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segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23440: Nota de leitura (1466): "O colonialismo português - novos rumos da historiografia dos PALOP"; Edições Húmus, 2013 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
Atenda-se, em primeiro lugar, para a esplêndida fotografia deste livro, temos a passagem do rio Corubal, em Che Che, faz parte do documentário fotográfico da viagem à Guiné do Ministro das Colónias, em 1941, impressiona a qualidade da imagem, parece que aquela jangada foi feita ontem e aqueles seres humanos parecem ganhar vida, em pleno labor da jangada. Nesta comunicação de dois investigadores, José da Silva Horta e Peter Mark, ganha relevo a presença judaica do início do século XVII, nas redes comerciais da Grande Senegâmbia, e as suas ligações com a chamada comunidade "portuguesa" de Amesterdão, mais revela a investigação que não era só tráfico de escravos que constava nas atividades mas também a venda de armas. Ainda há muito para estudar, mas hoje já possuímos dados seguros desta presença que teve algum significado nas relações luso-africanas.

Um abraço do
Mário



O judaísmo na construção da Guiné do Cabo Verde (século XVII)

Beja Santos

E
m 2011, reuniram-se no Instituto de Investigação Científica Tropical uma plêiade de investigadores no seminário "Novos Rumos na Historiografia dos PALOP", procurava-se dar a conhecer, nessa fase, as linhas de investigação que se estavam a produzir no âmbito da História e Ciências Sociais dos PALOP. Daí resultou esta obra publicada pelas Edições Húmus, 2013. Numa comunicação no contexto do colonialismo na África Portuguesa, José da Silva Horta, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e Peter Mark, da Wesleyan University dissertaram sobre o judaísmo na construção da Guiné do Cabo Verde. Eduardo Costa Dias apoiava este projeto para o conhecimento espacial da Senegâmbia. A espacialidade da Senegâmbia é tema que de há muito atrai a historiografia, Teixeira da Mota abriu as portas ao estudo desta complexa superfície onde havia redes comerciais que estendiam do Cabo Verde (ponto no continente africano) até à Península da Serra Leoa. Chamava-se a esta região a Grande Senegâmbia, onde se inseria a Guiné do Cabo Verde.

A presença mercantil era diversificada, Cacheu era o centro principal fornecedor de escravos, mas havia também espaços Biafadas e a região de Bissau já era uma realidade. Manda o rigor que se diga que estamos a falar de uma região um tanto artificialmente definida, e, segundo descobertas relativamente recentes, deu-se pela presença de comerciantes judeus na chamada Petite Côte, em pleno território do que é hoje o Senegal, mais ou menos entre Dacar e Banju. Dizem os autores que dessa Senegâmbia setentrional e Cacheu as ligações marítimas e terrestres até à Serra Leoa eram cruciais, pelo mar, rios e por terra. Vários investigadores, caso destes dois autores ou de Eduardo Costa Dias, Boubacar Barry, Mamadou Fall ou Jean Boulègue, têm procurado investigar estas sociedades senegambianas e as ligações que se estabeleceram ao longo do século XVI entre a Guiné do Cabo Verde e a América espanhola, mais tarde com o Brasil, houve pois nesta região um laboratório de contato intercultural que emergiu no século XV e onde a presença judaica, está hoje demonstrado, foi uma realidade.

Era o arquipélago de Cabo Verde, com a ilha de Santiago à frente, que assumia uma função crucial nesta mediação entre diferentes culturas. Sabe-se hoje que no início do século XVII houve um ponto de viragem, com a presença judaica e o seu contributo inegável para a história da construção da identidade luso-africana na Senegâmbia. Que investigação foi feita pelos autores? Oiçamos a sua resposta:
“A investigação foi baseada, numa primeira fase, a mais longa, em documentação da Torre do Tombo, pertencente ao Cartório do Santo Ofício e no trabalho anterior sobre outros arquivos como o Arquivo da Ajuda e o Arquivo Histórico Ultramarino e numa segunda fase também nos registos notariais e internos dos membros da comunidade de judeus portugueses, consultados em Amesterdão, que se revelaram, no essencial, preciosamente complementares às informações dos documentos arquivados pela Inquisição. Os documentos que recolhemos e trabalhámos permitiram-nos reconstituir a existência de comunidades de judeus no atual Norte do Senegal que tinham como caraterística distintiva serem constituídas por ‘judeus públicos’, ou ‘judeus declarados’, segundo a terminologia da época, isto é, afirmarem publicamente a sua identidade religiosa judaica e viverem socialmente como tal. A sua presença na região estava estreitamente articulada com a chamada comunidade ‘portuguesa’ de Amesterdão. Foi encontrada presença judaica em Porto d’Ale, eram judeus que viviam com mulheres africanas e seus filhos mestiços”.

Mais adiante, os autores recordam que o comércio e a presença destes judeus contaram com a proteção dos dignatários africanos do Norte da Senegâmbia. E dão informação extremamente curiosa: “Na relação com reis wolof e sereer, então muçulmanos, os judeus construíram um discurso em que tentaram encontrar denominadores comuns entre o Judaísmo e o Islão. Foram feitas tentativas pelos representantes ou apoiantes das autoridades eclesiásticas e dos interesses da Coroa portuguesa em Cacheu para que o rei do Bawol, em cujo poder estava o Porto d’Ale prendesse os judeus para que fossem enviados àquela praça e daqui para Lisboa. O mesmo foi tentado junto do dignatário do Siin, ou de Joala. Tudo sem sucesso.

No final da comunicação, os autores aduzem elementos sobre a natureza das atividades mercantis destes judeus que tinham ligação a Amesterdão, às Províncias Unidas, mas também a Lisboa, Açores e S. Tomé, e estão também conhecidas as ligações a Inglaterra e a França. “Verificámos que além do comércio de couros, marfim e cera, judeus e cristãos-novos estavam também envolvidos no comércio de armas, proibido pela Santa Sé e pelas coroas católicas”. Bem vistas as coisas, o envolvimento destes judeus no comércio de escravos terá sido periférico, e havia seguramente interesses de alguns membros desta comunidade nos engenhos brasileiros. Agiam nestes negócios da Guiné destacados membros da comunidade dos judeus sefarditas de Amesterdão, nomeadamente da congregação Bet Jacob, os mesmos acusados pela Inquisição de fazerem proselitismo judaico em Amesterdão; proselitismo que vai ser projetado na costa guineense. Estes cristãos-novos (cripto-judeus) tinham especial capacidade de viverem diferentes identidades. “É assim que, em 1612, Jesu (ou Joshua) Israel, como era conhecido no Norte da Senegâmbia, se metamorfoseava em Luís Fernandes Duarte quando tinha de se corresponder com um parceiro comercial africano cristão".

E assim termina este esclarecedor trabalho:
“Na Senegâmbia do século XVII, se o cristianismo, a julgar pelas fontes disponíveis, continuou a desempenhar um papel fundamental das relações luso-africanas, circunstâncias favoráveis a esse comércio e das políticas europeias e africanas conduziram a um dado novo na região: a chegada de judeus que, no Norte da Senegâmbia, assumiram publicamente a sua identidade e que constituíram comunidades luso-africanas. Essas comunidades levaram à reconversão de cristãos-novos residentes ao Judaísmo e agiram de modo homólogo aos outros residentes portugueses cristãos: casaram-se com mulheres africanas e converteram a descendência ao judaísmo. Seguiram também, com o mesmo modelo identitário dominante naquele espaço africano. Este facto teve consequência no contexto guineense (…). Se o mundo mercantil do século XVII funcionava através de redes locais, regionais, intracontinentais e transcontinentais, também os fenómenos da história social desse mundo deveriam ser reinterpretados sem partir necessariamente de um centro europeu. Foi isso que procurámos fazer”.

