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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > O 1º Cabo João Tibó Caldeira ferido em Cabolol na Operação Saturno.

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas cambando um rio

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas cambando um rio em Cadique, no decurso da Operação Tesoura.

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas na abertura da estrada Cufar/Cobumba.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A secção de cães...

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > O Soldado do Pelotão de Milícia nº 13, Gibi Baldé, com o Fur Mil Carlos Filipe

Fotos: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 726 que esteve em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte IX > A Professora é violada pelo Furriel Gonçaves na véspera de este ser morto em combate (pp. 80-94)


(i) Cenas picarescas de Cufar



Os militares retiraram-se, e Pami ficou analisando os problemas da guerra, até lhe aparecer Meta, perguntando-lhe se teria visto por ali o soldado nativo Mamadu Baldé. Deu informação negativa, e a rapariga desapareceu, procurando problemas com o seu velho marido, concerteza. Sorriu, ao recordar duas cenas que Míriam lhe tinha contado: Uma tinha sido Rafael a saltar sobre o velho marido de Meta, para lhe retirar a G3 com que ele queria matar o soldado Baldé, e a outra que a mesma lhe relatou, da noite em que a Mariana, bajuda Fula, sem um olho, se foi meter na cama do alferes Telmo, para este lhe tirar o cabaço, e que pelo mesmo, foi corrida de sua cama com um pau.

Gente tonta, estas três Fulas. Ao anoitecer, quando Indrissa lhe trouxe a refeição - milícia Fula encarregado deste fim-, apareceu a lavadeira que informou estar muito triste porque ninguém lhe dizia nada do furriel, e que tinha de o levar no Homem Grande, para bala não entrar no corpo dele.

Pami confirmou que Míriam nada sabia sobre a vinda do mesmo. Mas deu-lhe uma esperança, fundamentada na conversa que ouvira entre o capitão e o médico.
-Meu cabeça diz que ele chega manhã!
- Verdade Sanhá?
- É, eu acredita!
- Se furiel bem, Mim faz festa, e mata galinha para ele! E tu, Sanhá? Ajuda nesse trabalho? Se tu fala verdade, a mim pede a furiel, para falar com capitão, para tu ires no teu tabanca.

Apercebeu-se a prisioneira , com esta conversa, de que Míriam lhe poderia ser bastante útil. Teria de fazer trabalho específico, para continuar a captar e consolidar a sua simpatia e amizade.



(ii) Pami passa informações sobre Cufar e os Lassas a um nova prisioneira, sua conhecida



No dia seguinte, Pami teve de repartir a sua palhota prisão, com mais quatro companheiras. Tinham vindo de Cabolol a Mato Farroba a um Choro, e os Lassas, sempre em cima do acontecimento, convidaram-nas para voluntariamente (obrigadas...) a uma sessão de perguntas e respostas no aquartelamento. Tudo o que se passava a Sul de Cufar até ao Cumbijã, estava controlado.

Neste grupo, vinha uma velha conhecida, da família de Pami, que ficou bastante surpreendida pela permanência da professora neste local. Mesmo com guarda da milícia, as duas mulheres conseguiram transmitir entre elas. Depois de dois dias de inquirições. Utilizando as regras de trabalho psicológico sobre a população, foram as mulheres mandadas embora. A professora não dormiu, conseguiu transmitir um bom rol de informações, sobre os Lassas e a sua vida fora e dentro do Aquartelamento, à mulher conhecida.

Na tarde da chegada das mulheres, a avioneta que trouxe o correio, deixou uma bela encomenda. Nada menos nada mais, que Rafael, o furriel tão desagradável mas tão esperado por Míriam. Pami viu-o entrar no Comando, e quase não o reconheceu. Muito magro, pálido e sem barbas, parecia antes adolescente chegando da Metrópole. A lavadeira, desapareceu durante dois dias.



(iii) Excitação de Miriam ao saber do regresso de Rafael



Só depois das mulheres de Cabolol se terem ido embora, a vida de Pami voltou à rotina. Apareceu-lhe Míriam, toda bem vestida e arranjada com uma alegria esfuziante, de miúda adolescente. A prisioneira, provocou a lavadeira do furriel, de forma que esta se sentisse lisonjeadae confiante nela. A lavadeira ficou embaraçada, e pediu desculpa à prisioneira, mas tinha muito que fazer, pois o furriel tinha trazido muita roupa para lavar, e vinha muito fraquinho.
- Mas naquele conversa giro?
- Vinha forte demais!

Pami tentou saber mais sobre Rafael, mas Miriam, não adiantou muito, prometendo só: Falar na questão da liberdade da prisioneira, e um dia que ele fosse no mato, ela a levaria novamente ao quarto dele, para ver fotografias.

A vida dentro do arame farpado continuava na mesma. Pami fazia praticamente já parte da comunidade Fula. Ajudava Míriam na preparação da roupa, e até chegou a cozinhar galinha, para o furriel Rafael. Ia ouvindo as conversas dos militares. Nestas conferências, após a sua chegada, Rafael também foi activo, mas falava de assuntos que Pami não sabia, ou não tinha conhecimento. Falava dos heróis do papel, que em Bissau – muito bem informados - contavam todas as aventuras por terras da Guiné sem terem ouvido, e nem saberem o que era um tiro.

Mas, entre das muitas outras intervenções que tivera, falara da primeira depuração dentro do PAIGC e que ele intitulou de “saneamento étnico Balanta”, efectuado em 1964. Isto deixou a prisioneira bastante preocupada, principalmente pelo desconhecimento total sobre o assunto. Falou também dos bailes na casa da cabo-verdiana loira e ainda da professora que andava no descapotável, e da bronca da Rádio Bissau. Difícil para chegar lá. Estava atenta às operações que se desenrolavam no Sul da Guiné, pois Cufar, derivado da sua bela pista, começou a ser o centro de comando de operações dos colonialistas, em todo o Sul. Viu marinheiros, fuzileiros, muito pessoal da aviação, e ainda mulheres enfermeiras, pára-quedistas conforme lhe confirmaram.

Cufar tinha um movimento extraordinário. Vinham companhias novas aprender com os Lassas, a quem estes davam instrução operacional no terreno.

Pami embora continuasse mentalmente a registar tudo, já se encontrava saturada, e começou a arquitectar uma maneira de se evadir, embora fosse bastante difícil. Estava numa tarde quente de Fevereiro [de 1966], a conjecturar a forma da evasão, quando lhe apareceu Míriam com um balaio de roupa, e lhe atirou:
- Tu quer ver casa de furiel outra vez?
-Sim, quero! - respondeu, sentindo dentro de si uma curiosidade inquietação anormal, realidade até ali não sentida.
- Gosse! A nós bai! Pessoal foi fazer segurança, a barco que passa na rio, e furiel já tá bom pa ir no mato, diz dotor.

(iv) Pami lê uma carta da mãe do Furriel Rafael...e lembra-se da sua, com saudade



Pami ergueu-se rapidamente, e com Miriam dirigiram-se para o quarto de adobos, dos furriéis, Taveira, Gama e Rafael. A messe de sargentos estava vazia, apenas o soldado Lopes, limpava o Bar. Quando viu entrar Miriam com a prisioneira, o soldado gritou gaguejando:
- É Mi...mi...ri...am! Que...Que...! meeerda éé... esta? Aa até aa...pri...prisioneira entra aqui? Vou... vou... fa... fa ... lar com furriel.
- Chi minino Lópi bó hoje tá mau! Furiel cá importa!

Foram entrando, mas Pami agora tremia toda, com medo das consequências. Míriam sossegou-a, e já no quarto, disse para a prisioneira:
- Gora vê torgafia e pode senta aí no cama de furiel eu arranja roupa primero!

Pami viu uma série de fotografias novas, e pegou numa carta, que estava fora do subscrito, e começou a ler, enquanto a lavadeira apenas tinha atenção para o esmero com que arrumava a roupa do furriel. Pami continuou.

........../Janeiro de 1966.

"Querido filho,

Faço votos que te encontres bem, e que nada de mau te tenha acontecido. Por favor, é esta a terceira carta que te escrevemos, sem termos qualquer contacto teu. Conta-nos tudo o que se está a passar para os nossos corações ficarem descansados. Graças a Deus, julgamos que o pior não terá acontecido, quando não já tínhamos tido alguma má noticia. Mas por favor escreve-nos, pois a última notícia que temos sobre ti, foi pelo Jorge, que escreveu às tias, e disse, que te tinha encontrado em Bissau, mas não disse mais nada. Ele foi para o Norte comandar uma companhia.

Filho, por favor escreve, o teu pai anda muito preocupado, e quase sempre calado. Pouco fala, e quando o faz, é só para dizer: "Se aquilo for como eu vi em Badajoz (2), é uma coisa muito triste; A guerra é a pior coisa que o homem inventou." Por vezes dá a impressão de querer dizer mais qualquer coisa, mas volta logo com os avisos, para termos cuidado com o que escrevemos, não te abram as cartas e sejas prejudicado.

