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quinta-feira, 7 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20949: (De)Caras (159): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VIII: O último comerciante branco de Pirada?... Depoimento de Frutuoso Ferreira, ex-1º cabo at cav, 3ª C/BCAV 8323 (set 1973/ set 1974)


Frutuoso Ferreira, em 2009, ostentando na mão esquerda um exemplar da história da sua unidade, o BCAV 8323 (Pirada, set 1973/set 1974). Fonte: cortesia de Jornal das Caldas


Guiné > Zona leste > Região de Gabu > Setor L6 > Pirada > BCAV 8323 (1973/74) > 14 de Fevereiro de 1974, ten cor cav, cmdt do batalhão  Jorge Matias, à esquerda, de perfil, e ao centro, em primeiro plano, o célebre comerciante Mário Soares, até então uma verdadeira "eminência parda".  o seu papel de ligação das NT com o PAIGC, via autoridades senegaleses, ainda é pouco conhecido. (*)

O ten cor cav Jorge [Eduardo Rodrigues y Tenório Correia] Matias, cmdt do BCAV 8323/73, que estava sediado em Pirada (, o comando, a CCS e a 3ª C/BCAV 8323/73) faz aqui uma homenagem, emocionada aos bravos de Copá, o 4º pelotão, da 1ª C/BCAV 8323/73, comandado pelo alf mil at cav Manuel Joaquim Brás, e a que pertencia o nosso grã-tabanqueiro António Rodrigues (e que foi reforçada por uma secção do 1º pelotão, comandada pelo fur mil Carlos Eugénio A. P. Silva).(**)

Foto (e legenda): © António Rodrigues. (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Percorrendo a Net fui encontrar o depoimento de uma camarada da minha terra, Lourinhã, que esteve no TO da Guiné durante um ano (Set 73/Set 74) e que pertenceu ao BCAV 8323/73- Seu nome: Frutuoso João Ferreira. 

Esse depoimento está publicado no sítio do Jornal das Caldas (edição em linha),  um semanário da região do Oeste, que tem (ou tinha, em 2009), como diretor Jaime Costa e chefe de redação Francisco Gomes. Mantém também uma página no Facebook.

Por se revelar de grande interesse para os nossos camaradas que estiveram no leste da Guiné, no final da guerra, já tomámos em tempos a liberdade de reproduzir aqui, no nosso blogue, com a devida vénia, um excerto extenso do artigo, baseado numa longa entrevista. (***)

Na altura, tivemos ocasião de dar os parabéns ao autor do artigo, o Francisco Gomes  e ao seu jornal, bem como um alfabravo ao entrevistado, oosso camarada Frutuoso (e, no meu caso, conterrâneo). Bem gostaria que ele aceitasse, no caso de nos ler, o nosso convite para se juntar à nossa Tabanca Grande e de ter acesso à história da unidade.

Faltam-nos, infelizmente, no nosso blogue, mais depoimentos dos "últimos guerreiros do império". Por uma razão ou outra (pudor, medo de censura social, falta de tempo, de disponibilidade, de motivação, de oportunidade, etc.), muitos dos nossos camaradas que chegaram à Guiné nos último meses que antecederam o fim da guerra e o regresso a casa, ainda não passaram para o papel (ou  para o ecrã do computador) as suas memórias desse tempo, e os sentimentos contraditórios que muitos terão experimentado aquando da retração do nosso dispositivo militar, da "transferência da soberania" e, enfim,  do "regresso definitivo das naus"... Foram eles que arrearam, de vez, a bandeira portuguesa em terras da Guiné.

Por outro lado, os militares da CCS e da 3ª C/ BCAV 8323 (1973/74) foram a passar por Pirada. E sabemos que alguns dos seus oficiais foram visita da casa do comerciante Mário Soares (, que de resto só recebia oficiais...)

A crer na versão do Frutuoso Ferreira, o Mário Soares seria o único comerciante branco que restava em Pirada, onde vivia com a esposa e uma das filhas (, talvez a mais nova). Não sabemos exatamente o que lhe terá acontecido depois do 25 de Abril.

Temos a versão do ex-alf mil médico José Pratas, CCS/BCAV 3864 (Pirada, 1971/73):

(...) “Poucos dias depois, [o Mário Soares]  seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo [, Carlos Fabião], o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”. (...) (****)

Também temos uma preciosa informação Domingos Pardal, chegada até nós, através do Manuel Luís Lomba, dois camaradas da CCAV 703... O Domingos, vou-o encontrando de tempos a tempos em Algés, na Tabanca da Linha... É um conceituado empresário, de Pero Pinheiro, a indústria de rochas ornamentais. Veja.se aqui o comentário do poste P20927 (*****):

(...) "O camarada Domingos Pardal, que se amesenda nas tainas da Tabanca da Linha, acaba de me dizer que o famigerado Mário Soares de Pirada veio parar a Aljezur, como retornado, o IARN financiou-lhe uma oficina de mármores nessa vila, que pouco tempo depois  entrou em falência" (...)

Isto significa que o Mário Soares não ficou na Guiné-Bissau, depois da independência, contrariamente à informação da historiadora Maria José Tríscar.


Tabanca da Linha > 35º convívio > Algés > 18 de janeiro de 2018 " Dois "homens grandes" de Buruntuma: da esquerda para a direita, o Jorge Ferreira e o Domingos Pardal, um de Oeiras, outro de Sintra.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > CCS/ BCAV 8323 (Pirada, 1973/74) > "Residência do célebre sr. Mário Soares, um dos dois comerciantes instalados em Pirada em 1973. Três dos alferes do Batalhão: Transmissões, Tesoureiro e Médico (eu, à direita)"... De pé o criado Demba. Na parede, ao fundo, uma reprodução do célebre quadro do Picasso, "Guernica" (1937). A fotografia deve ter sido tirada pelo próprio Mário Soares.... [Quanto ao "tesoureiro", não seria antes o comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS), o tenente SGE Francisco Costa, de Coimbra ?]

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Recorde-se aqui a ficha do BCAV 8323/73:

(i) foi mobilizado pelo RC 3 (Estremoz);

(ii)  partiu para o TO da Guiné em 22/9/1973 e regressou 10/9/1974;

(iii) esteve um mês em Bolama a fazer a IAO - Instrução de Aperfeiçoamento Operacional;

(iv) de regresso a Bissau em 31/10/1973, o batalhão é colocado  em Pirada, setor L6, região de Gabu. leste da Guiné;

(v) comandante: ten cor cav Jorge Eduardo Rodrigues y Tenório Correia Matias [, natural da Ericeira, Mafra];

(vi) unidades de quadrícula: 1ª C/BCAV 8323/73: Paunca, Bajocunda; 2ª C/BCAV 8323/73: Piche, Buruntuma, Piche; 3ª C/BCAV 8323/73: Pirada;

(vii)  o facto mais saliente dessa época foi a heroica defesa do destacamento de Copá (, seguida depois  da sua  retirada, em 12/13 de fevereiro de 1974, por ordem expressa de Bissau).

Temos quatro dezenas de referências, no nosso blogue, a este batalhão, a maior parte relacionadas relacionadas com os acontecimentos de Copá, e aos bravos de Copá. Como se sabe, este destacamento acabou por ser retirado pelas NT em 14/2/1974. Pertencia à 1ª C/BCAV 8323/3, sedidada em Bajocunda.

Alguns camaradas deste Batalhão ("Os cavaleiros do Gabu"),  que integram a nossa Tabanca Grande, e que referenciamos numa pesquisa rápida pelo blogue:

(i) Amílcar Ventura, ex-fur mil da 1.ª C/BCAV 8323/73, Bajocunda, 1973/74, natural de (e residente em) Silves, membro da nossa Tabanca Grande desde maio de 2009;

(ii) António Rodrigues, ex-soldado condutor auto 1.ª C/BCAV 8323/73 (Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma); é o autor da notável série "Memórias de Copá" (de que se publicaram pelo menos 6 postes):

(iii) Fernando [Manuel de Oliveira] Belo, ex-soldado condutor da 3.ª CCAV/BCAV 8323/73, Pirada, 1973/74;

(iv) Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323 (Pirada, 1973/74).