África, desenhada pelo cartógrafo antuérpio Abraham Ortelius em 1570.
Mapa político da Senegâmbia e da região da Guiné de Cabo Verde no século XVII.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23437: Nota de leitura (1465): O padre António Vieira (1608-1697), expoento máximo da literatura portuguesa, traduzido em sueco (José Belo)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Não foi por acaso que a título excecional se detalhou no blogue a "História das missões católicas da Guiné", pelo Padre Henrique Pinto Rema. Bom seria que dispuséssemos de vários contraditórios: o que era efetivamente a presença do islamismo naquelas paragens quando ali arribámos em meados do século XV; é facto que há relatos, e muito esclarecedores, das práticas animistas naquilo que se convencionou chamar a Grande Senegâmbia, a antropologia, a etnologia e a etnografia têm efetuado importantes trabalhos sobre práticas animistas quer no continente guineense quer na área arquipelágica. Já o padre Pinto Rema na sua obra incontornável acima referida dava conta dos inúmeros escolhos que se punham à atividade missionária, o clima, a hostilidade dos traficantes de escravos e outros mercadores, a ignorância das línguas nativas, a solidão. Tudo dificultava a construção de igrejas e a catequização. O diálogo religioso com a comunidade islâmica era impossível, vivia-se em intolerância; e a perseguição aos ídolos revelava-se totalmente ineficaz. Os franciscanos foram os mais persistentes, os jesuítas vieram cheios de entusiasmo, morreram quase todos. Um deles, o padre Manuel Álvares, deixou-nos um documento sobre esse território que era conhecido como a Etiópia Menor que, estranhamente, nunca passou de manuscrito. Coisas da cultura ou da incúria cultural.

Um abraço do
Mário



Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso

Beja Santos

Fez-se referência no blogue, e de modo exaustivo, à obra fundamental de ação missionária na Guiné, “História das missões católicas da Guiné”, pelo Padre Henrique Pinto Rema, Editorial Franciscana, 1982. O padre Pinto Rema referiu-se à presença dos jesuítas, convirá dela dar mais algum detalhe. Uma das figuras fundamentais é o padre Manuel Álvares. Convém não confundir o missionário com o gramático. Sobre a obra do gramático, recomenda-se a leitura do artigo “A época e a obra de Manuel Álvares”, por Rui Nepomuceno, Revista Islenha, n.º 45, dezembro de 2009. Era também jesuíta e ficou especialmente conhecido pelo seu trabalho modelar como gramático. Este padre Manuel Álvares de que vamos falar foi estudado por Manuel Pereira Gonçalves, ele apresentou uma comunicação intitulada “Atividade e obra do padre Manuel Álvares nos rios da Guiné (século XVII), alguns apontamentos”, no Congresso Internacional de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, consta das Atas, volume I, Cristandade Portuguesa até ao século XV, Evangelização Interna, Ilhas Atlânticas, África Ocidental, Universidade Católica, 1993.

Manuel Álvares chegou à ilha de Santiago em 1607 e pouco depois partiu para o continente africano para ajudar o padre Baltazar Barreira, que aqui missionava desde 1605. Álvares de Bissau seguiu para Quínara e depois para a Serra Leoa, ia ao encontro do padre Baltazar Barreira que aqui andava em catequização. O autor deste trabalho enfatiza as principais razões do insucesso deste trabalho de missionação: o clima é devastador, os missionários morrem como tordos, dois logo em 1604, mais dois em 1607 e mais dois em 1608. Quando chegam para missionar já os Mandingas ensinavam o Corão. Acresce que os jesuítas não conheciam as línguas nativas. O bispo em Cabo Verde insistia em mandar visitadores, tentava-se assim estimular a missionação, mas eram visitas inúteis. Para além da região muçulmana, os missionários defrontavam-se com o animismo e o seu cortejo de idolatrias. Como no passado, e até no presente, o africano animista explica o sucesso ou insucesso da sua vida e das suas atividades pela proteção do Irã. E havia uma outra condicionante bem terrível: o isolamento. A vida religiosa só se compreende quando vivida em comunidade, mesmo os Trapistas vivem em comunidade e com regras. Ora estes religiosos, sacerdotes e irmãos auxiliares, iam na disposição de construir igrejas e sentiam que naquele deserto humano não havia ninguém com quem pudessem manter um diálogo. Numa tentativa de ultrapassar esta situação, o padre Baltazar Barreira pediu ao seu superior Provincial que enviasse para a Missão da Serra Leoa pelo menos dois sacerdotes que dessem continuidade ao seu trabalho.

Nove dias após a chegada a Santiago, o padre Manuel Álvares acompanhado pelo Irmão Pedro Fernandes parte para o Rio Grande. Mais tarde, assistiu ao batismo da irmã e do irmão do rei D. Filipe de Leão, rei da Serra Leoa. Baltazar Barreira considerou que foi o casamento católico do irmão que moveu a irmã a receber o batismo. Como havia o receio de que vivendo no meio de pagãos podia perder a fé, a irmã do rei teve de abandonar o local onde vivia. Quem estiver interessado em estudar esta matéria com mais profundidade, recomenda-se a Monumenta Missionária Africana, Padre António Brásio, volume IV, a partir da página 621. Os jesuítas enviaram quinze sacerdotes ao todo, quase todos morreram. Ainda se exerceu missionação no Cacheu, que tinha uma igreja com clero diocesano e religioso e uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Natividade. Eram muito poucos os templos no território do que é hoje a Guiné, Santa Cruz no Rio Grande teve uma igreja dedicada a Nossa Senhora, durante bastante tempo houve um clérigo que lá ia dizer missa.

Um dos mistérios da histografia missionária e dos estudos do colonialismo é nunca a obra deste padre ter passado do manuscrito, Ethiopia Menor e Descripção Geographica da Provincia da Sérra Leõa, é considerado um trabalho de referência, incompreensivelmente não está acessível ao público. O padre Manuel Álvares discreteia sobre muitos assuntos, um deles tem a ver com o catecismo, seguramente que o preparou para a sua ação missionária. Tem aspetos curiosos, vale a pena citá-los:
“Os céus, apesar de incorruptos, imperfeitos, eternos, independentes, não foram feitos por si mesmos. Receberam de alguém o seu ser. É a primeira causa criadora. Também as estrelas, os planetas e todas as coisas deste mundo tiveram a sua primeira causa criadora. Nada há que não tenha um princípio e que não remonte a sua existência à primeira causa”. Mais adiante:
“O homem atingirá o dom da imortalidade por raro privilégio de Deus, ainda que não o possamos atingir pela própria natureza. A imortalidade do homem só é pela Providência Divina, é Deus que o encaminha para o fim sobrenatural; e ao homem não é dado o prémio nem o castigo antes de morrer”.

Porque não se salva o gentio a quem não foi anunciada a mensagem evangélica? O padre Manuel Álvares é da opinião que se tiverem vivido segundo a lei natural serão salvos. E porquê? Desde que tenham adorado quem os criou; tenham falado verdade, não tenham cobiçado o alheio; tenham guardado respeito pelo alheio; não tenham prejudicado em nada o que é dos outros; tenham usado com fidelidade aquilo que lhes pertence; tenham sido fiéis a todos os princípios, mesmo os matrimoniais.

O padre Manuel Álvares morreu em 1617. No século XVII, é possível que um ou outro sacerdote jesuíta tenha, em viagem esporádica, passado por aquelas paragens da África Ocidental, mas não há memória de outra presença efetiva e continuada. Anos mais tarde, em julho de 1642, os jesuítas deixam definitivamente a missão e os últimos sacerdotes rumam em direção a Lisboa.

Vale a pena seguidamente acompanhar a ação missionária do padre Baltasar Barreira, que teve uma atividade significativa em Cabo Verde, na Guiné e na Serra Leoa.

Ritual fúnebre na Senegâmbia, final do século XVII, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Missionário capuchinho queima casa de ídolos na África Centro-Ocidental, década de 1740, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Escultura da extremidade superior de sono em bronze com representação de duas pessoas montadas, acompanhantes e provavelmente um cão, imagem retirada de: https://revistas.ufrj.br/index.php/abeafrica/article/viewFile/19406/12989.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23346: Notas de leitura (1455): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23318: Historiografia da presença portuguesa em África (319): “História das Colónias Portuguesas, Obra Patriótica sob o Patrocínio do Diário de Notícias", da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa; Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade, 1933 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Junho de 2021:

Queridos amigos,
Escapara-me esta obra de divulgação saída do punho de um jornalista cheio de pergaminhos. Não foi por acaso que surgiu em 1933, estamos numa época em que se procura a todo o transe publicitar os valores imperiais. No que toca à sua narrativa sobre a Guiné, Rocha Martins deu provas de grande probidade, não foi aos arquivos mas consultou a melhor bibliografia da época, não ilude a pressão exercida pelos franceses e ingleses para reduzir a presença portuguesa na Senegâmbia e descreve sumariamente a vida atribulada dos três primeiros governadores. Não se trata, pois, de obra de consulta imperativa para investigadores, era um puro exercício de divulgação, acontece que muito bem redigido. No seu todo, Rocha Martins podia dar-se por satisfeito com o seu libelo patriótico, ao mostrar que aquelas parcelas do Império sobrantes de tanta procela eram um motivo de orgulho pátrio, e a elas devíamos rapidamente atender, começando por as habitar, e fazê-las progredir.