O avô velhote, cá vai andando, é claro já são noventa anos. Mas todas as noites ao deitar, se lembra de todos, e reza sempre à Senhora da Conceição por ti, e acaba sempre as orações, perguntando: Por onde andará aquela alminha, o meu doce companheiro?

Tive notícias das tuas irmãs. Vão passando bem e teus cunhados também. O teu afilhado Pedrinho é que está um pouco constipado.

Este ano o Natal foi muito triste com a tua falta.

Filho, mais uma vez te peço, escreve sem demora, descansa os nossos corações. Não é preciso muito, basta o que escreves sempre, "Por aqui tudo bem”.

Termino, pedindo ao Senhor da Piedade e a Nossa Senhora da Conceição, que te protejam, e que te tragam são e salvo.

Muitos, beijos do teu pai, do avô velhote e da tua madrinha Inha. Desta tua mãe, recebe muitos beijinhos e um grande e saudoso abraço. Escreve!

Maria das Candeias "


A confusão entrou na cabeça de Pami de tal forma, que ficou estática, petrificada com a carta na mão, olhando o vazio.

Na sua azáfama, a lavadeira não dava por nada. Terminando, olhou para Pami, e viu-a como estátua com a carta na mão, e ralhou:
- Sanhá, qué qui bó faz? Vê só torgafia! Cá tira papel! Se furiel sabe, ele mata a mim!

Acordou! Colocou a carta de onde a tinha retirado, e levantou-se da cama onde se sentara. Prontamente Míriam ajeitou a cama do furriel. Regressaram, a lavadeira numa tagarelice infernal sobre o furriel, não sonhando sequer que a prisioneira tinha tido acesso à vida íntima de Rafael.

Pami em silêncio, entrou na sua casa prisão, e estendeu-se sobre a esteira que agora lhe servia de leito. Regrediu. Sua falecida mãe veio-lhe à mente, e vagueou em sonhos íntimos maternais. O guerrilheiro Pan Na Ufna, seu pai, apareceu-lhe de camuflado, arma aperrada, em lendária imagem de anjos e diabos guerreando. O padre Francelino, apareceu-lhe em imagem venerando, a transmitir-lhe uma mensagem:
-Acabaram-se os valores e a família Pami! O Homem está-se destruindo a ele próprio!

Mais uma vez a sua sensibilidade, fez-lhe sentir nos lábios o sabor a mar solto em pérolas de seus olhos. Pami teve pena da mãe do furriel Rafael. Mas... dele? Não!... não teria! Ele estava ali e fazia a guerra! Ele era dos que tinham queimado o seu dicionário, relicário do padre Francelino! Ele estava destruindo-se a ele próprio. O vento soprou, Pami estremeceu e sentiu um arrepio de frio. Seria que ele estava ali de vontade? Ou pertenceria também aos milhares de voluntários à força, que faziam a guerra, mas dela não eram senhores mandantes? Novamente a fragilidade voltou à sua cabeça. Deu pela chegada dos militares que tinham saído. Apesar da insistência de Meta, não quis jantar. A noite foi de sonhos pesadelos.

Passaram os dias, e a professora ia-se distraindo, com o movimento dos militares. Deixou de se aproximar da escola, porque isso a deprimia. E as conversas com Meta e Miriam foram alargadas a outro pessoal nativo, familiares dos milícias.

Tinha chegado um elemento novo ao aquartelamento. Um capitão gordinho, de óculos com ar assustado, tinha vindo para substituir o Leão - conforme conversa ouvida aos militares nas escutas da varanda- que iria para Bissau para outra missão. Naquele dia vinte e quatro de Fevereiro [de 1966], todos os alferes e sargentos foram chamados ao Comando. Como habitualmente saíram todos em silêncio. Pami junto de Meta, observara tudo, mas nada dissera. Os Lassas, mais uma vez, iriam sair. Já ao fim da tarde, Míriam veio da messe de sargentos e sentou-se junto de Pami e começou a chorar, desabafando:
-Eu não pode dizer a ti. Mas furriel não quer cume, está a beber aquele bebida visque. Tu não fala nada desse cumbersa! Mas ele vai na mato! Certeza!



(v) O Furriel Gonçalo força Pami a ter relações sexuais no seu quarto, na véspera de sair para o mato



Estava Míriam neste desabafo, quando vindo do lado da messe, apareceu o furriel Gonçalo. Passou na direcção do seu abrigo, e nada disse. Dez metros à frente, voltou atrás, e falou para Míriam:
- É, Míriam, diz a essa gaja aí - referindo-se à prisioneira- se ela quer partir catota?
- Chi furiel! Furiel quer mesmo?
- Sim! Ela que venha comigo para fazer conversa giro.

Pami estremeceu, e ficou em pânico. Que fazer? Começou a pensar numa forma de fugir a esta situação. Mas Míriam atacou traduzindo:
- Manga de ronco. Jube, furiel Gonçalo quer leva tu no cama dele.

Pami fez negação com a cabeça, mas Míriam voltou ao ataque:
- Tu tem d'ir! Com soldado não que tu és pisoneira, mas furiel manda!

Agora sentiu-se novamente prisioneira, e incapaz de resistir a quem manda. Informou Míriam para dizer ao furriel que tinha medo. A ideia que tinha tido nos interrogatórios, deitava por terra, toda a defesa possível no momento. Num último rasgo de inteligência, ainda pediu a Míriam para informar o furriel de que poderia ter doença. O furriel não ligou muito às desculpas, e começando a dirigir-se para o seu abrigo, disse:
- Traz esse saco de carvão ao meu abrigo!

Míriam tentou dar coragem a Pami, mas esta - embora o adultério, não fosse coisa significativa, entre a raça balanta - sentiu-se completamente destroçada. Um branco, e ainda por cima militar. Pami relembrou Malan Cassamá, e começou a doer-lhe muito o acto a que obrigatoriamente teria de se submeter. Míriam levantou-se e puxou pela prisioneira, dizendo:
- Cum soldado não! Mas cum furiel é coisa boa para tu! A mim toda gente tem inveja quando a mim vai pra cama de furiel Rafael.

Pami levantou-se, tremendo, sem forças nas pernas, foi andando e seguindo a jovem fula em direcção ao abrigo do furriel. Ao chegarem à porta do abrigo, Míriam moralizou a prisioneira:
- Entra, a mim fica aqui no porta! Bó cá tem medo! Furiel Gonçalo é bom home!

Entrou, e num relance verificou o abrigo todo. Era um abrigo em redondo, com vigias em toda a volta. Virada para a mata de Cufar Nalu, encontrava-se uma metralhadora pesada. O abrigo tinha três camas, duas em beliche por cima uma da outra, e a um canto mais espaçoso, estava uma cama com mosquiteiro. Junto, uma caixa de madeira, fazia de mesa. Sobre ela, estavam duas fotografias, uma de uma jovem a outra de mulher de meia-idade. O furriel, começou a despir-se e por gestos indicou à prisioneira para fazer o mesmo. Pami ficou parada. O militar puxou o mosquiteiro para cima, virou as fotografias para a parede do abrigo, e continuou despindo-se, até ficar completamente nu.

Pami, em plena confusão verificou que o corpo do furriel era todo coberto de pêlos negros, e pensou? Se aquilo seria homem ou macaco? A medo começou aos poucos a tirar os panos que lhe cobriam o corpo. O militar - macho faminto esperando pela fêmea - já se encontrava estirado sobre a cama. Após retirar o último pano, completamente inerte qual estatueta de pau-ferro. Assim ficou desnudada frente ao militar. Os pêlos curtos, negros e encaracolados da sua púbis, ficaram à vista. Pami inconscientemente olhou para o sexo do furriel, e ficou pasmada. Completamente erecto, seria metade do de Malan.

Impaciente, o furriel puxou a prisioneiram para a cama, pegando-lhe no braço sem mão. Sentiu um pouco de resistência, e forçou mais. Pami verificou que já não tinha hipótese nenhuma, e deixou-se cair na cama. O furriel virou-se, e ficou com o corpo sobre o dela. A mulher fechou os olhos, e tentou num último esforço muscular da vulva, tentar dificultar a penetração do membro, que embora de tamanho inferior ao de Malan como confirmara, apresentava muito mais rigidez.

Mas o furriel não forçou, começou por afagar os seus pequenos seios. Sentiu a mão do homem deslizar suavemente pelo seu corpo e começar a afagar a sua púbis, e depois os lábios da vulva, até começar a titilar o clitóris. Quase inconsciente, o esforço mental que fazia, aos poucos foi-se esvanecendo. O furriel começou a sentir um relaxamento muscular da prisioneira, e um leve humedecimento vaginal. Pôs-se de joelhos, abriu suavemente as pernas da prisioneira, afastou-lhe os grandes lábios, e lentamente começou a introduzir-lhe o pénis na vagina. A resistência de Pami esvaiu-se, e começou a sentir o vaivém dentro do seu corpo em suave deslize.

