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sábado, 18 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24152: Os nossos seres, saberes e lazeres (561): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (94): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Devido a uma colaboração permanente que levo no jornal "O Templário", de Tomar, procuro inteirar-me da história da Ordem de Cristo, sucessora da do Templo. D. Dinis foi de uma grande habilidade diplomática, estabeleceu acordos com os outros Estados ibéricos no sentido de não permitir quaisquer desvios dos bens patrimoniais templários. Alegou a Roma que necessitava de uma Ordem de guerreiros monges destinados a travar, a fazer recuar e mesmo a erradicar inimigos da Cristandade, justificando os permanentes assédios sarracenos e magrebinos nas costas algarvias, e a existência do Reino de Granada, marcadamente hostil. A nova ordem foi aprovada e sediou-se por mais de três décadas em Castro Marim, em meados do século já estava implantada em Tomar, será aqui, na Administração do Infante D. Henrique, que a Ordem e os seus bens terão um papel chave na primeira etapa dos Descobrimentos. Como veremos adiante, Castro Marim tem muito para contar sobre o seu primeiro período da existência, como esta interessantíssima exposição revela.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (94):
Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (1)


Mário Beja Santos

É bom ter amigos em Tavira e que nos acolhem admiravelmente, sempre solícitos a mostrar as mudanças, algumas que nos enternecem muito, há para ali intervenções patrimoniais que nos merecem muito respeito, outras não tanto, derrubou-se o velho cinema e alterando completamente a escala está a erguer-se mais um daqueles centros culturais para encher o olho, cirandando à volta das muralhas (Tavira vista do jardim do castelo é um desafogo panorâmico, por ali se pode ver o ADN de um lugar por onde se cruzaram tais e tantas civilizações) fiquei de boca aberta a ver junto a um belo pano de muralha um calhamaço que seguramente vai ser hotel ou apartamento luxuoso, continuo a não entender os maltratos à volta de monumentos nacionais, é-me inexplicável esta ganância, este gosto pela ostentação, roubando aos munícipes e aos visitantes vistas de alto valor histórico – e chamam a isto progresso.
É bom caminhar por estas ruas antigas, indo conversando com amigos quanto aos propósitos desta visita que incluem Castro Marim, lá no castelo, dentro de um templo religioso, que já deixou de o ser, consta uma exposição sobre a história da Ordem de Cristo naquele ponto no então Reino do Algarve, lá iremos seguidamente, primeiro matar saudades de Tavira, visitar inclusivamente aquelas lojas de ajuda humanitária a que se entregam sobretudo os ingleses, metem para ali objetos que nas suas casas perderam préstimo, quem compra, compra barato, e as receitas do mealheiro são para ajudar quem precisa, dali saio alegre e feliz com um bom número de discos de música clássica comprado à pataco.
Pois bem, vamos subir ao jardim do castelo, é um dos pontos mais aprazíveis para ver o que se passa em Tavira e arredores.

Um dos aspetos que mais me atraem é esta circunvizinhança habitacional, paredes meias com o castelo, não sei se os historiadores se arrepiam com esta vista, sinto-me bem com este edificado, estes telhados de quatro águas, esta intimidade que não consigo ver como intrusão, embora admita que nos dias de hoje que por razão de tal plano levaria à queda de uma idealidade…
É inverno, mas há para aqui uma planta a enfeitar a pérgola, ninguém me disse exatamente o seu nome, facto é que quem anda por este jardim se delicia com a vista de tal florescência em tempos de flora adormecida. Que encanto para os olhos!
Uma vista de Tavira e logo nos ocorre a civilização árabe, o olhar espraia-se até ao fundo, ali espreita o oceano e bem perto podemo-nos encantar com o que oferece a Ria Formosa.
Há um hotel em Tavira que tem no subterrâneo vestígios de um bairro almóada, imagine-se, tudo agora bem preservado, pede-se licença na receção e lá ingressamos no mundo árabe, ou suas reminiscências (há aqui vestígios de trocas comerciais posteriores), o que há para ver é frugal, mas está altamente preservado. Aqui está a memória do trabalho arqueológico, depois de concluído deu-se vida ao hotel.
O que temos aqui são os achados arqueológicos e a organização do espaço, o que resta de um lugar que foi habitado por gente almóada, sabe-se lá o que depois aconteceu, ficaram estas estruturas e algumas lembranças daquilo a que nós pomposamente chamamos a civilização árabe e o que depois dela sobreviveu.
De Castro Marim olhando as salinas e a agricultura na orla do barrocal
Era um dia claro, temperatura amena, mas, de súbito, apareceram nuvens encasteladas no horizonte, a luz perdeu um certo brilho, mas aquele céu um tanto atemorizante prendeu a atenção de quem o fotografou… e o produto final não o desiludiu.
O Forte de S. Sebastião (ponto culminante da vigilância contra eventuais intrusões espanholas, na Guerra da Restauração) e um pormenor do centro da vila de Castro Marim, imagem tirada do castelo.
Uma vitrina do Núcleo Arqueológico do Castelo de Castro Marim
Outro pormenor das salinas entre o castelo e a garridice das cores do casario à sua beira
Já estou no Castelo de Castro Marim, é um ponto alto de uma colina que é sobranceira ao Guadiana, aqui em 1319 houve sede da Ordem de Cristo, graças aos esforços diplomáticos de D. Dinis, socorreu-se de alianças ibéricas para não deixar de sair o rico património da Ordem do Templo, depois daquele miserável processo movido aos monges guerreiros que tinham fortunas, que emprestavam dinheiro a reis e que pagaram bem caro o serviço que prestaram à Cristandade no seu tempo. O monarca justificou a razão de ser desta Ordem aqui em Castro Marim dando razões compreensíveis, o Reino de Granada na vizinhança e a pirataria magrebina a encher de pânico a costa algarvia. Foi sede durante décadas (até 1356), depois seguiu para Tomar. Frente a este castelo está o Forte de S. Sebastião, desempenhou o seu papel na Guerra da Restauração. Diga-se em abono da verdade que Castro Marim merece uma cuidada visita, está cercada de belíssimo de património cultural, faz parte da Rede Nacional das Áreas Protegidas e a Rede Natura 2000, permite passeios pedestres muito belos, os amantes da natureza têm ali ao seu dispor belos troços da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, os amantes da praia também não se sentem desiludidos e convém recordar que as salinas ocupam mais de 580 hectares da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António.
Vamos visitar a exposição e andar por aí, já pedi a quem me acompanha para ir ver a estátua do Marquês de Pombal, de José Cutileiro, em Vila Real de Santo António.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de > Guiné 61/74 - P24136: Os nossos seres, saberes e lazeres (560): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (93): Regresso à Academia Militar, ao Palácio da Bemposta (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 27 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23821: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte II - Tavira e Leiria


1. Continuação da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


II - tavira…

Depois de uns dias de férias na Figueira da Foz, intervalo da recruta para a especialidade, a sequência natural: Tavira.
Comboio da linha do Oeste, até ao Rossio, passar o Tejo de barco e apanhar outro comboio no Barreiro - aventura!

Cheguei ao Barreiro, final do dia, e disseram-me que só teria comboio para Tavira de manhã cedo.
Como lá estavam mais dois instruendos que também iam para Tavira, fazer a especialidade, trocámos ideias sobre como passar a noite, até à hora do comboio.
Entrámos numa ‘tasca’, jantámos umas coisas e pedimos aos donos que nos deixassem lá dormir, com sucesso, e dormimos apoiados nas mesas.
Isto fez-me lembrar os meus tempos de boleia…

De manhã, bem cedo, acordaram-nos, tomámos o pequeno-almoço e lá fomos apanhar o ‘quim’ para Tavira.
No comboio, cada um procurou o melhor lugar para descansar, até Tavira.
Fui dormitando, dormitando, até que sou acordado por um senhor revisor, dizendo-me que tinha de sair, pois era fim de linha - estava em Vila Real de Santo António!
Ainda perguntei se mais alguém tinha ficado no comboio, mas disse-me que só eu, pelo que concluí que os outros nem repararam que eu tinha ficado dentro do comboio!
Conclusão: espera mais um comboio, para voltar para trás e chegar ao destino, Tavira.