3. Excertos de  Memórias da Guerra na Guiné > Frutuoso Ferreira > Jornal das Caldas, 28 de Janeiro de 2009  (Texto de Francisco Gomes)

[Adaptação, fixação e revisão de texto, para efeitos de publicação nosso blogue: LG]

Frutuoso João Ferreira, ex-1º cabo atirador  acv da 3ª C / Batalhão de Cavalaria 8323/73 (Pirada. 1973/74)

(i) nasceu em Abelheira, Lourinhã, em 1952 ou 1953 
(, tinha  56 anos, quando deu a entrevista);
(ii) antes de ir para a tropa, foi pedreiro da construção civil;
(iii) em 22 de setembro de 1973, partiu para o TO da Guiné,
no T/T Niassa,  já casado e com um filho;
(iv) depois, regressar à vida civil,  continuou a trabalhar como pedreiro, 
na sua terra natal,  por mais quatro anos;
(v) em 1978, ingressou na guarda-fiscal;:
(vi) a partir de 2005, passou à situação de reserva 
da Brigada Fiscal da GNR, estando hoje aposentado.


(...) “Quando acabou a formação [, o IAO; em Bolama], regressámos no dia 31 de Outubro [de 1973], a Bissau e deslocámo-nos para Pirada, uma pequena povoação que ficava a poucos metros da fronteira do Senegal, onde o inimigo – os guerrilheiros do PAIGC – tinha algumas das suas bases”; (...)

(...) Em Pirada estava a CCS e a 3ª companhia: “A nossa missão era proteger [a sede do batalhão,] e as populações locais – os brancos que lá havia era só um casal de comerciantes e a filha [, referência ao comerciante Mário Soares];

(...) "O comandante da Companhia de Comando e Serviços (CCS) era o tenente Francisco Costa, de Coimbra. O capitão Ângelo Cruz, da Amadora, chefiava a 1ª Companhia, enquanto que o capitão Aníbal Tapadinhas, de Lisboa, comandava a 2ª. Integrava ainda o Batalhão a Companhia de Caçadores 11, que tinha à frente o capitão Nuno Sousa, de Lisboa." (,,,)

(...) "Eu estava no 4º pelotão da 3ª companhia, comandada pelo capitão Ernesto Brito, de Lisboa. O alferes Alípio Cunha, de Vila Nova de Famalicão, comandava o meu pelotão e havia três furriéis – o Sousa, o Simão e o Esteves. Os outros comandantes de pelotão eram os alferes Manuel Gonçalves, Rodrigo Coelho e António Pereira, respectivamente do Fundão, Pinhel e Amarante",(...)

(...) "Foi numa dessas alturas que passei o primeiro susto e momento aflitivo. Quando íamos para Bajocunda, a 13 de Dezembro [de 1973], foram detetadas várias minas anticarro. Toda a gente se protegeu, ficando só o sapador da CCS – o soldado Fernando Almeida – que as levantou. Repetiu a operação quatro vezes, só que a seguinte foi-lhe fatal”. (...)

(...) “Gritava ele [, o sapador Fernando Almeida,]  para o alferes Alípio Cunha, dizendo-lhe, satisfeito, que ao levantar a quinta mina já tinha dinheiro para ir à metrópole de férias (a passagem de avião custava cerca de quatro mil escudos) [,  cerca de 845 euros; a preços de hoje]" )...)

(...) Os sapadores recebiam do Estado mil escudos" [, cerca de 211 euros, a preços de hoje...]  "por cada mina anticarro que levantassem"...

(...) Mas a mina estava armadilhada com outra antipessoal e rebentou” (...)..

(...) “O corpo ficou todo desfeito aos bocados, espalhados pelo mato. Um pé foi cair à minha frente. Juntou-se o que se pôde e ficámos muito impressionados e desmoralizados. Não estávamos assim há tanto tempo na Guiné e já havia uma baixa. A partir daí sentimos que estávamos na guerra a sério”, (...)

(...) No dia 18 de Dezembro houve um ataque inimigo a Amedalai e a 7 de Janeiro [de 1974] houve em Bajocunda uma emboscada com armas ligeiras a uma coluna que ia abastecer um pelotão que estava em Copá. Morreram dois soldados – Sebastião Dias e José Correia, da 2ª Companhia, que ficaram em cima das duas Berliet destruídas. O pelotão a que pertencia  o Frutuoso Ferreira] foi escalado para ir lá buscar os corpos e tentar trazer o que restava das viaturas, operação difícil mas conseguida.

(...) Durante o mês de Fevereiro [de 1974] registaram-se várias investidas em Copá e Bajocunda. A 1ª companhia também sofreu ataques e morreram o 1º cabo António Ribeiro e os soldados Rui Patrício, Silvano Alves e José Oliveira.

(...) “Passados uns dias fomos fazer protecção a Sissaucunda, povoação a quinze quilómetros de distância de Pirada, com meia dúzia de palhotas. Cada pelotão permanecia naquele fim do mundo durante um mês. A nossa alimentação era ao almoço arroz com marmelada e ao jantar esparguete com atum. No dia seguinte era quase a mesma e só variava com arroz com salsicha” (...)

(...)  "No dia 13 de Abril [de 1974] brindou-os [. ao Frutuoso Ferreira e seus camaradas] om um ataque de mísseis lançados desde o Senegal. O destino era Pirada" (...)

(...)  “Vi os mísseis passarem por cima de Sissaucunda e começámos todos a correr para as valas escavadas no chão para nos protegermos. Sentia os mísseis a ‘assobiarem’ por cima de nós e poucos segundos depois a caírem em Pirada. O objectivo deles era atingir o quartel, mas caíram na povoação e mataram muitos civis” (...)

(...) No dia 25 de Abril [de 1974], o PAIGC voltou a atacar Pirada e mataram civis africanos, mas “da nossa parte não houve feridos nem baixas” (...)

(...) A partir de 25 de Abril de 1974, em virtude das modificações políticas ocorridas em Portugal, “não tivemos mais problemas na Guiné, porque iniciaram-se os contactos e conversações com os chefes da zona, entre as nossas tropas, o PAIGC e a população." (...)

(...) "Ainda bem que assim foi, porque a guerra estava tão acesa naquele setor, que se tem continuado mais tempo não sei se estaria cá para contar a história”. (...)

(...) “A primeira vez que encontrámos o inimigo já como amigo, na fronteira do Senegal, houve um sentimento estranho. Mas baixaram as armas e começámos a trocar tabaco e bonés” (...).

(....)  “Passámos o resto do tempo a recolher material bélico [, das NT,] e, na companhia do PAIGC a fazer propaganda política”.

(...) A 21 de Agosto procedeu-se à entrega de Paunca ao PAIGC. No dia seguinte foi a vez de Bajocunda e a 25 de Agosto seguiu-se Pirada, com a recolha da CCS e da 3ª Companhia a Bissau.

(...) O Frutuoso Ferreira ainda prestou serviço no quartel-general em Bissau a guardar o palácio do brigadeiro Carlos Fabião, comandante-chefe das Forças Armadas na Guiné.

(...)  No dia 4 de Setembro, na parada do BCP 12, em Bissalanca, cerca de 500 homens do [BCAV] 8323 uniram-se em formatura geral, “sentindo cada homem palpitar dentro do seu peito a dignidade do soldado português, que enfrentou os perigos de uma guerra dura” (, as palavras são do entrevistado)

(...) O regresso  a Portugal foi no dia 12 de Setembro de 1974.
__________________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de novembro de  2015 > Guiné 63/74 - P15323: Em busca de... (262): Pessoal de Pirada ao tempo do BCAV 8323/73... Quem ouvir falar do episódio em que o ten cor cav Jorge Matias terá recebido, em janeiro de 1974, por intermédio do comissário político do PAIGC, em Velingará, um tal Biai, um pedido de Luís Cabral para entabular conversações com as autoridades portuguesas? (José Matos, historiador)

(...) Olá, Luís

Precisava de uma pequena ajuda tua, no sentido de divulgares uma situação que se passou em Pirada em janeiro de 74.

Nessa altura, o comandante do Batalhão de Cavalaria 8323/73, o ten cor Jorge Matias, recebeu uma informação do delegado político do PAIGC, em Velingará, um tipo chamado Biai, de que Luís Cabral queria falar com as autoridades portuguesas.

Perguntava se algum dos camaradas que estava em Pirada nessa altura ouviu alguma coisa sobre isso e se pode contar...

Ab

José Matos (...) 