Um abraço do
Mário



História das colónias portuguesas, por Rocha Martins

Mário Beja Santos


"História das Colónias Portuguesas, obra patriótica sob o patrocínio do Diário de Notícias", é da autoria de Rocha Martins, da Academia das Ciências de Lisboa, reputado jornalista e plumitivo admirado, a edição é de 1933, Tipografia da Imprensa Nacional de Publicidade.

Como é óbvio, circunscrevemos as apreciações à colónia da Guiné. O autor faz um esboço histórico, refere as etnias, a natureza das selvas e dos rios, fala-nos nas companhias de tráfico de escravos e deixa o seguinte comentário: “Enorme e estranho território, nuns lugares fertilíssimo, noutros selvático e adusto, era habitado por tribos de caráter guerreiro, havendo, todavia, algumas que muito se compraziam em viver com os portugueses. O principal tráfico que se fez foi o da escravatura. Os Mouros, desde há muito, se entregavam àquele negócio, tendo em suas terras de Marrocos não só cativos negros mas brancos e cristãos. Os primeiros convertidos foram Fulas e Mandingas”.

Refere com detalhe a figura dos lançados, dos conversos ao Islamismo, observa usos e costumes: “Vestiam calção e camisola curta, usavam sandálias e barrete de algodão, à mourisca. Possuíam cavalos muito bem adestrados; as armas de guerra eram constituídas por zagaias, couraça de algodão empancado para lhes cobrir o peito e o ventre".

Enuncia as informações apresentadas por André Álvares d’Almada no seu Tratado Breve dos Rios da Guiné, dizendo que a mercadoria mais preciosa nesta época era o sal, que os Jalofos e os Mandingas transportavam. Era monopólio régio – trocavam o sal por oiro, escravos e estojos finos. Na esteira de André Alvares d’Almada faz a descrição do reino de Budamel. Relaciona Cabo Verde com a Guiné: “Na ilha de Santiago, onde se tinham instalado, em que os mercadores partiam e estabeleceram-se em Cacheu na Aldeia de Buramos ou Papéis de Cacanda e ali os portugueses viviam em comum com os indígenas. Manuel Lopes Cardoso, sem dúvida judeu, conseguiu, em 1588, uma concessão régia, podia construir em Cacheu uma fortaleza. Na margem direita do rio de S. Domingos estabeleceu outra feitoria em território Banhum, duas léguas abaixo de Cacheu”. É um autor que se sente dotado para contar histórias que sejam inclusivamente apreciadas por leitores de jornais. “Houve um português que se tornou marido da filha do rei Foulo, o grande soberano. Chamava-se João Ferreira e nascera no Crato, houve um filho deste matrimónio. Os indígenas alcunharam-no de Ganagoga – um homem que sabia todos os dialetos da negraria”. Os géneros que os portugueses levavam aos guinéus eram vinho, panos da Bretanha, vidros e moedas de dois reis.

Dá-nos também preferência do Mandimansa e depois foca-se em Cacheu. O primeiro Capitão-Mor de Cacheu foi António de Barros Bezerra, que trouxe criados, escravos, foragidos, vadios. Fortificou a povoação, rodeando-a de altíssima escadaria, abriu-se um fosso onde entravam as águas e se podia navegar. Artilhou o forte, feito de adobe e coberto de colmo, tal como a Igreja de Nossa Senhora do Vencimento. No período dos Filipes, o comércio dos portugueses continuava a ser o dos escravos, marfim e algum oiro. Vassalos de outros países penetravam à vontade em território onde primeiramente se manifestara só a presença portuguesa. Dá-nos igualmente a saber que com a restauração foi nomeado Capitão-Mor de Cacheu Gonçalo Gamboa de Ayala, que fundou Farim. Inevitavelmente, fala-nos das companhias do tráfico de escravos, da Companhia de Cacheu que introduziu na Nova Espanha dez mil toneladas de negros; não deixa de mencionar a Companhia de Grão Pará e Maranhão e das dificuldades sentidas, sucedeu-lhe a companhia de comércio exclusivo das ilhas de Cabo Verde e Cacheu, extinta em 1786. E começa o apertado cerco à Senegâmbia Portuguesa, a cobiça francesa, pretendia o porto de Bissau. É referido a demolição da fortaleza de Bissau, no reinado de D. João V, virá a ser refeita no reinado de D. José. Rocha Martins refere o período anárquico que se viveu durante as invasões francesas em que a Corte for para o Brasil. E depois de nos dar um quadro da vida em Bissau, Geba e Bolama e da Ilha das Galinhas refere a tentativa dos Franceses e dos Ingleses para os expulsar da região. A intensidade da intervenção francesa no princípio do século XIX, fala-se da questão do Casamansa, das diligências de Caetano Nozolini e António Pereira Barreto e como se conseguiu impedir a presença britânica em Bolama. Refere a política de Latino Coelho, Ministro da Marinha e Ultramar que aprovou uma nova divisão administrativa da Guiné em 1869. Ao Conselho de Cacheu juntavam-se Farim, Ziguinchor, Mata e Bolor; a Bissau pertenciam Geba, Colirna, Orango e Bolola.

Depois do chamado desastre de Bolor, dá-se autonomização da Guiné em 1879, e é nomeado como primeiro Governador o Coronel Agostinho Coelho. Este relatou para Lisboa que a situação era tremenda, exercia-se um certo domínio em Ziguinchor, Cacheu, Farim, Geba, Bolama e sobre meia légua de terra denominada Colónia do Rio Grande. “Portugal exerce um simulacro de soberania, tem vindo a abandonar lugares como Bolor, no rio de S. Domingos onde havia um destacamento de três praças com o fim único de içar a bandeira quando passa o navio. Em S. Belchior, Viena, Fá e Corubal não há bandeira nem autoridade portuguesa. Os negociantes de Buba pagam além de presentes isolados a um outro rei a respeitável soma de oito contos de reis a título de imposto. Franceses e indígenas de Buba não reconheciam o domínio nacional. As fortalezas caíam em ruína. Para policiar todas as regiões havia duzentos e tantos soldados e para os rios uma velha escuna A Bissau”. É neste quadro que vai atuar o primeiro governador com um pequeno efetivo a que se irão juntar 142 praças do batalhão de Moçambique: obrigando o régulo de Orango a pagar a austríacos 6 mil francos que lhes tinham roubado; os Fulas atacaram Buba que foi defendida por 200 portuguesas; os Beafadas atacaram os Fulas. Rocha Martins refere ainda a atividade do segundo e terceiro governadores.

O segundo, Pedro Inácio de Gouveia, recebeu espingardas do governo central, nesse tempo os franceses intervinham escandalosamente no Casamansa, declaravam que Portugal só possuía Ziguinchor. Os Fulas atacavam no Rio Grande, foi necessário enviar um contingente que os obrigou a fazer a paz. Rocha Martins refere o papel do tenente Francisco Marques Geraldes e como Bakar Kadali derrotou os rebeldes no Forreá, obrigando Mamadi Paté a pedir a paz. O terceiro governador foi o oficial da Armada Francisco Gomes Barbosa, e Rocha Martins escreve: “Os Franceses iam apertando o cerco do seu território, encravando a Guiné. Tinham Senegal e queriam Casamansa, ocuparam ilhas sob o título de Riviera do Sul. A Inglaterra dominava na Gâmbia e na Serra Leoa. Ia porém chegar o momento em que se inaugurava o período contemporâneo da vida colonial com a Conferência de Berlim, onde se decidiu os destinos das possessões em África. Os portugueses tinham ido à descoberta; nenhum povo os precedera nessa obra; depois, mercê do domínio espanhol, das suas lutas indestinas, da grandeza das suas possessões, que as cobiças maldeixavam, iam ver-se em situação de que lhe era difícil defender o que lhe pertencia. Conseguiu-se, porém, à custa de um novo esforço. Ressuscitaria, em parte, a sua velha epopeia”.

Notas bastante curiosas de alguém que se afadigou em tempos de Ditadura Nacional a fazer uma radiografia do Império, num texto cheio de motivação e onde houve o cuidado de procurar dar informações idóneas à luz dos conhecimentos da época.