Chegado a Tavira, apresentação no CISMI (centro de instrução de sargentos milicianos de infantaria) e inserção na 1ª Companhia de Atiradores de Infantaria, cujo comandante fiquei a saber que era o célebre ‘muleta negra’, porque andava apoiado numa espécie de pingalim, resultado de ferimentos no ultramar.
Também tive oportunidade de conhecer e conviver com o célebre ex-alferes Robles, agora, capitão, com uma ‘pancada’ de alto nível, fruto de experiências de guerra colonial em Angola e Guiné.
Curioso, termos concluído que tínhamos conhecimentos comuns de Coimbra, de onde era natural.

Entretanto, a minha tia Jú telefona-me a dizer que o primo Jaime Abreu Cardoso estava à minha espera, pois eu fazia parte de uma lista dos instruendos seleccionados nas Caldas da Rainha para seguirem para Lamego.
Claro que eu disse logo à tia Jú que não ia para lá e até já estava em especialidade, em Tavira, e nem sabia que o Jaime era oficial do quadro e estava lá, pensava que tinha feito a tropa normal e mais nada.
Ela, com razão, respondeu-me que era pena, pois teria a protecção do Jaime, já capitão e com medalhas, além de poder ir com ele passar os fins de semana a Vieira do Minho.
Realmente, uma pena, pois poderia ter uma tropa melhor e, quem sabe, até retomar a vida académica, no Norte, com as facilidades, além de considerar-me nos ‘meus domínios’…

Voltando a Tavira, tive a sorte de conseguir autorização de ‘pernoita fora’, pelo que logo arranjei um quarto, do lado de lá do rio, mas bem perto do centro da cidade.
E não esqueci a rua: Dr. Augusto Silva Carvalho, 15. A dona da casa era viúva e tinha uma filha que tocava piano, interessante, naquele tempo, e tinha amigas que se juntavam a nós, nos serões, bem divertidos.

Eu estava habituado a controlar as aplicações e exercícios militares, principalmente, os nocturnos, de forma a safar-me, o mais possível, desta vez, com o sentido no meu quarto, para tirar a farda e vestir a roupa de civil.
Uma das primeiras formaturas, com revista, o capitão ‘muleta negra’ toca-me nas pernas com a bengala, ordenando que passasse pelo gabinete, dentro de uma hora, com o cabelo rapado, para grande aflição do comandante do pelotão, o alferes Soares, um porreiríssimo.
Sim, ninguém acreditava que eu andava na tropa, pelo menos, pelo tamanho do meu cabelinho.
E até evitava pôr bem a boina para não estragar o cabelinho.
E o ‘muleta negra’ ainda hoje está à minha espera para me ver com o cabelo rapado!…

Um dos companheiros de arma que lá conheci, o Pedro, de Santo Tirso, passou a ser o meu parceiro de farras, como Luz de Tavira, Faro, Vila Real de Santo António,…
Em Luz de Tavira, conhecemos umas miúdas bem engraçadas que passaram a ser a nossa companhia, sempre que podíamos, principalmente, alguns finais de dia e fins de semana - uma óptima forma de passarmos o tempo.
No entanto, sempre éramos avisados do risco de termos de casar em plena parada do quartel…
E o Pedro ficou ‘maluquinho’ com uma daquelas miúdas, lamentando-se, pois tinha a namorada em Santo Tirso.
Não posso deixar de lembrar o esquema que montei, sempre que tinha exercício nocturno, normalmente, na serra.
Formávamos na parada do quartel e saíamos pelo portão sul, que dava para a Atalaia, um espaço livre que ficava nas traseiras do quartel, onde fazíamos exercícios, de dia.
Quando chegava ao portão sul, já eu tinha a G3 quase desmanchada e metida dentro da farda, após o que virava à esquerda, enquanto o resto do grupo virava à direita.
Com passo rápido, atravessava a Atalaia e seguia em direcção ao outro lado do rio, onde tinha o quarto!
No dia seguinte, um esquema parecido, com a G3 desmanchada dentro da farda e reentrada no quartel, para mais um dia jeitoso…

Um dia, chegados ao quartel, depois de exercícios no exterior, um cheiro horrível inundava o quartel!
Toca para o almoço e a malta entra no refeitório, onde o ar era irrespirável, tal a intensidade do cheiro, o que nos levou a rejeitar a refeição, logo, levantamento de rancho!
Como era a segunda vez, o quartel seria fechado, pelas informações que nos chegaram.
Acto imediato, a população de Tavira à porta do quartel, suplicando que não avançássemos com o processo.
O oficial de dia, em pânico, pede-nos para ficarmos por ali, sujando os pratos, sinal de que não haveria levantamento de rancho, mas reconhecendo o erro da cozinha.
Afinal, ele também era responsável, pois era obrigado a provar e aprovar a refeição, logo, conivente.
O que tinha acontecido: o almoço era peixe, mas tinha chegado atrasado e sem a quantidade adequada, pelo que foram arranjar dobrada, à pressa, metida nas panelas, sem a operação de lavagem completa - dobrada com feijão branco, com condimento especial…

Tirando este episódio, posso afirmar que foi o meu melhor tempo do serviço militar, sem qualquer dúvida.
Terminada a especialidade, apresento as minhas opções de colocação, para dar instrução, por ordem de preferência, Figueira da Foz, Coimbra, Leiria.

"Pelo menos, Adolfo, aproveitou bem esse tempo no Algarve.
Se tivesse ido para o Norte, mesmo sabendo que lá tinha o seu primo, talvez não tivesse sido tão bom."


Sim, Daniel, aproveitei bem aquele tempinho, no Algarve!
Mas, se eu adivinhasse o que me estava destinado, acredite que nunca teria deixado de fazer a especialidade em Lamego, independente do facto de lá ter o meu primo…


leiria…

Colocado em Leiria, no RI 7 (regimento de infantaria), apresento-me uns dias depois e sou inserido na 1ª companhia de instrução, cujo capitão era um ‘gajo’ aceitável.
Naturalmente, procuro um quarto na cidade, muito importante, para mim, apesar de ficar distante do quartel, sete quilómetros, mas havia muitos táxis…
E os trabalhos militares começaram, já com tudo organizado, sempre atento a todos os momentos que eu pudesse aproveitar fora do quartel, pois o ambiente era propício a aventuras e distrações…
Entretanto, surge o sinal de uma amizade, não só pelas circunstâncias de estarmos no mesmo barco, mas pelo facto de constatar que era uma pessoa educada e digna de confiança, o Vilas Boas Soares, do Porto.
Como mostrou interesse em ter um quarto na cidade, dei-lhe a indicação da minha casa e lá foi, tendo conseguido.
Passámos a parceiros de aventuras, nomeadamente, frequentando a pastelaria Soraya, no centro, junto ao cinema, local de encontro de malta jovem, principalmente, das meninas do lar que ficava junto ao outro quartel, o RAL 4 (regimento de artilharia ligeira).
Sempre que em dias de folga ou que conseguíamos ‘desenfiar-nos’, o ponto de encontro era na Soraya, de onde partíamos para as festinhas particulares.

Eu continuava sem grande jeito para cumprimento de normas e regras militares, o que se traduzia em algumas inconveniências, principalmente, para o comandante da companhia, um capitão do quadro.
Mas os homens a quem eu dava instrução eram tratados como homens que eram, não como bichos, pois os meus princípios e valores reinavam, sempre atento a uma ligação saudável, respeitadora.
O mesmo não se passava com alguns outros instrutores, com necessidade de afirmação, com recalcamentos ou complexos, que usavam as divisas ou galões para satisfazerem as suas necessidades de afirmação.
Por isso, todos aqueles a quem dei instrução me tratavam com carinho e respeito, o que nos enchia o ego, naturalmente.

