberto Reis, antigo furriel da CCaç 12. E há também que visitar o cemitério de Bambadinca, o coronel Jales Moreira pretende saber o estado dos túmulos dos três militares portugueses que ali jazem. O que resta do porto de Bambadinca são estacas, as que se vêem. O Tangomau teve uma repentina, perguntou a um daqueles pescadores se o levavam a Mato de Cão. Que sim, na manhã seguinte, ainda pela fresca. Depois começou a negociação do preço, começou em 40 mil francos CFA, fechou-se o negócio em 10 mil. Infelizmente, o mandão do Fodé impôs-se, está a chegar a hora de começar as visitas ao Cuor. O passeio de canoa a Mato de Cão fica para a próxima viagem. E todos aqueles que frequentaram o porto de Bambadinca vão ficar de garganta seca quando virem estas miseras estacas como vestígio de uma importância perdida.

A auto-estima do Tangomau trepou quando ele visionava o rescaldo desse dia 23. No primeiro visionamento, ele deu pouca importância à imagem. Depois, do alto da sua arrogância de fotógrafo super-amador, reconsiderou que estes vestígios do porto de Bambadinca não eram para deitar fora. Suportavam o tabuleiro do cais, por aqui passaram toneladas de comida, munições e aparato bélico, material de construção civil, etc. Para que conste para a História, aqui houve cais, exactamente neste ponto acostava o aprovisionamento dessa imensa guerra. É certo que se trata de uma ruína, o Tangomau trata-a como um vestígio arqueológico, deu sofrimentos inenarráveis proteger e direccionar este aprovisionamento.

Calilo avisara o Tangomau que havia lá uns espigões em ferro dentro do capim e muito perto do trafi (para quem está esquecido, o trafi recorda os chorões curvados sobre os rios, são árvores pequeninas, bem proporcionadas, dentro e fora do tarrafe). Entrou-se no capim e encontrou-se este suporte para o cordame das embarcações. Deram-se voltas à procura do outro suporte, era natural que houvesse dois. Mas não havia. Para que conste, é o último material ferroso do que resta do porto de Bambadinca. Cabisbaixos, todos aqueles antigos combatentes que tinham vigiado aqueles barcos civis que aqui aportaram, uns quilómetros mais abaixo, em Mato de Cão, subiram silenciosos até casa do Zeca Braima Sama. Deixou-se a carta a um familiar, o Zeca estava a dar aulas em Bafatá. À noite, foi apresentado ao Tangomau na Bantajã Mandinga. Apareceu no almoço de veteranos. E comoveu-se. A comitiva subiu para o cemitério de Bambadinca.

O Zé Pereira veste uma sabadora cor de vinho, está rodeado de Madjo Baldé e Sadjo Seidi, Sadjo Tchamo e Djiné Baldé (Missirá e Finete). Quando o Tangomau chegou a Missirá havia três primeiros cabos africanos: Domingos Silva (o albino Amadu Baldé disse-me que o viu em Bissau há uns cinco anos atrás, ninguém sabe onde pára), Paulo Ribeiro Semedo (cristão de Geba, sinistrado em Chicri com a explosão de um dilagrama, já falecido) e o Zé Pereira. O Zé era indiscutivelmente o melhor preparado deles, fora e voltou a ser professor, dava provas de maturidade e tinha o sentido da liderança. Durante anos correspondeu-se com o Tangomau. Vive em Bissorã, os seus filhos, ele diz isto com orgulho, fizeram os estudos médios. O filho mais velho joga no Atlético Clube Oriental, ele está prestes a vir visitá-lo. O Tangomau combinou ir à bola, actividade que nunca exerceu. Mas ao Zé Pereira não se pode negar essa alegria, estar a seu lado e ovacionar o filho que triunfou na bola.