Mapa de África datado de 1572
Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
Sonô, a escultura guineense mais disputada nos leilões internacionais
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23290: Historiografia da presença portuguesa em África (318): “Por Terras da Guiné, Notas de um Antigo Missionário, Padre João Esteves Ribeiro” publicado em "Portugal Missionário, reunião havida no Colégio das Missões de Cernache do Bonjardim em 1928"; edição da Tipografia das Missões em Couto de Cucujães em 1929 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23299: Notas de leitura (1449): “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Luís de Cadamosto, veneziano, pôs-se ao serviço do Infante D. Henrique entre 1455 até 1457. Falecido o Infante, regressou a Veneza, terá altas incumbências, na Dalmácia, no comando de galeras armadas para o comércio de Alexandria. Este vívido relato, cheio de sol e pormenor, dá-nos a conhecer (ou a confirmar) o que era o projeto henriquino, o que se pretendia conhecer, Cadamosto vai chegar à costa da Senegâmbia e tudo quanto ele escreve supre lacunas sobre a crónica da Guiné de Zurara. Os historiadores puseram objeções ao rigor do que ele escreve, mas inquestionavelmente as viagens são uma obra histórica. É incompreensível como obras de divulgação como esta não chegam às mãos das novas gerações, com ortografia atualizada é inegável tratar-se de um documento vibrante e que nos faz entender o conhecimento da costa africana entre territórios povoados de árabes até se entrar na terra dos negros, será aí que se irá firmar a Senegâmbia e dentro dela a Senegâmbia Portuguesa.

Um abraço do
Mário



Viagens de Luís de Cadamosto e Pedro de Sintra:
Relatos incontornáveis e de alto nível da literatura de viagens (1)


Beja Santos

De Cadamosto e Pedro de Sintra já aqui se fez larga referência ao trabalho do professor Damião Peres na Academia das Ciências, em 1948. Procura-se agora cotejar alguns aspetos essenciais de uma obra de divulgação que estranhamente não se reeditou, intitulada “Viagens”, de Luís de Cadamosto, introdução e notas de Augusto Reis Machado, na Biblioteca das Grandes Viagens, Portugália Editora, sem data. Esta obra de divulgação foi extraída da Coleção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos Domínios Portugueses, tomo organizado pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso (1773-1821). Figura nas anteriores edições com o título de “Navegações”. Estas viagens foram publicadas em Itália pela primeira vez em 1507. Tornaram-se numa peça fundamental da historiografia dos Descobrimentos para se falar do projeto henriquino com a propriedade de lhe conhecer os fundamentos e de revelar um viajante de primeira grandeza, capaz de registar fauna e flora, usos e costumes, o poder dos reinos africanos, o que se comerciava. Acresce a fluidez que timbra toda a narrativa de Cadamosto, do princípio ao fim. Saiu de Veneza, atravessou Gibraltar resolvido a navegar no mar Oceano, encontrou-se com o Infante D. Henrique, dá conta dos sonhos do príncipe, dos seus propósitos em avançar mais avante.

Encontrou-se com o Infante no Algarve, numa povoação chamada Raposeira, ali se acordou que ele iria viajar explorando a costa africana:
“Tendo eu ficado no Cabo de S. Vicente, o Senhor Infante mostrou com isso grande prazer e me fez muito agasalho e mandou armar uma caravela nova, de lote de 45 toneladas, da qual era Patrão um Vicente Dias, natural de Lagos, que é uma povoação a 16 milhas de distância do Cabo S. Vicente. E abastecido de todo o necessário, partimos do sobredito Cabo de S. Vicente aos 22 de março de 1445, o nosso rumo para a ilha da Madeira”. Fala das Canárias, de Porto Santo, da Madeira, e depois rumam do Cabo Branco da Etiópia (não esquecer que era conceito da época de que se estava a avançar para a Baixa Etiópia ou Etiópia Menor, e quando se chegou ao rio Senegal pensava-se, por falta de informação geográfica rigorosa, que se estava nas proximidades dos rios Níger e Nilo). Enquanto se percorre à distância terras dos mouros, a quem ele chama a costa da Barbaria, e todo o Sara Ocidental, chega-se aos negros da Etiópia, passa-se pelo Golfo de Arguim e informa-se que o Infante tinha feito na ilha de Arguim um contrato com o qual ninguém pudesse entrar naquele golfo para traficar com os árabes, salvo aqueles que entrassem no contrato e teriam então direito de comerciar na feitoria, economia de troca, quem chegava recebia negros como escravos e recebia panos, tecidos, prata e trigo. Tem algo de fantástico o que os Azenegues (berberes) julgaram ser os Portugueses: “Posso certificar que quando viram as primeiras velas creram que fossem pássaros grandes com asas brancas que voassem, alguns deles pensaram que fossem peixes, outros diziam que eram fantasmas que andavam de noite. E diziam isto, porque, às vezes, no princípio da noite eram assaltados em um lugar e naquela mesma noite pela madrugada acontecia o mesmo cem milhas adiante pela costa, outras vezes mais atrás, segundo ordenavam os das caravelas; e diziam entre si: se fossem criaturas humanas como poderiam fazer tanto caminho em uma noite quanto nós não poderíamos andar em três dias?”.

Iniciam-se as atividades comerciais e fala-se no império dos negros, menciona-se Tombuctu. Antes de chegar à terra dos negros, e sempre falando da Barbaria ou terra de alarves, diz que naquela terra não se bate moeda alguma, todo o tráfico é trocar coisa por coisa ou duas coisas por uma, são pardos. Passado o Cabo Branco, navegou-se à vista até ao rio do Senegal, passado o deserto chegou-se ao país dos negros, a primeira descrição daquela região lacustre é como se tivessem chegado a um paraíso terrestre e então Luís de Cadamosto refere o reino do Senegal e os seus limites:
“O primeiro reino de negros da Baixa Etiópia é este que fica sobre o rio do Senegal. Os povos que habitam as suas margens chamam-se Jalofos, e toda esta costa e país acima declarados é terra baixa até Cabo Verde (entenda-se, ponto continental, não tem nada a ver com o arquipélago) que é a terra mais alta de toda aquela costa. Segundo eu pude perceber, este reino do Senegal confina pela terra da parte do Sul com o reino da Gâmbia, do poente com o mar Oceano e do nascente com o reino acima dito, que extrema os amulatados destes primeiros negros”.

É interessantíssima a sua narrativa sobre a eleição dos reis do Senegal, costumes, família, crenças, os seus trajes, as guerras que faziam e as armas que utilizavam. E assim se chegou ao país de Budomel, “povoação distante do rio Senegal coisa de oitocentas milhas pela costa, a qual nesta extensão é toda baixa e sem montes. Este nome Budomel é título do senhor e não nome próprio do lugar”. A região já fora visitada por outros navegadores, Cadamosto tinha consigo alguns cavalos de Espanha, “que eram boa mercadoria no país dos negros, não obstante de ter muitas outras coisas, como panos de lã e peças de seda mourisca, e outras mercadorias, determinei provar com ele (Budomel) a minha fortuna”. Budomel veio ao seu encontro, recebeu-o com grande festa, Cadamosto deu-lhe os cavalos e foi convidado a ir a casa de Budomel. Outra narrativa espantosa, a estadia em terras do senhor Budomel e do seu neto chamado Bisboror.

Ficamos a conhecer um cerimonial do tipo de Rei Sol, Budomel é praticamente um Rei Deus: “Homem algum teria atrevimento de vir falar-lhe sem que primeiro se tivesse despido todo, salvo as bragas de cor, que conservavam, estando daquela maneira um bom espaço de tempo, deitando areia para cima de si; depois não se tornavam a levantar, mas, arrastando-se com os joelhos e pernas pelo chão, se iam avizinhando ao senhor, e, quando estavam a coisa de dois passos de distância paravam para falar e dizer o seu negócio, não cessando entretanto de deitar areia para trás, com a cabeça baixa em sinal de grandessíssimo acatamento”. E depois deste espetáculo descreve o modo terrífico como comem: “Comem no chão bestialmente, sem nenhum preparo: e com eles não come ninguém, salvo aqueles mouros que lhe ensinam a lei e um ou dois negros dos principais. Toda a gente miúda come a dez ou doze juntos, põem um grande cesto de carnes no meio, e todos metem a mão dentro; comem muito pouco de cada vez, porém muitas vezes, isto é: quatro ou cinco cada dia”.

