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quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22814: Facebook...ando (66): Farmácia e Saúde na Guerra do Ultramar - Conferência em streaming no Facebook, amanhã, dia 17, pelas 18 horas, em directo do Museu da Farmácia de Lisboa


O Museu da Farmácia, desde a sua inauguração, que homenageia os militares dos três ramos das Forças Armadas portuguesas (Exército, Força Aérea e Marinha) pelo seu esforço pessoal e profissional - na área da Saúde - em ambiente de guerra. Esta tertúlia especial a realizar em período de Natal e de Paz, traz consigo uma série de testemunhos de pessoas que viveram na linha da frente os murmúrios da dor e os sorrisos da esperança da vida.

Farmacêuticos, médicos, enfermeiros, investigadores e museólogos (todos militares à época), são convidados a partilharem memórias e a fazerem o seu comentário sobre a Farmácia e a Saúde na Guerra de Ultramar, criando assim um diálogo único entre as peças do museu e as suas experiências, em jogos de sombras e em ambiente de conflito armado.

Uma conversa com José Damas Mora, farmacêutico; António Maia Nabais, museólogo; Fernando Reis Lima, médico; Maria Arminda Santos, enfermeira; Mário Beja Santos, escritor e investigador; e Pedro Correia Taveira, enfermeiro.

Modera João Neto, Diretor do Museu da Farmácia.

👉17 de dezembro (sexta-feira) |18h00| em direto do Museu da Farmácia Lisboa, streaming no Facebook.
Informações: museudafarmacia@anf.pt

https://www.facebook.com/events/3135133946723967

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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE SETEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22517: Facebook...ando (65): "Deu-me muito prazer preencher, com as minhas palavras sentidas, as duzentas e dezoito páginas, do meu livro, Um Caminho de Quatro Passos, a ser apresentado, sábado, dia 11, às 11h00, na Tabanca dos Melros (António Carvalho, Medas, Gondomar)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21805: Os nossos enfermeiros (15): seleção aleatória, formação rudimentar do pessoal de enfermagem, carência de material, etc. (selecão de textos de Armandino Alves, 1944-2014)


Guiné > Região do Oio > Setor O2 > Farim > Jumbembem > CCAÇ 1565 (1966/68) > 10 de julho de 1966 > Helievacuação do cap mil inf Rui Romero > Na foto da evacuação importa também identificar o 1º Cabo Enfermeiro Fernando Teixeira Picão.  colocado do lado esquerdo da foto em calção e camisa (já falecido), e ainda do mesmo lado e logo a seguir o 1º Cabo radiotelegrafista Guilherme Augusto Leal Chagas, natural de Elvas; do lado direito em tronco nu e calção, junto ao Heli o Furriel, Manuel Júlio Vira, natural de Setúbal, (já falecido em 2003).

Foto (e legenda): © Artur Conceição (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O Armandino Alves, à direita, reencontra,
em 2010, o seu antigo comandante,
agora cor inf ref Henrique Victor 
Guimarães Perez Brandão. 
1. O nosso camarada Armandino [Marcílio Vilas] Alves (ex-1º Cabo Auxiliar de Enfermagem, CCAÇ 1589, Beli, Fá Mandinga e Madina do Boé, 1966/68) tem 38 referências no nosso blogue.  Entrou para a Tabanca Grande em 2009, morreria, infelizmente cinco anos depois. Era natural do Porto (*).

Dos vários e interessantes postes que publicou, em vida, no nosso blogue, alguns têm por objeto os serviços de saúde militares a que ele pertencia. Na série "Os nossos enfermeiros", tem pelo menos dois postes (**)


Vamos reunir, nesta série, "Os nossos enfermeiros" (***), alguns dos seus apontamentos sobre algumas questões  relevantes como a seleção do pessoal de enfermagem, a sua formação teórico-prática,  a  carência de material, as ambulâncias e atrelados sanitários, e ainda as doenças sexualmente transmissíveis.

  
Enfermeiros… mas não por opção (****)


4 de maio de 2010


(...) Como toda a gente sabe, a selecção dos soldados no fim da recruta, para as diversas especialidades,  era feita de forma aleatória, não havendo qualquer inquérito a fim de se saber a função que cada um gostaria de desempenhar.

Vais para “isto”... e bico calado!

Por isso, muitos foram para enfermeiros sem qualquer propensão, para desempenhar esse cargo.

Depois, no Regimento do Serviço de Saúde, em Coimbra, as aulas eram todas teóricas e dadas por Sargentos ou Cabos RD [Readmitidos]. Quanto a Médicos, que eu me lembre, só lá apareceu um – tenente –, uma  ou duas  vezes, em todo o curso.

E, pelo menos, no meu curso, nunca se falou em teatros de guerra. Era mais um curso para se integrar nos Hospitais, e depois íamos aprender para os mesmos. Mas, aprender o quê?

Tirando aqueles que tiveram a sorte de ir para enfermarias de Ortopedia e Traumas, o que aprenderam os outros?...A dar injecções!

Quanto ao resto,  eram autênticos “ceguinhos” e só foram aprendendo, com o tempo e a experiência, desenrascando-se o melhor que podiam e sabiam.

Na época de 1966-68, não se notou muito essa pecha, pois quando era solicitada uma evacuação,  ela era feita, fosse por helicóptero nas operações, fosse por DO-27 nos aquartelamentos ou destacamentos com pista de aviação.

A falta de evacuações é que veio pôr a nu esse desiderato. Havia enfermeiros, mas não havia o material necessário.

O que eram os garrotes fornecidos com a Bolsa de Enfermeiro? Um simples tubo de borracha maleável, que era muito bom para tirar sangue e nada mais. Um garrote a sério teria que ser improvisado com ligaduras e um pau, para fazer o torniquete.

Como já aqui se falou,  a Marinha tinha o último grito em garrotes e não sei se a Força Aérea também os tinha (mas para isso ninguém melhor que a Enfermeira Paraquedista Giselda Pessoa para melhor nos informar).

Quanto aos atrelados sanitários, tinham muito material lá dentro, mas não era para mexer. Eles estavam apenas à nossa guarda e isto nos aquartelamentos que os possuíam.

O atrelado sanitário era um hospital de campanha e, portanto, pertencente ao Hospital Militar. Certo é que o que lá estava armazenado era intocável.

Vem isto, que acabo de escrever, a propósito do poste P6315 (******). Tenho a certeza que tanto o Furriel Enfermeiro como o Cabo Maqueiro não iam munidos com soro, pois não o possuíam, e se houvesse lá um atrelado sanitário com soro, com certeza que o prazo de validade já teria caducado há muito tempo.

E quanto tempo aguentaria um soldado ferido? Que quantidade de sangue já não teria perdido entretanto?

Sem o soro não havia possibilidade de o estabilizar e, mesmo que houvesse a remota possibilidade de uma transfusão directa, com outro camarada com sangue do mesmo tipo, no meio daquele inferno, seria quase impossível.

Eu tive um camarada que morreu com um tiro no abdómen, por falta de evacuação, por ser de noite. À noite não haviam meios aéreos e também não se podia usar o garrote.

9 de setembro de 2009 (**)

(...) Em suturas, eu era um zero. A primeira vez que vi suturar, foi na Academia Militar, o Cabo que estava a executá-la teve que deixar o ferido para me atender a mim. No entanto, na Guiné tive de fazer das tripas coração e fazê-las, pois tive colegas que delas precisaram.