O inesquecível, o valoroso e sempre fiel Mamadu Djau. Continua a trabalhar na bolanha, de onde arranca o sustento. Aqui há uns tempos, Lorde Torcato pedia informações sobre o que fazem os nossos antigos combatentes: no essencial, vão à bolanha, cultivam a horta, quando podem fazem algum comércio, vivem miseravelmente, não sabem o que é o médico, o medicamento, a pensão de reforma. Quando estive com o Mamadu Djau, em 1991, ele ainda fazia comércio. E agora, Mamadu? “Dinheiro cá tem, Mário, estou velho e perdido”. O que me dói até ao tutano é que este homem de estatura média, de porte régio, é um herói, um destemido, com a bazuca foi um combatente de alta perícia. Começou como milícia na Ponta do Inglês, engoliu ali as faúlhas do inferno. Depois de eu ter visitado a Ponta do Inglês com Lânsana Sori, ele explicou-me a vida daquele destacamento atribulado. Mais adiante, veremos o que resta da Ponta do Inglês. O Mamadu confiava que eu o tinha vindo buscar, em 1991, dissera-me: “Depois do que eu sofri ao pé de ti, depois desta viagem que fizeste, acreditei que me vinhas buscar, quero ganhar a vida e ser respeitado”. É uma das recordações mais impressivas desta viagem de 2010: caminhamos para o ocaso, o abraço que demos, as mãos dadas que estendemos um ao outro, o muito obrigado embargado que lhe disse quando ele partiu para Amedalai e eu para os Nhabijões, na tardinha de domingo, 28 de Novembro, foi a fraternidade pura, sabemos o lugar que temos no coração do outro. Para todo o sempre.

Já muito se escreveu sobre este cemitério de Bambadinca, andam por aí muitos protestos sobre o tratamento indigno que lhe reservaram, o Bambadincazinho tem-se vindo a expandir sem olhar a meios. O cemitério apanhou por tabela, a comitiva deu voltas e mais voltas até se aperceber que este é o último palmo que resta do cemitério. Como em muitas outras situações, o último grito da presença humana é aquela lápide de cimento. O Tangomau conversava com os seus botões: eram três, parece que só resta um. Isto lembra o soldado desconhecido. Não seria a melhor solução remover estas ossadas para o talhão dos combatentes, no cemitério de Bissau? Vamos passar a vida a trasladar combatentes? Os britânicos que combateram na Flandres não ficaram lá a descansar eternamente?

Que este tocador de Korá, em pleno Bambadincazinho, não se presta confusões. Perdeu-se a imagem do Tangomau e comitiva em Samba Juli, uma tabanca que representava o fim do sossego para quem ia para Mansambo ou Xitoli ou confins do Cossé. Curiosamente, os visitantes puseram-se de acordo: pouco mudara em Samba Juli. Depois dos agradecimentos da visita pelo chefe de tabanca, o Tangomau começou a fazer perguntas, ia de encontro ao que lhe pedira Lorde Torcato de Mansambo. Começou por Lali, está vivo ou morto? Houve conciliábulos em fula e crioulo e dpois veio a resposta, o Lali está vivo, podem encontrá-lo em Candamã. E Suckel? Novos conciliábulos, veio a resposta: Suckel, o sobrinho de António Iaio Buaro morreu. E Madiá? Conciliábulos e correcção: não é Madiá, é Madiu, ou Mussa Candé, pertencia ao pelotão de Mamadu Bari, de Moricanhe, morreu. Já a pensar como é que se transmitem estas notícias a Lorde Trocato, perguntou-se pelo régulo António Bonco Baldé, o régulo do Corubal. Aqui nem foram precisos conciliábulos: António Bonco morreu há muito, o seu herdeiro é Sori Baldé, vive em Sinchã Moli. Lorde Torcato também me pedira para se perguntar pelo 91. Ninguém sabia quem era o 91. Aliás, o Tangomau proibira que se tratassem as pessoas por números. Quem apareceu e pediu para ser fotografado foi um irmãozinho de Queta Baldé, para quem não sabe o Queta é um dos heróis dos livros do Tangomau, memória como a dele não existe em mais ninguém. O irmão chama-se António Iaia Buaro Embaló e manda “manga de cumprimento” ao irmãozinho. Pode dar-se o caso do leitor se ter esquecido destes diminutivos. Um só exemplo, quando se diz mãezinha está-se a falar na irmã da mãe, não vale a pena perguntar se é o mesmo que uma tia. Nesta altura da viagem, o Tangomau já conhecera centenas de paizinhos, tiozinhos, irmãozinhos do Fodé Dahaba. Se acaso ainda existem famílias extensas a do Fodé é extensíssima.