Passados poucos segundos, ouviu um ronco cavo sair da garganta do furriel, e sentiu o alagar das suas entranhas, por quente líquido. O macho tinha efectuado o orgasmo. Os dois corpos ficaram imóveis por momentos. O furriel levantou-se, vestiu-se rapidamente e saiu do abrigo. Míriam entrou, Pami vestia-se e pela sua cara rolavam lágrimas indefinidas, resultantes deste estádio deplorável de situações a que leva a guerra.


(vi) Gonçalo é morto em combate

As duas mulheres caminharam junto, em silêncio, rumo à improvisada prisão, morança de Pami. Amadu, impedido dos furriéis, procurava a lavadeira, e em tom mandante ordenou:
-Gosse! Gosse! Furiel quer roupa camurfada, ele vai na mato.

Míriam correu para casa, e pegou na roupa para o furriel. Passado que foi um pedaço, regressou e foi estar com a prisioneira. Sorridente, passando a mão pela barriga, exclamou:
-Um dia filho, fica aqui mesmo! Furriel não queria só roupa, ele queria fazer conversa giro.

Pami ouviu e a sua mente - confusa- começou a raciocinar, do porquê desta necessidade sexual se revelar tão activa, nestes homens, antes de fazerem a guerra. Havia qualquer coisa estranha... psíquica mesmo, ultrapassando a necessidade física do macho. Seria que atenuaria a excitação, e poderiam utilizar a mente mais racionalmente? Caso estranho este! Mas verídico. Até Malan, um dia lhe confessara sentir uma necessidade intensa de sexo, quando sabia antecipadamente que iria entrar em contacto com o inimigo. Míriam, apressada, saiu novamente, sem dizer mais nada, - reflexo do almejado filho - apenas o sorriso e o brilho nos olhos continuavam.

A seguir ao jantar, como habitualmente, nas noites de saídas, o aquartelamento tomou um movimento esquisito, mas silencioso. Os militares preparavam-se para a guerra. Para Pami confirmar, bastou esperar um pouco e verificar aos poucos os militares concentrarem-se em frente do comando. Uns passos pesados, e o bater de um capacete na coronha de uma espingarda, deram-lhe um arrepio. Era ele, de certeza! Olhou na direcção da audição efectuada, e viu a silhueta pesada do furriel Gonçalo. Sentiu o incómodo do pano ainda húmido, - que tinha colocado entre as pernas-, do esperma do militar. Sentiu dor, revolta, mas... já tinha dúvidas de quem seria a culpa de toda esta situação. Concentrou-se na movimentação dos soldados e esqueceu por momentos a violação.

Os militares como habitualmente em silêncio, saíram pela porta de armas. Para onde iriam? A professora prisioneira foi escorregando até ficar deitada sobre a esteira, na sua cela sem grades. O pensamento voou e percorreu terras do Sul da Guiné. Adormeceu.

Ainda o sol não rompia, foi acordada por correrias e falas em voz alta dos militares, que tinham ficado no Aquartelamento e que se dirigiam rapidamente na direcção do posto de transmissões. Noite escura ainda, ouviam-se lá longe, - para os lados de Cabolol - o som de rebentamentos e de forte tiroteio. Manteve-se acordada, mas não conseguia saber o que se estava a passar. Só quando o sol começou a romper, ouviu comentar as mulheres dos milícias fulas, que a Companhia tinha sido emboscada. Já dia claro se apercebeu que o problema continuava, pois para os lados de Cabolol, continuavam a ouvir-se os rebentamentos, e o matraquear das espingardas e metralhadoras. Em Cufar já tinham aterrado dois helicópteros. Os bombardeiros sobrevoavam Cabolol, e picavam sobre a mata. Pami perdeu o medo, e procurou Míriam para saber o que se passava.
-Não sabe muito, não! Bandido emboscou Companhia, e tem morto e ferido, quanto não sabe!

A enfermaria foi posta em estado de alerta, amanhecia e os helicópteros, começaram a levantar. Os rebentamentos e tiroteio continuavam. Os helicópteros voltaram, e os primeiros feridos chegaram. Foram observados pelo médico, e de imediato foram evacuados para Bissau por duas avionetas que entretanto tinham aterrado. Os helicópteros voltaram a voar, e quatro vezes, fizeram o mesmo percurso. No último regresso, a notícia deslizou por todo o quartel, como napalm sobre o capim. Vinham dois mortos, um deles era o furriel Gonçalo.

Ao ouvir esta notícia, Pami sentiu o corpo todo enregelar-se e, no ventre , sentiu de novo a ejaculação quente do furriel. Confusa, procurava mentalmente justificação para o indecifrável. Tentou aproximar-se, da capela - edifício em construção, promessa, constava-se feita a um padre pelo Leão de Cufar- onde tinham sido colocados os corpos dos dois militares mortos. Não conseguiu, os seus pés colaram-se ao chão, como árvore fortemente enraizada no solo. Mas também não o poderia fazer, só graduados, e pessoal de enfermagem, tinha acesso à inaugurada capela em construção.

Pami teve a oportunidade de ver, com os próprios olhos, alguns homens grandes da Guerra. O comandante de Sector, o Comandante de Batalhão, oficiais de operações, etc... etc... etc.... Pessoal que mandava e planeava a guerra, mas não a fazia. De certeza alguns nem uma bolanha conheciam, quanto mais a mata de Cufar ou Cabolol.

Pami ia nestas experiências, verificando que povos irmãos se matavam sem razão, e tomava consciência também que tudo isto só levava à destruição de tudo e do homem. A solução não seria esta.

Ao fim da manhã, junto ao tarrafe do rio Manterunga, começou a aparecer uma serpente humana. Desta vez os Lassas faziam a entrada pela estrada do cais de Cufar. À medida que iam chegando, dirigiam-se para os seus abrigos, apenas o olhar transmitia a dor do momento. O silêncio imperava em Cufar, apenas na enfermaria e no Comando o movimento era grande.

Pami sentiu alegria por esta lição dada aos Lassas. Mas pouco tempo o seu coração esteve alvoroçado. Aos poucos a mente foi-lhe chamando a realidade. E do outro lado? Como teria sido? Aos ouvidos, chegou-lhe o gemido dos feridos que vira de manhã, e o pensamento voou até aquele dia em Flaque Injã. Uma dúvida assaltou-a repentinamente, e pensou como seria, se a própria família daqueles soldados ali estivesse?

Ficou confusa, e mais uma vez procurou olhando para o céu, o Deus do padre Francelino. Mas a resposta foi a mesma:
-Os homens Pami, os homens! Por amor a eles me pregaram na Cruz!

Retirou-se para o seu refúgio prisão, e deitou-se na velha esteira. A meio da tarde, chorando, apareceu-lhe Míriam. Olharam-se sem dizer palavra. Míriam sentou-se num canto da palhota, e soluçando depois contou:
-Furiel Rafael mandou mim embora! Chamou escarrumba de merrda! E disse qui inda não era pa chorrar carralha! Mim tem medo, Sanhá! Furiel, grande amigo de Gonçalo! Mim tem muito medo! Ele não vai mais olhar direito pa mim! Nem pa preto.


(vii) Retalição dos Lassas, com bombardeamentos de artilharia sobre o Cantanhez



Pami entrou em pânico. Que seria dela agora, se fosse novamente interrogada? Incógnita! Nunca se sabe a reacção dos homens em determinados momentos. A medo ainda perguntou o que tinha acontecido. Soluçando, a lavadeira abriu o livro todo do seu conhecimento e contou:

Iam abrir a estrada de Cobumba. Uma companhia de Catió vinha com as viaturas, para ir abrindo o caminho. E a companhia de Cufar ia com outros, fazer a segurança, na mata de Cabolol, só que o bandido tinha informações sobre a operação. Alguém tinha passado todas as informações ao PAIGC. Que estavam emboscados à espera dos militares, precisamente nas posições que estes iam tomar. A companhia foi emboscada, com metralhadoras pesadas, lança granadas foguetes, morteiro oitenta e dois e armas ligeiras. A companhia tinha sofrido dois mortos, um desaparecido e dezassete feridos, alguns em estado grave. O capitão novo que vinha comandar a companhia, também tinha sido ferido e tinha sido evacuado para o hospital em Bissau.

Sim! Agora a prisioneira, sabia que o instinto do Leão mandaria Telmo e Rafael apertarem com ela. De certeza que chegara o momento, que a iriam espremer, até verter sangue. Sentia a dualidade do ódio, entre campos opostos. Alguém teria de pagar a morte e os feridos dos Lassas. Aqui no Sul desta linda terra, o homem tinha transformado tudo num braseiro, agora seria mais afirmativamente, "olho por olho, dente por dente". Era elevado a cinco o número de mortos que os militares de Cufar tinham sofrido, e isso tinha de ser pago, com juros muito altos. Esgotariam forças, esgotariam munições, transformar-se-iam em monstros, mas os amigos teriam de ser vingados. Sentiu que a hora mais difícil tinha chegado.

Naquele dia, não se atreveu a sair mais da sua palhota prisão. O sol a pique queimava, o silêncio era de facto de morte. A prisioneira, apenas conseguia ver gente, que passava pela inaugurada capela.