Mas não foi o Serviço de Saúde do Exército que nos ministrou isso nos cursos. Mesmo os Enfermeiros nos Hospitais Civis, só quando passam pelos serviços de urgência é que aprendem alguma coisa além de dar injecções, medir a tensão ou distribuir comprimidos. (...)

Quando cheguei à Companhia [, CCAÇ 1589,] não havia quem soubesse preencher os formulários para o Laboratório Militar pois isso era da competência dele [,o furriel enfermeiro]. Só 3 a 4 meses depois é que foi substituído.

Nesse entretanto fui encarregado pelo meu Capitão, não por ser o mais antigo da Companhia, mas porque, tendo estado no HMR1 [Hospital Militar Regional nº 1, Porto] onde era eu, que a pedido do Sargento que nunca lá estava, elaborava os mapas, fazia a requisição dos medicamentos e quejandos, e fui tendo umas luzes, continuando na Academia Militar a fazer o mesmo a pedido do 1.º Sargento que era um tipo porreiro e me desenrascava nos fins de semana para vir ao Porto. Amor com amor se paga.

Ora isto não se aprendia nos cursos que eles nos davam. Nós é que por moto próprio íamos tentando aprender. Por exemplo, o meu tirocínio foi em infecto-contagiosas. O que é que esta especialidade interessa para o mato? Absolutamente nada. Era uma especialidade hospitalar. (...)

7 de setembro de 2009 (**)

[Sobre a prevenção e tratamento das doenças sexualmente transmissíveis]
 
(...) A verdade é que o que existia nos postos Médicos das unidades (e nem em todos),  era umas caixinhas com umas bisnagas com um produto [antivenéreo]  que eu nem me lembro do nome, que o soldado solicitava quando queria ir às putas, mas tinha que se anotar o nome, dia e hora a que era solicitado. Claro que ninguém ia buscar o dito tubinho.

E foi assim que, quando a minha Companhia [, a CCAÇ 1589,] regressou do mato a Bissau e os Soldados se sentiram livres, apareceu-me passados dias em vários soldados os sintomas da blenorragia.

Ora isto tinha que ser comunicado ao Médico que por sua vez informava o Comando da Companhia que por sua vez agraciava o infractor com cinco dias de detenção. Ora detidos já tinhamos estado nós no mato durante um ano e, como eu já sabia que o médico ia receitar Penicilina na dose mais forte, foi o tratamento que eu lhes prescrevi e para estarem na enfermaria a X horas para ser eu a aplicar as referidas injecções. 

Só que, para meu azar,  um dos atingidos por motivos de serviço , não pôde estar no horário previsto e foi ter com o Cabo Enf de Dia para que lhe desse a injecção. Como ele não sabia de nada,  comunicou ao Médico que comunicou ao meu Comandante que chamou o soldado que lhe disse que tinha sido eu que o mediquei.

Claro que fui chamado ao Comandante [,
 cap inf Henrique Victor Guimarães
Perez Brandão,] 
 que me ameaçou com os referidos 5 dias de detenção. Eu então perguntei-lhe se fosse no mato o tratamento era o mesmo.  

Felizmente o Comandante, atendendo aos bons serviços prestados durante toda a Comissão, rasgou a participação do Médico e ficou tudo em águas de bacalhau.

O que as brochuras dizem não é bem o que se passa no terreno a nível prático. A gente vai-se desenrascando conforme pode e sabe e isso às vezes salvava vidas.(...)
________

Notas do editor: 

(*) Vd. postes de:




(***) Último poste da série > 23 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21800: Os nossos enfermeiros (14): na falta de médicos, optou-se pela secção sanitária a nível de companhia: um fur mil enf e três 1ºs cabos aux enf (António J. Pereira da Costa / Paulo Santiago / António Carvalho / José Teixeira / Luís Graça)


(*****)  Vd poste de 4 de maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6315: Recortes de imprensa (24): Salgueiro Maia, comandante da CCAV 3420, em fim de comissão, 5 de Maio de 1973: "Em 60 homens ninguém sabia o mais elementar em primeiros socorros: fazer um garrote" (Beja Santos)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21789: Os nossos enfermeiros (12): Os serviços de saúde militar no meu tempo (José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70)


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 2381 (1968/70) > O José Teixeira, escrevendo, junto ao memorial da companhia.

Foto (e legenda): © José Teixeira (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Mensagem de José Teixeira, ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , 1968/70; teve como comandante de pelotão o alf mil José Belo, hoje régulo da Tabanca da Lapónia; o José Teixeira é, por sua vez, régulo da Tabanca de Matosinhos e "senador" da Tabanca Grande, com  mais de 350 referências no nosso blogue:

Data - 19 jan 2021 22:37

Assunto - Os serviços de saúde militar e a guerra colonial [comentário aos postes P21781 e 21782 (*)]

O Dr. Carlos Vieira Reis faz uma leitura muito interessante dos Serviços de Saúde Militar nas guerras de África,  creio que muito centrada em Angola e nos primeiros tempos da guerra.

A realidade nos anos 1968/69/70 era bem diferente. A começar pela estrutura médico sanitária da Companhia, onde não havia médico. Este, existia apenas a nível batalhão ou era colocado no Comando do Sector. 

Cada Companhia tinha nos seus quadros um furriel enfermeiro e três cabos auxiliares de enfermeiro. Note-se que havia a categoria de cabo enfermeiro. A sua preparação era exatamente igual à do auxiliar de enfermeiro, mas o que era classificado como cabo enfermeiro era destinado ao Hospital e o que era classificado como auxiliar de enfermeiro era colocado nas Companhias operacionais.

Deste modo, cada Companhia tinha um enfermeiro por Grupo de Combate (um furriel e três cabos auxiliares de enfermeiro), mas, salvo raras exceções, o furriel refugiava-se no comando e os desgraçados dos cabos auxiliares de enfermeiro marchavam no terreno.

Quanto a médicos, em cerca de três meses que estive em Ingoré, quem pontificava na assistência à saúde era o furriel da companhia ali estacionada, o qual era chamado “dotor” pela população e, na realidade,  atendia a população , receitava medicamentos, assistia a partos, etc.

Era um “apanhado pelo clima” autenticamente maluco, mas que era bom na arte, era! Aprendi muito com ele no pouco tempo em que convivemos, quer em conhecimentos de doenças tropicais e seu tratamento, bem como na minha relação com a população. 

Posteriormente foi castigado e reduzido a soldado raso, como tive oportunidade de saber, quando o encontrei na prisão dos Adidos em Bissau. (Uma estória para contar mais tarde).

Eu, que tive três meses de formação em enfermagem no Serviços de Saúde em Coimbra, onde um Cabo RD [, readmitido,] dava formação do corpo humano, um médico que aparecia uma vez por semana para uma palestra e um 1 º sargento “cheio de África” que nos dava palestras numa linguagem pobre, sobre saúde.

De notar que, num pelotão de cerca de cinquenta homens,  a grande maioria vinha da escola de sargentos onde tinha chumbado, logo, gente revoltada, com conhecimentos científicos (7º ano, professores primários, etc) e vistas largas, que faziam do cabo RD e do Sargento gato sapato. 

Para mim foram umas férias, pois tinha dado o corpo humano no liceu de uma forma muito mais científica e mais profunda. Seguiu-se um estágio de cerca de dois meses no hospital do Porto, numa enfermaria dedicada a medicina interna, onde tomei conhecimento com algumas doenças, treinei a dar injeções e pouco mais.