Além da instrução militar e dos serviços de escala ao quartel, outras tarefas me eram atribuídas, como comandar um pelotão de piquete, para promoção e defesa da ordem militar, fora do quartel, assim como para a protecção do património nacional, nomeadamente, Mosteiro da Batalha.
Claro que viria o dia em que estas tarefas me seriam confiadas, que remédio…
Para aquele segundo caso, chega a minha vez e toca a formar o pelotão e sair do quartel, pelas oito da manhã, com chegada ao Mosteiro da Batalha e organização imediata da operação, com distribuição dos homens pelos pontos estratégicos.
Era um dia inteiro nestas circunstâncias, o que causava algum mal-estar aos homens, pois não tinham possibilidade de se ausentarem do seu posto, por muito tempo.
A meio da tarde, um dos homens, aflito da barriga, resolve fazer uma necessidade num canto do interior do Mosteiro, supondo-se livre de ser descoberto.
Uma denúncia, talvez de alguém em visita ao Mosteiro, acaba por fazer com que eu seja solicitado pelo presidente da câmara, para registo e responsabilização pelo acto.
Depois de algum tempo de conversa e mais conversa, a coisa ficou por ali, entre nós, pessoas bem-intencionadas, tolerantes e compreensivas.
Não deixei de notar a satisfação do presidente da câmara pela forma como lhe apresentei o pedido de desculpas, reacção que me deixou sensibilizado.
O homem em questão, confrontado por mim, não sabia onde se meter, coitado.
Chegados ao quartel, antes de entrarmos, tive uma conversa com ele, sosseguei-o e recomendei-lhe mais atenção e cuidado, a partir daquele momento, quer na vida militar, quer na etapa seguinte, a vida civil.

Mais um dia de rotina se iniciava, as companhias formadas, na parada, o meu grupo sozinho, pois eu tinha-me atrasado, o que obrigou o capitão como que a apresentá-lo a ele mesmo.
Mas a coisa foi notada pelo major de instrução, um militarista em toda a linha, temido por todos, desde a família até aos seus superiores.
Chamou o capitão e perguntou-lhe por que razão o grupo estava sem o graduado e ele próprio formou o grupo, ao que respondeu que o graduado tinha ido à caserna tratar de qualquer coisa…
Vá ao meu gabinete, após o destroçar das companhias.
E o capitão levou uma ‘piçada’, como dizíamos, um raspanete, uma chamada de atenção, nem sei se registada!
Mandou chamar-me e só me disse que eu pagaria caro o que acabara de acontecer.


dez dias de detenção…

Alguns dias passaram e eu sou escalado como comandante de piquete, logo, vinte e quatro horas de serviço, retido no quartel, sempre pronto para qualquer emergência.
Tinha uma festa na cidade e saí do quartel, a seguir ao jantar.
Estava muito bem na Soraya, com a malta, preparados para a festinha, cerca das dez da noite, toca o telefone e chamam pelo meu nome.
Eu nem queria acreditar que havia, por ali, alguém com um nome igual ao meu!
Repetem o meu nome, mas referem o RI 7.
Dei um salto e fui ao telefone: era do quartel, realmente, e logo me dizem que tinha tocado a piquete, que não saiu, pois faltava o comandante…
Desculpei-me e lá tive de ir ao quarto mudar de roupa.
Cheguei ao quartel, por volta da meia-noite e, quando me preparava para entrar, sou recebido pelo oficial de dia, que era, nem mais nem menos, o capitão da minha companhia:
- Eu não lhe disse que iria pagar caro?

Limitei-me a pedir desculpa pela infracção, mas não respondeu, claro.

Entrei e fui direitinho às instalações onde estava a equipa de piquete e logo alguém me disse que tinha havia desordem na cidade e, por isso, o piquete tinha sido requisitado, mas não saiu, pois eu não aparecia…
No dia seguinte, sou chamado ao segundo comandante do quartel que me dá conhecimento dos dez dias de detenção, com manobras militares fora do quartel, mas com um processo que daria despromoção e, até, possibilidade de imediata mobilização para o ultramar.
Falei com um sargento-ajudante da secretaria-geral que me aconselhou a falar com o capelão, pois poderia dar uma palavrinha ao primeiro comandante do quartel, a última palavra no veredicto.
Tudo correu bem, pois o primeiro comandante não permitiu a despromoção, limitando-se a confirmar a detenção.
E lá fui fazer os dez dias de manobras, em que executei diversas tarefas, dentro de algumas especialidades, incluindo saltos livres de helicóptero alouette, carregado de material de campanha, parte dos exercícios, na zona do pinhal de Leiria.
E não podia recusar nada!
Último dia, regresso ao quartel, pelas cinco horas da manhã, saturado e cansado, barba de dez dias, farda número três cheia de lama e pó, com o resto do grupo nas mesmas circunstâncias, sou recebido por um 1.º cabo, que estava de serviço, com um papel na mão:
- Desculpe, mas tenho aqui uma nota para si.
- Não estou com cabeça para notas!
- Pois, mas isto é importante…
Sim, ‘importante’: mobilizado para a província da Guiné!...

Dei instruções para que tratassem do espólio, entregassem as viaturas e recolhessem às casernas.
Não quis saber de mais nada, nem tomei banho e saí do quartel, com destino ao meu quarto, na cidade, após o que zarpei para a Figueira.
Lá fiquei duas semanas, alta recriação, sem nada dizer.
E as duas semanas passaram depressa…

Regresso a Leiria e, quando entro no quartel, logo na porta de armas, disseram-me que andavam à minha procura há muito tempo, com avisos constantes pelos altifalantes.
Dirijo-me à secretaria-geral e logo o sargento-ajudante me vem falar:
- Afinal, o que pretende da vida?! Vai continuar com essa postura pelo resto do seu tempo militar?! Acabou de apanhar um castigo, safou-se da despromoção e desaparece de cena?! A sua companhia está à sua espera, há muito tempo, em Abrantes!
- Tem razão, mas fiquei tão decepcionado com aquela nota que me deram: mobilizado para a Guiné.
- Eu vou tentar limpar as ‘nódoas’ que tem registadas, mas tem de me prometer que guardará só para si. E sabe porque o faço? Porque tenho um filho da sua idade e gostaria que fizessem o mesmo por ele! Veja se encontra o seu caminho certo e não se distraia, durante a comissão, na Guiné, pois aquilo é sério… E, quando voltar, não retome a sua vida civil com este comportamento, pois pode sofrer desgostos…’

Manifestei o meu agradecimento e lá fui direito a Abrantes.

"Realmente, Adolfo, vejo uma mistura de desleixo, de ingenuidade, para não dizer imaturidade! Desculpe a minha franqueza…"
- Sim, reconheço um pouco de tudo isso…

(Continua)

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Nota do editor

Poste anterior de 24 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23814: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte I - "e toma lá com o edital!"

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23750: Tabanca Grande (538): João Silva (1950-2022), ex-Fur Mil At Inf, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74), grã-tabanqueiro n.º 866, a título póstumo


João Pedro Candeias da Silva (1950-2022)


João Silva, fur mil at inf, de rendição individual, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973) e CIM Bolama (1973/74)


O João Silva e o Abibo Jau, o "gigante" da CCAÇ 12, mais tarde fuzilado em Madina Colhido, em 1975,  como já foi referido no Blogue. (Fuzilado com o ten 'comando' graduado Jamanca, ambos então da CCÇ 21).


O 2º sargento Vital (ajudava na secretaria), o João Silva, de t-shirt preta, e o Abibo Jau


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1973 > Os 4 furriéis da foto são da CCAÇ 12 e estamos sentados em Bambadinca, junto à nossa messe... Da esquerda para a direita: o Morgado, o Garrido, eu (António Duarte) e o Candeias da Silva.


Guiné > Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > O João Candeias da Silva é o segundo a contar da direita em Bolama no CIM. O furriel de bigode foi citado há pouco tempo num poste e/ou fotos do CIM atual. Tinha nome de "Roupa Velha" (?)... ou "Curta (?)...



Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama (c. 1973/74) > Numa praia em Bolama. O João é o segundo a contar da direita.


Guiné> Ilha de Bolama > CIM de Bolama > Natal de 1973 > Foto de grupo, cada militar segura uma garrafa de espumante que, se presume, foi-lhe oferecida.

Fotos (e legendas): © João Candeias da Silva / António Duarte  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Faleceu no passado dia 14, o nosso camarada João Silva, um dos últimos soldados do império (*). Aos 72 anos. Vivia em Santiago do Cacém. Furriel Miliciano Atirador de  Infantaria, passou por Cabuca (CCAV 3404, 1972), Bambadinca e Xime (CCAÇ 12, 1973) e Bolama (CIM, 1973/74). 

Entra agora, a título póstumo, na nossa Tabanca Grande, apadrinhado pelo seu grande amigo e camarada António Duarte. E por mim próprio, editor do blogue. Nós, os três,  fomos furriéis milicianos da CCAÇ 12, eu da "1.ª geração", a dos fundadores (Contuboel e Bambadinca, junho 1969 / março 1971), eles da "3.ª (e última) geração" (Bambadinca e Xime, 1973/74).