Ao fim da tarde, viu e ouviu, o alferes de artilharia pedir a um soldado, para chamar o furriel artilheiro, o qual não demorou a entrar no Comando. Passados poucos momentos, saíram os dois, o furriel dirigiu-se para a messe, da qual saiu pouco depois com o furriel das viaturas. O alferes com uns mapas na mão, dirigiu-se para as duas peças de artilharia que estavam colocadas, na parte que dividia o novo do velho aquartelamento. Pouco tempo depois, um Unimog chegou junto das peças. Os soldados que vinham na viatura - todos de origem negra- onde se encontrava um de alcunha Dakota, desceram e começaram a descarregar caixas de madeira, onde vinham acondicionadas as munições. As peças começaram a ser preparadas. Pensou tratar-se de homenagem aos mortos, mas logo verificou estar errada.

Aquela era a primeira confirmação que os Lassas faziam, a dizer à guerrilha que estavam ali, e que em breve haveria novo encontro. Pelas frestas da sua prisão, foi verificando as manobras das peças, e contando o número de disparos. Pela orientação, verificou: Boxe Bissã, Cabolol Lente, Cabolol Balanta, Cobumba, Caboxanque e Cadique, cada povoação tinha sido contemplada com cinco obuses. Algum acertaria de certeza, a experiência já o tinha demostrado, alguém morreria ou ficaria estropiado.

Em silêncio, os Lassas homenageavam os seus mortos. Míriam nem se aproximava da messe de sargentos, e Meta não procurava o soldado Mamadu Baldé. Havia como que um ritual silencioso, interior, dentro de cada militar.

Dois dias passados, sol mal despontando, o aquartelamento, começou a movimentar-se. As viaturas, em coluna, esperavam por alguém. Os alferes Palmeiro e Telmo desceram completamente equipados, as escadas que davam acesso à varanda do Comando. Saindo da messe os furriéis Taveira, Tambinha, Rafael, de boina preta, e o sargento Miguel, dirigindo-se para os alferes. Os soldados foram chegando. E Pami viu as urnas que tinham vindo numa avioneta, serem carregadas nas viaturas. Iam a caminho de Catió. A prisioneira, dormindo, não tinha dado pela saída ainda manhã escura, pelo grupo de combate do alferes Soeiro, que tinha saído para segurança da estrada para Catió.

Pami viu partir os soldados, e no seu pensamento ficou a imagem, peluda e nua, do furriel Gonçalo. Como seria o resto da viagem até à sua terra Natal? E a chegada? A família! Mais uma vez a prisioneira pensava no problema da guerra. Todo o desenvolvimento desta situação deve trazer grandes questões à humanidade, é impossível que não haja problemas psíquicos, na forma como estes homens vivem e actuam.

(viii) Os Lassas estão cansados da guerra e exibem comportamentos estranhos


No seu âmago sentiu! Tinha a noção perfeita! A sua mente transmitiu aos ouvidos, as palavras trocadas entre Rafael e o seu guarda-costas, cabo Cigarra, junto ao abrigo numa deslocação ao poço. O cabo, braços cruzados, cabeça baixa, voz trémula dissera:
-Porra , meu furriel, tem de falar com o alferes ou com o capitão, nós não podemos mais!

Rafael ripostara:
- Estamos aqui , para quê? Cumprir! Não importa como, mas teremos todos de ser firmes!

Pateticamente, de forma dura e expontânea o cabo ripostou:
-Furriel, eu não aguento mais, passo os dias e as noites a ver correr, pelo meu braço abaixo, os miolos do furriel Gonçalo!
- Que isso seja para ti um motivo de força, e de vontade para venceres tudo isto. Alguém teria de tirar o nosso camarada do inferno em que nos meteram. Isso só te passará quando algum camarada te fizer o mesmo que fizeste ao Gonçalo. Ou... na melhor das hipóteses, quando regressado à tua Paxis Julia [Beja], te atirarem umas pás de terra para o teu sobretudo de madeira. Meu bom amigo, quem pensas que eu sou? Deus!?... Não!

Sorrindo o furriel continuou:
-Sou a mesma merda que tu! Espero aquilo que tu esperas! E também como tu, não quero morrer aqui, mas na nossa Planície. Por isso! Tens de ser mais forte que o teu pensamento, e varreêlo de toda a lama que nos envolve! Força, rapaz, chegaremos lá!

Nem todo o sentido das palavras trocadas entre os militares, Pami compreendeu, mas tinha sido uma conversa dura, e complicada. Isso de certeza.

Continuaram os soldados a sair, voltando uns, outros não. Era sempre certa a saída, incerta seria sempre a chegada. Idêntica era sempre a partida, indefinida forma seria sempre a do regresso.

Pami assistiu à transformação dos homens. Não há causa que não provoque efeito. A saída do Leão marcou aqueles homens. Apesar dos alferes e sargentos, se manterem unidos e firmes, as coisas começam a degradar-se, e a prestação em termos de antiguerrilha, não era a mesma. Que bom seria transmitir, se possível, aquela mensagem aos seus companheiros! Mas impossível mesmo, a sua prisão sem grades, tornara-se cada vez mais expugnável. Perante as situações e a incerteza, era preferível esta situação momentaneamente.

Começou a verificar que os militares bebiam e consumiam cada vez mais álcool. Tomavam-se mais agressivos, por vezes entre eles próprios. Assistiu àquela luta em que dois soldados se socaram, pontapearam e morderam, como os cães raivosos, espumando pela boca e, depois de completamente esgotados, abraçarem-se chorando.

Viu, em dia de imensa chuva, o próprio Bolinhas, completamente molhado, correndo atrás do soldado Lopes, com uma grande faca na mão, e o Lopes com fobia de tudo o que era lâmina, fugindo por todo o aquartelamento, e os soldados todos a aplaudir. Viu o corneteiro rufar tambor, e o furriel Rafael a fazer Circo com uma cabra, sobre o muro da varanda, levantando a pata para fazer continência ao povo. Viu o soldado Nazaré, tronco nu peludo como macaco cão, envergando apenas uns calções, cinturão de lona preso a uma corrente, a fazer momices, ser passeado por outro soldado como se de chimpanzé se tratasse. O sargento Tavares a fazer o pino, para o Punch - cão pastor alemão - saltar por entre as pernas. Parecia este aquartelamento uma casa de pessoas enlouquecidas.

Ao certo, a prisioneira confirmava que as coisas não funcionavam como deviam. A partida do Leão veio agravar a situação de todos aqueles militares, colocando-os como que órfãos, numa casa onde começaram a derrocar as paredes.

A continuação da saída dos soldados era rotina, o regresso indefinido. Alguns iam directamente de helicóptero para o hospital em Bissau. Outros, já sem concerto, esperavam na capela o encaixotamento. Soldados novos apareciam agora com uma farda esverdeada, para fazer as substituições. E assim continuava a guerra, enquanto Pami permanecia na sua casa prisão, agora sem mais inquilinos, pois deixou de haver prisioneiros na generalidade. Segundo o auscultado aos soldados e milícias, os prisioneiros agora, antes de chegar ao aquartelamento, resolviam fugir e pelas matas, bolanhas ou pântanos, se desprendiam os seus espíritos vagueando, procurando o etéreo.


(Continua: Final no próximo episódio)
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >


21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)


23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)



28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)



5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)



10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)



18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)



30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)



16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)


5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)


(2) Resumos dos postes anteriores:

(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malna e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. )Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da torpa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas faça de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)








Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Os Lassas e os cães...

Fotos: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
por Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112


Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726)

Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte VIII - (pp. 61-80) - Os demónios étnicos (2)


(i) O novo prisioneiro, Na Iala, enfermeiro, amigo de Pami, é abatido a tiro, ao tentar fugir de Cufar

Aos poucos Pami fazia já parte do próprio aquartelamento. E por vezes pensando no regresso -se isso acontecesse- tinha receio que não fosse compreendida e nela não acreditassem. Continuava conversando com as suas - agora - amigas Meta e Míriam. Os interrogatórios tinham terminado, e o alferes Telmo e o furriel Rafael, ignorando-a por completo, passavam por ela como uma desconhecida.

Princípio de Novembro [de 1965], aparecem mais prisioneiros no Aquartelamento. Com grande surpresa, Pami reconhece num deles, o seu grande amigo Go Na Iala. Durante a noite, começa a gizar um plano para chegar à fala com ele. Em vão, Na Iala ao romper da manhã tenta a fuga. O guarda dos prisioneiros faz o primeiro tiro e não acerta, o enfermeiro da guerrilha salta a primeira sebe de arame farpado, mas uma rajada, agora certeira, fá-lo ficar - como um Cristo- de braços abertos sobre a segunda barreira. Aqui paga-se caro a ousadia. Quem colaborar, não tem problemas, mas quem tentar qualquer coisa contra, paga com a própria vida. Pami chora enquanto Go Na Iala, é enterrado fora do arame farpado junto à lagoa.