Carta náutica de Lázaro Luís, 1563, Academia das Ciências, Lisboa.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23285: Notas de leitura (1448): “Guerra Colonial – Uma História por Contar”, trabalho dos alunos do Externato Infante D. Henrique (Ruílhe-Braga) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23207: Historiografia da presença portuguesa em África (314): Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
O Conselho Ultramarino, entre o reinado de Filipe II de Espanha e o fim do Império em 1974 teve uma existência intermitente, nem sempre valorizado e nem sempre com as mesmas atribuições. O período em análise corresponde à ressuscitação que lhe deu Fontes Pereira de Melo e durou poucas décadas. É como que um Diário da República do império colonial. Os membros do Conselho Ultramarino funcionou dentro do Paço e têm a seu cargo o expediente volumoso de acordo com funções alargadas que envolvem emolumentos, condecorações, nomeações, pedidos de informação da mais variada índole, etc. Do primeiro volume apreciado a Guiné tem um pálido registo, que aqui se transcreve, convém mencionar que ainda estamos um tanto longe da autonomização de Cabo Verde, pelo que em muitos casos é necessário pesquisar em Cabo Verde o que tem a ver com a Guiné. Seguramente que estes apontamentos não passam de uma curiosidade se não forem compulsados com dados mais substanciais. Será o caso da "admoestação" que recaiu sobre Honório Pereira Barreto por este ter proferido uma crise contundente que em Lisboa não foi muito bem apreciada...

Um abraço do
Mário



Anais do Conselho Ultramarino: Curiosidades da Guiné (1)

Mário Beja Santos

Perguntará o leitor que importância se pode atribuir às matérias constantes nestes anais. A primeira parte da resposta passa por atribuir importância ao Conselho Ultramarino, um órgão que iniciou a sua vida em tempos de Filipe II, teve interrupções, e mesmo com outras designações chegou a abril de 1974. As obras que estão em consulta na Biblioteca da Sociedade de Geografia referem-se concretamente ao período encetado na governação de Fontes Pereira de Melo e que irá durar até à década seguinte. Iniciei a consulta na série 1.ª, vai de fevereiro de 1854 a dezembro de 1858, a edição é da Imprensa Nacional, 1867. Tem-se a sensação quando se folheia estes anais que têm qualquer coisa a ver com o Diário da República colonial, o Conselho Ultramarino funcionava junto do Paço, refere nomeações, condecorações, composição de comissões, autorização de despesas… O que significa que o leitor encontra pontualmente informações que carecem de contextualização e justaposição com outros documentos. Logo em 1854, e assinado pelo Visconde da Atouguia, temos a nomeação de uma comissão para regular o serviço de cortes de madeira em Bissau e Cacheu, nomeiam-se o Capitão-Tenente Roberto Teodorico da Costa e Silva, que presidiria, o 1.º Tenente da Armada José Francisco Schultz e o 2.º Tenente da mesma Armada Álvaro José de Sousa Soares d’Andréa, para proceder à confeção de um regulamento para os referidos cortes de madeira. Mais adiante, em agosto de 1855, a propósito dos ofícios enviados a Sua Majestade pelo Governador-geral de Cabo Verde que acompanha uma exposição de negociantes de Bissau que protestam contra o exclusivo do comércio do sal e da navegação do rio Corubal, decidido por aquele governador-geral. E toma-se a seguinte decisão: “Vendo-se de todos estes documentos que o mesmo governador-geral, tendo em consideração o miserável estado em que se achava a Praça de Bissau, e vendo-se ao mesmo tendo falto dos necessários recursos para acudir com as obras e outras previdências que as circunstâncias urgentemente reclamavam, estabelecera, com o voto unânime do conselho do governo, o exclusivo do comércio do sal e o da navegação do rio Corubal, para com o produto da arrematação destes exclusivos ocorrer às necessidades daquela praça…”. Ora Sua Majestade desejava que a liberdade do comércio dos súbitos portugueses só tivesse as limitações indispensavelmente necessárias, e assim, obtido o parecer do conselho ultramarino, mandava anular a decisão do governador, havendo que providenciar por outra forma a conclusão das obras da praça de Bissau.

Não menos curioso é o parecer do Conselho Ultramarino com data de novembro de 1853 a propósito do aumento de vencimentos para os oficiais e praças de pré que o Governador-Geral de Cabo Verde destacar para a Guiné. Reconhecem-se as dificuldades de se renderam os destacamentos por falta de embarcações e é patente a repugnância que as praças de pré e oficiais da província de Cabo Verde têm àquele serviço, pela insalubridade do clima guineense, “pelo amor à sua família e pátria, e pela diferença de preço nos géneros de que estão habituados a alimentar-se, e nos objetos de vestuário”. O parecer do Conselho é de que seja aprovada a proposta do Governador-Geral de Cabo Verde para os referidos aumentos.

E é com satisfação que ao folhear estes anais se encontra a informação do Visconde de Atouguia de que acabam de chegar a Lisboa, pela fragata D. Fernando e brigue Moçambique seis mancebos cujos nomes constam da relação inclusa, vindos de Angola e da Guiné Portuguesa, e mandados pelos respetivos governadores para serem educados e instruídos para a vida eclesiástica no Seminário Patriarcal de Santarém. E ficamos a saber que um dos três mancebos era Marcelino Marques de Barros, que prestará à Guiné relevantes serviços no campo da investigação e da missionação, será mesmo Vigário-Geral da Guiné e correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa. Esta informação do Visconde de Atouguia foi enviada para a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar e Cardeal Patriarca de Lisboa em 20 de fevereiro de 1856.

E voltamos às madeiras, veja-se o que Sua Majestade pretende apurar: “Constando que de Serra Leoa, especialmente, se exportam todos os anos para Inglaterra muitos carregamentos de mogno, produzido nas consideráveis matas que também consta existirem em toda a Senegâmbia, pede informações se nos territórios dependentes dos dois ditos governos, Bissau e Cacheu, existem matas da dita madeira; se existindo, se faz dela exportação e para onde; se as ditas matas estão próximas do litoral ou se estão distantes que a sua condução influa sensivelmente no custo; e quanto poderá custar aproximadamente uma tonelada da dita madeira posta a bordo”. E veja-se como finaliza a protensão régia: “Por esta ocasião manda Sua Majestade que o sobredito Governador-Geral remeta ao Conselho Ultramarino uma relação de todas as madeiras, incluindo a de que se trata, próprias para construção e marcenaria, conhecidas na Guiné Portuguesa, contendo os nomes, as localidades onde se encontram, se há ou não abundância delas, o custo, e se há ou não dificuldade em transportá-las das matas para o litoral”. Estas informações são datadas de setembro de 1854.

A próxima decisão, e já temos a assinar a documentação Sá da Bandeira, tem a ver com a higiene e saúde pública, a limpeza do poço de Pidjiquiti, aonde os navios faziam aguada e usado pelos habitantes da povoação, estava cheio de imundícies e em abandono, era imperativo proceder à limpeza do dito poço, o governador-geral poderia utilizar a contribuição de licenças. A data é de 13 de julho de 1857. Segue-se um reparo a um protesto de Honório Pereira Barreto, este mostrava-se increpado contra recente legislação sobre assuntos de Fazenda, havia de advertir o Governador da Guiné do gravíssimo erro que cometera, competindo ao governador-geral corrigir a falta cometida por Honório Pereira Barreto. A data é de 21 de dezembro de 1857.

Temos seguidamente a formação de mancebos em Cirurgia e Farmácia. O Governador da Guiné Portuguesa propunha que se mandassem estudar no reino alguns mancebos da Guiné para assim haver mais certeza de que não faltassem os recursos para o tratamento dos doentes. E assim se decidia informar ao dito Governador-Geral de Cabo Verde que se estava a gastar perto de 80 mil reis com alunos mandados vir do Ultramar, mas que se tiravam poucos resultados, “sendo mui poucos os que têm chegado a concluir os estudos, e ainda menos os que têm voltado a África, que nenhuma confiança deve haver no meio que se lembra para se obter aquele fim. A data é 7 de janeiro de 1858".