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20927: (De)Caras (158): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte VII: mais uma achega do Carlos Geraldes: o caso do ataque (anunciado) a Pirada em 28/5/1965 e o linchamento do gila confundido com um espião,


Comunicado do PAIGC referindo um ataque a Pirada,  o dia 28 [, sem mês nem ano],,, Cruzando informação disponível no blogue, esse ataque só pode ser o dia 28 de maio de 1965, ao tempo da CCART

Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 07065.068.053
Título: Comunicado [Frente Leste]
Assunto: Comunicado sobre o ataque da Secção do Exército Popular ao quartel de Pirada.
Data: s.d. 
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
Tipo Documental: Documentos
Página(s): 1

Citação:
(s.d.), "Comunicado [Frente Leste]", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40762 (2020-4-29)




Mário Soares > Pirada >
14/2/1974.
Foto: António Rodrigues 
(2015)
1. Continuamos à(s) volta(s) dessa figura algo misteriosa que foi o comerciante português Mário Soares, ou Mário Rodrigues Soares, mas também identificado com António Mário Soares (*). Dizem, justa ou injustamente, que serviu dois senhores, as NT e o PAIGC. Foi acusado de ter sido informador da PIDE/DGS tanto quanto "espião" do PAIGC. Em suma, "um "hábil agente duplo (...) durante muito tempo", condição que "acaba sempre por ter um preço amargo de pagar" (, segundo o seu amigo Carlo Geraldes). No fim da guerra, terá sido escorraçado por uns e por outros.

Esteve estabelecido em Pirada, no leste da Guiné, na fronteira com o Senegal, e diversos camaradas nossos (, nomeadamente, alferes milicianos)  conviveram com ele ao longo da guerra colonial, pelo menos desde 1963 a 1974.

Tende, por vezes, a ser confundido com o  seu homónimo,  esse, sim,  inconfundível figura pública Mário [ Alberto 
Nobre  Lopes] Soares (1924-2017), presidente da República Portuguesa (1986-1996), duas vezes primeiro ministro, fundador 
e secretário geral do Partido Socialista, opositor do regime de 
Salazar-Caetano,  etc.

A ignorância pode ser tanta que até a jovem cabo-verdiana, nascida em 1991, Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho, troca os dois nomes, os homónimos,  num trabalho académico, defendido em provas públicas numa universidade brasileira (**).

Sabemos, por testemunhos anteriores (*), que o Mário Soares: (i) era natural de Lisboa; (ii) terá vindo para a Guiné por "dificuldades financeiras); (iii) estabeleceu-se como comerciante em Pirada; (iv) era casado (com Luísa  e tinha 3 filhos (um rapaz. José, a estudar em Lisboa,  e duas raparigas, Rosa e Eva Lúcia, esta a mais nova,  nascida em 1958); (v) deverá ter nascido na década d 1920, pelo que nos anos de1964/65 já teria mais de 40 anos; (vi) era "o branco mais africano que comheci" (, segundo a opinião de José Pratas, antigo alf mil médico, CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/73).

Sabemos ainda que: (vii) em Pirada havia mais 4 comerciantes brancos, em 1964/65; (vii) em 1971/73,  havia um agente da PIDE na vizinhança, "bom para seviciar e intimidar", o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  que "tinha farroncas mas com as flagelações tremia como varas verdes" (José Pratas).

Portanto, o Mário Soares não era o gente da PIDE/DGS de Pirada, nem nunca pertenceu ao quadro de pessoal da PIDE/DGS... o que não o impedia de colaborar com a política política, aproveitando-se das "relações especiais" que tinha com as autoridades fronteiriças do Senegal. O que também não quer dizer que não fosse "informador" da PIDE/DGS...e não pudesse também ser útil ao PAIGC. Dáí que, desde muito cedo, corresse a fama de ser um "agente duplo".


Guiné - Bissau > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga delegação local da PIDE/DGS, e hoje esquadra local da polícia de segurança pública. Entre 1971 e 1973, ao tempo do alf mil médico José Pratas (CCS/BCAV 3864, Pirada, 1971/74),  terão passado por aqui dois agentes:  o Carvalho [, Gumersindo Fernandes Carvalho, agente de 2ª, nascido em Castanheira de Pera, 1946 ?], substituído pelo senhor Pereira [, Manuel Rodrigues Pereira, agente de 2ª, nascido em 1945, em S. Pedro do Sul ?,]  (José Pratas). 


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 2018 > Antiga casa do comerciante Mário Soares. Ficava,  à esquerda,  na Rua principal que levava à fronteira do Senegal, 

Fotos (e legendas): cortesia da página do Facebook Pirada Guiné-Bissau (2018). [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]

No livro de Maria José Tíscar ("A PIDE no Xadrez Africano: Conversas com o Inspector Fragoso Allas", Lisboa, Edições Coilibri, 2017), o "patrão" da polícia política na Guiné, homem  da confiança pessoal de Spínola, o Fragoso Allas, dá a entender, abusivamente, que  o comerciante Mário Soares era "mais" agente que o "seu"agente, o Carvalho, e depois, o Pereira:  que estes, ou um deles,  viveriam na casa do comerciante, que ele é que atenderia, em 90% dos casos o rádio da DGS, e que era aceite por ele, Fragoso Allas, como "agente duplo"... Porque lhe convinha... No fundo, é menorizado o papel do Mário Soares, conforme se pode deduzir das longa conversa com a historiadora,em que ele terá aberto o seu "livro": 

(...) "Era habilidoso [, o Mário Soares], tinha boas relações com as autoridades portuguesas e tinha bons contactos, também, com as do Senegal. Teve atuações muito importantes para nós. 

(...) " Era útil como agente de contrainformação. Quando queríamos enviar informações falsas ao PAIGC dizíamos-lhe que era muito secreto e então ele ia logo transmiti-las.

/...) "As informações que ele fornecia sobre o PAIGC quase não serviam, porque nós sabíamos que ele também trabalhava para eles.


(...) "Quando cheguei à Guiné, o General Spínola estava muito zangado com ele e queria mesmo expulsá-lo da província, mas isso não seria conveniente porque o posto da PIDE estava dentro da sua casa, pelo que me interessei para que ele continuasse na sua atividade”. (...)


2. Quem mais escreveu sobre o comerciante Mário Soares,  aqui no blogue,  foi  ex-alf mil Carlos Geraldes, da CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66), infelizmente já falecido em 2012. 

A sua foi a primeira companhia a ficar aquartelada em Pirada (, a partir de 15 de outubro de 1964). Até então Pirada era um destacamento guarnecido por um pelotão: em 1963, por exemplo, o nosso camarada e grã.tabanqueiro Jorge Ferreira disse-me, em conversa ao telefone, que esteve lá em Pirada, dois dias, e almoçou na casa do Mário Soares, ele, e outros militares, incluindo  o comandante do destacamento, o então alf inf Artur Pita Alves, hoje cor ref, que faria mais tarde uma outra comissão na Guiné, como capitão (CAÇ 1423, Bolama. Empada e Cachil, 1965/67).

O destacamento possivelmente pertencia ao BCAÇ 512 (Mansoa e Nova Lamego, 1963/65) ou então ao BCAÇ 506 (Bafatá, 1963/65), pormenor que o Jorge Ferreira já não pode precisar, mas seria o batalhão de Mansoa,

O Mário Soares recebeu, de resto,  em sua casa vários camaradas nossos, a começar pelos veteranos, o alf mil António [de Figueiredo] Pinto (BCAÇ 506 e 512, 1963/1965), o alf mil médico Luiz Goes (BCAÇ 506, Bafatá, 1963/65), e o Carlos Geraldes (CART 674, 1964/66), os dois últimos já falecidos. (Ao António Pinto, que  vive em Vila do Conde, mandamos um especial abraço.)

O Jorge Ferreira (ex-alf mil da 3ª CCAÇ,  Bolama, Nova Lamego, Buruntuma e Bolama, 1961/63),  autor do livro de etnofotografia, "Buruntuma: 'algum dia serás grande', Guiné, Gabu, 1961-63". (Edição de autor, Oeiras, 2016), estava nessa altura destacado em Buruntuma. Portanto, em 1963, ele também confirma que o Mário Soares já estava estabelecido em Pirada.

No Arquivo Amílcar Cabral, disponível no portal Casa Comum, criado pela Fundação Mário Soares, há pelo menos 11 referências a Pirada, mas nenhuma referência ao nome ou à pessoa do comerciante Mário Soares...