(ii) A procissão das velas

Os dias, eternidade infinita, vão passando. A professora de Flaque Injã vê e começa a conhecer os Lassas no seu quotidiano. Extremamente disciplinados, mas reagem à injustiça. Assiste a uma manifestação de rejeição, que não calculava acontecer. Numa formatura, para receber o pré (remuneração dos militares), recebem conjuntamente duas velas de estearina, dois rolos de papel higiénico e uma caixa de graxa, que lhes é descontado na remuneração, material ao qual não davam utilização. Os soldados tudo receberam sem nenhum protesto.

À noite após o jantar, Pami sentiu movimentação na varanda do Comando e ouviu os comentários dos alferes sobre o que se estava a passar, e reparou então no espectáculo. Silenciosamente, mais de uma centena de militares, em duas filas subiam a estrada do antigo para o novo Aquartelamento. De velas acesas, faziam uma procissão. Passando em silêncio absoluto, em frente do comando, a manifestação de desagrado destroçou, junto à porta de armas de acesso à pista de aviação. No dia seguinte, ao romper da aurora, o Aquartelamento estava lindo. O papel higiénico que tinha sido distribuído, - desenrolado - ornamentava o arame farpado em volta de todo o quartel de Cufar. A brincadeira não foi encarada muito bem pelo comando, mas inteligentemente, o Leão de Cufar ajuizou, e por fim até riu, e mandou repor o dinheiro aos militares, com grande protesto do G3, alcunha com que os soldados tratavam o primeiro sargento da companhia. Pami não compreendia a razão de tal alcunha.


(iii) Os Lassas, a sua estratégia de sedução e os seus cães

Em Dezembro, a professora de Flaque Injã viu nascer a concorrência e sentiu ódio e ciúmes pela senhora branca de óculos que dava aulas, no Aquartelamento, às crianças das populações a Sul. A ex-guerrilheira agora apercebia-se bem de que de facto era difícil combater os Lassas, eles sabiam actuar em toda a linha da contraguerrilha. Não só davam aulas, como forneciam o pequeno-almoço, e o sargento Miguel dava aulas de ginástica, a uma centena de miúdos, oriundos das tabancas controladas pelo exército. Aos poucos Pami foi reconhecendo que o trabalho não seria mau, pois aqueles miúdos, mais cedo ou mais tarde, iriam engordar as fileiras da guerrilha, e assim seria melhor, irem com determinados conhecimentos, depois seria só uma questão de trabalho político.

Meta e Míriam continuavam a falar com a prisioneira, e esta tomava outro à vontade. Só não compreendia é que ninguém dos militares lhe ligasse qualquer atenção. Apenas um ou outro soldado se ia tentando aproximar, com o intuito de receber alguns favores de sexo, mas o medo da sua condição de prisioneira não os deixava chegar muito perto. Interessante, achava aquele furriel de barbas e muito peludo, que todos os dias passava para o seu abrigo com uma lata de comida para o seu cão que o seguia sempre pachorrentamente. Engraçado! Aquele furriel de nome Gonçalo, falando sempre com o seu cão cufar. Nas saídas para operações, era ele e mais dois - um alferes e um soldado - os únicos que usavam capacete. Já tinha ouvido uma vez comentar, um outro furriel, de nome Gama - que falava com um sotaque diferente dos outros -, rir e dizer:
- Porque é que andas com essa merda sempre nos cornos, carago? Fritas os miolos quando abre o sol!


(iv) Bombas sobre o Cantanhez

Aproxima-se o final do ano de 1965, por sobre o Cantanhez, de noite, aparecem aviões a lançarem toneladas de bombas. É um espectáculo pirotécnico extraordinário, com as balas tracejantes das antiaéreas do PAIGC a tentarem atingir os bombardeiros. A professora fica excitada, com a ilusão de que alguma antiaérea atingisse algum avião. Os militares ficam radiantes, observando o espectáculo, e deliram, dando gritos, quando ouvem os estrondos dos rebentamentos que, mesmo à distância, fazem tremer os abrigos do aquartelamento. Em qualquer lado, as bombas lançadas destruiriam tudo. Mas nas matas do Cantanhez não vai ser assim.

A seguir à passagem do ano, os Lassas saem mais uma vez, durante o dia, as viaturas transportam os militares para Catió. Outros vieram para fazer segurança ao aquartelamento. Dois dias passaram até ao regresso. Soube que tinham andado por Darsalame.

(v) O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau

Míriam apareceu-lhe chorando. O furriel Rafael tinha sido evacuado para o hospital em Bissau, mas ninguém lhe explicava o porquê.

Míriam aproxima-se mais de Pami, e esta vai fomentando mais esse convívio, de tal forma que a lavadeira chega a convidar a prisioneira a acompanhá-la até ao quarto de Rafael, de quem tratava a roupa. O quarto era limpo pelo atrevido do Amadu, que aproveitava a não estadia do Rafael, para ir com Meta para cima da cama do furriel. Míriam bem barafustava, mas não resultava nada.

Pami ficou maravilhada. Entre as camas, havia uns pequenos móveis onde se viam algumas fotografias de mulheres brancas, mas que deveriam ser muito jovens ainda. Por debaixo da cama, grandes malas, onde segundo a lavadeira, eram guardadas as cartas que recebiam da família para além da roupa não militar. A um canto estavam encostadas as armas, G3 e respectivas cartucheiras, e a célebre pistola que Rafael tinha utilizado no interrogatório de Pami. Verificando as fotografias que se encontravam sobre o móvel que devia ser pertença de Rafael, a prisioneira solicitou a Míriam se podia ver, ao que esta respondeu:
- Vê mas cá estraga, e cá suja! Furiel mata mim!

Pami pegou num monte de fotografias. A maioria eram fotos do furriel no quartel, havia de outras pessoas, mas duas fotos chamaram-lhe a atenção: Uma era o furriel, com uma farda e um lenço enrolado os pescoço e na cabeça um chapéu engraçado. Na foto rodeando o furriel, havia outros rapazes fardados da mesma maneira, e algumas crianças brancas também fardadas, mas de boina na cabeça. A outra foto era de uma jovem branca muito linda, com uns olhos negros muito grandes toda vestida de preto. Disfarçadamente, Pami virou a fotografia e leu: “Para o meu adorável maridinho, com milhões de beijinhos da sua Mimê”. Virou-se para Míriam e perguntou quem era aquela mulher.
- Chi!... Tu cá fala que viu isso! Esse aí é bajuda de furiel! Ele gosta desse. Mas tem outro que gosta mais, e dá cabo de cabeça de furiel. Mas esse bajuda não quer ele! Esse que está na torgafia chama MiMê. O outro ele tem nome de ele no boina da cabeça.
-Jube!

Tirou a boina preta que estava pendurada na parede e, virando-a, mostrou a parte de dentro, onde no forro amarelo já um pouco surrado, estava inscrito em maiúsculas: TÂNIA. Pami mostrou desconhecer, e perguntou a Miriam:
-Como é o nome dela?
- Mim não sabe bem, furiel diz Tanía ou?... Eu não sabe bem! Mas esse é mesmo bajuda qui tá no cabeça dele.

(v) A porfessora Pami fica triste ao constatar que nem os Lassas saber ler e escrever


Pami começava a ficar maravilhada ao saber estas coisas, ao ponto de esquecer que era prisioneira. Mas, agora, também não sabia bem que espécie de prisioneira era, que podia andar por todo o lado e ninguém lhe ligava. Dava a impressão de que já fazia parte daquela comunidade.

Não poderia escrever, a forma de estar e de viver dos militares, nem desenhar os abrigos, e sistemas de defesa do aquartelamento. Restava-lhe, para além da sua capacidade de observação, a excelente memória visual. Na sua cabeça ia sendo armazenada toda uma gama de informações, que seria um manancial para a guerrilha. Pami estava dona e senhora de toda a vida, e procedimentos, dentro do recinto militar. Inteligentemente, chegou até a estudar certos militares, e o seu comportamento. Chegando à conclusão que a maioria deles não sabia até porque estavam ali. Apercebendo-se que alguns consideravam a sua estadia ali como castigo.

Começou a observar a própria reacção dos homens no quotidiano, e verificou a grande diferença, em termos culturais e de instrução, que existia entre muitos deles. Ficou triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler a outro, uma carta dos pais, que concerteza também por eles não teria sido escrita. Pami regrediu um pouco aos tempos do padre Francelino, e agora sim compreendia muitas mensagens dele - anacrónica situação dos homens que se matam sem saber o porquê - a crua realidade da estupidez humana.

Pami viu! Sentiu, a verdade humana. A única diferença em muitas situações seria apenas a cor da pele. A dor, os sentimentos, o amor, a forma de olhar para a Natureza, era concerteza idêntica entre os que se matavam para não morrer. Os ideais eram cota mínima nesta montanha de lama.