Entrei pela guerra dentro, com um furriel enfermeiro que tinha o atual 6º ano, um cabo auxiliar de enfermeiro com o curso comercial (corresponde ao atual nono ano), eu com o 9º ano incompleto e um outro com a 4ª classe. 

Uma bela equipa, onde o furriel nunca se encaixou, bem pelo contrário.

Valeram-me a vaga experiência anterior como escuteiro, a minha força de vontade em dar o meu melhor e os conhecimentos adquiridos com o furriel “maluco” em Ingoré e a unidade da equipa dos três estarolas auxiliares de enfermeiro, pois o furriel enfermeiro da minha companhia, creio que sabia muito menos que nós. 

Felizmente nunca precisou de demonstrar os seus conhecimentos na área. Nunca saiu para o terreno e na única vez que caiu debaixo de fogo, numa mudança da companhia, nem se dignou aparecer juntos dos feridos, quando estavam a ser tratados, um dos quais faleceu por hemorragia interna. 

A enfermaria era terreno nosso. Como não nos suportávamos mutuamente, ele aparecia lá pontualmente e deixava-nos à vontade, desde que não implicássemos com ele sobre as idas para o T.O.
 
No sub-sector de Aldeia Formosa, já colocado em Mampatá, como não havia médico, com a ajuda do Alferes José Belo, meu comandante, conseguimos que uma avioneta fosse de propósito a Aldeia Formosa buscar um africano já idoso com graves problemas intestinais. 

Isto nos primeiros tempos da spinolândia. Depois foi lá colocado um médico, todavia quando eu – o “dotor” de Mampatá- , lhe enviei um camarada para ser consultado, vi o rapaz regressar sem ser visto pelo médico, dado que este tinha dado baixa a si próprio e não saía do quarto, queria ir para Bissau exercer a sua especialidade.

Está claro que no dia seguinte fui eu visitar o médico e tivemos uma discussão azeda, até que ele acabou por me aconselhar um medicamento para eu administrar ao doente e tudo passou.

Só voltei a encontrar um médico em fevereiro do ano seguinte em Buba, apesar de Aldeia Formosa, ser uma zona de elevado risco, mesmo nas “barbas” da Mata do Cantanhez e com o corredor de Uane a separar-nos de Buba, até onde íamos para transportar os mantimentos que posteriormente levávamos com muito sangue, suor e lágrimas até Gandembel.

Em Buba, o dr. Azevedo Franco, natural de Matosinhos onde felizmente ainda mora, foi um homem extraordinário para os rapazes das três companhias operacionais, um Grupo do BENG 447, Comandos e Fuzas, um mundo militar para apoio na construção da estrada para Aldeia Formosa. Sempre atento às necessidades, ouvia cada um com toda a atenção, era pródigo em dar baixas.

Falo com orgulho deste médico de quem estimo a amizade que criamos na guerra e que se mantém. O desgaste físico a que eramos submetidos quebrou a resistência física e o dr. Azevedo Franco assumiu o risco de nos ajudar, ao ponto de as três companhias ficarem reduzidas a cerca de um terço. 

As consequências não tardaram: primeiro, uma Junta médica para analisar as baixas que apareceu repentinamente com dois médicos vindos de Bissau para ver no terreno o que se passava; e tiveram azar, porque a malta estava a comer spaguetti com chispe ao almoço e ossos de chispe com spaguetti ao jantar, (ainda hoje não posso ver spaguetti) a alinhar todos os dias para a segurança na estrada em construção (tinha havido atraso na remessa de alimentos com cerca de quinze dias).  Depois a vinda do Spínola em pessoa para fazer um discurso apelativo ao nosso patriotismo.

E perante as nossas queixas virava-se para o major que o acompanhava, “aponta Bruno” Eu, estava ao lado do médico quando o general se aproximou dele e lhe recomendou que desse umas “picas” aos rapazes, “aponta Bruno”, ao que o médico respondeu: "Peixe e carne em quantidade e qualidade!"

Uns dias depois, juntamente com os mantimentos, vierem dois volumes de medicamentos, na sua base, vitaminas. O médico mandou-me devolver tudo a Bissau com a informação que não tinham sido solicitados e não eram necessários.

Em Empada, o médico de Buba aparecia de vez em quando e passava lá uma ou duas semanas e voltava para Buba. Suponho que fazia o mesmo em relação a Aldeia Formosa, mas não posso confirmar.

Está claro que não estávamos em Angola e os tempos eram outros. Uma guerrilha muito mais localizada e próxima, muito agressiva e sobretudo poucos médicos e uma população muito próxima que via em nós o “dotor”.

 Grande parte do tempo que tínhamos quando libertos da ação militar era gasto a receber a população e a dar “mezinho”. Quase não havia descanso para os enfermeiros. (**)

Zé Teixeira  (***)
____________

Notas do editor

(*) Vd. postes de:

19 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21781: Nota de leitura (1335): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - Parte I (Luís Graça)



(***) O José Teixeira tem uma notável série, a que chamou "O meu diário" (terá sido o primeiro a publicar-se no nosso blogue):

1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

(...) Buba, 21 de Julho de 1968: Agora me lembro, hoje é Domingo... Saí às cinco da manhã em patrulha de reconhecimento à estrada de Aldeia Formosa. Voltei a Buba onde assento desde ontem pelas treze e trinta, depois de uma marcha de cerca de vinte quilómetros debaixo de sol abrasador. O resto da tarde foi para dormir, estava completamente esgotado (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968

(...) Buba/Aldeia Formosa, 24-26 de Julho de 1968: (...) A noite começou mais cedo neste negro dia de vinte e quatro de Julho! Esta vida salvava-se, mas um mal nunca vem só. A viatura atingida era o carro do rádio e consequentemente desde aquela hora (16 h) ficamos completamente isolados do resto do mundo. O ferido mais grave e que veio a falecer era o radiotelegrafista. Isto é guerra... Quando nos dispúnhamos a montar acampamento o radiotelegrafista morreu. Com o impacte do rebentamento tinha ido ao ar e caíu de peito, rebentando por dentro. Eu e o Catarino nada pudemos fazer (...).

(...) Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968: (...) Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem (...).

2 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIV: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968 

(...) Aldeia Formosa, 28 de Julho de 1968: (...) Encontrei em Gandembel o Mário Pinto, meu colega de escola, contou-me coisas terríveis que se têm passado neste aquartelamento fortificado, junto à fronteira com a Guiné-Conacri que tem como objectivo cortar os carreiros de ligação à estrada da morte, impedindo o IN de fazer os abastecimentos (...).

6 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXVII: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968

(...) Mampatá, 7 de Setembro de 1968: Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ? Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não (...).

11 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXL: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (6): Mampatá, Setembro-Outubro de 1968 

(...) Mampatá, 17 de Setembro de 1968: Dia de correio. Ainda cedo sentiu-se a avioneta de Sector em direcção a Aldeia Formosa. Aguardamos com ansiedade a viatura que partiu para lá....O Vitor escreveu-me. Por Bissorã nem tudo corre bem. Segundo ele, num pequeno incidente ficaram dois soldados inutilizados para toda a vida, ambos com uma perna amputada e um outro com a cara cheia de estilhaços. Além destes, uma nativa morta e outra sem uma perna. Tudo por rebentamento de minas A/P, montadas pelo IN. Numa saída em patrulha a malta vingou-se fazendo sete mortos e dois prisioneiros. O último a morrer foi o tipo que montou as minas e, pelo que ele conta, teve morte honrosa. Todos os africanos verificaram a eficiência das suas facas no seu corpo (...)