Sabe-se que em 1963 o PAIGC tinha muitas dificuldades de implantação na região, devido à hostilidade dos fulas e à fraca lealdade dos seus simpatizantes e militantes,  de maioria mandinga,  bem como à concorrência da FLING. Por outro lado, o Senegal, de Leopoldo Senghor, impunha, na época,  sérias limitações à liberdade de movimentos do PAIGC.

Se o Mário Soares fosse militante ou simpatizante do PAIGC seria, na época, um recurso precioso: os homens do PAIGC queixavam-se, então,  de que passavam fome, não dispunham de cuidados médicos, não tinham  armamento em condições nem muitos menos explosivos para a destruição de pontes, eram combatidos pelos fulas... Em suma, o moral era baixo ou estava em baixo.



Excerto de carta (manuscrita) remetida por Areolino Cruz a Pedro Pires, data de Pirada, 17/7/1963. É referido um ataque a "quartel de Pirada", no dia 15, tendo sido incendia a casa de um "tipo da PIDE".  Resultados: (i) "morreu um soldado europeu"; (ii) " soldados europeus têm agora medo de sair à noite, e mesmo depois das 6 da tarde"... O PAIGG não teria na época um bigrupo, o Areolino Cruz diz que "fomamos de agora em diante um só grupo comandado por Chico Tê, aproximadamente 22 homens"... (Não temos noticia de que nessa data, 15/71963, tenha morrido algum militar português no TO da Guiné.)

(Fonte: Arquivo Amílcar Cabral... Com a devida vénia; Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)

Citação:
(1963), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_36881 (2020-4-30)


3. O primeiro verdadeiro ataque a Pirada só acontece em 28 de maio de 1965, ao tempo da CART 676. (Talvez não por acaso, o PAIGC desencadeou mais do que um ataque ao longo da guerra, nessa efeméride, evocativa do 28 de maio de 1926,  data histórica em que triunfou, em Portugal, o golpe de Estado que deu origem à Ditadur Militar e ao Estado Novo; estou-me a lembrar, por exemplo, do ataque a Bambadinca, em 28 de maio de 1969.) 

Estava então o Carlos Geraldes de licença de férias na Metrópole... [Há um interregno da sua correspondência para a Metrópole entre 18/4/1965 e 13/6/1965, correspondente ao período - mês de maio - em que não apenas gozou a sua licença de férias como celebrou  o seu primeiro casamento.]

A posteriori, logo a seguir, quando regressa a Pirada e a Paunca (onde o seu pelotão está destacado), reconstitui esse ataque e os acontecimentos que se lhe seguiram, o linchamento de um pobre gila (comerciante ambulante), confundido com um espião,  por ter sido encontrado transportando alguns sacos de invólucros na sua bicicleta depois do ataque do PAIGC...

Não tendo sido "testemunha ocular" nem do ataque do PAIGC  nem do linchamento do gila,  Carlos Geraldes, por uma questão de honestidade intelectual, começa a narrativa com a segyinte reserva: "Não sei se o deva contar"...Mas depois conta, e o que escreveu está  publicado no blogue, na sua série "Gavetas da Memória".

Voltamos a reproduzir essa crónica, com título e subtítulos nossos. Pode ser que, entretanto, mais algum camarada possa confirmar ou infirmar  (ou acrescentar algo mais sobre) o que aconteceu nesse dia 28 de maio de 1965, em Pirada.


O caso do  ataque (anunciado)  a Pirada em 28/5/1965 e o o linchamento do gila, confundido com um espião (**)


(i) O Primeiro Ataque a Pirada

Não sei se o deva contar, porque nem sequer fui testemunha ocular. Nesse dia, 28 de Maio de 1965, estava de férias na Metrópole junto com a família. Um mês inteiro longe da guerra, na total ignorância de como as coisas se iam passando por lá,  a milhares de quilómetros. Só quando regressei de avião a Bissau é que me contaram a novidade.

Pirada tinha sido atacada!

Ao princípio custou-me a acreditar, até porque quem mo contou também não sabia bem os pormenores. Mal pude conter a impaciência nos dias que se seguiram à espera de boleia num Dakota (o velhinho, mas muito útil DC-6) para Nova Lamego onde depois teria um jeep da Companhia para me ir buscar. O sempre sorridente alferes Pinheiro lá estava pontualíssimo para me servir de condutor de regresso a casa.

E então lá me contou como tudo se tinha passado, enquanto eu o ouvia,  embasbacado, ainda pouco crente que me estivesse a falar verdade.

O M[ário] Soares, como sempre, fora informado que um numeroso grupo de guerrilheiros se estava a juntar do outro lado da fronteira, no Senegal. Estava bem armado e tinha intenção de fazer qualquer coisa ao quartel da tropa em Pirada. E até se sabia o dia e a hora em que isso iria acontecer. 

O nosso Capitão fez aquilo que a prudência mandava, entrincheirou-se o melhor que pôde e aguardou. Aliás, tomou até uma medida que sempre me pareceu um pouco ousada e timorata. Quis contra-atacar. Planeou então uma manobra para emboscar o inimigo que supostamente viria atacar o aquartelamento do lado ocidental a coberto da povoação nativa, a cintura de palhotas que envolvia Pirada. Para isso mandou que o alferes Pinheiro e o seu Grupo de Combate se fossem colocar, muito discretamente, do lado de fora da tabanca, numa zona baixa, já perto da bolanha, onde aí, montariam uma emboscada e contra-atacariam os assaltantes encurralando-os contra o quartel. Só que as coisas nem sempre correm tão bem como se planeiam no papel. A noite estava escuríssima, conforme me ia contando o Pinheiro:

"Eu mal consegui dar com o sítio que o capitão me tinha dito onde eu e os meus homens nos deveríamos ocultar para depois apanhar os gajos. E depois quando a festa começou deu-me a impressão que afinal estávamos mais afastados do que era previsto. E pelo arraial que faziam deviam de ser mais de duzentos. Olha, eu, pelo sim pelo não, para não estar para ali a fazer fogo sem mais nem menos, resolvi que o melhor seria esperar muito caladinho e ver como as coisas se iriam passar. Se revelássemos a nossa posição até talvez ficássemos numa situação muito perigosa. Aliás poderia acabar por fazer fogo contra os nossos, não achas? Por isso, ficámos ali muito quietinhos à espera que tudo passasse. No quartel estavam mais bem protegidos pelos abrigos, eu ali não tinha protecção nenhuma!"

Sim, o alferes Pinheiro tinha razão, era insensato atacar às cegas um inimigo que não se sabia bem onde estava nem de onde vinha, muito superior em número e armamento. Tomou uma decisão que à primeira vista poderá ser tomada como um acto de cobardia, mas que na verdade, tratou-se apenas de evitar um mero suicídio colectivo totalmente gratuito e ineficaz.

Assim o ataque desenrolou-se durante grande parte da noite, com a população nativa aterrorizada, escondida o mais que podia para escapar às balas perdidas que voavam em todas as direcções, varando de lado a lado as palhotas e as vedações dos quintais, enquanto do quartel atiravam morteiradas em todas as direcções e abriam fogo de metralhadora à vontade numa ânsia de aniquilar um inimigo que nem conseguiam descortinar.


(ii) O enigmático Mário Soares


Segundo depois me contou o M[ário] Soares, elementos do PAIGC passearam-se mesmo pelo centro do povoado, donde, até debaixo do alpendre da sua casa, fizeram fogo na direcção do quartel. Mas a ele e à família nem num cabelo tocaram. 

Admirável cavalheirismo romântico, que não seria fácil encontrar ali no mais remoto interior da Guiné. Gesto que, no entanto, lhe acarretaria futuros problemas com as desconfianças que a tropa foi alimentando a seu respeito, esquecendo que paralelamente M. Soares sempre lhes fornecera amplas e atempadas informações das andanças dos grupos inimigos que transitavam regularmente pelo Senegal, vindos da Guiné-Conacri em direcção à região do Morés, no triângulo Mansabá-Mansoa-Bissorã.

Na verdade a imunidade de M. Soares devia-se muito à sua condição de hábil agente duplo que soube manter durante muito tempo e isso acaba sempre por ter um preço amargo de pagar.

Com o raiar do dia [, 28 de maio de 1965], já depois de as armas se terem silenciado,  é que, aos poucos e poucos se foram verificando os estragos. Felizmente do nosso lado não houve mortos nem feridos, apenas danos materiais. As instalações ficaram com as paredes crivadas de balas, e duas viaturas foram atingidas mas nada de grande monta. [No comunicado do PAIGC, acima reproduzido, fala-se em 3 viaturas incendiadas: 1 jipe, 1 Unimog, 1 Mercedes Benz; mais: diz-se que "incendiámos toda a Pirada"...]