(vi) Dois pobres diabos, tarados sexuais, Guita e Trinta, que estragam a fotografia ao Leão de Cufar


A professora - prisioneira livre - extasiava ao começar a conhecer os homens, através do que via, e ouvia. Míriam tudo lhe contava. Conhecia e sabia coisas que a maravilhavam na sua descoberta dos Lassas. E conheceu as histórias do soldado Guito, analfabeto, sempre de calções rotos, sem cuecas com o sexo à mostra. As incursões que fazia em companhia do soldado Trinta, emboscando as mulheres das tabancas - novas ou velhas - para delas se servirem sexualmente. Umas vezes voluntariamente, por permuta de um pão ou dez pesos, outras por violação, servindo-se um enquanto o outro segurava e amordaçava a vítima. Taras! Sim porque teve conhecimento, e ouvia outros soldados, gozarem o pobre diabo do soldado Guito, quando este pedia para lhe escreverem uma carta, para sua madrinha de guerra. Era matemática a pergunta inicial, para abertura da escrita:
- Então o que queres mandar para o Paneleiro?

A madrinha de guerra do soldado era de facto um homossexual. Mas estes acontecimentos, de violações, e negócios de sexo, traziam por vezes problemas, de uma certa gravidade, dado estragarem o trabalho psicossocial. Por essa razão, teve o Leão de Cufar um dia de mandar formar a Companhia, para uma pobre velha, identificar os soldados Guito e Trinta, porque se tinham servido dela, e não tinham pago os dez pesos (escudos) prometidos, para satisfação da sua necessidade sexual.

Histórias interessantes, outras menos, iam preenchendo o tempo da prisioneira. Ouviu um dia o Ti Manel, -alcunha do cabo do furriel Rafael - contar a sua vida, até ir para a tropa. Com apenas nove anos, falecera-lhe o pai e ele teve de começar a trabalhar para poder ajudar sua mãe na sustentação da casa e criação dos irmãos mais novos. Coisa triste!

Muitas! Muitas coisas ficou a saber sobre todos estes soldados. Desde o internamento em colégio de meninos bem do furriel Taveira, do Rafael não ter sido padre por causa da bajuda, cujo nome estava inscrito na boina como dizia Míriam. Dos alferes e seus namoros, com tiros de bala simulada, por emboscada, efectuada pelos furriéis Tambinha e Mamadu. O Gonçalo, que deixou a alimentação dos soldados, e foi lutar para o mato por desentendimento com o G3. O enfermeiro, que mandara vir para aquele ambiente de guerra a mulher e suas filhas de tenra idade.

(vii) Homens com sérios problemas de saúde

Da porta da sua prisão, nas saídas até ao poço, para lavar a roupa, nas voltas entre a casa dos milícias e a messe de sargentos com as suas companheiras fulas, Pami ia ouvindo e gravando as histórias dos militares, algumas tão tristes que dariam para um romance, outras tão tontas que dariam para uma comédia. Também não tinham a vida muito fácil aqueles homens. E recordava o Velhinha -alcunha do furriel Silvestre - e os seus problemas de saúde intestinais, poderia ter-se ficado naquelas terras se não fora mandado para Bissau. E parece que fora agora, que ouvira o furriel Gasolinas, Alberto de nome, comentar com o furriel Tomé das transmissões:
- É, pá, se o Velhinha não é evacuado, o gajo lerpa! Oh Tomé, vê lá que os soldados dizem que o gajo arranjou uma lata, e passa as noites na cama dentro do mosquiteiro, não a dormir, mas a cagar para a lata, e a desfazer-se em diarreia.
- Mas isso deve ser terrível, deve ser um fedor naquele abrigo! - tinha ripostado o Tomé.

(ix) E se a Guiné se tornasse independente ? Quem é que mandaria ? Os caboverdianos, pois claro

A sensibilidade de Pami ia sendo tocada por estes e outros casos. Mas, mais uma conversa dos frequentadores do varandim deixaram-na uma tarde estupefacta. Um grupo em que sobressaía o Leão de Cufar, abertamente e sem rodeios, discutiam acaloradamente, sobre os povos da Guiné, e não só. A conversa tinha começado por um alferes, que atirou para o Leão:
- Ó meu capitão, como é que será, se nós perdermos a guerra, ou se por hipótese Portugal der a independência a estes gajos?
- É, pá, você está louco ou quê? Primeiro, isto ainda está numa fase em que nós podemos perfeitamente ganhar a guerra, aliás temos mesmo de a ganhar, e sobre isso não há dúvidas! Ou tem?
- Não... Não!
- Ainda bem! O problema maior que se põe hoje, é a questão da ajuda dos países comunistas ao PAIGC, e as fronteiras abertas que o partido tem. Em contrapartida, do nosso lado, temos a Organização de Unidade Africana a reconhecer o PAIGC como legítimo representante do Povo da Guiné-Bissau. Os EUA estão-se nas encolhas, aliás com graves problemas no Vietname, e a ONU está em cima de nós!

O alferes interrompeu e disse:
- Sim, isso é o problema político-militar, que possivelmente pode ter influências a nível da guerrilha, como da nossa parte. Eu até gostava de ver os americanos a combater aqui com as nossas condições!?

Resposta imediata do alferes Azeredo:
- O quê? Os américas aqui a dormir nos buracos!? Carago, não estavam cá um dia sequer.

O alferes que tinha iniciado a pergunta, voltou à carga.
- Mas a questão que eu ponho é a do entendimento entre tantas raças!? Já viu! Os Cabo-verdianos, nunca se sabe de que lado estão!
- Sim ... Sim!

Retorquiu o capitão continuando:
- O problema é grave, não há dúvidas!
- Vejamos: Os quadros do PAIGC, no exterior, são quase todos Cabo-verdianos que estudaram na Metrópole, controlam o aparelho do partido e a guerrilha, formada na maioria por Balantas, Nalus e Papéis, com quadros na generalidade também seus, com raras excepções, como é o caso aqui do nosso vizinho - e amigo - Nino que é Papel.
- Sim, porque a nível de europeus, na generalidade comerciantes ou funcionários, o seu número é muito reduzido.

Pronunciou-se o alferes Soeiro, introduzindo-se na conversa.
- E existe outro problema!...

Continuou:
- O qual, me parece até bastante grave. É que os cabo-verdianos, influenciados por um nível social mais elevado, e consequente melhor nível de vida que os autóctones, fizeram criar um certo ressentimento nestes, ao criarem um certo complexo de superioridade.
- Boa! Sim, senhor, diz bem! Complexo de superioridade! - atalhou o Leão, e dando um olhar sorridente a todo o grupo continuou:
- Meus amigos! É a diferença que nós fazemos dos outros!

Fez uma pausa, e voltando a olhar para o grupo, agora com um ar mais sério disse:
- A sorte! Também ela conta, e nos tem ajudado. Mas se não fora de facto o conhecimento real da situação em que estamos, o sabermos como a tratar, seria muito complicado. Meus amigos, esta companhia vale pela sabedoria e cultura que todos vocês têm. Se não fora isso onde estaríamos? No local onde estamos, se não tivéssemos actuado, com inteligência e saber, já nos tinham enrabado. Desculpem a expressão.

(x) Uma douta incursão do Alferes Palmeiro pela História e Etnografia da Guiné


- Já que entrámos neste assunto, podemos aprofundar um pouco mais sobre estas terras da Guiné. É claro, que não vale a pena ir até às Descobertas e relembrar, a dobragem do Cabo Bojador em 1434, o Cabo Branco, o Cabo Verde a chegada das nossas caravelas em 1446 até ao rio Casamança e no mesmo ano Cadamosto e Diogo Gomes, a entrarem nos grandes rios da actual Província da Guiné. Mas isto é assunto, que todos estudaram da nossa História e não vale a pena estar a chatear. No entanto eu pedia ao alferes Palmeiro, que falasse um pouco sobre esta terra, mas em termos mais actuais.

O alferes sorriu e disse:
- É, pá! Meu capitão, pá! Quem anda, pá, com os cadernos, pá, sempre a escrevinhar e a tirar apontamentos, pá, é o Mamadu, pá! Mas está bem, pá, eu vou dizer qualquer coisa, pá!

E o alferes Palmeiro sempre com o seu , começou a desenrolar os seus conhecimentos, sobre terras e gentes da Guiné.
- Esta terra é formada, por duas zonas distintas. O litoral, com costas baixas e enorme quantidade de rios de maré, cujos braços penetram profundamente pela terra dentro, inundando um terço do território na época das chuvas. O interior é plano na região de Bafatá, com leves colinas, na região do Boé. De clima tropical, muito húmido, tem duas estações distintamente bem marcadas: a estação seca de meados de Novembro até meados de Maio, e que é a menos quente. E a mais quente estação das chuvas, que vai de meados de Maio até meados de Novembro. Esta separação é conotada com o treze de Maio, em que se diz que nesse dia chove na Guiné. Crendice do povo, presumo. Mas o certo é que no primeiro treze de Maio que aqui passámos - não sei se recordam - chuviscou! É assim, o acontecimento e a tradição, são elementos fortes, que fazem a história.