E por fim vamos falar dos Balantas e Felupes. Recebera Sua Majestade ofícios informando que os Felupes do Bote, vizinhos de Cacheu, haviam roubado uma canoa portuguesa mas que o governador da Guiné lhe participara que tinha meios para punir tal facto; noutro ofício dava-se conta de que o régulo de Intula tinha pedido ao governador da Guiné que o protegesse contra as vexações dos Balantas que lhe faziam roubos, o governador da Guiné exigia, como condição prévia para atuar, que o régulo se declarasse sujeito ao reino português, este recusou-se imediatamente a aceitar tal condição. “Atendendo Sua Majestade a que estes factos mostram a falta de respeito com que ao menos alguns vizinhos dos nossos estabelecimentos da Guiné tratam os súbditos portugueses, e a falta de consideração que têm às autoridades portuguesas, recomenda ao novo governador-geral de Cabo Verde que preste atenção aos negócios da Guiné, estudando os meios de fazer com que os súbditos e a propriedade portuguesa sejam devidamente respeitados pelos povos da Guiné, e empregue para este fim os meios convenientes, de modo que o comércio português na mesma região possa desenvolver-se com a necessária segurança”. A data é de 27 de fevereiro de 1858, e assina Sá da Bandeira.

(continua)


Guiné Portuguesa, mapa do século XIX, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Bissau, José Luís de Braun, 1780, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
Rio Grande de Bissau, Planta da foz, desde a ponta de Bambe até à ponta de Balantas, com o ilhéu dos Pássaros, ilha de Bissau e Ilhéu do Rei, José Luís de Braun, 1778, propriedade do Arquivo Histórico Ultramarino
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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23183: Historiografia da presença portuguesa em África (313): Informações da Guiné na Memória do Tenente Bernardino de Andrade (1777) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 30 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23126: Historiografia da presença portuguesa em África (310): Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Ao longo de um processo de qualquer pesquisa somos confrontados, por vezes repentinamente, com títulos desconhecidos que aparentam interesse, alguns deles nem são constantes das bibliografias mais utilizadas. Foi o que aconteceu um livro do capitão Gerardo Pery, que encerra não passa de generalidades, para seu bem curioso o que se vendeu na feira da Exposição Universal de Sevilha proveniente da Guiné, folheou-se o livro de um médico inglês, George Tams, que ainda na primeira metade do século XIX veio apurar se ainda se praticava a escravatura e, coisa surpreendente, andou por Cabo Verde mas não viu utilidade em pôr os pés na Senegâmbia Portuguesa. E assim se chegou a um dos mais relevantes trabalhos de António Carreira sobre as companhias pombalinas de navegação, aqui se dá notícia de uma importante resenha oriunda da Universidade de São Paulo e espera-se continuar com o propósito de oferecer bibliografia pertinente ao leitor mais interessado.

Um abraço do
Mário



Fundos da gaveta: leituras espúrias sobre a História Antiga da Guiné Portuguesa (1)

Mário Beja Santos

Numa fase de últimas pesquisas para dar por concluído o trabalho de investigação de um próximo livro que terá o título de Guiné, bilhete de identidade, senti curiosidade em folhear publicações sobre temas que à partida me pareceram pertinentes. É dessa relação de leituras espúrias que aqui procedo a alguns comentários. Primeiro, a Geografia e Estatística Geral de Portugal e Colónias, obra de um Capitão do Exército, Gerardo A. Pery, edição da Imprensa Nacional, 1875. Registo um parágrafo que me parece a todos os títulos elucidativo:
“O senhorio português na região impropriamente denominada Guiné, isto é, na Senegâmbia, estendia-se, ainda nos fins do século XVI, desde o Cabo Verde até à Serra Leoa. Descoberto o rio Casamansa e a costa entre o Cabo Roxo, ao sul deste rio, e o Cabo de Sagres, ao norte da Serra Leoa, foram estas regiões a princípio avidamente exploradas. Mas a descoberta da denominada Costa do Ouro, a verdadeira Guiné, e, mais tarde, os descobrimentos da Índia e do Brasil, fizeram esquecer esta parte dos vastos domínios portugueses, deixando-se que outras nações ali se estabelecessem e se apoderassem dos principais ramos de comércio daquelas feracíssimas regiões”.
Daí se reduziu a extensão do domínio na Senegâmbia, referindo que a superfície aproximada é de 8400 quilómetros quadrados. O Capitão Pery refere os rios (Casamansa, São Domingos, Geba, Bolola, Quinala ou de Nalu, até ao rio Nuno). Comenta que as margens destes rios são muito férteis, orladas de densas florestas de mangues, pau-carvão e árvore da borracha; as principais produções eram arroz, milho e mancarra. A Guiné deste tempo estava dividida em três concelhos com cinco freguesias.

Assim que vi a referência da Guiné no Catálogo Português da Exposição Mundial de Sevilha, 1929, fui à procura de algo original. Para quem redigiu o texto, a população ao tempo seria de 400 mil habitantes, refere que existem duas estações e que as principais culturas seriam: mancarra e arroz, milho e café, cana-sacarina e tabaco, cola e mandioca, dizendo adiante que a colónia possuía muita fruta: bananeira, laranjeira, mangueira, mamoeiro, cajueiro e goiabeira. Aspeto muito curioso era o mostruário de cereais e legumes, frutas e sementes oleaginosas, madeira e cortiça (?) e apresentava um extenso elenco de produtos de artesanato. No descritor da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamou-me a atenção o seguinte título: Visita às Possessões Portuguesas da Costa Ocidental de África, por George Tams, doutor em Medicina, dois volumes, Edição Portuguesa do Porto, 1850. O Dr. Tams é bem explicito sobre o que o move nesta viagem: vem fiscalizar se ainda há mão-de-obra escrava nas colónias portuguesas. Visita as ilhas adjacentes, percorre Cabo Verde e segue diretamente para S. Tomé em Angola, nem uma palavra sobre a Guiné. Mas recomenda-se a sua leitura para quem investiga a análise da escravidão após a abolição decretada pela Grã-Bretanha, reputo de muito interesse o que ele escreve sobre Cabo Verde, Angola e São Tomé.

Chegou a oportunidade de ler uma boa investigação de António Carreira intitulada As Campanhas Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, a edição é do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1969. Dá-nos generalidades sobre as companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos, narrando que tudo começara quando os descobridores andavam a filhar gente ao acaso com o objetivo de obter informações sobre as terras e as gentes, mercadorias, tais como o ouro. A esse período seguiu-se a chamada Companhia de Lagos, dirigida por Lançarote, destinava-se à captura de escravos. A etapa seguinte foi o arrendamento da Coroa a Fernão Gomes (1469) por cinco anos. Está documentado que Fernão Gomes navegou costa abaixo, cumprindo o contrato. Noutro período, houve tratos e resgates efetivados diretamente por decisão régia através de arrendatários ou possuidores de licenças temporárias. É o tempo dos assientos, correspondia a um contrato ou a um conjunto de contratos pelos quais um particular se substituía ao rei.

No século XVII a política passou a ser diferente pois constituíram-se companhias de navegação e comércio protegidas pelo monopólio do escambo (comércio de escravos). A primeira companhia constituída foi a Companhia da Costa da Guiné, organizada pelos irmãos Lourenço Pestana Martins e Manuel da Costa Martins a quem foi concedido o exclusivo do comércio de Arguim por oito anos. Anos depois, surgiu a Companhia de Cacheu, Rios e Comércios da Guiné (1666). Tinha obrigações assumidas, caso da reedificação da Praça de Cacheu, o fornecimento de armas e munições, o pagamento de vencimentos ao clero e a militares. Durante seis anos tiveram o exclusivo da navegação de Cabo Verde para a Guiné. Findo o prazo da concessão, os sócios deste empreendimento transferiram os seus direitos para a Companhia do Estanco do Maranhão e Pará (1682), o exclusivo de escravos abrangia também a costa de Angola. A contestação foi enorme e a Coroa viu-se obrigada a cancelar o contrato. A Companhia de Cacheu, Rios e Comércio da Guiné veio a ser substituída pela Companhia de Cacheu e Cabo Verde. É nesta fase, no final do século XVII, que a Coroa pretende incentivar o desenvolvimento agropecuário do Pará e Maranhão, o recurso ao índio era manifestamente insuficiente. As doenças grassavam no Brasil, as crises de mão-de-obra eram consecutivas, foi nesse contexto, e após muitas vicissitudes, que se fundou (1755) a Companhia Geral do Grã Pará e Maranhão, que não teve uma vida pacífica nem gloriosa, não faltaram acusações de desmandos e mais tarde virá a rutura financeira.