Na tabanca é que tinha sido pior, tinham ardido umas dezenas de casas, devido talvez ao nosso fogo de morteiro. Quatro mortos a lamentar e bastantes feridos sem grande gravidade, pois grande parte da população tinha fugido para longe. O posto médico depressa se encheu e o pessoal de saúde não teve mãos a medir, enquanto patrulhas percorriam toda a zona de onde o inimigo teria estado a fazer o fogo, agora facilmente identificável pelo elevado número de cápsulas vazias de vários calibres 
espalhas pelo chão. 

Os rastos deixados pelo grupo dos atacantes indicavam também que deveriam ter sofrido algumas baixas pelos vestígios de sangue deixados nos percursos de fuga em direcção do Senegal [, pelo menos dois mortos, conforme comunicado do PAIGC acima reproduzido].


(iii) O linchamento do gila


Mal recuperados do susto que tinham apanhado, tanto oficiais como sargentos e praças nem tinham vontade de falar no assunto.

Mas envergonhados também pelas reacções primárias a que se entregaram, quando ainda naquela manhã, prenderam um atónito gila que, inocentemente, tinha carregado na sua bicicleta vários sacos de cartuchos vazios que fora apanhando pelo caminho que percorrera despreocupadamente (?). 

Logo ali o acusaram de espião e resolveram fazer justiça pelas próprias mãos. Enquanto o capitão e o resto dos oficiais e sargentos se fecharam na caserna, a turba,  uivando cada vez mais enfurecida, arrastou o pobre desgraçado para o meio da parada e,  no meio de insultos e pancadaria, acabou de matar o pobre do gila, regando-o em seguida com gasolina e chegando-lhe fogo.

E até me mostraram fotografias, que acabaram por depois fazer desaparecer, cientes da barbaridade cometida.

Ainda cheguei a tentar falar com o capitão sobre o acontecimento. Mas apenas me respondeu com um silencioso encolher de ombros, revelador de uma total incapacidade de impedir o linchamento. E se calhar até de algum tácito consentimento para serenar os ânimos.

Mas só na antiga Roma é que os cruéis imperadores proporcionavam ao povo espectáculos de morte, para o poder controlar a seu bel-prazer! Teria acontecido aqui o mesmo?

Porém, com o passar do tempo,  tudo foi esmorecendo e caiu no esquecimento.Mas, o gila teria deixado família? Mulher,  filhos, outros parentes? Qual teria sido a raiva e a dor deles? Como teriam encarado o futuro?

A guerra não foi só recheada de heroísmos, ou uma alegre perseguição das bajudas lavadeiras apanhadas desprevenidas no regresso da bolanha, ou uma imprevidente saída para o mato na escuridão de uma noite tenebrosa.

A guerra foi também um longo rosário de pesadelos que nos marcou profundamente, mas que teimamos em não valorizar também.

Recolhi a Paunca [, destacamento da CART 676], logo que pude, para tentar esquecer.

(iv) A guarda republicana senegalesa corre com todos os grupos armados que podem ameaçar os postos fronteiriços portugueses (****)


(...) Voltando à vaca fria, nesta guerra, como se pode ver mais uma vez, tive sorte. Pois foram logo escolher o dia do ataque para quando estava de férias. Parece que eles ainda pensaram em voltar, mas viemos a saber depois que tinham resolvido ir atacar outra zona que, se calhar, lhes seria mais favorável. Entretanto a população regressou e tudo voltou à normalidade.

O Presidente do Senegal (Senghor) enviou para esta região membros da guarda republicana senegalesa para correr com todos os grupos armados que circulam por aqui e que já o estavam a inquietar, de maneira que hoje de manhã [, 15 de junho de 1965,]tivemos a inevitável confraternização, mesmo sobre a linha de fronteira.

Confraternização essa que levámos a efeito em regime estritamente confidencial, pois mais ninguém deveria saber, para não se armarem as habituais confusões junto do poder central. De um lado, eu, o Capitão, o alferes Carvalho [, pseudónimo do Pinheiro], e o alferes médico representando a tropa. O M. Santos representando os civis. Do outro lado, três guardas senegaleses.

O ambiente foi bastante cordial e prometeram-nos nunca mais autorizar a permanência, nesta zona, de grupos de guerrilheiros armados que, pelos vistos, também já os estariam a preocupar e incomodar. (...)

[Seleção, revisão e fixação de texto, incluindo negritos, itálicos e realces a amarelo: editor LG]
_______________


(**) Katheleen Rocheteau Gomes Coutinho - A Política Externa de Cabo Verde (1975 a 1990): uma análise da configuração e atuação da política externa de Cabo Verde durante a guerra fria. Monografia apresentada ao Instituto de Relações Internacionais como requisito parcial à obtenção do Bacharel em Relações Internacionais. Brasília, Unibversiade de Brasília, Faculdade de Relações Internacionais, Instituto de Relações Internacionais, 2015. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/16366/1/2015_KathleenRochteauCoutinho_tcc.pdf

(...) Estes dois fatores [, a vitória da luta de Libertação Nacional levada a cabo pelo PAIGC,  e a Revolução dos Cravos ou Revolução de 25 de abril de 1974,] foram importantes e estiveram na origem do Acordo para a independência de Cabo Verde, assinado em 19 de dezembro de 1974, pelas delegações do governo de Portugal e o PAIGC, nomeadamente entre Mário Soares (representando Portugal) e Pedro Pires (representando o PAIGC). (...)

Em nota de rodapé, diz-se que o seguinte: 

(...) Mário Rodrigues Soares- Português, 1922. Comerciante na região de Pirada onde acabou por funcionar como “agente” ou “espião”, nos contatos entre as autoridades portuguesas, senegaleses e o PAIGC. (Lopes, 2012).(...) [LOPES, José Vicente. “Aristides Pereira, Minha Vida, Nossa História”. Spleen edições, Cabo Verde, Cidade da Praia, 2012.]

(...) Pedro Pires, Cabo-verdiano 1934. Oficial miliciano na Força Aérea Portuguesa. Membro do PAIGC. Formação militar em Cuba e URSS. Comandante da Região Militar do PAIGC. Lidera a delegação do PAIGC na assinatura (...)

(****) Excerto da carta datada de  Pirada, 13 de junho de 1965, reproduzida aqui;

7 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4916: Cartas (Carlos Geraldes) (6): 2.ª Fase - Abril a Junho de 1965

sábado, 25 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20898: (De)Caras (156): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte V: Quando fui a Pirada, em DO-27, em 2/5/1972, levar o inspector da PIDE/DGS, Fragoso Allas, a Pirada, para conversões secretas com os senegaleses... A 18 desse mês, Spínola encontra-se com o Senghor, em Cap Skiring (Gil Moutinho, ex-fur mil pil, BA 12, Bissalanca, 1972/74)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1973/74 > "Na casa do célebre senhor Mário Soares. Acompanhando-o quatro alferes milicianos e um capitão miliciano".

Um dos alferes era Manuel Valente Fernandes, ex-Alf Mil Médico do BCAV 8323, Pirada, 1973/74, membro da nossa Tabanca Grande desde 17/10/2012. (,. o segundo, do lado esquerdo). Do anfitrião (o primeiro, a contar da direita) sabe-se que gostava de (e sabia) bem receber, qualquer que fosse as suas motivações. O nosso camarada Gil Moutinho reconheceu, de imediato, esta mesa, à volta da qual esteve sentado em 2/5/1972, comendo do bom e do melhor, enquantoi o patrão da PIDE/DGS, e homem da confiança de Spínola, conferenciava com o Mário noutro aposento... Pequena história da História Grande...

Foto (e legenda): © Manuel Valente Fernandes (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentário do  Gil Moutinho (ex-fur mil pil,  BA12, Bissalanca,1972/73); um dos régulos da Tabanca dos Melros,  Fânzeres, Gondomar) (*):

Ao ver a foto e a mesa, parece irrelevante, mas vi-me sentado ao seu redor e na altura, a 2 maio de 1972, chamou-me bastante a atenção, uma rodela de um tronco enorme e muito bem decorada com tudo do bom e melhor, o melhor presunto, outros enchidos, as melhores bebidas e muito mais.