Não o cheguei a conhecer pessoalmente, muito menos na Guiné: eu regressei a casa em março de 1971, ele foi para a CCAV 3404, em Cabuca, em janeiro de 1972. Era de rendição individual. Mas ele tem um dúzia de referências no blogue, e sempre que intervinha, em geral sob a forma de comentários, fazia-o para falar da sua condição de graduado da CCAÇ 12, subunidade de guarnição normal, constituída por graduados e especialistas metropolitanos e praças do recrutamento local, de que muito se orgulhava. 

Esteve 7 meses na CCAÇ 12, antes de ser colocado no CIM de Bolama com a missão de dar instrução a militares do recrutamento local. Já passou o Natal de 1973 em Bolama. E em maio de 1974, regressou à metrópole, pagando, do seu próprio bolso, a viagem na TAP.

Passou, desde anteontem, a ser o grã-tabanqueiro n.º 866. Prometemos honrar a sua memória (**). E republicar, em próximos postes, alguns dos seus valiosos e sempre oportunos comentários (**). Tem 13 referências no nosso blogue.

2. Comentário do António Duarte, de 29/10/2022, 18:12

Boa tarde Luís.

Sugeri a  entrada do João Silva na Tabanca Grande atendendo a que ele acompanhava o blogue e participava, embora através de comentários a postes. Inclusivamente, e com alguma frequência, mostrava ao filho e à filha textos do blogue, conforme os dois me contaram no dia do funeral.

Não formalizou o pedido por mero "deixa andar".

No entanto, decide como melhor te parecer, mas penso que se justifica, precisamente face ao acompanhamento do blogue e às participações nos comentários.

Se necessário posso fazer a pesquisa de mais comentários. (...)
 
Se necessitares de algo que eu possa ajudar apita sff
Abraço
Duarte


3. Dois comentários do João Silva 

(i) CISMI, Tavira. Terceiro turno de 1971.

Depois da recruta no Hotel das Caldas, rumámos a sul até Tavira para fazermos a especialidade de atirador de infantaria.

A viagem longa e demorada foi feita sem paragens em vilas onde pudéssemos dar ao dente, a excepção era para fazer xixi no meio do mato.

Em Tavira, no CISMI, destaco 3 personagens:

(a) Tenente Moleiro, que no primeiro dia apareceu no campo da feira, conhecido por Atalaia. O pelotão formou e depois do blá, blá da retórica, tirou o quico e disse: "é este o corte de cabelo da companhia";

(b) Caifás, o barbeiro onde nos iríamos apresentar e dizer "corte à tenente Moleiro":

(c) O capitão capelão que dava palestras aos sábados ao fim da manhã no refeitório.

O pessoal estava exausto, sentado e com o queixo apoiado ao cano da G3, não tardava em adormecer. A palestra que alertava para o "respeito" pelas meninas e ameaçava que,  quando tal não acontecia,  terminava em casamento na parada. E dava como exemplo o que, na recruta / especialidade anterior, tinha acontecido.

Depois era ouvi-lo: "tu aí ao fundo,  levanta-te e castiga-te a ti próprio".... "Sim tu que estavas a dormir"...

A malta como não sabia a quem ele se dirigia, levantavam-se dois ou três. Então dizia: "não és tu, ele sabe quem é". À segunda ou terceira acertava.

A malta que sabia tocar e cantar e fosse "actuar" na missa de domingo,  tinha tratamento VIP. Também havia outros VIP por serem futebolistas, destaco o Vaqueiro, um dos chamados bebés do Varzim. Havia mais.

A salina era onde os mais tesos eram humilhados por resistirem onde não havia hipótese de vencer. Terminava quando todos estávamos encharcados de água podre e mal cheirosa. O cheiro ficava presente por dias.

Na Guiné, onde fui dos primeiros a chegar por ir em rendição individual, encontrei vários camaradas. Destaco o Penedos, que tocava trompete e em Tavira já tinha um Renault.

João Silva, terceiro turno de 1971, com passagem por Beja, Depósito de Adidos e Guiné. (***)


(ii) Quem não entrou na equação do 25 de Abril foram os africanos que juraram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Camarada Luís Mourato: Ao ler o teu testemunho das lágrimas que viste nos olhos do militar que servia a bandeira portuguesa na Guiné,  trouxe-me à memória um episódio que recentemente foi aflorado aqui a insubordinação da 12 em Bambadinca em Março de 1973.

Hoje acredito que eram os primeiros sinais do fim da capitulação do exército português naquela longa e desgastante guerra.

A Bambadinca, na companhia de Spínola, chegaram para "resolver o assunto" 3 oficiais africanos garbosamente fardados de camuflado e galões reluzentes, que vieram para credibilizar o empenho do Governador e Comandante
-Chefe.

Depois da CCAÇ 12,  o meu destino foi Bolama e lá, entre os oficiais subalternos, era evidente o tema do livro "Portugal e o Futuro",  Spínola vem a Lisboa e não regressa. Almeida Bruno e Otelo já tinham regressado. No final de 73 regressam Salgueiro Maia e Luís Moura, meu capitão na CCAV 3404 em Cabuca,  e pouco conhecido, mas foi ele que veio de Estremoz a comandar a coluna que se juntou no Carmo na rendição de Marcelo.

Tudo bem pensado e organizado e o correcto. Fazer, o que tinha que ser feito, o Golpe de Estado. Quem não entrou na equação foram os africanos que juram bandeira e a defenderam ao nosso lado.

Foram, sem o mínimo pudor, depois de desarmados, deixados ao Deus Dará para serem vítimas de violenta chacina.

Quando será que todos nós nos retratamos por termos assistido de braços caídos e em silêncio?

João Silva
Ex-furriel mil at inf
Cabuca, Bambadinca, Xime, Bolama, Abril de 72 a Maio de 74. (****)
___________


(**) Último poste da série > 13 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23704: Tabanca Grande (537): José Moreira de Castro Neves, ex-Fur Mil Arm Pes Inf da CCAÇ 1551 / BCAÇ 1888 (Bambadinca, Fá Mandinga e Xitole, 1966/68)... Natural de Valongo, senta-se no lugar n.º 865, sob o nosso poilão

(***) Vd. poste de 31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21719: (Ex)citações (382): Tavira, CISMI, por quem nenhum de nós morreu de amores... (João Candeias da Silva / Carlos Silva / Luís Graça)

(****) Vd. poste de 23 de dezembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21679: (In)citações (174): Apesar de agnóstico, ainda conservo, na cabeceira, um crucifico-talismã que alguém deixou na tabanca onde eu pernoitava: Ká pudi larga mezinho qui pudi salvar kurpu (Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)

terça-feira, 27 de abril de 2021

Guiné 63/74 – P22145: Estórias avulsas (105): Pequemo almoço às 2 horas da manhã (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Arm Pes Inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

Tavira > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI. Belo exemplar da nossa arquitetura militar, fica situado na Rua Isidoro Pais. Imóvel classificado como de interesse público, segundo o excelente síio da Câmara Municipald e Tavira


1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 21 de Abril de 2021, trazendo mais uma das suas estórias que bem caracterizam as nossas atribulações enquanto instruendos do CSM.


Pequeno almoço às 2 horas da manhã

Nos meses de janeiro, fevereiro e março de 1971, estive no CISMI em Tavira a fazer a especialidade de Armas Pesadas. Aplicação militar, marchas, crosses, muitos crosses, instrução e formação teórica e prática de regulação de tiro era intensa, o desgaste físico era directamente proporcional á intensidade do esforço despendido.

Tudo isto ia aguentando mas o que me fazia “saltar a tampa“ era:
1 - dormir ou tentar dormir ouvindo discursos de políticos da época ou ao da música “Angola é nossa”.
2 - formar na parada às 2 ou 3 da manhã para ouvir uma dissertação militar do Major-Comandante de Instrução.
3 - formar para saber as missões para o dia.


A alvorada era todos os dias às 06,30 horas da manhã e a formatura para o pequeno almoço às 7,15. Já não estou seguro deste horário. Para esta formatura todos os formandos levavam dependurado no cinto o copo do cantil no qual era servido o café com leite.
Quem passou por lá sabe os pormenores
.

Até que um dia o motivo desta história aconteceu.
Regra geral a primeira formatura era para o pequeno almoço, mas naquele dia era para uma das palestra noturnas. Eu, um homem sempre prevenido, cheio de sono e fome, vou com o copo do cantil ao cinto para a formatura preparado para o pequeno almoço.
Quando estava na formatura cumprindo as ordens de:
Firme!
Sentido!
À vontade!