(...) Mampatá, 25 de Setembro de 1968: Como é belo sentir nas próprias mãos o pulsar de um coração novo que acaba de vir ao mundo. Um corpo pequenino, branco como a neve, puro como os anjos e no entanto, este corpo vai crescer, a pouco e pouco a natureza encarregar-se-á de o tornar negro como os seus progenitores, negro como os seus irmãos que hoje não cabiam em si de contentes. É puro como os anjos, a sua alma está imaculada, mas virá o tempo em que conhecerá o pecado, terá de escolher entre o bem e o mal (...).


Guiné 63/74 - CDLIV: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro de 1968

(...) Mampatá, 29 de Outubro de 1968: (...) A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos (...).

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969 

(...) Mampatá, 5 de Janeiro de 1969: (...) Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente. A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada). A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (...).

(...) Chamarra, 23 de Janeiro de 1969: (...) Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram. Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer (...).

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi 

(...) Leça do Balio, 17 de Fevereiro de 2006

Ao reler o Meu Dário (que não era diário) onde apontei algumas das situações mais marcantes da minha guerra, apetecia-me queimar tudo e recomeçar de novo. Tudo o que escrevi, não foram historinhas para depois (agora) de velho, contar aos netinhos. São factos verdadeiros escritos a quente, para não perderem o “sal” da realidade que o tempo teima em dissolver

Hoje, com as feridas saradas, talvez romanceasse um pouco. Talvez lhe juntasse outros pormenores, que com o calor dos acontecimentos foram posto em secundário. Talvez lhe juntasse outras situações que vivi e não escrevi, umas por desleixo, falta de motivação de momento, ou até por não encontra razões de história. Outras por medos “pidescos” de poder ser apanhado. (...)

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21782: Notas de leitura (1336): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - II (e última) Parte (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCS/ BCAÇ 2852 (1968/70) > 1970 > Destacamento de Nhabijões > Assistência médica à população do reordenamento de Nhabijões, maioritariamente de etnia balanta (e com "parentes no mato", tanto a norte do Cuor como ao longo da margem direita do Rio Corubal, nos subsetores do Xime e do Xitole). Como se vê, a consulta médica era muito pouco privada... Além disso, o médico (neste caso, o alf mil médico Vidal Saraiva (*), cirurgião, tinha que utilizar os serviços de um intérprete (, que está de pé, ao lado do paciente, que veio diretamente do trabalho, na bolanha). Ao canto superior esquerdo, há um tabuleta em madeira onde se lê: "Por favor não deitar lixo para o chão".

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís GRaça & Camaradas da Guiné]



Nota de leitura - II (e última) Parte
por Luís Graça



Reis, Carlos Vieira – A Guerra Colonial. In: Veloso A. J., Mora, L. D., Leitão, H., (Eds.) (2017). Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, pp. 492-505

Carlos Vieira Reis é coronel médico e escritor, ex-diretor de serviço de Cirurgia, ex-director clínico do Hospital Militar Principal, ex-presidente da União Mundial dos Escritores Médicos.

Resumo:

A organização e o funcionamento dos serviços de saúde militar, durante a guerra colonial / guerra do ultramar, é um dos cinquenta capítulos da obra verdadeiramente enciclopédica, de que o meu ilustre amigo A. J. Barros Veloso (médico, músico de jazz e historiador, especialista de medicina interna, ex-diretor de serviço do Hospital dos Capuchos, Hospitais Civis de Lisboa) foi o principal editor literário, para não dizer mesmo a verdadeira “alma mater”: “Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX”.

Barros Veloso é, de resto, o autor de 15 capítulos. A obra, com um total 863 páginas, reúne a colaboração de cerca de quatro dezenas de especialistas da história da medicina portuguesa no séc. XX (, incluindo, modéstia à parte, o meu nome, no que diz respeito à génese e desenvolvimento da saúde pública).

Na II parte desta nota de leitura, aborda-se o apoio sanitário que tivemos durante a guerra colonial,com destaque com a experiência do autor como diretor do hospital militar de evacuação, no Luso, Leste de Angola. (**)





Infografia: Luís Graça (2020)


(Continuação) (**)

Os primeiros médicos a serem mobilizados para Angola, na sequência dos trágicos acontecimentos de 15 de março de 1961, foram justamente os que tinham acabado de cumprir o serviço militar obrigatório. Ainda não havia carreiras médicas nem internatos de especialidade e o número total de médicos em Portugal em 1960 não ultrapassava os 7, 1 mil (Gráfico nº 1)… E na década seguinte só se formaram mais 1100…

Se compararmos com a situação atual (2017), desde 1960 o número de médicos aumentou mais de 7,3 vezes. O mesmo se passou com os enfermeiros, que evoluíram de uns escassos 9,5 mil, em 1960, para 71,6 mil (em 2017) (7,5 vezes mais).

Com a abertura de mais duas frentes (Guiné, em 23 de janeiro de 1963, e Moçambique em 25 de setembro de 1964), as necessidades em pessoal médico militar dispararam, obrigando o exército a recrutar médicos menos jovens. Nas especialidades com menos quadros, chegaram-se a mobilizar médicos com “mais de 45 anos”. E até chefes de serviço hospitalares foram chamados (p. 495).

No caso da enfermagem, a estratégia dos serviços de saúde militar foi outra. Em 1965, foi criado o Regimento de Saúde, em Coimbra, para satisfazer as necessidades crescentes de pessoal sanitário para os vários teatros de operações, e em particular de enfermeiros e maqueiros, recrutados entre o pessoal do contingente geral. 



Imagem do sítio oficial da ESSM -Escola de Serviço de Saúde Militar (, reproduzida com a devida vénia...). Trata-se de "um estabelecimento de ensino superior, integrado na rede do ensino superior politécnico", criado em 2 de Agosto de 1979 pelo decreto-lei nº 266/79. A ESSM está colocada na dependência directa do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA). É herdeira da Escola de Enfermagem da Armada e da Escola do Serviço de Saúde do Exército, entretanto extintas. "O ensino nesta escola abrange essencialmente três áreas distintas, dependentes de uma direcção de ensino: a enfermagem, os cursos de tecnologias de saúde e os cursos de saúde militar (...) Os cursos de saúde militar não são conferentes de grau académico e envolvem diversas áreas de formação, nomeadamente socorrismo, emergência médica e patologia de adição (alcoolismo e toxicodependência)."

Também por aqui passou, na segunda metade da década de 1960, o nosso camarada Adriano Moreira
 ("nickname", Admor), ex-fur mil enf, CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70 (***)



As NEP mandavam haver um médico por companhia…

De qualquer modo, os quadros de saúde, e nomeadamente os médicos milicianos, vão ser usados até à exaustão. O rácio 1 médico por companhia (160 homens), inicialmente previsto nas NEP, deixou de ser praticável, facto que parece ter escapado ao autor, Carlos Vieira Reis:

“O papel desempenhado pelos médicos no mato teve a maior importância na Guerra Colonial. Cada batalhão era constituído por quatro companhias, cada uma como seu médico, ao qual eram adstritos, um sargento-enfermeiro, e dois ou três maqueiros, apoiados por uma ambulância com material cirúrgico elementar” (p. 496).

Pessoalmente, na Guiné, no meu tempo (1969/71), não conheci nenhum batalhão com 4 médicos, um por companhia. Na melhor das hipóteses havia um médico por batalhão (**)… E também não me recordo de ver ambulâncias no mato...