(xi) Os Balantas

E continuou:
- Caracterizada pela grande profusão de etnias. A mais representativa é a Balanta, agricultores por natureza e cuja origem se presume seja Etíope. A sua organização social é quase nula, resumindo-se praticamente à Tabanca, havendo no entanto agora, alguma evolução no reconhecimento - mas com certas restrições - dos régulos indicados pela Administração Portuguesa. Sendo a etnia menos influenciável pela Administração Portuguesa, é a mais aderente à guerrilha e independentismo. Culturalmente tem um nível um pouco baixo. Nas zonas consideradas libertadas, existe um grande esforço de alfabetização. Crente na transmigração da alma, acredita no Irã, e todas as suas possíveis desgraças são atribuídas à feitiçaria. Quando da morte faz as cerimónias do Choro para as quais guarda o melhor gado do qual é criador. Com óptima constituição física, tem grande força de vontade. Grande trabalhador, dedica-se principalmente à orizicultura, dado ser o arroz a fonte principal da sua alimentação, cuja confecção é extremamente condimentada com malagueta (piripiri). Como excitante, bebe aguardente de cana e masca tabaco. Na sua organização matrimonial, pratica a poligamia, é fácil acontecer o adultério, e o casamento (negócio) é efectuado com o pai da mulher. Admite a prova testemunhal, mas é extremamente perito no furto, que pratica quase como um desporto, sem sentir ter praticado um acto criminoso. Inimigo figadal do Mandinga e Fula, aos quais guarda rancor, é no entanto grande amigo do Papel.

(xii) Os Fulas

E prosseguiu o Alferes Palmeiro:
- Os Fulas, nómadas vindos do Oriente, aqui se fixaram bem como nos países vizinhos. Tem uma organização social um pouco desenvolvida. Mantém o régulo a autoridade absoluta, não deixa porém de ser assistido pelo seu Conselho quando assim o entende. Embora convertido ao Islamismo, tem no entanto, regressões ao feiticismo. Nas crianças, o rapaz é circuncidado (ablação da membrana do perpucio) e a rapariga é excisada (ablação do clitóris). No entanto não são sujeitas a instrução religiosa, profissional ou escolar. De estatura média, sendo a mulher de feições perfeitas, a sua origem é nómada. O homem é responsável pelo sustento da família, com a ajuda da mulher nos trabalhos agrícolas, a qual se dedica ao cultivo da mancarra, arroz, tratando também dos laranjais e bananais. É pescador com linha, por envenenamento de águas ou utilizando uma espécie de balaio grande, feito de rede. A fidelidade às autoridades é canina. Identificando-se com indivíduos da mesma raça que vivem do outro lado da fronteira, tem o convencimento de superioridade em relação às outras raças guineenses. A alimentação é feita à base de arroz, carne e fruta, não consumindo carne de porco nem álcool, por motivos religiosos. A mulher, prostitui-se muito facilmente. Ainda sobre a etnia Fula, vale a pena salientar os Futa-Fulas, que, são o supersumo das diferentes castas de Fulas. Embora tenha as características genéricas da etnia, apresenta algumas específicas: a condição social, é determinada por regras seguidas em relação a cada indivíduo, derivando do nível social, moral e de dignidade em que vive, considerando-se superior às outras castas de Fulas. O poder espiritual e temporal, é concentrado na dignidade eclesiástica (Cherno). Arguto e inteligente, pratica o comércio ambulante, dedicando-se também à criação de gado e agricultura. Pratica a poligamia, segundo as regras do Corão, sendo bom pai e marido, não dando à mulher trabalhos violentos. O adultério, é considerada falta muito grave, no entanto aceita a prostituição. De estatura elevada, pratica a luta como desporto.

(xiii) Os Mandingas

Discorrendo depois sobre os Mandingas, disse o Palmeiro:
- Os Mandingas, ocupadores desta região, durante séculos -etnia grande fornecedora dos barcos negreiros que aqui procuravam escravos- dedicados à agricultura e criação de gado, praticam também o comércio. O poder judicial é representado pelo régulo. Sendo o homem grande (idoso) muito respeitado, usa barba, que conserva com muita estima. Cultiva preceitos morais, que o elevam acima de outras raças, mantém-se no entanto ao nível dos fulas com quem tem um antagonismo ancestral. Mantém escolas para crianças, e os mais cultos falam e escrevem com caracteres árabes. Aceita o regime de castas: nobres, tecelões, ferreiros, sapateiros e outras profissões. Pratica o islamismo, por isso não consome álcool nem carne de porco. No entanto apresenta por vezes casos de regressão ao feiticismo. Grande respeitador dos velhos, considera os loucos como tendo contactos com os seres sobrenaturais, ou devedores de promessas ao Iran apesar de islamizado. Apreciador de música, inteligente e observador. De constituição média, é aguerrido. Com tendências para o sedentarismo, dedica-se ao cultivo do arroz, mancarra, feijão, milho e tubérculos, criando vacas, ovinos. e caprinos. Contrata o casamento com o pai da noiva, desde tenra idade. Pratica a poligamia e admite a prostituição, vivendo a mulher em palhotas separada dos homens. A circuncisão nos homens e a excisão do clitóris na mulher, também é praticada.

(xiv) Os Nalus e os Beafadas

E continuando:
- Os Nalus são um povo muito individualista, acreditando, unicamente na autoridade do chefe de família, evitando ao máximo manter relações com outras raças, à excepção do Sosso, com quem mantém algum contacto. É trabalhador, alimenta-se de arroz, carne e peixe, estatura média e pouca robustez. Os Beafadas, estão muito próximo dos Mandingas, de quem sofrem forte influência. Está islamizado, usando no entanto amuletos. Pratica a poligamia, é indolente por natureza, embora seja robusto.

(xv) Os Bijagós

Sobre os habitantes do arquipélago dos Bijagós, o nosso alferes sentenciou o seguinte:
- Os Bijagós, provavelmente os primeiros habitantes da Guiné, que empurrados pelos outros povos invasores, se refugiaram no arquipélago do mesmo nome, praticam a agricultura e a pesca, na qual são exímios. Embora pratiquem o matriarcado, politicamente, são os homens que comandam. Considera animais sagrados: o crocodilo a serpente e o hipopótamo. O "meurasse" é a iniciação da vida que marca o termo da irresponsabilidade, que corresponde ao "fanado" das outras raças, que por eles não é praticado. Após esta cerimónia, entra na aprendizagem dos segredos dos antídotos, contra a mordedura das serpentes, e na forma de combater os malefícios dos feiticeiros. Sendo para ele a morte um incidente insignificante, é considerada acto de bruxaria. Venera a mulher, o cão e o boi. Considera que o cão é uma ligação entre as divindades e o homem. São exímios curandeiros. A mulher, é desflorada com um objecto de madeira, e é ela quem tem o direito de escolher e repudiar o homem em qualquer altura. Socialmente, a sua vida assenta numa base comunal. Belicoso, tímido e desconfiado, é um óptimo marinheiro. É grande fumador de tabaco, e ingere sem moderação o vinho de palma. Na alimentação utiliza a carne dos animais que abate nas cerimónias religiosas, marisco, peixe, arroz e frutos silvestres.

(xvi) Os Papéis e os Manjacos

Palmeiro não poderia deixar de falar dos Papéis e dos Manjacos:
- Nos Papéis a sucessão é orientada segundo o sistema matrilinear. É arreigado ao feiticismo e crê no Irã, consagrando-lhe os poilões e bolobas da sua terra. A circuncisão é considerada uma cerimónia muito importante na vida do homem, sendo desprezados os que não a efectuam. Bastante desconfiado, e pouco franco, torna-se por isso pouco expansivo. O casamento é contratado sem ouvir a rapariga, o rapaz trabalha por conta do pai da prometida, admite porém a dissolução do casamento. Polígamo por natureza, adora ter muitos filhos, tendo tantas mulheres, consoante as suas posses lho permitam. De elevada estatura e compleição física robusta, dedica-se à agricultura, e aos trabalhos pesados nos centros urbanos. Alimenta-se de arroz, come carne dos animais abatidos nas suas cerimónias, incluindo cães. Adora beber leite azedo. Quanto aos Manjaco vivem em regime familiar de patriarcado, com elevada concepção dos princípios da justiça e morais. Considera o roubo um acto abominável. É polígamo, porém respeita o casamento. Animista, acredita no Irã, o qual representa por qualquer madeiro. Dedica-se à agricultura e à pesca, com alguma tendência para o comércio. Como agricultor, dedica-se ao cultivo do arroz, batata-doce, mancarra e mandioca, é exímio no tratamento de pomares de banana, laranja, caju e papaia. Dedicado à criação de animais, cria de tudo um pouco: vacas, porcos, cabras, galinhas, gatos e cães. Na pesca dedica-se ao peixe miúdo, bem como a toda a espécie de marisco. De estatura média mas bem constituído.