Com o movimento do corpo deixei cair o copo do cantil o que provocou uma curta gargalhada geral.
Quando terminou a palestra fiquei à espera de levar nas orelhas mas nada aconteceu. Fui para a caserna meio cheio de medo esperando pelo início da instrução para saber o que me iria acontecer, mas mais uma vez nada aconteceu nem veio a acontecer.
Assim se passou uma história da minha vida de militar em formação.


Cumprimentos
Joaquim Ascenção

____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MARÇO DE 2021 > Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

terça-feira, 30 de março de 2021

Guiné 63/74 – P22052: Estórias avulsas (104): O melhor brunch da minha vida, numa longa viagem de 21 horas de comboio, entre Leandro e Tavira, já lá vão 50 anos (Joaquim Ascenção, ex-fur mil arm pes inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Ascenção (ex-Fur Mil de Armas Pesadas de Infantaria da CCAÇ 3460/BCAÇ 3863, Cacheu, 1971/73), com data de 27 de Março de 2021, trazendo uma estória que bem caracteriza as dificuldades que sentíamos quando tínhamos de atravessar Portugal de lés-a-lés nas deslocações entre quartéis.


O melhor brunch

No início de Janeiro de 1971 (já lá vão 50 anos),  fiz a minha primeira grande viagem.

Fui colocado para a segunda fase da minha formação militar no CISMI em Tavira. Munido das respectivas guias de marcha iniciei a viagem no apeadeiro de Leandro na linha do Minho cerca das 22 horas e cheguei a Tavira cerca das 19 horas do dia seguinte.

As etapas foram:

Leandro - Campanhã (comboio)
Campanhã - Santa Apolónia (comboio)
Santa Apolónia - Terreiro do Paço, a pé
Terreiro do Paço - Barreiro (de barco)
Barreiro - Tavira (comboio)

A ração de combate (caseira) resumia-se a 2 pães e 1 ou 2 ovos cozidos e um pouco de chouriça.

Ao fim da manhã já não tinha nada para comer nem onde comprar, o comboio a que a guia dava acesso eram comboios que paravam em todas as estações e apeadeiros e não dispunham dessas mordomias.

Ao início da tarde a fome apertava, entretanto uma senhora que viajava no mesmo compartimento que tinha entrado,  já eu tinha para aí uma hora de viagem, abriu um baú e um pequeno garrafão de vinho e começou a comer pão e presunto, acompanhado  com um copinho de vinho... e eu a ver e a salivar... 

A té que a senhora olha para mim e pergunta:
 - Oh menino, tens fome? Serve-te, come e bebe que chega para os dois.

Eu assim fiz, comi e bebi e matei a fome. No fim agradeci.

Recordo este gesto para toda a minha vida. Que Deus tenha reservado um lugar no céu para ela.

Mais tarde, já em África, passei por momentos semelhantes mas sem ter quem me socorresse.

A tantos sacrifícios fomos submetidos, tanto desgaste físico e psicológico ao longo de tantos meses, e para quê?

Uma pergunta que fica e ficará sempre sem resposta.

Cumprimentos
Joaquim Ascenção

____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 de março de 2021 > Guiné 63/74 – P21987: Estórias avulsas (103): Enfermeiro por uma noite (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Armas Pesadas de Infantaria)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21844: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 3851, 1972/74) - Parte I: Caldas da Rainha (A chegada às portas da tropa: um fardo pesado); Tavira (Amor, ódio e... trampa)



Guiné > Região de Tombali > CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74) > Nhacobá > s/d > Furriéis Azambuja Martins e [Joaquim]Costa

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Joaquim Costa, ex-fur mil arm pes inf, CCAV 8351, "Tigres do Cumbijã"  (Cumbijã, 1972/74), membro nº 826 da Tabanca Grande, engenheiro técnico reformado, natural de Vila Nova de Famalicão, residente em Gondomar (*):



Date: segunda, 1/02/2021 à(s) 15:50
Subject: O meu primeiro poste

Meu caro Luís, camaradas e amigos, protegidos por este enorme "Poilão", que é este (nosso ) Blogue de Luís Graça & Camaradas da Guiné (*):

Com a devida permissão, dada pelo Luís, para me encostar a todos vós debaixo deste magnífico poilão, aqui estou, pronto para acrescentar mais uma pequena gota neste oceano de gente "grande" e boa, que por força inexorável da lei da vida vai minguando dia após dia.

Já agora, permitam que me faça acompanhar pelo meu irmão Manuel (infelizmente já falecido), mobilizado para Guiné no início dos anos 60 e também do meu filho Tiago, engenheiro civil, que esteve dois anos na zona do Cacheu na construção de uma ponte sobre o rio com o mesmo nome mais precisamente em S. Vicente (ponte Europa, mais conhecida por Ponte de S. Vicente).

O meu filho e mais 4 colegas da empresa viveram momentos dramáticos enquanto jantavam num restaurante (A Padeira) junto ao local onde foi assassinado Nino Vieira (na altura presidente da da Guiné-Bissau) sentido muito perto o cantar contínuo das Kalachnikov e o rebentar das granadas dos RPG. Foi uma fuga (sem pagar a conta) com a tensão nos limites conduzidos por um trabalhador local, subornando todas as barreiras de militares até chegar aos estaleiros da empresa em S. Vicente. Ou seja: nada mudou desde o meu tempo de Guiné…

O Camarada da nossa tabanca, Hélder Sousa, que amavelmente fez um comentário na minha apresentação (*), que muito agradeço, já fez aqui referência a uma página de internete construída pelo Engenheiro Geógrafo Pedro Moço, amigo e colega de trabalho do meu filho, que conta ao pormenor toda a história da construção da ponte. Dada a qualidade da mesma, sugiro que a revisitem (**).

A seu tempo utilizarei um poste sobre a construção desta ponte.

Aproveito também para agradecer o comentário do meu vizinho, Gil Moutinho, e proprietário do excelente restaurante, Choupal dos Melros, onde já várias vezes jantei muito bem e comemorei com amigos os meus anos.

Embora as nossas casas não distem mais de 500 metros, só o Blogue nos deu a conhecer. Já tive a oportunidade de ver parte do Museu da Tabanca dos Melros, ainda no início, num jantar onde perguntei por ti mas nesse dia não estavas. Obrigado pelo convite e obviamente que responderei à chamada.

Um abraço ao autarca e amigo de Mampatá [, o António Carvalho, o Carvalho de Mampatá], que muitas vezes me convidou para os almoços da Tabanca, creio que de Matosinhos, mas que por vários motivos não pude aceitar.

Aos dois um grande abraço

Como já referi na minha apresentação (*), fiz parte da companhia de intervenção, a CCAV 8351 (Os Tigres do Cumbijã), formada no Regimento de Cavalaria n.º 3 de Estremoz, com comissão na Guiné em Aldeia Formosa e, mais particularmente, e proficuamente, em Cumbijã.

Com a minha passagem à aposentação, na tentativa de me manter ativo, para além de ler parte dos livros amontoadas e da bricolage, comecei a rabiscar um conjunto de histórias, do meu tempo de infância e da vida militar.

Tendo em conta os interesses e objeto do blogue, vou partilhar convosco (se os editores do blogue assim lhe reconhecerem qualidade bastante para aqui ser editado), para já, as minhas vivências desde o dia conturbado da chegada às Caldas da Rainha até ao regresso sui generis da Guiné.

Grande parte da história da companhia já aqui foi superiormente dada a conhecer a todos vós pelo ex capitão da companhia Vasco da Gama (a quem aproveito para mandar um abraço – não cotoveladas,  como agora é uso – assim como aos meus camaradas e amigos da companhia).

A minha narrativa sobre os acontecimentos, embora os factos sejam os mesmos, será obviamente diferente já que as vivi, naturalmente, de forma diferente.

Meu caro Luís, envio para ti este meu primeiro poste, contudo, se outra forma ou meio estiver instituído, agradecia que me desses a conhecer,

Bem hajam e saúde para todos.