Por outro lado, o autor, coronel médico Carlos Vieira Reis, antigo o diretor do Hospital Militar Principal (HMP), reconhece que os médicos milicianos, recém-licenciados, depois da frequência, com aproveitamento, do COM – Curso de Oficiais Milicianos, em Mafra, transitavam para a Escola de Serviços de Saúde Militar, na Estrela, junto ao HMP, ali “adquirindo noções muito superficiais de patologia tropical” (sic) (p. 496)... Mas foram justamente estes bravos,  médicos, enfermeiros e outros,  que “fizeram a cobertura sanitária nos teatros de guerra”.

Para o médico no mato, para além das situações de rotina (vigilância da saúde do pessoal de uma companhia ou batalhão, consultas médicas e de enfermagem, etc.), o que era preocupante eram as “situações de emergência”, tais como “as crises graves de paludismo com febre alta, calafrios e convulsões” ou então “as úlceras duodenais agudas com hematémeses e melenas”, requerendo o transporte aéreo do doente para o “centro cirúrgico mais próximo” (que no caso da Guiné só podia ser o HM 241, em Bissau)…


Equipa de saúde: Quem é que saía para o mato ? 

Nas saídas para o mato, a nível de pelotão, “o apoio sanitário era prestado por enfermeiros ou maqueiros com conhecimentos de primeiros socorros e de reanimação”. Tratando-se de operações a nível de companhia, estava prevista a presença de um médico… Mas isso era o que diziam as NEP, meu caro Carlos Vieira Alves…

Em Bambadinca, no setor L1, nem o médico nem o furriel enfermeiro acompanham os operacionais no mato, fosse um ou mais grupos de combate. Em 1969/71, na Guiné, o pessoal de saúde estava mobilizado, no essencial, para prestar cuidados médicos e de enfermagem à população civil, de acordo com as orientações do Com-Chefe e Governador Geral, o gen Spínola. Boa parte dos recursos da saúde militar foi canalizada para o embrionário serviço regional de saúde da Guiné...

O que se terá passado ao longo dos longos anos da guerra ? As chefias militares sabem que os médicos são escassos e, por isso, um recurso raro e precioso. Viajam de heli ou DO 27, evitando as colunas auto, o risco de minas e armadilhas e de emboscadas. Ficam “acantonados” no aquartelamento, chefiando o “posto médico” da companhia ou batalhão, e são cada vez mais assoberbados pelas tarefas decorrentes da “acção psico-social” (que, diga-se de passagem,  está longe de ser uma invenção portuguesa, tendo sido inspirada nas guerras da Argélia e do Vietname, tal com as “aldeias estratégicas” ou “reordenamentos”).

Em Angola, nas zonas “mais calmas”, o serviço de saúde desempenhou “um papel crucial”: “uma pequena equipa constituída pelo médico, o enfermeiro, um maqueiro e o condutor deslocava-se, em dias certos, às várias sanzalas, onde era aguardada por uma multidão”…

Na Guiné, e pela minha experiência, a situação era inversa: em geral, eram as populações que se deslocavam ao “posto médico militar”, em Bambadinca, sede de batalhão e posto administrativo. Mas, com o reordenamento de Nhabijões, ao tempo do BART 2917, o médico também ia, periodicamente, ao destacamento, que ficava a escassos quilómetros da sede do batalhão, mas onde eu e outros voaríamos, num GMC, sob o efeito de uma potente mina A/C já próximo do final da comissão.


Director do hospital militar de evacuação no Luso, 
Região Militar do Leste, Angola 


Na segunda parte do artigo,  ou melhor, do capítulo do livros (pp.499-503), o autor recorre à sua experiência de diretor do serviço de cirurgia no hospital do Luso, um típico “hospital de evacuação”, no Leste de Angola, por volta de 1970/71.

O Carlos Vieira Reis começa nos confrontar com o contraste entre a “parte militar” e a “parte civil”: de um lado, a chamada Enfermaria de Sector, um pré-fabricado em forma de L, de um só piso, desconfortável, disfuncional, e do outro um magnífico edifício, construído de raiz, onde estava instalado o Hospital Regional do Luso. “O choque, quando se olhava para as duas construções, era de extrema violência e incompreensão” (p. 499).

Não se entendia como, sendo militares, a maior parte dos doentes existentes, se ofereciam “tão miseráveis condições de acolhimento”… E porque não se tinham concentrado todas as actividades num só edifício ? E porquê chamar “enfermaria de sector” e não hospital, como o Hospital Militar de Luanda ?…

Todos os dias o cirurgião recebia vários doentes, trazidos de avião ou de heli, com diversas patologias de guerra, em geral resultantes de minas A/C e A/P. Sobre as minas A/P, diz: (…) "Tinham um efeito terrível. (…) Quando [as vítimas] chegavam às mãos do cirurgião, a maioria das vezes era impossível salvar o membro: ao hospital já chegava um amputado e à pátria regressaria um deficiente” (p. 500).

Também os prisioneiros feridos eram ali tratados, sem distinção, nem discriminação, sendo “a única prioridade no tratamento (…) a gravidade dos ferimentos”… Mas, no final, o cirurgião sabia que estes seus doentes, os do IN, seguiam depois para “interrogatório policial” (PIDE/DGS) (p. 500).

De igual modo, os médicos militares também tratavam a população civil, de origem europeia. Mas aqui o autor faz um retrato pouco simpático do colono branco:

“Nunca até tinham tido tão boa assistência. Como reagia ? Com uma mentalidade estreita, focalizada na defesa dum trabalho mal remunerado e no culto do dinheiro; estavam interessados na defesa de Angola e na aniquilação dos terroristas, os ‘turras’, desde que fossem outros a fazê-lo. Que uma geração de jovens viesse sacrificar-se, era uma obrigação da nação onde tinham nascido. Limitavam-se a enriquecer à custa dos negócios e do dinheiro dos soldados” (pp. 500/501).

Não é um retrato edulcorado o do leste de Angola que o autor conheceu como médico militar, e que aqui nos deixa, em tom caricatural: 

(…) “Vivia-se numa sociedade de improviso em que os militares eram os que menos improvisavam. As cidades tinham juízes que eram nomeados sem habilitações, presidentes da câmara que nem para escriturários serviam, professores de liceu que nunca tinham acabado o curso liceal” (p. 501).


1700 doentes operados em 14 meses (1970/71) 


A actividade médica centrava-se sobretudo na cirurgia. A tal “Enfermaria de Sector”, nestes anos de 1970/71, recebia “75% de todos os feridos e baixas da Região Militar de Angola” (pág. 502). 

E, no entanto, tinha um quadro orgânico subdimensionado, com os seus médicos a serem também responsáveis pelos doentes do hospital civil, ao mesmo que as chefias na Região Militar Leste faziam orelhas moucas aos insistentes pedidos de envio de especialistas e “sobretudo de instrumentos cirúrgicos capazes e de ventiladores” (p. 502).

E, falando de quadro orgânico, queria dizer-se… 4 médicos, 1 sargento enfermeiro, 1 cabo auxiliar de enfermeiro e 2 maqueiros!...

Só havia um anestesista e ao ajudante de cirurgião, que se estava a especializar, eram entregues os “casos menos graves”.