Pois, na data acima, a minha missão foi transportar de Bissau o chefe da PIDE/DGS, o Fragoso Allas para Pirada,  passando por Bambadinca na ida e regresso, talvez levando alguém de lá.

As peripécias desse vôo estão contadas no poste 1040 do blogue dos especialistas da BA12. (#)

Não tendo passado para o lado do Senegal por sorte (nem um mês de comissão eu tinha!), lá aterrei e aguardei que os passageiros conferenciassem com o Mário Soares. e,  nos entretantos, fui obsequiado principescamente na famosa mesa e durante umas horas.

De facto o homem [, o Mário Soares, de Pirada] era importante!!!

Gil Moutinho

2. Reprodução  com a devida vénia, da mensagem do Gil Moutinho, acima referida (#):

Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > 14 de junho de 2009 > Voo 1040: A minha primeira ida a Pirada. (Excerto)

(...) Vou escrever agora umas pequenas histórias da Guiné.

A primeira de como cheguei ao destino por acaso e a segunda de um companheiro fiel.

Como sabem na província só haviam duas estações no ano, a das chuvas e a seca, sendo que ambas eram quentes, na das chuvas o ar era limpo embora com trovoadas e muita nebulosidade (muitas vezes tínhamos que contornar os cúmulos-nimbos, para não partirmos o estojo); na  [estação] seca, existiam permanentemente fumos e poeiras no ar que nos limitava a visibilidade como de nevoeiro se tratasse.

Na época seca, e era eu periquito com algumas semanas, foi-me destinada a missão, em DO 27, ,de transportar um elemento da PIDE/ DGS até Pirada, passando primeiro por Bambadinca para recolher correio. 

Estas viagens eram pouco usuais por serem directas de Bissau ao Leste. Até Bambadinca foi fácil, seguindo o rio  Geba, e é logo ali. A partir daí tinha que seguir a estrada até Nova Lamego, passando por Bafatá, e aí virar a Norte,  tentando seguir a estrada (picada) e tentar acompanhar o rumo pela bússola. 

Com a falta de visibilidade da época, tinha que praticamente ir a rapar. Pela bússola, se havia ventos laterais saíamos da rota, e aparentemente estávamos bem, pelo voo à vista e com a pouca visibilidade a estrada por vezes desaparecia entre as árvores e da minha vista.Também pela distância e pela velocidade se calculava o tempo de chegada com o rigor possível. 

Pois!... O tempo passava e já não tinha a certeza se estava na picada certa, assim como o tempo previsto se esgotava e eu poderia ter passado Pirada e estar do lado de lá (são só 500 metros até à fronteira). 

Nestes quase cagaços, vejo-me a passar rigorosamente por cima do edifício onde em letras garrafais dizia "PIRADA". 

Ufff!.... Meia volta apertada, linha de descida e aterragem. Enquanto o passageiro  conferenciava com o Mário Soares (é outro),  fui obsequiado com mordomias impensáveis naqueles buracos.

O regresso foi fácil, bússola até ao Geba e depois Bissalanca.
A outra história fica para outra vez.
Um abraço
Gil Moutinho

Nota do Vítor Barata [, editor]:  Hoje é bom recordar momentos interessantes vividos a 3,4 e 5 mil pés de altitude,e nós,  Gil,  que tantas vezes voamos juntos, quando o perigo era encarado pela ousadia da nossa juventude,como um "sorriso nos lábios". Nunca me canso de evidenciar a altitude máxima na Guiné, 300/400 m em Madina do Boé,o equivale a dizer que quando em velocidade cruzeiro, toda a província nos via.Não seria isto uma autêntica exposição ao perigo?

Felizmente que o armamento antiaéreo do IN também não era o melhor para nos atingir.
Já lá vai, Gil, e correu bem, por isso aqui estamos a recordar.

Postado por Especialistas da BA 12 às 23:08:00

3. Comentário do editor LG (*):

Gil, a tua informação é preciosa... Tu fizeste história!...

A 2 de maio de 1972 foste levar, em DO-27, o chefe da DGS, o inspector  Fragoso Allas, a Pirada, para "negociações" com o Mário Soares, que, sabemo-lo hoje, foi intermediário no processo de contactos preliminares com o Leopoldo Senghor... 

O comerciante Mário Soares foi uma "eminência parda nesta guerra" (**)... O seu testemunho seria precioso, se fosse vivo, o que é de todo improvável atendendo à idade que já teria nessa época...

Em 18 de maio, Spínola encontra-se com o Leopoldo Senghor em Cap Skiring, próximo da fronteira... É um facto histórico, Spínola explora as possibilidades de mediação do presidente senegalês entre as duas partes envolvidas no conflito, Portugal e o PAIGC... Mas Lisboa vai-lhe tirar o tapete...
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Nota do editor:

(*) 21  de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20884: (De)Caras (128): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte IV: Versões contraditórias sobre o "resto da história" deste português, de quem o ex-alf mil médico José Pratas (, BCAV 3864, Pirada, 1971/73) disse que foi "porventura o branco mais africano que conheci"

(**) Os "bons ofícios" do comerciante de Pirada foram reconhecidos pelo antigo chefe de gabinete do gen Spínola, o então alf mil Barata Nunes, que enverediu mais tarde pela carreira diplomática... Veja-se o poste :

15 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20858: (De)Caras (125): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal ? Um "agente duplo" ? - Parte I (Depoimentos do embaixador Nunes Barata, e do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


(...) Depoimento do embaixador João Diogo Munes Barata:

[Alferes miliciano na Guiné (1970); secretário e, posteriormente, chefe de gabinete do Governador da Guiné, general António de Spínola (a partir de Maio de 1971); adjunto diplomático da Casa Civil do Presidente da República, António de Spínola (Maio a Setembro de 1974), tendo no desempenho deste cargo, colaborado no processo de descolonização; delegado do MNE na Junta de Salvação Nacional]

(...) Com essa ideia, portanto, com a ideia de avançar no processo de descolonização, o general tentou estabelecer contactos com o Governo senegalês e, através dele, com o PAIGC.

 Os primeiros contactos foram feitos através do chefe da delegação da PIDE/DGS [em Bissau], o inspector Fragoso Allas e por Mário Soares. Mário Soares, não o Dr. Mário Soares, mas Mário [Rodrigues] Soares,  um comerciante de Pirada, um homem que se chamava Mário Soares, mas que era comerciante em Pirada, uma povoação fronteiriça da Guiné com o Senegal. Esse comerciante ….

Eu lembro-me de um dia estar no meu gabinete no Palácio e de o senhor Mário Soares ir lá comunicar que já tinha estabelecido o contacto com o lado de lá e que, portanto, se podiam iniciar as negociações para uma ida, para um encontro do Governador com o presidente Senghor. Houve previamente um encontro. O general Spínola foi duas vezes ao Senegal (acompanhei-o em ambas as visitas).

A primeira, para um encontro com o ministro senegalês dos Assuntos Parlamentares, porque evidentemente o presidente Senghor, na altura, ainda não sabia bem quais eram as ideias do general Spínola e não quis, evidentemente, romper as exigências protocolares e, como chefe de Estado encontrar-se com o governador de uma província, de uma colónia. E mandou um ministro.  (...)

Fonte: Estudos Gerais da Arrábida > A descolonização portuguesa > Painel dedicado à Guiné (27 de, embaixador João Diogo Nunes Barata e general Hugo dos Santos [Disponível aqui]

sábado, 18 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20867: (De)Caras (154): O comerciante Mário Soares, de Pirada, quem foi, afinal? Um "agente duplo"? - Parte III (Depoimento do nosso saudoso camarada Carlos Geraldes)


Guiné > Região de Gabu > Pirada > 1973 > Vista aérea de Piarada, foto tirada em 1 de agosto de 1972, no DO-27, nº 3492, pelo então ten pilav António Martins de Matos.  Legenda: 1. Pista de aviação e heliporto ( a leste); 2. Estrada para o Senegal (a norte); 3. Estrada para Bajocunda (a sudeste); 4. Estrada para sul / sudoeste (Sonaco, Bafatá e Nova Lamego)

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Região de Gabu > Pirada > c. 1964/66 > Croquis, com a localização da casa dos comerciantes Mário Soares e Palha, e de mais outros dois comerciantes, no centro de Pirada, além da tasca do Paiva,  contígua à casa do Mário Soares, a messe de oficiais, o quartel, a escola, a casa do chefe de posto, Barbosa... Junto deste funcionava também um posto sanitário. O quartel foi adaptado de um antigpo armazém de mancarra.