2. Comecemos então pelo princípio: Caldas da Rainha e Tavira [, seguindo o índice do livro, em preparação, "Paz e Guerra: de pequeno ao furriel Pequenina"]


Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte I
 

[9] Caldas da Rainha: A chegada às portas da tropa – um fardo pesado

Depois de ter ido às sortes e não me ter safado, o meu irmão Manuel, o primeiro a ir para a tropa na família com uma mobilização atribulada para a Guiné (1) (o segundo foi o João com comissão em Angola) (2), passou o tempo a dar-me conselhos sobre como me devia comportar nas lides dos quartéis, não obstante o tempo da chamada para a incorporação ainda vir longe.

Com a chegada da guia de marcha para as Caldas da Rainha os conselhos passaram a ser diários: "Respeita os graduados, o cabelo sempre curto, as botas sempre bem engraxadas, atenção aos amarelos... E a mais importante: nunca te ofereças como voluntário para nada". (Mais tarde constatei que este último conselho me livrou de algumas tarefas complicadas, nomeadamente descascar batatas toda a noite ou despejar fossas.)

Chegado o dia da partida, já devidamente preparado pelo Manel para enfrentar a vida militar, de mala feita e já fechada, chega à minha beira, o meu "padrinho de guerra", com 4 garrafas de vinho verde branco da casta Alvarinho e diz-me: "Abre lá o saco e leva estas quatro garrafinhas de vinho verde que te vão aligeirar a dureza da instrução".... "Como assim?",  digo eu. "Isto é assim", diz ele: "Logo no primeiro dia, com algum recato, ofereces 2 garrafinhas ao alferes e uma a cada cabo miliciano: funcionou comigo, contigo também não vai falhar!"...

O que logo me passou pela cabeça é que nunca teria a coragem de fazer tal coisa, para além de achar aquilo um absurdo, mas vi-o tão entusiasmado que pensei: "Ok, levo o material e encontrarei alguns momentos para confraternizar com os novos amigos de armas".

O meu "padrinho de guerra" foi comigo até ao comboio e ajudou-me a aconchegar a mala de modo a proteger as quatro "granadas".

Em Campanhã, arrastei a mala para fora do comboio e apercebo-me de um razoável grupo de mancebos com o cabelo rapado e com o mesmo ar assustado como o meu. Ao entrar para o novo comboio tive de pedir ajuda e logo surgiram as primeiras "bocas": "Já levas aí material de guerra?".. "São só quatro granadas" disse eu.

Em Alfarelos, onde a linha do Oeste desagua na linha do Norte, a estação ficou completamente inundada de mancebos vindos do Norte e do Centro do país,  mais parecendo um grande grupo de jovens em Interrail

A tarefa mais complicada foi carregar a mala da estação até ao quartel, mas com a ajuda dos amigos da ocasião lá se venceu o caminho.

Chegados à porta do quartel, deparo-me com uma enorme fila de pessoal para entrar. Pelos vistos, e para mal dos meus pecados, havia soldados a revistar minuciosamente todas as malas. Comecei a ver a minha vida a andar para trás. A primeira coisa que me ocorreu foi livrar-me daquele material perigoso, mas com tanta gente ao meu lado tal não era possível, pelo que tentei trazer a roupa toda para a parte de cima da mala tentando camuflar as "botijas" e seja o que Deus quiser.

Chegada a minha vez, com as mãos a tremer e já a transpirar, não obstante o frio que se fazia sentir, o nosso "pronto" começa a fazer a sua minuciosa revista, ficando estupefacto quando se depara com as quatro "granadas". 

Manda-me entrar para a guarita e com um ar sério vai dizendo que estou metido num grande sarilho: é crime levar bebidas alcoólicas para a caserna. Manda-me aguardar um pouco afirmando com algum dramatismo: "Vou chamar o nosso cabo já que só ele pode tratar deste caso". 

Chamou o cabo, mostrando um semblante de quem está a tentar salvar alguém da forca e disse-lhe: "Vê lá o que podes fazer pelo rapaz, não queremos que vá, logo no primeiro dia, dormir na cadeia do quartel!"... 

O nosso cabo olha para mim, fita as garrafas enquanto palita os dentes com a língua e "bota" a sua sentença: 

 "Se o oficial dia encontra aqui estas garrafas estamos todos tramados. Vou ficar com o seu nome, tentar esconder este material e, se tudo correr bem, está safo, se isto for descoberto está com um grande problema". 

A minha chegada às portas da tropa não podia ter começado melhor! Mais parecia a chegada às portas da guerra do Raul Solnado. Já me estava a sentir a pão e água na prisão do quartel!

Com as pernas a cederem e cheio de suores frios lá disse ao homem com a voz embargada: "Obrigado nosso cabo, ficar-lhe-ei eternamente agradecido"... mas receando o pior.

Passados uns dias (vividos com alguma ansiedade pelo desfecho do incidente das garrafas) tenho em cima da minha cama, depois de um dia duro de instrução, uma caixa com as quatro garrafas vazias e com a seguinte mensagem: 

"Podes ficar descansado. Assunto encerrado. Aqui estão as quatro 'granadas' já sem espoleta" (espoleta é um mecanismo que provoca a explosão da granada sem a qual a mesma é praticamente inofensiva)... "Sempre às ordens. Aguardamos, impacientes, a nova remessa"…
 
 _________

Notas do autor:

(1) Chegou a Bissau com uma grande pneumonia contraída durante a viagem, tendo quase de seguida regressado ao continente, com passagem à reserva, sem nunca ter visto Bissau.

(2) A sua comissão em Angola, como Furriel Miliciano, foram 2 anos de férias, numa zona junto a Luanda, onde nunca se sentiu a guerra e onde comprou carro e alugou casa…

No regresso embarcou ele (juntamente com a sua companhia) e o seu carro, um Ford Taunos, uma grande e espetacular "limousine" à americana dos anos 50 (a circular ainda hoje nas ruas de Havana), que fez parar a aldeia à sua chegada vencendo os caminhos, só frequentados até então por carros de bois, para chegar a casa...



Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país. Fila do pessoal para receber fardamento, Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (, em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nossa geração já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais.

Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



[10] Tavira: com amor, ódio… e trampa


Já na altura, a tropa estava muito à frente! – eram distribuídas as especialidades de uma forma cientificamente infalível, através de testes ditos psicotécnicos que na altura, creio eu, só o exército utilizava.

Era recorrente ouvirmos que escriturários iam para mecânicos, mecânicos para escriturários, enfermeiros para transmissões e técnicos de rádio para enfermeiros...

Dado este rigor científico, tinha a expectativa, dada a frequência do 3.º ano em engenharia eletromecânica (Curso de Eletrotecnia e máquinas), que me sairia em sortes, no mínimo, a especialidade de transmissões!

Enfim: Armas Pesadas!... e "ala" para Tavira.

Só mais tarde, depois de uma análise mais fina aos psicotécnicos e ao constatar que a maioria dos meus camaradas do pelotão de armas pesadas tinham, alguma, formação em engenharia mecânica e eram todos "roda 26", (todos com pouco mais que metro e meio de altura), compreendi a justeza e o valor científico dos mesmos. Montar e desmontar os canhões sem recuo e as metralhadoras pesadas só alguém com alguns conhecimentos de mecânica.

Já a "roda 26" era muito importante (como é que eu não pensei nisso?) para se poder operar dentro do espaldão, de pé,  continuando protegidos já que não atingíamos a altura dos bidões de proteção! A tropa estava mesmo muito à frente!

Gostei, e gosto, muito da cidade, das praias, das igrejas, das gentes, das esplanadas, das chaminés. Detestei a instrução de "mata cavalo", não pela dureza, nem pelo rigor da disciplina militar, mas pela brutalidade gratuita de alguns graduados já com várias comissões no então ultramar.

Gostei do espírito de grupo e camaradagem do pessoal daquela incorporação.

Estes 3 meses em Tavira escancararam-me a porta para o novo mundo, já ligeiramente entreaberta no ano do curso antes da incorporação (tinha o "Canto e as Armas" de Manuel Alegre e uma cassete com os Vampiros e o Menino do Bairro Negro do Zeca Afonso e já me sentia um revolucionário!), fazendo de mim um cidadão mais informado e consequentemente (e conscientemente) mais disponível para abraçar causas, que no contexto da altura só podiam ser as da liberdade.

Foi uma verdadeira escola de vida. Não pela instrução, contraproducente, mas pela densidade cultural e política de alguns dos intervenientes nas tertúlias e reuniões, supostamente, clandestinas.