Mas, se a penúria de material era grande, dispunha-se do recurso mais precioso nas organizações de saúde e nas demais organizações: o pessoal. O autor tece rasgados elogios à competência e empenhamento dos seus colegas e colaboradores, sempre disponíveis e sem exigências quando tocava a reunir… Vale a pena citar este longo parágrafo,para se perceber as duras condições em que se trabalhava nestes hospitais militares:

“Quando os feridos não chegavam isoladamente, mas em pequenos ou grandes grupos, por vezes mais de duas dezenas de uma só vez, a colaboração de todos os médicos era indispensável quando o cirurgião estava entregue a um dos trabalhos mais dolorosos e desagradáveis da sua especialidade: a triagem por urgência.

“O apoio consistia na estabilização de todos os doentes, desde o combate ao ‘shock’ e à infecção ao suporte endovenoso, às medidas de urgência e à imobilização provisória ou definitiva de fracturas. Mesmo aqueles que se poderiam esquivar a estas tarefas, se entregavam a elas com devoção total.” (p. 502).

Falando em números… Num período de 14 meses (nos anos 70/71), no Luso foram operados 1700 doentes, entre civis e militares, correspondentes a um número necessariamente superior de intervenções, devido, no caso das vítimas de actos de guerra, à presença de “patologias múltiplas: vários tiros ou estihaços, amputações traumáticas, perdas musculares graves, fracturas, queimaduras, além das famosas balas sem orifício de saída,com os trajectos mais aberrantes” (p. 503).

Em resumo, a guerra colonial foi uma experiência marcante para todos os que a fizeram, uns no “front office”, enquanto combatentes, outros no “back office”, como os médicos, os enfermeiros e outros. E isto, indepentemente do teatro de operações que nos coube em sorte. (Para não ferir suscetibilidades, no mato, todos éramos combatentes, tendo pelo menos um farda camuflada e uma G3 distribuída!...

Gostaria,todavia, que se falasse aqui mais das particularidades da saúde e dos serviços de saúde da Guiné, incluindo o papel (excecional) que no CTIG desempenharam os nossos 1ºs cabos e soldados auxiliares de enfermeiro, muitas vezes injustamente arrumados na categoria de “maqueiros”: salvaram muitas vidas nossas no mato, na ausência de médico e de enfermeiro, e enquanto o "anjo do céu" não chegava...

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Notas do editor:



(***)  Vd. poste de 24 de julho de  2013 > Guiné 63/74 - P11866: Os nossos enfermeiros (9): No caso dos furriéis enfermeiros iam para a Escola do Serviço de Saúde Militar, em Campo de Ourique, tirar o seu curso de enfermagem do qual faziam parte as seguintes disciplinas: Primeiros Socorros, Enfermagem, Profilaxia Tropical, Higiene, Guerra Química e Táctica Sanitária (Adriano Moreira, ex-fur mil enf , CART 2412, Bigene, Binta, Guidaje e Barro, 1968/70)

Guiné 61/74 - P21781: Notas de leitura (1335): Os serviços de saúde militar e a guerra colonial - Parte I (Luís Graça)


Lisboa > Fundação Calouste Gulbenkian > 9 de novembro de 2017 > Barros Veloso apresenta o livro, de que foi o principal organizador, "Médicos e Sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX"... Um dos 50  capítulos é dedicado aos serviços de saúde militares durante a guerra colonial, da autoria do coronel médico Carlos Vieira Reis.

Cortesia da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (2017)


Nota de leitura - I Parte

por Luís Graça


Reis, Carlos Vieira – A Guerra Colonial. In: Veloso A. J., Mora, L. D., Leitão, H., (Eds.) (2017). Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, pp. 492-505

 

O autor do capítulo sobre os serviços de saúde militares durante a guerra colonial Carlos Vieira Reis,  é coronel médico e escritor, foi diretor de serviço de cirurgia, director  clínico do Hospital Militar Principal e presidente da União Mundial dos Escritores Médicos.

Resumo: A organização e o funcionamento dos serviços de saúde militar, durante a guerra colonial / guerra do ultramar, é um dos cinquenta capítulos da obra verdadeiramente enciclopédica, de que o meu ilustre amigo A. J. Barros Veloso (médico, músico de jazz e historiador, especialista de medicina interna, ex-diretor de serviço do Hospital dos Capuchos, Hospitais Civis de Lisboa) foi o principal editor literário, para não dizer mesmo a verdadeira “alma mater”: “Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX”.

Barros Veloso é, de resto, o autor ou coautor de 15 capítulos. A obra, com um total  863 páginas, reúne a colaboração de cerca de quatro dezenas de especialistas da história da medicina portuguesa no séc. XX (, incluindo, modéstia à parte, o meu nome, no que diz respeito à génese e desenvolvimento da saúde pública).

 

Dispositivo sanitário no terreno 

e  doenças mais frequentes


Carlos Vieira Reis dá-nos a sua visão, por dentro, do sistema de saúde militar que, neste período, assentava no seguinte modelo de dispositivo: 

  • hospital central
  •  centro de convalescença
  • hospital de evacuação
  • enfermaria de tuberculose (só em Angola, Nova Lisboa, hoje Huambo)
  • destacamento misto de cirurgia e reanimação
  • enfermaria de setor
  • depósito de material sanitário
  •  sucursal do laboratório militar de produtos químicos e farmacêuticos
  •  destacamento de doenças tropicais
  • destacamento de inspeção de alimentos
  • destacamento de desinfestação
  • destacamento de inspeção de águas
  •  e equipa estomatológica.

Este dispositivo podia variar, em função das características territoriais  e operacionais (p. 492): por exemplo, em Angola, optou-se pela concentração logística em Luanda, dada a sua “relativa proximidade” da zona militar e da actividade operacional (inicialmente centrada no Norte).

A cobertura sanitária do território  angolano incluía: 

(i)  dois hospitais de evacuação (um no Luso, hoje Luena, no Leste; e outro em Cabinda, no Norte);  

(ii) 10 enfermarias de sector;

(iii) e ainda “um número significativo de órgãos de apoio sanitário com alguma mobilidade”… 

Já no caso da Guiné, e devido à sua pequena extensão territorial, foi possível fazer-se a concentração em Bissau dos órgãos de apoio sanitário.

A prevenção das doenças endémicas, infecciosas e parasitárias (paludismo, tuberculose, etc.) foi considerada uma das prioridades da missão dos serviços de saúde militares;

(…) “O paludismo destacou-se pela morbilidade (mais de 33 000 casos registados anualmente no pessoal militar em Angola) e também pela mortalidade nos militares de raça branca” (sic)  (p. 493).

A tuberculose era causa de morte sobretudo entre os negros. Mas também há a registar casos, que o autor não quantifica, de febre tifóide, disenteria (bacilar e amebiana), filaríase, “e um grande número de casos de doença do sono e febre-amarela” (p. 493).

Outras doenças também mereceram atenção especial: dermatomicoses, doenças das vias respiratórias, doenças gastrointestinais, hepatites infeciosas,  raiva e cólera.

Os serviços de saúde regiam-se pelas famosas NEP (Normas de Execução Permanente) e o Manual de Prevenção das Doenças e Socorros  Urgentes nas Regiões Tropicais.


Prevenção e profilaxia da malária / paludismo


O autor considera ter sido um sucesso o regime (obrigatório) de quimioprofilaxia da malária (com a administração da camoprima) e da doença do sono (com a pentamidina) (p. 493).