No regresso de Samba Juli, o Tangomau, à beira da desidratação, pediu para ir ao mercado buscar duas garrafas de água, de litro e meio. É nisto que um jovem bem crescido avançou para ele e lhe disse: “Estiveste no Xime e falaste muito bem do meu pai. Eu sou o filho de Mankaman Biai, de quem disseste ser o maior guia e picador do Xime. Tira fotografia”. Antes de tirar a fotografia, como é uso e costume, o Tangomau enobrece os primores de carácter deste Mankaman, que recebeu louvor na operação “Rinoceronte Temível”. E a seguir, a comitiva, à hora do calor, partiu a caminho de Fá Mandinga, tentava-se assim dar cumprimento aos pedidos de um tal Jorge Cabral que andou a fazer distúrbios na região. A estrada para Fá não é exactamente o que era. Passa-se por Santa Helena, Bantajã Assà e depois envereda-se por um estradão em muito mau estado ao lado de Ponta Barbosa, o capim cresceu, aqui e acolá despontaram pequenas tabancas, Calilo abranda a velocidade face às grandes brechas no caminho, há ainda lagos de água esverdeada, ouve-se a insistente zanguizarra dos grilos, vou ouvi-los ainda mais insistentes quando for a Madina e a Belel. Já por aqui andei quando fui visitar Serifo Candé, em Biana. Fá é um desapontamento, o que no passado evocava granjas, restos de quartel, escola agrícola, agora são vestígios de edifícios carcomidos. A viatura pára, à frente existe o quartel do Exército guineense. Fotografias nem pensar. E também é já tarde, voltar a câmara para as ruínas ali ao lado pode parecer uma provocação a este jovem que tem a pesporrência de um guarda pretoriano. Pois o Jorge Cabral fica com sobejos motivos para se meter ao caminho e vir dar aqui uma espiada: tem guarda-costas e alguns soldados vivos para lhe dar companhia. Nada mais se pode adiantar.

Finete acompanhou a evolução do traçado da estrada Bissau-Bafatá. Antigamente estava concentrada sobre a bolanha, agora espraiou-se. Aqui fica a última imagem do dia. Aqui começava a bolanha ou a povoação de Finete, ou vice-versa. A fotografia só tem importância porque se vai repetir a mesma coisa noutros locais. Por exemplo, no Enxalé, alguém que o acompanha diz-lhe: “Ali era a estrada que levava a…”. No caso do Enxalé, havia dua estradas, a que atravessava a bolanha, a estrada velha, em frente ao Xime, e a estrada nova, mesmo em frente a Samba Silate. É um mundo que desapareceu. E, por vezes, como num rompante lírico, o Tangomau dá consigo a captar estes caminhos que perderam servidão, que foram retomados pela natureza.

A bolanha de Finete tem destas surpresas, não é por acaso que beija o rio Geba, e com ele se confunde. Para o amador de curiosidades, esclarece-se que Calilo Dahaba parou a viatura de combate e questiona o que o Tangomau pretende captar na travessia do rio Geba. Pois é exactamente isto: o rio e a bolanha, a vegetação luxuriante, e a luz, esta luz teatral que faz da água barrenta um curso de água de azul quase celeste. É também por estas e por outras que o Tangomau regressa ao seu “chão” e se sente imensamente feliz. Tudo começou com um porto que se transformou numa memória, reencontraram-se amizades profundas, foi-se a Samba Juli e a viagem a Fá Mandinga resultou numa decepção. Valha-nos a bolanha de Finete. E o Geba, o rio que atravessa a vida do Tangomau.

Ainda há luz do dia, a excursão prossegue até à bolanha de Finete, o Tangomau sabe que é boa hora para captar a luz especial, aquela que guardou estas décadas todas. Como esta imagem comprova: os lírios dentro em breve vão fechar, quando o dia arrefecer, a bolanha parece um imenso jardim exótico que avança em direcção à mata densa de Finete, o que é hoje Finete, a próxima surpresa que espera os viajantes. Já bem cansados, por sinal.

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Direitos reservados.
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Notas de CV.

(*) Vd. poste de 19 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7470: Notas de leitura (179): A Luta Pelo Poder na Guiné-Bissau, de Álvaro Nóbrega (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7445: Operação Tangomau (Álbum fotográfico de Mário Beja Santos) (4): Dia 22 de Novembro de 2010