Discutia-se e questionava-se a guerra, a ditadura, o embrutecimento da instrução militar, as péssimas condições das casernas e a péssima alimentação e também... futebol (aqui as divergências eram claras)… e as lindas algarvias (aqui havia mais consenso), etc.

Nesses três meses fizeram-se dois levantamentos de rancho (decididas em reuniões clandestinas restritas e com a informação a circular de boca em boca). Nenhum instruendo cedeu. A todos estes acontecimentos não é alheio o facto de fazerem parte desta incorporação dois filhos de altos dirigentes do MDP/CDE, que obviamente eram os líderes e promotores das tertúlias e reuniões clandestinas e de quem perdemos o rasto dias antes do fim da especialidade...

Na altura o então capitão Raúl Folques (militar altamente prestigiado) comandava, se a memória não me falha, uma das companhias de atiradores. A sua presença impunha respeito (na altura mais medo). Militar irascível, mas com comportamentos fora dos cânones militares ao terminar um levantamento de rancho, dando voz aos instruendos, deitando para o lixo toda uma refeição e ter mandado preparar uma nova, de qualidade aceitável, voltando, contudo, tudo ao normal nas refeições seguintes.

Toda a instrução era estúpida, contraproducente e desajustada tendo em vista o objetivo principal que era a criação de um corpo de militares preparados física, psíquica e tecnicamente para uma guerra de guerrilha num ambiente hostil e completamente desconhecido.

O objetivo principal da instrução foi sempre e só a humilhação pessoal:

  • Rastejar do quartel até ao local de instrução, com paragens para ler o RDM (Regulamento de Disciplina Militar) com um pé do instrutor em cima das nossas costas;
  • "Chafurdar" nas salinas abandonadas, de águas podres, pelo simples prazer de humilhar;
  • Fazer a entrega da correspondência, em formatura na parada, fazendo comentários brejeiros e mesmo obscenos sobre o que seria o conteúdos das mesmas enxovalhando todo aquele que recebia uma carta perfumada ou com "coraçõezinhos"...

Chegou-se ao ponto de se abrir uma carta (com muitos coraçõezinhos) e ler o conteúdo da mesma para todo o pelotão. Tal só aconteceu uma vez dado a ameaça, levada muito a sério, que se voltasse a fazer o mesmo o autor levaria um tiro.

Bastou uma semana passada em Tavira para compreender porque toda a gente chamava Hotel das Caldas ao quartel das Caldas da Rainha...

Tendo em conta as experiências do dia a dia e as histórias contadas por militares que por ali tinham passado, a semana mais temida era a da "nomadização". Éramos lançados, em pequenos grupos, na serra do Caldeirão, com ração de combate apenas para um dia, com um conjunto de pontos onde éramos obrigados a passar, regressando ao pondo de partido, no 4.º dia, onde éramos recolhidos.

Contra todas as expectativas foram os melhores dias que passei em Tavira. Tinha eu a ideia que estando nós no Algarve, supostamente uma das regiões mais desenvolvidas do país por força do turismo, ali já massificado, e o contacto com grande número de estrangeiros, que todo o conforto aqui seria possível.

Eu que vinha duma pequena aldeia do Minho, fiquei boquiaberto com o isolamento daqueles pequenos povoados, dispersos, sem luz elétrica, sem vias de comunicação, só trilhos por onde passavam, com dificuldade, animais.

A nossa chegada a estes locais era como a chegada de extras terrestres. Fomos recebidos por estas gentes como família e como familiares comemos à sua mesa. Nos quatro dias sempre jantamos à mesa, em casas diferentes, e dormimos: uma noite num curral dos animais, outra num silo e a terceira noite numa destilação de aguardente de medronho onde acordamos completamente tontos (embriagados) dado a quantidade de vapores etílicos no ar.

Numa das casas uma mulher, já nos seus 60 anos, confidenciou-nos que não obstante ser Algarvia, ainda não tinha visto o mar.

Contudo havia uma pequena escola primária, com meia dúzia de crianças, onde falamos com a professora, ainda jovem, com o namorado na tropa nas Caldas da Rainha, pelo que, não só, mas também, pensando nele, fez questão de partilhar connosco o seu lanche que os habitantes todos os dias lhe preparavam.

Durante a agradável conversa, com os alunos maravilhados com o generoso intervalo, contou-nos a sua aventura diária para chegar à escola. Utilizava 3 meios de transporte: autocarro, bicicleta e um burro nos últimos metros mais acidentados. Despedimo-nos com votos para que o seu namorado jamais viesse parar a Tavira...

Mas, o momento marcante da instrução (para além do tradicional mergulho nas velhas salinas de água podre, a semana de campo e a semana de nomadização) era o dia do fogo real, feito para a ilha de Tavira.

Com a especialidade de armas pesadas tínhamos de manobrar, de olhos fechados, as seguintes armas:

  • canhões sem recuo (cujo disparo tinha de ser feito com o cotovelo, com as mãos a tapar os ouvidos e a boca bem aberta para não darmos cabo dos tímpanos);
  • morteiro 120,
  • metralhadoras pesadas Browning e Breda.

Tudo isto a disparar para a ilha de Tavira metia medo ao susto. E assim foi...

O responsável pela carreira de tiro era um Tenente que tinha chegado recentemente da Guiné (um dos homens mais temidos no quartel a par do capitão Folques), completamente "cacimbado".

No meu pelotão tinhamos um excelente rapaz, grande melómano (moldou os meus gostos musicais que perduram até hoje), que de todo, não atinava com esta "coisa" da tropa. Começado o "fogachame" em simultâneo para a ilha de Tavira com a Breda, a Browning,  o morteiro 120 e o canhão sem recuo (o fogo de artifício das festas da Senhora da Agonia, comparado com isto é uma brincadeira de criança), logo o nosso melómano começou a fugir aos gritos impressionado com todo aquele aparato, convencido que o mundo estava a desabar.

O Tenente obriga-o deitar-se no chão e diz-lhe: "Se levantares a cabeça, um milímetro que seja, és um homem morto"... E começa a disparar com a Breda por cima do rapaz

A todos nós, que estávamos a assistir aquilo, não nos cabia um feijão no "dito", não obstante constatarmos que, pese embora o "cacimbo" da Guiné, o homem apontava as rajadas para uma altura de segurança, nunca pondo em perigo a vida do nosso camarada.

Terminado o filme de terror, fomos a correr ver como estava o nosso homem: branco, branco. Levantamo-lo, com todo o cuidado, e foi então que começamos a sentir um cheiro insuportável e algo a escorrer pelas botas a sair das calças do melómano... e assim passou de melómano a "merdalómano" (um mal nunca vem só…)

Nota: Nessa noite a caserna parecia a "aldeia da roupa branca (neste caso verde)" com toda a gente a estender as suas calças a secar penduradas na cabeceira da cama, ao qual me associei, contudo não tenho memória que tivesse chovido nesse dia!...

(Continua...)

____________

Notas do editor:

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Guiné 61/74 - P21719: (Ex)citações (382): Tavira, CISMI, por quem nenhum de nós morreu de amores... (João Candeias da Silva / Carlos Silva / Luís Graça)


Facebook > Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora > Carlos Cordeiro > 17 de janeiro de 2017

(...) Há 49 anos dava entrada no CISMI - 4.ª companhia. Deixo de lado as coisas menos boas para olhar com ternura o tempo de juventude. Foto: regresso da Semana de Campo. À excepção do cabo miliciano (...) todos os recrutas são naturais de S. Miguel - Açores. Da esquerda para a direita: Carlos Alberto Pereira Rangel; José Luís Vasconcelos Botelho; cabo miliciano; Domingues e eu,  Carlos Cordeiro  [, saudoso membro da nossa Tabanca Grande, 1946-2018]  (...)




Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora  > Carlos Cordeiro > 9 de março de 2015 

 
(...) CISMI. 1.º turno de 1968 (recruta). Um dos pelotões da 4.ª Companhia (não me lembro o n.º), "foto de família". Regressámos da "visita" às salinas já tarde e não havia muito tempo para vestir a farda n.º 2, tirar a foto e a seguir formar para o almoço. O aspirante (que talvez tivesse feito com que chegássemos tarde de propósito) disse então para vestirmos a parte de cima da farda n.º 2 e ficarmos com as botas e calças como se pode ver pela foto. 