E, a propósito recorda, que “o médico da companhia” (quando o havia, já que na Guiné, no meu tempo, em 1969/71, o que era correto era dizer-se “o médico do batalhão”…) tinha,à sua responsabilidade, a saúde de 160 homens, uma parte com baixa literacia funcional (para não falar da literacia em saúde…), a quem tinha que ministrar conhecimentos básicos de higiene e prolifaxia, e lidar com preconceitos, atitudes e comportamentos pouco ou nada salutogénicos: por exemplo, nem todos os militares aderiam à toma diária, “obrigatória”,  do comprimido antipalúdico (em geral, a cloroquina, o quinino do Laboratório Militar), com o falso argumento de que… “fazia mal à tusa”!...

E a grande frequência de casos de blenorragia (“esquentamentos”) também era o resultado da falta de informação e educação em matéria de saúde sexual (p. 406).

Recorde-se, por outro lado,  que a vacinação era também obrigatória para a varíola, a febre tifóide, a febre-amarela, o tétano, a poliomielite, a cólera. O programa de rádio-rastreio das doenças pulmonares era realizado em Portugal e nos territórios ultramarinos, mas não sabemos o grau de cobertura… 

Mais preocupante ainda era  a situação da saúde oral : por exemplo, em  1962, em Angola, mais de 1/3 das consultas hospitalares, efectuadas pelos militares, eram do foto da estomatologia (pág. 503).


Morbimortalidade

Interessantes são os números que o autor avança para estimar a morbilidade: cerca de 25 mil feridos em combate, dos quais 15 mil ficaram com “sequelas definitivas dos seus ferimentos”. Não há, porém, números relativos à saúde mental…

Da pesquisa dos registos epidemiológicos nos relatórios anuais dos Quartéis Generais das Regiões Militares  de Angola e Moçambique e do Comando Territorial Independente da Guiné, só se conseguiu obter, infelizmente,  informações sobre a RM Angola, relativamente ao período de 1968-1971.

Nesses quatro anos, regista-se um aumento do número de casos de disenteria amebiana, filaríase, blenorragia e sífilis. Também o alcoolismo e as hepatites tiveram um acréscimo significativo. No conjunto das patologias identificadas, “notou-se o elevado número de casos de infeções respiratórias, gastroenterites e sobretudo doenças dos dentes” (p. 494).

No que respeita à mortalidade, “estão documentadas 9 196 mortes, dos quais 8 920  do Exército e 906 da Marinha e da Força Aérea” (p. 494).  

As mortes em combate atingem a percentagem de 45,58%, sendo as restantes causas de morte o  acidente (, de viação, arma de fogo, afogamento e outras) (36,90%) e a doença (14,52%).

De uma lista de 1 204 mortos por doença, na população militar de adultos jovens (média etária: c. 26 anos), só foi possível localizar 429 processos (35,6%, pouco mais de um terço) no Arquivo  Geral do Exército.

Em Angola, a causa das mortes por doença, em 107 militares  (66%) foi determinada por autópsia, método este muito menos utilizado na Guiné e em Moçambique (apenas em cerca de 30% dos casos).

De acordo com a Classificação Internacional das Doenças (CID-10), da Organização Mundial de Saúde, usada “a posteriori” (, uma vez que não existia na época o CID),ficamos a saber o seguinte (p. 494):

(i)               As doenças infeciosas e parasitárias, no seu conjunto, representavam 36% do total, com destaque para a malária e a tuberculose (37 e 27 casos, respetivamente);

(ii)             ao conjunto das outras doenças cabiam os restantes 64%, onde se incluíam as neoplasias (73 casos) e as doenças  do aparelho circulatório (41 casos) e ainda as  doenças renais.


A idade média de mais de 4/5 dos mortos por doença era igual ou inferior a 23 anos. A média dos restantes (18,6%) era de 42,7 anos. (Tratava-se sobretudo, neste grupo, de militares do quadro permanente, sendo as principais causas de morte as doenças malignas e as doenças do aparelho circulatório.) (p. 494).


30 mil evacuações para a Metrópole

Durante toda a guerra, ter-se-á realizado um total (estimado) de 30 mil evacuações para a Metrópole, a maioria estando documentada nos processos existentes no Arquivo Geral do Exército (p. 494).

O regime de evacuação, definido para os 3 teatros de operações, era o seguinte:


  • 10 dias, para a enfermaria de subsector (Batalhão);
  • 20 dias (Angola) e 30 dias (Moçambique), para a enfermaria de sector;
  • 60 dias, para o hospital de evacuação;
  • 90 dias, para o hospital geral (por ex., HM 241, Bissau);
  • tratamento definitivo, no caso do hospital militar principal e hospital militar de doenças infecto-contagiosas (Lisboa).

O autor refere que, no entanto, só há registos de evacuações de:

  • Angola, em 1962 (6519), 1968 (412), 1969 (602), 1970 (477) e 1971 (720);
  • Guiné, em 1972 (620) e 1973 (786); 
  • Moçambique, em 1970 (477) e 1971 (426).


Relativamente a evacuações médicas dentro dos TO, só há dados referentes a Moçambique, em 1970 e 1971, com respetivamente 4314 e 4107 evacuações médicas efetuadas por via área (p. 504).

Veremos a seguir, com detalhe, os recursos, nomeadamente humanos e técnicos, que o sistema de saúde militar dispunha. 

Por lapso ou não, o autor não faz qualquer referência ao papel das nossas queridas enfermeiras paraquedistas. Talvez na Guiné esse papel fosse mais valorizado do que em Angola.

O autor, pelo que.  percebi, foi cirurgião no Hospital do Luso durante 14 meses e é a partir dessa experiência angolana que aborda os problemas de saúde e da organização e funcionamento dos serviços de saúde militares.

Cite-se, entretanto,  a conclusão do seu artigo, em jeito de introdução à segunda parte desta nossa nota de leitura:

“Durante a Guerra Colonial, os médicos viveram, de várias formas, uma experiência única, em que testaram ao limite a sua profissão e trabalharam até à exaustão sem a sensação de que isso constituísse um sacrifício. 

Desempenharam uma tarefa dignificante, na medida em que levaram a esperança aos combatentes e deram um  passo enorme na reconquista das populações indígenas. 

No meio  de guerras intestinas desnecessárias, fizeram amizades para toda a vida e entregaram-se por inteiro e com orgulho  à missão que lhes foi confiada. 

A sua presença ficou, por isso,  como um momento que os honra e merece ser recordado” (p. 503).

Não podemos estar mais de acordo.

(Continua)

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sexta-feira, 3 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21132: Os nossos médicos (88): Fernando António Maymone Martins, especialista de cardiologia pediátrica, ex-alf mil, CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, e HM 241, Bissau, 1968/70


Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) >  Equipa dos serviços de saúde no dia de abertura da enfermaria > Destaque para os alferes médicos Fernando António Maymone Martins e Maxinino Cunha, ambos irão também trabalhar na 2ª parte da comissão no HM 241, em Bissau.



Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > CCS / BCAÇ 2845 (1968/70) > Equipa dos serviços de saúde: da esquerda para a direita, de pé: Maymone Martins (alferes), Garrido (furriel), Albino e Garcia; em primeiro plano, Tónio, Borges e Constantino (1º cabo)

Fotos do álbum do Albino Silva, ex-sold maqueiro, CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, 1968/70) (*).


Fotos (e legendas): © Albino Silva (2011) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Não temos,  infelizmente, falado aqui o suficiente dos nossos serviços de saúde militares, dos nossos médicos, dos nossos enfermeiros, dos nossos maqueiros... 

É minha intenção fazer, proximamente, uma nota de leitura de um capítulo de um livro em que também participei (Veloso, A.J., Mora,  L.D., Leitão,  H., eds. –  Médicos e sociedade: para uma história da medicina em Portugal no século XX. Lisboa: By The Book, 2017, 863 pp.). 