Aqui se interrompe para juntar um comentário do historiador e antropólogo brasileiro Luiz Mott na Revista de História da Universidade de São Paulo (1972), acerca da importância do trabalho de António Carreira:
“Dentre os inúmeros Arquivos Históricos existentes em Lisboa, um deles é particularmente rico em material relativo ao comércio exterior do Brasil durante o século XVIII: o Arquivo Histórico do Ministério das Finanças. Mais do que em qualquer outra instituição do Brasil ou de Portugal, é aí neste Arquivo que estão reunidos o maior número e os principais documentos referentes às célebres Companhias de Comércio do período Pombalino: dezenas de enormes livros manuscritos onde foram registrados todos os decretos e avisos régios relativos às Companhias, outro tanto de livros onde estão copiadas todas as cartas que a administração das Companhias mandava e recebia, diários de contabilidade, sem falar nos milhares de papéis avulsos dos muitos maços de correspondência. Material abundantíssimo e muito rico, apenas parcialmente explorado, que espera pesquisadores que o sistematize".

António Carreira, do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, professor do Centro de Estudos de Antropologia Cultural, do Instituto de Alta Cultura (Lisboa), pesquisador arguto e sério, com uma paciência verdadeiramente beneditina, frequentou assiduamente e por um longo período os manuscritos deste Arquivo: o resultado de suas pesquisas (o presente livro), é altamente satisfatório, e digno dos maiores elogios. Além da referida instituição, o Autor fez pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), e no Arquivo Público da Baía.

Profundo conhecedor da história das tecelagens de Cabo Verde e da Guiné, as implicações resultantes da utilização destes panos de algodão no tráfico de escravos, (Cf. o livro de sua autoria, A Panaria Cabo-Verdiana-Guineense - Aspetos Históricos e socioeconómicos, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa), António Carreira oferece-nos com o presente livro um estudo bastante original a respeito das duas Companhias Pombalinas de Navegação, comércio e tráfico de escravos: a Companhia do Grão-Pará e Maranhão, e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba.

O 1.º Capítulo serve como introdução: o Autor apresenta informações gerais, ou generalidades, sobre as Companhias portuguesas de comércio e tráfico de escravos anteriores à época Pombalina. O 2.º Capítulo é dedicado à Companhia do Grão-Pará e Maranhão: a sua formação, a frota utilizada, os agentes, o seu comportamento, a concorrência estrangeira, o contrabando. Uma das partes mais interessantes é a análise estatística dos escravos transportados pelos navios desta Companhia, tomando como base os registos efetuados entre 1755 e 1788. Nesta parte são apresentados os seguintes elementos:
- Número de escravos embarcados e chegados vivos aos destinos
a). - Especificação por sexos e grau de desenvolvimento físico;
b). - Número de escravos segundo as regiões de procedência e de destino;
c). - Etnias levadas para o Brasil;
d). - Tratamento e mortalidade no trajeto;
e). - Marcas de propriedades nos escravos;
f). - Preços médios de custo na origem, por anos e regiões.

Completam tal capítulo a descrição de 2 temas: - algumas das mercadorias utilizadas nos "tratos e resgates dos escravos"; - géneros e manufaturas africanas compradas e exportadas.

O estudo da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba é feito no 3.º Capítulo. Aí o autor aborda os seguintes assuntos: a frota utilizada, alguns problemas do tráfico, proveniência dos escravos levados para Pernambuco, mortalidade dos escravos durante a viagem, preços médios de compra de escravos por anos e áreas.

Acompanham tais reflexões a transcrição de 27 documentos (entre alvarás, representações, cartas, pareceres, petições, etc.), relacionados com as Companhias e o tráfico de escravos. Muitos destes documentos são inéditos. O último deles, embora tendo sido anteriormente publicado, dada a raridade e dificuldade de ser encontrado, é com júbilo que o encontramos aí divulgado. Trata-se do Discurso Académico ao Programa, de autoria de Luís António de Oliveira Mendes, proferido em 12 de maio de 1793, somente publicado em 1812 nas Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, no tomo IV. Tal Memória teve como objetivo "determinar com todos os seus sintomas as doenças agudas e crónicas, que mais frequentemente acometem os pretos recém tirados da África: examinando as causas da mortandade depois da sua chegada ao Brasil: se talvez a mudança do clima, se a vida mais laboriosa, ou se alguns outros motivos concorrem para tanto estrago: e finalmente indicar os métodos apropriados para evitá-lo, prevenindo-o e curando-o: tudo isto deduzido da experiência mais sisuda e fiel" (p. 495). Tal Discurso constitui documento muito rico de informações para a história da escravidão no Brasil. Embora o seu escopo tenha sido, conforme foi dito, primordialmente em termos de sugerir uma nova política sanitária a fim de se evitar a mortandade dos escravos transportados para a América Portuguesa, o certo é que o autor, improvisando-se em etnógrafo, descreveu com muita riqueza e detalhes, os costumes, ocupações e demais aspetos da cultura material dos africanos, "esta porção mais desgraçada da espécie humana" ... (p. 494).

Tal académico não contente em apresentar de maneira "mais sisuda e fiel" a situação destes escravos, transforma as suas linhas em discurso engagé, dizendo que "as diversas crueldades experimentadas pelos pretos escravos em todas as idades, fazem gelar o sangue nas veias do fiel e experimentado escritor", daí sugerir a criação de uma Lei Municipal (6 artigos), que inibisse a desumanidade dos Senhores em favor de uma existência menos desgraçada para os escravos, lei esta que levaria à extinção do tráfico, e à abolição final do trabalho servil:
... "Que na África por hora venha a menor porção dela, que puder vir (escravos), e que para o futuro dilatando-se pela observação o mesmo sistema, se levantem as mãos aos céus, louvando a omnipotência de Deus, que por um destino feliz fez desterrar, e desaparecer par sempre a escravidão dos pretos a todos odiosa." (p. 55).

Lastimamos informar que tal obra, edição do. Autor, dado o pequeno número de exemplares publicados, é dificilmente encontrada nas bibliotecas e livrarias do Brasil.
Todos os exemplares foram enviados de Lisboa ao Rio de Janeiro, onde foram rapidamente distribuídos. Há, entretanto, uma outra possibilidade para quantos não tenham tido a felicidade de obter um exemplar deste importante trabalho: tal estudo foi igualmente publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, nos 89-90 e 91-92 de 1968, n.ºs 93-94 de 1969. Em tal publicação, de acesso relativamente fácil, poderá o leitor comprovar o grande valor e interesse desta pesquisa, e como eu, agradecer a António Carreira a trabalheira que nos poupou, sistematizando tão bem esta importante parte dos manuscritos do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças de Lisboa.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23102: Historiografia da presença portuguesa em África (309): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (13) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 9 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23060: Historiografia da presença portuguesa em África (307): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (11) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É imprescindível ler toda a epistolografia de Honório Pereira Barreto para conhecer o patriota, que a despeito da indiferença dos seus superiores, contribuiu decisivamente para definir as fronteiras da Guiné, batendo-se com galhardia contra as autoridades francesas e britânicas, desvelando patranhas, recorrendo à ironia para pôr à mostra a grosseria de procedimentos de outros, enfim, cita-se aqui um documento fundamental em que conta, passo a passo, o que viveu em Cacheu, como procedeu para defender os interesses portugueses neste período crucial em que, em tenaz, franceses e britânicos procuraram pulverizar o que restava da Senegâmbia Portuguesa. Barreto impõe-se pelo brio, pelo bom-senso das medidas, pelas propostas mais ajustadas, pelo envio de cartas às autoridades francesas pondo-as a ridículo, tanto pela ignorância demonstrada como pela grosseria dos procedimentos. E avançamos em direção a 1879, altura que Senna Barcelos põe termo ao seu extraordinário e incontornável trabalho.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (11)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