(xvii) Outros povos da Guiné, dos Brames aos Futa-fulas

A conversa já ia longa, mas Palmeiro ainda quis falar de outras etnias minoritárias:
- Os Brames ou Mancanhas, descendentes do cruzamento entre mandingas e fulas, têm grandes afinidades com estes. Considera privilégio de família a função sacerdotal, e venera o Iran. Pratica a poligamia, casando as mulheres bastante novas. De estatura regular, a sua alimentação é feita à base de produtos das suas próprias culturas: sorgo e feijão. É cultivador da mancarra, com intuitos comerciais. Dá pouco valor e importância às ofensas corporais, violação e adultério, bem como ao estupro. Para além destas etnias, ainda podemos enumerar a existência de outras várias, em minoria, tais como, os Felupes, - consta-se que em tempos teriam praticado a antropofagia - Baiotes, Cassangas, Banhuntos, Pateas, Manás etc., etc. De registar ainda, as várias castas dos Fulas, tais como Fula-Forro, Fula-Preto e Futa-Fula.

E à laia de conclusão:
-No litoral, vivem essencialmente os orizicultores, na zona de bolanhas, terrenos extremamente alagados, onde habitam em tabancas dispersas, Balantas, Nalus, Manjacos, Papéis, Bijagós e outros em menor número. Para além das linhas de maré, dominam os Fulas e Mandingas que, vivem em povoamentos mais concentrados, praticam a agricultura de rotação, e dedicam-se à criação de gado. Em tempos idos, cada povo vivia na sua própria região, não permitindo a entrada a outros grupos. Com a nossa ocupação, deu-se início a um certo intercâmbio entre as diversas etnias, umas mais abertas outras mais fechadas naturalmente, e presentemente, embora em pequena escala, já se nota, uma certa miscegenação. Isto resulta, que actualmente podemos afirmar que culturalmente existe uma certa afinidade entre os diferentes grupos. Os arabizados ou islamizados como queiramos, Fulas e Mandingas, e as restantes etnias animistas. Aparecendo umas manchas de católicos, mas não significativa, influenciada pelas Missões e cultura Cabo-verdiana. As grandes diferenças nos dois grandes grupos majoritários, reflectem-se na língua, embora a oficial seja a portuguesa. Os animistas expressam-se em idiomas de flexão vocabular prefixial, e os islamizados de características linguísticas sudanesa em idiomas de flexão vocabular sufixial. Revelando-se nestes últimos, as indumentárias aparatosas, demonstrando que quanto maior é o esmero, maior a intensidade do culto do Corão e cânones muçulmanos. Estes últimos, ocupantes como disse, das zonas mais interiores, dedicam-se essencialmente à cultura do sorgo, milho e mancarra.
- Voltando um pouco ao anterior - acrescentou o Palmeiro - , de todos os grupos étnicos em diversos aspectos, o dos Bijagós é dos mais curiosos. Vivendo num sistema matriarcal, a mulher é detentora de privilégios especiais: é a ela que pertence a iniciativa do casamento, sendo desflorada por um objecto de madeira, -como há pouco disse-, quando atinge determinada idade. Tem dois tipos de matrimónio: o primeiro quando do período da puberdade, o qual podemos classificar como uma forma de mancebia, e o definitivo que é na idade adulta. Em qualquer destas situações, é sempre a mulher que escolhe o parceiro para viver, e que também larga quando quer.
- É, pá! Boa tirada, pá! Estás licenciado em antropologia e no pá pá! Digam lá que o Palmeiro não sabe disto? - exclamou risonho e mordaz o capitão. Mas ouve logo malta que se pronunciou, mandando as suas bocas.
- Oh Taveira, olha tu Bijagó, carago? As mulheres matavam-se todas por tua causa, carago!- pronunciou o tripeiro Gama. O alferes Azeredo, avançou:
- Oh Palmeiro, como é que é essa do desfloramento? Explica lá como é.
- É, pá, por hoje já dei a lição, outro que siga! Olha! Tu, pá, da desfloração, pergunta ao Rafael, que ele tem tudo escrito nos cadernos dele, pá!
- Sim... Sim! Podemos mudar de tema, e falar um pouco da guerrilha se não se importam! Analisar o porquê dos Balantas serem os mais influenciáveis pela subversão - pronunciou o capitão, mas agora num tom mais sério.

(xvii) Pami ouviu pela pimeira vez coisas novas sobre os povos da Guiné e a sua posição face à luta de libertação

Pami, calmamente sentada num banco - pedaço de mafumeira trabalhada- ia seguindo esta conversa - conferência - com imensa preocupação, mas intrigada com a forma e os conhecimentos, que estes indivíduos tinham sobre este pequeno alagado terreno, que era a Guiné.

Pasmou! Ouvindo o debate dos militares, analisando as características de cada etnia, mas de uma forma, que demonstrava um entendimento perfeito de tudo quanto os rodeava. A prisioneira ouviu tudo o que queria, e não. E enriqueceu o seu saber, aprendendo coisas para ela, até ali, completamente desconhecidas. A varanda, parecia agora já, uma grande conferência de antropologia, e não só. Todos os oficiais e sargentos dos Lassas praticamente ali estavam, lançando à vez para o debate, os seus conhecimentos, adquiridos e vividos, sobre as raças da Guiné. Continuando, enquanto Pami ia registando mentalmente o debate.

Seguindo o desafio do Leão de Cufar, o furriel Gonçalo, um pouco polémico, lançou para a fogueira:
- E os fulas? Que seria se não estivessem do nosso lado?
- Isso é verdade! - Pronunciaram-se várias vozes em uníssono. Foi então que o Leão atalhou:
- Esse é um assunto, que merece de facto atenção. Mas que também vale a pena dissecar. Vejamos: Aquando do começo da revolução, a maioria Balanta e Nalu aqui do nosso sector fugiu para as matas, onde foram criadas zonas, consideradas libertadas. A população Fula, ao contrário, foi obrigada a abandonar as suas moranças e tabancas, e a reagruparem-se em Catió, onde foi organizada em autodefesa, nas tabancas de Catió-Fula e Priame, as quais conhecemos perfeitamente, principalmente a última. Nessa altura, o nosso amigo e comandante da Companhia de Milícia n.º 13, João Bacar Jaló, era cipaio e oficial de diligências, homem de confiança do então Administrador. Foi ele, encarregue de reunir os homens válidos e fiéis, que foram armados, e ficaram a constituir a primeira Milícia Nativa na Província, que, às ordens do Administrador defenderam Catió dos bandos inimigos armados, que actuavam na região. Mais tarde, quando Catió foi guarnecida de tropas, passaram a prestar colaboração nas operações militares. Formando-se depois, como eu disse, a Companhia de Milícia, comandada pelo João Bacar, agora alferes de segunda linha, e que vocês tão bem conhecem pela grande ajuda, que ele e os seus homens nos têm prestado.

Apresentaram-se posteriormente muitos elementos Balantas. No entanto a situação, torna-se complicada, porque, esta população tem muitos familiares na clandestinidade, com os quais mantêm estreitas ligações, pelo que não se lhes pode conceder confiança absoluta. São raras excepções as do Alfa e Tui. Posso afirmar com toda a verdade, que hoje, grande parte de nós lhe está devendo a vida. Basta recordarem-se da emboscada que nos estava preparada, no cais de Caboxanque.

E continuou, agora com o pessoal todo em silêncio:
- Do mato e das regiões mais longínquas, vão comerciar a Catió inúmeros nativos, na generalidade mulheres, que trazem arroz e levam artigos que adquirem por troca nas casas de comércio. Pagam os impostos na Administração, e regressam às suas tabancas com roupas, mosquiteiros, papel, aguardente de cana, tabaco. Enfim com tudo o que lhe faz falta. Assim é o inimigo totalmente abastecido com os artigos de que necessita. É não tenhamos dúvidas, um problema grave! Podemos confirmar, com aquilo que aconteceu com o chefe de Cantone! Não comprou ele material que nós mandámos, como sendo para o PAIGC!?

Entretanto, o tenente médico interrompe o debate e atira para o ar um desafio à assembleia:
- E se bebessemos um Whisky! Ho, sr. capitão?

O Leão sorriu e disparou:
- Por causa do mosquito, não é doutor? Como queiram, por hoje também já chega, rapaziada vamos a uma partidinha de badmington! O.K.? - E virando-se para o médico diz-lhe com gozo:
- A partir de amanhã, doutor, já não tem problemas, já vai ter o seu companheiro!
- Desculpe, capitão, mas não compreendi!
- Digo eu que amanhã já vai ter companhia para matar o mosquito, se não houver alterações, o furriel Rafael deve chegar para acabar a convalescença aqui!
- Porreiro! Porreiro! - Retorquiu o médico, enquanto a assembleia se desfazia, e esfregando as mãos.

Pami ficou a saber que Rafael regressava do hospital. Porquê?... Míriam não lhe teria dito? Ou não saberia? O melhor seria experimentar sem ela se aperceber.

(Continua)

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Notas de L.G.:

1) Vd. posts anteriores desta série:
21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)
28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)
5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)
10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)
18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)
30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)
16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

(2) Resumos dos posts anteriores:

(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhês. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malna e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. )Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da torpa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).
Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas faça de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...
Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?