O capítulo a que me refiro, sobre saúde militar,  é o "34. A Guerra Colonial", da autoria de Carlos Vieira Reis, pp. 492-505.  O autor é coronel médico.

Continuamos sem saber, em rigor, quantos médicos, oficiais milicianos ou do quadro, passaram pelo TO da Guiné, entre 1961 e 1974. O autor escreve que "os médicos recém-formados não bastavam para preencher as necessidades". E teve mesmo que se recorrer à mobilização, para certas especialidades, de médicos com mais de 45 anos. Um dado estatístico muito importante é o número de evacuações  dos três TO para a metrópole e que foi de cerca de 30 mil, estando a maioria dos processos clínicos no Arquivo Geral do Exército. 

Dalguns dos nossos médicos temos aqui falado. O descritor "Os nossos médicos" tem, apesar de tudo, 235 referências.

Um desses profissionais que foi mobilizado para o CTIG, e que queremos hoje homenagear, foi o dr. Fernando António Maymone Martins: passou pela CCS/BCAÇ 2845, mas também pelo HM 241, Bissau, nos anos de 1968/70.

Sobre este nosso camarada, que tem participado nalguns convívios do seu batalhão, recolhemos mais os seguintes elementos, a partir da Net, e nomeadamente da rede Linkedin:

• Especialista Sénior em Cardiologia Pediátrica e Cardiologia das Cardiopatias Congénitas
• Director do Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Cruz, 1987 - 2010
• Director Clínico, Hospital de Santa Cruz (2003-2004).
• Presidente do Conselho de Administração da Fundação Mater Timor
• Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ajuda de Berço
• Fellow do American College of Cardiology
• Fellow da Sociedade Europeia de Cardiologia
• Presidente da Associação Europeia de Cardiologia Pediátrica (AEPC, 1995-1998)
• Presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (2000- 2004).

Está reformado do SNS mas mantém consultório privado em Carnaxide. Sabemos que em 1974/76 beneficiou de uma bolsa Fulbright, na categoria de estudante, na área de Cardiologia Pediátrica, realizada no Cook County Hospital, Chicago, Illinois, EUA.

NA RTP Arquivos pode ser visto um vídeo, de 2 de junho de 1990, em  entrevista do jornallista José Eduardo Moniz, em estúdio, ao dr. Maymone Martins, "cirurgião, responsável pela nova técnica de intervenção para a correção de deficiências cardíacas, o cateterismo".

É uma homem de causas, que incluem, por exemplo, a cooperação com Timor Leste na área da saúde materno-infantil.

Naturalmente que gostaríamos que ele aceitasse o convite para integrar a nossa Tabanca Grande. Dessas diligências encarregamos o Albino Silva para levar a carta a Garcia...

2. Memória do serviço de saúde comandado pelo alf mil médico Maymone Martins, CCS/BCAÇ 2845 2845(Teixeira Pinto, 1968/70)

por Albino Silva (**)


(...) Comecei meu trabalho na Enfermaria e todos os dias estava de serviço pois ficava sempre na vez de outros camaradas porque gostava daquele serviço ao lado do Médico do Batalhão, Dr. Fernando António Maymone Martins, Alferes, que dava consultas à tropa até às 13h00 e depois ia para o Hospital Civil dar consultas e outros serviços com pequenas cirurgias, aos civis.

O meu serviço diário era logo de manhã tomar apontamentos daqueles que iam às consultas, depois chamar pelos mesmos ao gabinete do médico e ajudar na Enfermaria a atender o pessoal, pois além da tropa, que era muita, também os civis lá iam receber tratamento, e por isso era muito o trabalho para quem estava de serviço. Basta que em média por dia davam-se 300 injeções e havia feridas para serem tratadas , e ainda o pessoal lá internado e uns à espera de evacuação para Bissau.

Era muito o trabalho e ainda a pedido do Furriel Enfermeiro Garrido, fazia a requisição de Material para Bissau, que depois de recebido o ia conferir, mas eu gostava bem do serviço que ia fazendo e assim foi durante 13 meses.

Depois comecei a alinhar com um Pelotão da Companhia de Caçadores 2313, que era comandado pelo Capitão Penim, em saídas para o mato, em escoltas e para a Ação Psicológica, em picagem de estradas com um Pelotão da Companhia 2368, do meu Batalhão, e também em operações com este pelotão.

Para substituir o 1.º Cabo Enfermeiro Vitorino da 2368, que havia sido evacuado para Bissau, fui um mês para o destacamento de Caió, regressando depois a Teixeira Pinto à minha Enfermaria para de imediato sair com uma Secção da 2313 para uma Ação Psicológica lá para as Tabancas de Calequisse e Caió. (...)

3. Natal debaixo de fogo na Guiné. A memória do médico Fernando Maymone Martins
Rádio Renascença, 23 dez 2011 • Sofia Vieira (Reproduzido com a devia vénia...)

 O médico Fernando Maymone Martins fecha a semana que a Renascença dedicou a testemunhos de quem viveu o Natal em situações difíceis, mas com lugar para a esperança.

O Natal vivido no essencial, no meio do mato, durante a guerra colonial na Guiné, em 1968 é o testemunho deixado por Fernando Maymone Martins. Na altura, era um jovem médico militar, delegado de saúde, numa povoação que julgava segura.

Poucos meses antes, decidiu vir a Lisboa, em Outubro, e casou com Madalena. Em Novembro, levou-a para a Guiné, para viverem numa povoação que se chamava Teixeira Pinto.

Só que, em vésperas de Natal, foram alvo de ataque. Fernando Maymone Martins teve de deixar a mulher sozinha, porque teve de ir fazer uma revista de saúde a militares portugueses. “Durante essa semana, Teixeira Pinto foi alvo de ataque e a Madalena passou uma noite inteira debaixo de fogo”.

“A coluna em que eu fui também foi atacada, portanto, tivemos muito vivamente, e isto nas vésperas do Natal de 68, a percepção da vulnerabilidade da situação em que nos encontrávamos e do risco de nos acontecer alguma coisa, inclusive, de morrermos!”, recorda.

Fernando Maymone Martins lembra ainda que nessa época os sogros tinham enviado para a Guiné um pequeno presépio, com “figuras muito bonitas” que ainda hoje guardam “e que foi verdadeiramente o que nos ajudou a criar o ambiente de Natal na Guiné. Sem dúvida, com a percepção de que no meio do mato na Guiné, com a vulnerabilidade inerente aos ataques, estávamos verdadeiramente a ser reconduzidos àquilo que o Natal tem de mais importante – comemorar o nascimento de Jesus”.

O médico recorda também que, um ano depois, já com um filho, comemoraram o segundo Natal na Guiné. Dois momentos que o marcaram e à sua mulher Madalena para o resto da vida.

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 1 de julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8495: Os nossos médicos (32): Fotos do Serviço de Saúde do BCAÇ 2845 (Albino Silva)

(**) Vd. poste de 14 de abril de  2020 > Guiné 61/74 - P20856: Memórias de um Soldado Maqueiro (Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro da CCS / BCAÇ 2845) (1): Mobilizado para a Guiné, destino: Teixeira Pinto

Vd. também poste de 11 de agosto de 2013 > Guiné 63/74 - P11930: Os nossos médicos (67): Maximino [José Vaz da] Cunha, natural de Chaves, ex-alf mil médico, BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto) e HM 241 (Bissau, 1968/70)