Croquis de parte das instalações ocupadas pelos militares da CART 676 (Pirada, 1964/66): quartos e messe de oficiais,  cozinha, WC, oficina, poço... A sul / sudeste,  ficava a tabanca.

Fonte:  Geraldes (2009) (*)



Guiné > Região de Gabu > Carta de Pirada (1957) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Pirada e Bajocunda.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)



Mário Soares > Pirada > 14/2/1974.

Foto: António Rodrigues (2015)
1. Quem foi Mário Soares, o comerciante de Pirada, de seu nome completo Mário  Rodrigues Soares, que alguns de nós, que passsaram pelo leste da Guiné, conheceram, ou pelo menos ouviram falar dele,  muitos de nós, ao longo da guerra ? (**)

Dizia-se, mais ou menos à boca cheia,  que o Mário Rodrigues Soares (, mais conhecido por Mário Soares,) tinha "relações privilegiadas" com os dois lados do conflito, as NT e o PAIGC. Dizia-se inclusive quer era um "agente duplo", trabalhando tanto para a PIDE/DGS como para o PAIGC. Onde está a verdade, se é que algum dia o viremos saber ?

A CART 676 (Bissau, Pirada, Bajocunda e Paunca, 1964/66) foi a primeira ficar aquartelada em Pirada. O nosso camarada e grã-tabanqueiro Carlos [Adrião] Geraldes (Lisboa, 1941- Viana do Castelo, 2012) era um dos alferes dessa companhia.   É autor de duas séries no nosso blogue, "Gavetas da Memória"  (13 postes) e "Cartas" (10 postes), onde fala do quotidiano dos militares que nessa época estiveram em Piradas e nos destacamentos de Bajocunda e Paunca.

O Carlos Geraldes conheceu o Mário Soares justamente quando a CART 676, chegou a Pirada, em 15 de outubro de 1964, vinda de Bissau (via Bambadinca, Bafatá e Nova Lamego). Tornar-se-iam amigos. O Carlos passa a ser visita frequente da sua casa. E, nas suas carta, vem defendê-lo da acusação, injusta, de que ele jogava com um pai de dois bicos...

Foi assim, num dos seus postes ds série "Gavetas da Memória" (**), que ele descreveu a chegada a Pirada e o início da sua amizade com Mário Rodrigues Soares:

(...) Pirada, naquela época, resumia-se a uma rua de terra batida que tinha a meio uma espécie se praceta, com um pequenino monumento e tudo. 

(i) para a esquerda era o caminho para o aglomerado populacional, as palhotas;

(ii) ara a direita o caminho levava a uma pequena pista de aviação. 

(iii) m cada canto desta praceta, erguiam-se quatro edifícios caiados e com telhados de telha: eram as casas comerciais, representantes locais de outras sediadas em Bissau;

(iv) seguindo sempre em frente, chegávamos à fronteira com o Senegal, ali a escassos metros;

(v) a meio caminho [, do lado esquerdo,]  erguia-se a casa do Chefe de Posto e o edifício do Posto Sanitário;

(vi) ao lado [, direito,] um celeiro de mancarra que provisoriamente servia de quartel para um pelotão indígena: era ali que a Companhia iria residir… 150 homens, mais ou menos, iriam ficar alojados onde anteriormente estavam pouco mais de 30 (...)

(...) Para alojar os sargentos e os oficiais também se arranjou solução. O nosso amigo comerciante que tinha encabeçado a recepção às tropas recém-chegadas [, o Mário Soares], também já tinha pensado nisso.

Como de propósito tinha mandado arranjar uma casa, situada nas traseiras de um dos estabelecimentos comerciais que, chegava para albergar os dois oficiais e alguns dos furriéis. Os que não couberam, foram alojados pelo Chefe de Posto, o senhor Barbosa, um simpático velhote que vivia sozinho e ansiava por companhia. A casa que ocupava era demasiado grande para ele e de certo modo até ficava mais resguardado a dormir debaixo do mesmo tecto que a tropa. (...)

(...) Depois de um retemperador banho de bidão e de um opíparo jantar para os oficiais e sargentos, em casa do nosso anfitrião, o nosso futuro anjo da guarda, Mário Rodrigues Soares era assim que ele se chamava, sentíamo-nos num paraíso até aí inimaginável. (...) (**)

2. Continuamos à procura de outros testemunhos sobre esta "eminência parda" da guerra na Guiné, no nosso tempo, que foi o Mário Soares, seguramente o civil então mais conhecido... 

Estivemos a reler as cartas do Carlos Geraldes, que nos ajudam a perceber melhor a personalidade e o comportamento deste comerciante português, "bon vivant", hospitaleiro, insinuante, amável, generoso, prestável, com um vasto capital de relações sociais, a nível interno e até externo (com as autoridades e os comerciantes do outro lado da fronteira, no Senegal).

Nesta III parte, continuamos a publicar excertos, selecionados, das cartas remetidas para a família, no período de agosto de 1965 a abril de 1966, ou seja na última parte da comissão, e em que o Carlos  continua a fazer  referências ao seu "amigo M. Santos [leia-se: Soares]".

Em agosto de 1965, ele deixou o destacamento de Paunca e foi comandar a companhia, em Pirada, em substituição, cap art Álvaro Santos Carvalho Seco, a gozar a sua licença de férias na metrópole.

Em abril de 1966, chega ao fim a comissão, o Carlos Geraldes faz um despedida emocionada aos amigos que fez em Pirada e que deixa, com apreensão em relação ao seu futuro. Não sabemos se voltou algum dia a ver (ou a contactar com) o seu amigo Mário Soares.

Outras companhias, entretanto, passaram  por Pirada e o Mário Soares voltou a receber, na sua casa, outros oficiais,como foi o caso do alf mil médico José Pratas, da CCS/ BCAV 3864 (1971/73). Reproduziremos o seu depoimento no próximo poste desta série.


Carlos Geraldes (Lisboa, 1941 - Viana
do Castelo, 2012)
Na véspera do 25 de Abril de 1974, estavam em Pirada o comando e a CCS do BCAV 8323/73, bem a 3ª C/BCAV 8323/73. O Manuel Valente Fernandes, ex-alf mil médico do BCAV 8323/73 (Pirada, 1973/74), nosso grã-tabanqueiro (e antigo aluno do nosso editor Luís Graça, no curso de especialização em medicina do trabalho, na ENSP/NOVA) também era visita da casa do Mário Soares.


Paúnca, 1 de agosto de 1965 (****)

De novo em Pirada agora a comandar a própria Companhia!

O capitão foi de férias e, como o Cardoso, que é o alferes mais graduado, ainda se encontra na Metrópole, tive de vir eu para o comando das tropas, pois sou o alferes que se lhe segue quanto a graduação. (...)

Continuo a ir todas as tardes e principalmente depois de jantar, a casa do M. Santos, onde jogamos umas partidas de xadrez, novo entretenimento que descobrimos. Mas perco sempre pois ele é um jogador muito mais forte que eu. Agora, costumam juntar-se a nós, dois ou três furriéis, de maneira que os serões são muito mais animados. Discute-se política, cinema, literatura e de tudo um pouco, conforme as preferências de cada um.

Quanto às minhas novas atribuições no comando da Companhia, não me preocupam muito porque são poucas ou quase nenhumas. Daqui a poucos dias deve chegar o Cardoso e então regressarei de novo a Paúnca. (...)

Pirada, 8 de agosto de 1965


(...) Hoje tivemos também a festa de despedida do Gabriel,  aquele alferes de Cavalaria, meu companheiro em Bajocunda, de quem me tinha tornado amigo e que, foi nada mais, nada menos, nomeado ajudante do Governador!

É claro que delirámos com a notícia e fizemos mais uma grande festa em casa do amigo M. Santos que, coitado, depois do jantar, já abria a boca até às orelhas, cansado e mortinho por se ir deitar. 


Pirada, 29 de agosto de 1965

Tudo na mesma. Continuo um bocado azedo mas a coisa passa-me.

Só peço que o capitão chegue depressa, para poder regressar a Paúnca. Não fui ensinado para ocupar lugares destes e já estou farto de, quando quero fazer qualquer coisa, ter de andar a perguntar ao 1.º sargento (que também é uma boa bisca) se o posso fazer ou não.