Sou o terceiro a contar da direita na fila do meio [, assinalado com cercadura a amarelo[. Ao meu lado direito está um amigo aqui de S. Miguel,  Açores. De resto, infelizmente, não me lembro do nome de mais ninguém, ainda que todos tenham assinado a foto. O aspirante era bastante reguila, o que era temperado pelo cabo miliciano, excelente pessoa. Oxalá algum camarada se reveja na foto. (...) 
 

1. Comentários do João Candeias e do Carlos Silva ao poste P217092 (*):

(i) João Candeias da Silva [ex-fur mil at inf, de rendição individual, CCAV 3404 (Cabuca, 1972), CCAÇ 12 (Bambadinca, 1973) e CIM Bolama (1973/74)]

CISMI, Tavira. Terceiro turno de 1971.

Depois da recruta no Hotel das Caldas, rumámos a sul até Tavira para fazermos a especialidade de atirador de infantaria.

A viagem longa e demorada foi feita sem paragens em vilas onde pudessemos dar ao dente, a excepção era para fazer xixi no meio do mato.

Em Tavira, no CISMI, destaco 3 personagens:

(a)-Tenente Moleiro, que no primeiro dia aparaceu no campo da feira, conhecido por Atalaia. O pelotão formou e depois do blá, blá da retórica, tirou o quico e disse: "é este o corte de cabelo da companhia;

(b) Caifás, o barbeiro onde nos iríamos apresentar e dizer #corte à tenente Moleiro":

(c) O capitão capelão que dava palestras aos sábado ao fim da manhã no refeitório.

O pessoal estava exausto, sentado e com o queixo apoiado ao cano da G3, não tardava em adormecer. A palestra que alertava para o "respeito" pelas meninas e ameaçava que quando tal não acontecia termimava em casamento na parada. E dava como exemplo o que, na recruta / especialidade, anterior, tinha acontecido.

Depois era ouvi-lo: "tu aí ao fundo levanta-te e castiga-te a ti próprio".... "Sim tu que estavas a dormir"...

A malta como não sabia a quem ele se dirigia, levantavam-se dois ou três. Então dizia: "não és tu, ele sabe quem é". À segunda ou terceira acertava.

A malta que sabia tocar e cantar e fosse "actuar" na missa de domingo tinha tratamento VIP. Também havia outros VIP por serem futebolistas, destaco o Vaqueiro, um dos chamados bebés do Varzim. Havia mais.

A salina era onde os mais tesos eram humilhados por resistirem onde não havia hipótese de vencer. Terminava quando todos estavamos encharcados de água podre e mal cheirosa. O cheiro ficava presente por dias.

Na Guiné, onde fui dos primeiros a chegar por ir em rendição individual, encontrei vários camaradas. Destaco o Penedos, que tocava trompete e em Tavira já tinha um Renault.

João Silva, terceiro turno de 1971, com passagem por Beja, Depósito de Adidos e Guiné.

(ii) Carlos Silva  (ex-Fur Mil Inf,  CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71), Régulo da Tabanca dos Melros]

Meus Amigos & Camaradas:

Entrei no dia 8/1/1969 no RI 5 nas Caldas da Rainha e fiquei integrado na 2ª Companhia comandada pelo Ten Bicho Beatriz, Capitão de Abril, infelizmente já falecido, homem de bom trato.

Integrei o 2º Pelotão, comandado pelo Ten Carneiro, também um militar respeitador. Os Cabos Milicianos, um deles era o Moreira que encontrei na Guiné e posteriormente muitas vezes em Lisboa, um tipo porreiro. O outro, cara de mauzão, mas bom rapaz e quem era ele ? Quem era ele ? Todos o conhecem aqui no Blogue, nem mais nem menos, o nosso amigo & camarada o Humberto Reis.

Das Caldas, para além de vários episódios, lembro-me do mais importante, que foi o sismo de 28 ou 29 de Fevereiro de 1969 e da audição em parada das Ordens de Serviço com o final de " O Comandante ... Giacomino Mendes Ferrari "...

Daqui deram-me a guia de marcha para apanhar o comboio e parar em Tavira onde nos esperavam os autocarros de turismo do Exército para nos transportar até ao designado quartel da Atalaia - CISMI onde dei entrada no dia 9/4-/969, 2º Turno, para aí tirar a especialidade de Armas Pesadas, ficando integrado na 2ª Companhia, comandada pelo Cap Viegas, bom homem, que nunca mais ouvi falar dele. talvez o Carlos Alberto Nascimento, se lembre dele.

O pelotão era comandado por um Aspirante Miliciano do qual não me lembro o nome, coadjuvado por dois Cabos Milicianos, sendo um de nome Soromenho, cara de mauzão, o outro não me recordo o nome.

A instrução e aplicação militar, claro, era exercida no campo da Atalaia e para os lados da Conceição de Tavira ou nas encostas do rio Gilão, para os lados da ponte nova EN.

Falam muito do Ten Madeira, do "Trotil", etc., etc, não me lembro deles, pois a nossa convivência era restrita. Lembro-me de um Tenente, do qual não me recordo o nome, um tipo magro e alto, que nos dava as aulas teóricas, nada acessível, militarista, que andava sempre com um pingalim e um outro Ten Coelho Lima, do Norte, indivíduo de bom trato.

Episódios não são muitos, mas recordo-me de uma cena de uma barata que vinha no prato de arroz de um dos camaradas, que percorreu os pratos todos, pois foi passando de prato em prato, porque nenhum de nós era chinês.

Lembro-me também de quando íamos fazer marchas, sempre que íamos para o lado de lá do rio, ao passar junto às esplanadas, ouvíamos a ordem de comando: "Pelotão... olhar... direita" !!! "... para saudar o 2º Comandante, Maj Teixeira que por ali estava sentado acompanhado ...

Nunca mais ouvi falar deste senhor, nem do Comandante do CISMI que não sei quem era. A rapaziada aqui nunca se referiu aos altos Comandos.

Um outro episódio que me recordo, foi termos um castigo colectivo, privação de fim de semana, dado pelo Maj Teixeira, porque lhe foram fazer queixinhas que os instruendos tinham participado numa operação de assalto a um laranjal ... Pudera!, as laranjas do Algarve tinham fama...

Quanto às meninas e aos casamentos, também eram falados, mas não sei se alguém do meu Turno ficou por lá perdido. Creio que apenas houve por lá um episódio relativo à "espanholita" (?)...

A semana de tiro foi normal, fomos com os canhões e morteiros 81 para Cacela fazer fogo para a Ilha de Tavira. Do CISMI fui parar ao RI 10 Aveiro, mas nem aqueci o lugar, fui logo mobilizado para a Guiné, o que não esperava, pois tinha sido bem classificado.

Foi o meu azar, os camaradas maus classificados foram mais tarde mobilizados, mas foram integrados em pelotões de canhões ou de morteiros e não alinhavam para o mato. Encontrei-me com alguns na Guiné, já eu andava por lá há 6 ou 8 meses. Talvez fosse essa a minha vantagem. Bem, Tavira já vai longe.

Abraço para todos com votos de um Bom Ano 2021 com saúde.

(iii) Luís Graça, editor:

Lembram -se do Carlos Alberto Dores Nascimento, 1º cabo miliciano, e monitor do CSM, entre 1967 e 1969 ? Há uns anos, em 9 de setembro de 2010, escreveu-me o seguinte email:

"Alô, Luis. Sou o Carlos Alberto Dores Nascimento, estive em Tavira de Janeiro de 67 a Dezembro de 69. Especialidade de atirador... e por lá fiquei até ao fim como monitor. Conheci o Robles e o Trotil. O Trotil era Óscar. Conheci-os de alferes a capitães.

"Também gostava de encontrar alguns companheiros daquele tempo (,agora somos avós, ) mesmo que tivessem sido 'meus' intruendos. Sei que todos os anos em Outubro fazem lá no quartel um convívio com todos os que passaram por lá. Eu este ano quero ir pois nunca fui. Estou inscrito no Facebook, tenho lá algumas fotos do nosso tempo para ver se há alguém que se identifica.

"Bom, um grande abraço."


De facto, o Nascimento, algarvio, que é natural de Alagoa, e vive em Portimão, é (ou era, em 2014) um dos elementos mais ativos do Grupo (aberto) do Facebook, Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora.

Segundo o Carlos Nascimento, a 2.ª companhia era "a companhia das várias especialidades",  incluindo a de armas pesadas de infantaria. Ou seja, o ten Esteves Pinto  foi meu comandante de companhia, no CISMI, no último trimestre de 1968.