É de um indiscutível valor histórico esta epistolografia de Honório Pereira Barreto travada pelas autoridades francesas, percebe-se facilmente que não se pode investigar este período da colónia da Guiné sem ter em conta a documentação que sai do punho do Governador Barreto. Falando com o delegado francês em Selho, é polido quanto baste e exige a diplomacia, mas não escamoteia os factos, falando do assassínio de súbditos franceses que tinha sido praticado por gentes de Pacau:
“Creio que Vossa Senhoria estará plenamente convencido que os portugueses não concorreram, nem direta nem indiretamente, para tal desgraça. Não posso deixar de dizer a Vossa Senhoria quando em 1844, nós portugueses, estávamos em guerra nesse rio com os Balantas de Jatacunda, que também nos assassinaram e saquearam, os comerciantes de Selho não só levaram a tais gentios armas e munições de guerra, mas até lhe compraram uma canoa que eles tomaram aos portugueses. Vossa Senhoria quer estabelecer o princípio que os portugueses devem sofrer prejuízos para benefício dos franceses, e que estes, pelo contrário, devem-se aproveitar das perdas daqueles. Estas ideias não são deste século, nem da grande nação a que Vossa Senhoria pertence. A França é justa. Os portugueses, apesar do precedente que podiam apresentar, e que acima expus, não levam ao gentio de Pacau munições de guerra; apenas vão ali vender sal, como costumam há séculos; e Vossa Senhoria nenhum direito tem de impedir as nossas canoas de navegarem por todos os pontos do rio. Se Vossa Senhoria julga ter tal direito, não pode também recusar aos portugueses o mesmo direito, isto é, impedir que por Ziguinchor passem as embarcações francesas que vão para esse ponto do Selho. Se Vossa Senhoria, porém, quer abusar da força, há-de permitir-me que lhe diga que isso não é próprio do caráter generoso da nação francesa; nunca a força dá direito algum. Vossa Senhoria, falando do sangue europeu, parece fazer diferenças de raças, e mesmo usar de uma frisante ironia para com o delegado administrativo de Ziguinchor, que é de cor preta, mas que não cede a europeu algum em honra e dignidade. Não distingo cores, mas homens pelas suas qualidades boas ou más. Estou intimamente convencido que o ilustrado governo francês concede proteção a todos os seus súbditos, seja qual for a sua cor. Sinto realmente que Vossa Senhoria trate uma autoridade portuguesa com tão pouca consideração, que lhe dirija correspondência oficial num papel em que eu me envergonharia de escrever a um súbdito meu”.

Em Cacheu, em 27 de outubro de 1855, Barreto envia ofício confidencial ao Governador-Geral dando-lhe conta de como as coisas se processam em Ziguinchor, assim terminando: “Corre aqui a notícia que a França, reconhecendo os nossos direitos sobre Casamansa, prometeu abandonar os estabelecimentos que ali tem hoje. Se isso for verdade, fica a Guiné feliz, porque aquele rio exporta o dobro do que exportam os outros portos juntos”. Para Senna Barcelos, a situação era deprimente: “Pouco era o comércio da Guiné; os franceses no Casamansa e os ingleses em Bolama colocaram no mercado fazendas por preços tão baixos que os da indústria portuguesa não podiam competir”. Barreto era a figura central da política guineense, e assim se compreende como em 7 de junho de 1857 uma representação dos moradores de Bissau, incluindo oficiais militares, se dirigiu ao governo pedindo a recondução de Barreto no governo. Estamos na época em que o governador-geral propôs para que a Guiné se constituísse em governo independente.

E Senna Barcelos conta-nos uma história rocambolesca:
“Em 10 de junho de 1856, tendo requerido o 2.º Sargento do Regimento de Lanceiros da Rainha, Venceslau de Andrade, para se averiguar se um seu tio de nome António Garcia de Andrade, de quem se dizia ter sido Governador de Cacheu e Comandante da Praça de Farim, era ou não vivo, foi mandado pedir informações a Honório Barreto que em 30 do mesmo mês respondeu: que nem o juiz Forâneo e nem o Administrador do Concelho de Cacheu souberam dar elementos para a informação exigida; que se houve engano no nome, este devia ser António José de Andrade, seu conhecido em Cacheu, e que faleceu em Farim, em 1842 ou 1843; este indivíduo viera degredado por toda a vida, com pena de morte se voltasse ao reino, constando que chegara a dar três voltas à forca, por crime de roubo; que chegara a Cacheu em 1833 ou 1834, assentou praça na companhia de 1.ª linha de Cacheu, onde foi promovido ao posto de sargento, e tendo dado a um certo governador um escravo de presente, este lhe rasgou a guia e o propôs então ao governador-geral para capitão de 2.ª linha de um dos redutos de Farim, passando depois a capitão-mor; que nunca fora governador de Cacheu mas sim comandante do presídio de Farim, o que é muito comum na Guiné”.

Continuam a fazer-se relatórios sobre a usurpação do Casamansa pelos franceses e Honório Pereira Barreto envia para o governador-geral um dos seus mais importantes relatos:
“Em 1829 cheguei eu a Cacheu vindo de receber em Lisboa uma mui limitada educação, porém, suficiente para poder avaliar e apreciar o procedimento das nossas autoridades em Cacheu. Notei que à indignidade e incapacidade dessas autoridades se devia o estado em que vim encontrar a pequena Cacheu. Bem se podia dizer que não havia governo porque não havia, nem quem entendesse o que era o governo, nem ao menos representasse o seu fantasma; porque o tempo era pouco para os empregados, incluindo o governador, ocuparem-se de um comércio, pois todos eram traficantes. O governador desse tempo andava na rua vestido indecentemente; passava dias a bordo dos pequenos navios estrangeiros de cabotagem que vão ali comerciar. Os estrangeiros tratavam e negociavam diretamente com os gentios tanto em Cacheu como em Ziguinchor. Pouca correspondência havia entre o Governador de Cacheu e o da Província. Para me resumir, direi que o governo de Cacheu era considerado uma aldeia de gentio independente. Em 1828 já os franceses haviam ocupado a ilha dos Mosquitos na embocadura do Casamansa: este facto tão significativo passou desapercebido em Ziguinchor e Cacheu; ninguém protestou nem disso deu parte. Tudo assim continuou até ao ano de 1834; fui nomeado Provedor de Cacheu, contava eu então 21 anos de idade. Os meus primeiros cuidados foram logo livrar o Concelho de Cacheu do domínio dos estrangeiros e da sujeição dos grumetes e dos gentios. Se tive aventura de obter o segundo objetivo, tive a desgraça, a grande desgraça, de ver os estrangeiros usurparem mais territórios nossos; obtive, contudo, tirar a esses estrangeiros toda a influência nos pontos ocupados por nós. Desde 1835 constou-me que os franceses iam ocupar um ponto ao sul da Gâmbia e que talvez escolhessem Casamansa. Tudo quanto um Provedor de Cacheu, enfim, um português, podia fazer, tudo fiz. Havia eu dado ordens muito terminantes para Ziguinchor para que se não tolerasse que os estrangeiros negociassem em outro ponto do Casamansa que não fosse Ziguinchor. O meu delegado cumprira esta ordem”.

É um documento memorável, peça obrigatória de consulta para quem pretende compreender o grande ecrã da questão do Casamansa. Descreve diligências, as suas idas a Ziguinchor, as cartas dirigidas ao governador-geral que não obtiveram resposta, a chegada dos franceses a Selho, Barreto protesta, pediu auxílio ao governador da Gâmbia, este respondeu que não era seu assunto. Barreto é nomeado Tenente-Coronel de 2.ª linha e então ironiza: “Apesar de o Ministro da Marinha haver declarado que eu era homem de cor, palavra esta que o redator ou editor escreveu em itálico; não há dúvida que o salutar prejuízo da cor, e porventura as conveniências políticas e sociais, exigiam que se fizesse tão interessante e imparcial declaração para serem devidamente apreciados tais serviços”.
A progressão francesa prossegue, a reação de Lisboa é sempre demorada e fraca. Barreto pede a demissão do governo em 1839 e diz no seu documento que teve o desgosto de ver destruído pelos seus sucessores tudo quanto havia feito, e diz sem rebuço: “Começaram logo a ter correspondência com os chefes franceses, em Selho, reconhecendo neles não só os títulos de comandantes que se arrogam mas o direito que julgam ter ao território. Mandaram retirar o destacamento que eu tinha posto em Gorm. O então Comandante de Ziguinchor, que é meu tio, cansado de participar ao Governador de Cacheu pactos, insultos e novas usurpações dos franceses, escreveu-me em 1844, narrando-me tudo, o abandono de Ziguinchor. Apesar de então nada ter com isso, pois era simpatia particular, vendo a apatia do governo fui a Ziguinchor, e à minha custa e em meu nome fiz e mandei fazer, com os chefes daqueles pontos, convenções, em que me cederam terreno, e ficava só reservado aos portugueses a navegação e comércio daqueles rios ou esteiros…”.

E continua a contar a história do Casamansa, desvela as mentiras de antecedentes da presença francesa no Casamansa e Senna Barcelos termina estas belas páginas revelando a carta que a Comissão Municipal de Bissau dirigiu a Barreto pedindo-lhe para não se retirar para Cacheu, a sua presença em Bissau era indispensável para o sossego público.


Continua
Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23044: Historiografia da presença portuguesa em África (306): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (10) (Mário Beja Santos)