(...)  De resto, a vida aqui em Pirada tem-se limitado a uma ida todos os dias ao quartel, assinar umas quantas mensagens que vão chegando e dar despacho a outras. Depois almoça-se, dorme-se a sesta e se ainda há mais alguma coisa a tratar volta-se ao quartel, senão vai-se até ao balcão da loja do M. Santos dar à língua até a hora do jantar. À noite vai-se outra vez para lá, jogar às cartas com as crianças e também com alguns graúdos que já apanharam o vício.


Pirada, 11 de setembro de 1965


Acabo de vir de casa do M. Santos, onde fui jantar juntamente com o capitão que, felizmente já cá está. Chegou ontem e fui eu próprio buscá-lo a Nova Lamego. Por enquanto parece ainda um pouco abananado com a mudança da Metrópole para aqui e só me deixa voltar para Paunca segunda-feira (hoje é sábado). (...)

A filha mais nova do M. Santos fez oito anos e houve grande festa lá em casa. Ficámos todos muito alegres como não podia deixar de ser. Eu ainda fiz uma retirada a tempo mas o médico e alguns furriéis teimaram em ficar mais algum tempo. Acabaram a cantar e a gritar desalmadamente no meio da praceta. Tive de os mandar calar à força e o furriel enfermeiro tropeçou e deu um valente tombo. No dia seguinte andava de braço ao peito. Foi uma risota.

Paunca, 10  de outubro de  1965


(...) À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles [, os homens do pelotão,] não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.


Paunca-Pirada, 24  de outubro de  1965

Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.

Em Paunca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.

(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)

Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paunca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas, francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar. (...)

Paunca, 17 de fevereiro de 1966


Ultimamente tem havido uma série de falsos alarmes, convergindo as atenções para esta mísera localidade. Assim, de repente, sem qualquer aviso, surgiu aqui um Grupo de Combate de Nova Lamego e um Pelotão de Autometralhadoras Panhard, perguntando a toda a gente onde é que estava o inimigo!

Tratava-se, é claro, de mais um falso alarme, que fez logo saltar dos sofás os chefões na sede do Batalhão.

Confirmado o engano, óbvio é claro, o Grupo de Combate regressou ordeiramente a penates, deixando, no entanto, para trás as Autometralhadoras Panhard, que já agora aproveitavam para fazer umas patrulhas pelas redondezas, não fosse o diabo tecê-las…

Assim temos passado agora umas noites bem divertidas com a companhia destes hóspedes inesperados, aliás excelentes camaradas, especialmente o Comandante, o Alferes Alexandre, um gigante de Angola, sempre bem disposto.

A população que, tem um medo terrível das Panhard, com as suas imponentes metralhadoras de 20 mm, nem quer passar ao pé delas. No entanto soube que as populações mais afastadas parecem ter ficado tranquilizadas com o poderio de fogo que a tropa mostrou ter, para os proteger daqueles a quem eles chamam os bandidos (os turras).

Mas a miudagem atrevida, passada meia hora já andava encavalitada em cima dos blindados, brincando com as fitas das balas tracejantes de 20 mm, rindo com as brincadeiras dos soldados.

E tem sido assim esta guerra, sempre bem encenada, mas sem grandes palmas.

Agora que o Pelotão de Blindados também já se foi embora, voltámos àquela paz bucólica de sempre. Amanhã temos de dar uma grande limpeza no quartel e repor tudo nos seus lugares como dantes. Ficou como uma casa depois de uma grande festa, toda desarrumada e cheia de lixo.

Não deixei de ir a Pirada apresentar os meus hóspedes ao M. Santos, mas, não sei porquê, fui recebido com má cara. No entanto o [alferes]  Castro soube fazer as honras da casa e pagou as bebidas da praxe. 

Quando nos viemos embora, o M. Santos nem apareceu para as despedidas. Fiz de contas que não reparei. Afinal, não lhe devo nada e portanto, boa tarde!

Consta que já fez as pazes com o Cardoso e o recebe muito bem lá em casa. Alguém percebe isto? (...)

Paunca, 8 de março de  1966

No sábado passado, fui a Bafatá passear, pois apeteceu-me mudar de ambiente. No entanto apanhei uma valente estafadela pois a estrada está em péssimo estado e ainda por cima o jeep já não tem amortecedores.

Na companhia do M. Santos, almocei num café e depois fomos às compras. Apenas comprei uns livros e não encontrei mais nada de especial, a não ser um pequeno tapete com motivos árabes, alguns panos típicos, um canhangulo novo e uns pratos feitos de ráfia que podem servir de resguardo, quando se colocam panelas ou outros recipientes quentes em cima da mesa.

Mas o que mais de encontrava eram coisas feitas na China! (...)

Como o Manel Jaquim [,o homem do cinema ambulante,] agora parece ter medo de vir cá cima, não sei porquê, o nosso entretenimento continua a ser jogar às cartas ou ler alguma coisa. (...)



Paunca, 13 de março de 1966

Na semana passada estive dois dias em Pirada, a pedido do Capitão. Esperava a vinda de umas autoridades senegalesas e, como não tem lá ninguém que fale francês, pediu-me para lhe ir dar uma mãozinha.

Afinal a entrevista limitou-se a uma breve apresentação de cumprimentos mesmo sobre a linha de fronteira.

Em seguida, limitei-me a ficar por lá, ir até casa do M. Santos conversar e ouvir um pouco de música dos novos discos que tem recebido.
Em suma passei dois dias sem fazer nada, tal como um verdadeiro turista, passeando e cumprimentando velhos conhecidos. (...)



Paunca, 21 de março de 1966


As novidades para esta semana resumem-se à chegada do Manel Jaquim e a pouco mais. Finalmente reapareceu por cá, com um filme tão ordinário que até senti ganas de lhe apertar o pescoço. Chamava-se “O Capitão Sindbad” e era uma historieta desconchavada tirada das Mil e Uma Noites, excedendo tudo o que já vi de mau gosto e estupidez.

Durante o resto dos dias fui até Pirada várias vezes, para mudar de ambiente, conversar com o M. Santos, ver alguns amigos.

No domingo tivemos cá a visita de um velho comerciante de Pirada, o Gomes, que vive muito só, acompanhado apenas por um criado preto, quase tão velho como ele. Muito amigo de alguns furriéis, foram estes que se lembraram de o convidar para vir também conhecer esta já famosa estância turística. Bebemos uns whiskies e comemos galinha assada no espeto.


Bissau, 19 de abril de 1966

Todas as noites, depois de jantar, reunimo-nos e vamos até qualquer bar ou esplanada da baixa, petiscar camarão ou ostras.

No quartel temos mantido um comportamento tão acima da média que toda a gente está bem impressionada connosco. Acabaram-se os problemazinhos quotidianos que surgiam constantemente, quando estávamos no mato, em Pirada e em Paunca. Agora acordamos todos os dias, alegres e descontraídos, pensando sempre que falta menos um dia.

Uma das coisas que mais me impressiona no comportamento que os nossos soldados estão a ter agora é precisamente a calma com que estão a encarar estes últimos dias de comissão. Até parece que reina entre nós uma certa nostalgia por deixarmos estes lugares.

A nossa despedida de Pirada foi extraordinariamente comovente. Todos os amigos que lá fizemos e que por lá ficaram, o M. Santos e a família, o velhote Gomes e os outros comerciantes, a Ti Clara, a Cumba e todas as outras meninas do régulo Solo Só, vieram despedir-se com lágrimas nos olhos e correram atrás dos camiões até os perderem de vista no pó da picada.

Foi até hoje, uma das despedidas mais dolorosas que vivi. Deixámos ali abandonada para sempre (?) aquela gente que não tem outro modo de existência senão ficar ali, expondo-se a uma ameaça eminente, desaparecendo aos poucos da nossa memória.

(A ameaça eminente a que me referia, era a das presumíveis retaliações, logo que a guerra terminasse, pois os guerrilheiros, futuros vencedores, iriam certamente tratá-los como gente traidora, como cobardes que nunca fizeram qualquer sacrifício em favor da causa. O que infelizmente veio a acontecer, nos primeiros anos de euforia da independência.)

Confesso que também me vieram as lágrimas aos olhos.

Agora aqui em Bissau levamos uma vida regalada, pois o serviço até nem é muito e a camaradagem com aqueles que, como nós, também vão regressar, é entusiasta e franca.

Estes últimos dias são de uma emoção fora de todos os limites. Estou ansioso de subir para o barco. (...)
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Notas do editor: