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segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15634: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (16): “A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

 
1. Em mensagem de hoje, 18 de Janeiro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª na CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um artigo para incluir na sua série "A Minha Guerra a Petróleo", desta vez a propósito do tema em discussão "A Tropa via fazer de ti um homem".
 


A Minha Guerra Petróleo (16)

“A Tropa vai fazer de Ti um Homem!”

Era uma frase feita e, como todas as frases feitas, tinha um fundo de verdade à mistura com uma fraca resistência a uma análise de significado mais cuidadosa. Outros diziam que “a Guerra faz os Homens fortes”. Coisas que se dizem…

Desde logo haveria que esclarecer o que é isso de ser “um Homem”. Toda gente daquele tempo – velhos e novos, homens e mulheres – sabia e lembra ainda hoje o que isso significava, mas, ao tempo, o melhor era não aprofundar o conceito, pois ele esboroava-se e as dúvidas surgidas seriam mais do que muitas…

Tinha de ser um “chefe de família”. Aí todos estávamos de acordo. Tinha algo de positivo e construtivo esta espécie de título nobiliárquico que oficializava a afirmação do Homem (do povo) como chefe, no ambiente familiar, mas, ao mesmo tempo, obrigava-o a ser o sustentáculo do agregado familiar e a não ser “marido de modista”, isto é, um alérgico ao trabalho vivendo à sombra da profissão da mulher. Havia, assim, uma espécie de divisão de tarefas pela qual a mulher era responsável, em primeira linha, pela educação e preparação dos filhos para a vida, e o homem que, com certo brio, normalmente no exterior, arranjava pelo trabalho, os meios para o sustento da casa. Sabemos que as novas gerações acham este padrão absurdo e nem sequer tentam entendê-lo, mas que era assim, salvo excepções, lá isso era.

Esquecem-se apenas de que o trabalho feminino se desenvolveu em consequência de uma guerra e que hoje as mulheres trabalham não por uma questão de “independência e dignidade”, mas muito principalmente porque a família só pôde melhorar os rendimentos familiares somando os salários de ambos os progenitores. Além disso, aos patrões agrada a presença de quem ganhe menos, produza o mesmo e tenha uma capacidade de organização sindical e reivindicativa menor. Mas isto já são “outros caminhos da História”.

Naquele tempo “Tropa” era um acidente previsto na vida dos homens, mas que, ao mesmo tempo, funcionava como uma meta a atingir. Há quem diga que era uma forma de controlo da população e é provável que tivesse sido, mesmo que indirectamente.

Antes de 1961, (antes da guerra do ultramar/colonial) assistia-se a um espectáculo triste, mas que se aceitava na esperança de que caísse nos outros e não em nós. A incorporação do contingente disponível não podia ser muito elevada por ser antieconómica – a vários níveis – e muito mais num país a contar os tostões na sua vida pública. Ir às sortes era uma espécie de totoloto destinado a determinar quem seria incorporado e quem voltaria para “a vida fácil”. No sorteio, a corrupção – por vezes caricatamente baixa – fazia parte dos dados a introduzir e, por consequência, “quem não tinha padrinhos, morria mouro”, a menos que o seu fervor patriótico ou a crença de que a tropa fazia bem o levasse a aceitar ficar apurado. Era o tempo dos “pés chatos” (fosse isso o que fosse e às vezes não era nada) que davam direito a “ficar-se livre à tropa”.

Mas a ida às sortes tinha um aspecto muito positivo. Em muitos casos, era a primeira vez que o jovem ia a uma consulta médica e, se ficasse apurado, sabia que tinha saúde e devidamente autenticada. Os “fraquinhos e os enfezadinhos” ficavam de fora, com as vantagens e inconvenientes que isso comportasse. Depois eram as tais “sortes”, às quais se seguiria um alegre retorno a casa, em liberdade, ou “um não há-de ser nada” para os que seriam incorporados. A incorporação e o serviço militar eram feitos normalmente longe de casa e aí começava um choque na vida do homem que, se tinha aspectos negativos, não podemos negar que abria horizontes – e muito mais naquele tempo – pelo contacto com outros homens, de outras terras e com outros hábitos. É uma realidade que não podemos negar e que hoje procuramos. Porém, feita por obrigação… pelo menos nos primeiros tempos, era uma experiência desagradável para muitos.

Seguia-se o contacto na caserna com outros jovens, de outras terras, com outros hábitos e outras maneiras de pensar, especialmente em relação ao meio em que tinham sido mergulhados. Surgiam os pequenos desenrascanços (sempre maus) e os furtos de caserna (revoltantes e, às vezes significativos) que chegavam a atingir peças de fardamento e equipamento, e a falta de higiene e a deficiência das instalações onde os refeitórios e cozinhas tinham lugar de destaque, pela negativa. E o fardamento que, numa demonstração de miséria nacional, era distribuído já usado com períodos de duração por vezes bastante curtos e que tinha que ser ajustado por troca entre interessados. Instalavam-se as pequenas rivalidades e até invejas de certa monta, às vezes de uma estupidez impressionante: ricos versus pobres, “copinhos de leite” versus “copofónicos”, “pintas de Lisboa” versus “alantejanos”, etc.. Quem não se lembra dos “meninos de Lisboa” que tinham a mania que sabiam tudo ou dos “balentáxos” da “Beira Ialta” que escondiam ao garrafão debaixo da cama e traziam a “churicha” embrulhada num guardanapo gorduroso e cortada com um canivete afiadíssimo, mas com gordura profundamente instalada, da base do cabo à ponta da lâmina?

Era o povo português no seu melhor e no seu mais significativo exemplo…

As mulheres não cumpriam serviço militar e, no fundo, os homens, na sua maior parte, se pudessem deixar de o cumprir, assim fariam. Todavia era algo a que dificilmente podiam fugir. Por isso, acabavam por exibir a sua passagem pelas fileiras como um emblema que os credenciava como homens mais completos. Não era o culto da "ideologia do marialvismo". Poderia ser um "rito de passagem" incentivado pela ideologia política e social do tempo.

Seguia-se a recruta onde o homem era confrontado com uns saberes esquisitos cuja finalidade não entendia. Desde as alocuções sobre o patriotismo, ao funcionamento das armas, o tiro dos diversos calibres, passando por uns exercícios físicos que o cansavam sem que percebesse para que serviam. Mas, a pouco-e-pouco, a integração ia-se dando e estabelecia-se até uma certa rivalidade com “os outros”, os civis, os do outro grupo. E vinha o juramento de bandeira, essencialmente uma festa com rancho melhorado, uns gritos, uma alocução patriótica (que se esquecia no minuto seguinte, mas da qual ficava uma ideia, ou mesmo duas, a juntar ao que se aprendera na Escola Primária) e mais exercícios de ginástica e outros que constituíam uma afirmação. De quê? Isso era outra questão, mas lá que era uma afirmação, disso não havia dúvidas. No final da vida de unidade, monótona e pouco atractiva, vinha a “peluda”. Saíam do quartel “à paisana” com a “consciência do dever cumprido”, dotados da valentia que o grupo sempre dá, impondo à contemplação da sociedade a vitória que acabavam de obter. No dia seguinte iniciavam o processo de esquecimento, confrontados com a vida todos os dias, mas, indiscutivelmente, com uma experiência que os marcava para o resto da vida, mesmo que não dissessem senão mal dela. E, às vezes até diziam bem…

Em muitos casos, o mito de que a tropa "forma homens" tinha confirmação. Os pais e a aldeia, ou seja, a família e a sociedade, notavam uma melhor inserção do homem que acabara de passar por aquela “etapa de desenvolvimento”. Embora durante o serviço militar, o homem tivesse de sobreviver autonomamente e com poucos meios, a emancipação, pelo menos para efeitos legais, chegava aos 21 anos, ou seja durante a sua passagem pelo quartel. Na etapa seguinte, vinha a constituição da família própria e a saída de casa com a correspondente independência garantidas pelo trabalho, mais ou menos afincado. Era um desiderato dos homens jovens daquele tempo.

Tudo ficava por aí e... as coisas iam andando.

E veio a “guerra”. Subitamente, o país, em geral, e os jovens, em especial, foram confrontados com a verdadeira “utilidade” das Forças Armadas. As sortes desapareceram. Agora “aproveitavam tudo”. A breve trecho, os quartéis passaram a turbinar cada vez mais aceleradamente na produção de militares, muitos dos quais não passavam de civis fardados (à pressa) que, depois de terem passado por tudo aquilo que os seus pais e irmãos mais velhos haviam passado, iam “aplicar a sua formação” no jogo de vida ou morte – que não conheciam senão dos filmes – e numa terra de que só tinham ouvido falar. No início, esta opção foi bem aceite por todos. Mais uma vez a “informação disponibilizada” e a História aprendida nos bancos da escola funcionaram como determinantes do comportamento cívico colectivo. Se uns aceitavam, pois a “Pátria estava em perigo”, outros não hesitavam e venderiam a sua parte de Angola (É nossa!) por meia garrafa de branco. Mas muitos partiram, e os que não foram permaneceram nas fileiras, sujeitos às suas regras de funcionamento, durante três anos, solução que, não envolvendo riscos de maior, deixava marcas mais profundas do que no passado.

O embarque era outro momento traumatizante e que marcava todos. Os que iam porque tendo tido a secreta esperança de que “comigo vai ser diferente”, viam que, afinal, tinham mesmo que ir; e os que ficavam porque não saberiam se voltavam a ver os que partiam e, se os voltassem a ver, se não seria com um bocado do corpo ou da mente a menos. Apesar de tudo, os que por cá ficavam engrenavam nos que fazeres diários e prosseguiam na vida. Depois eram as cartas, os aerogramas e o resto de todas as formas de comunicação possíveis ao tempo, mas que não transmitiam a experiência vivida. Tudo acabou por entrar na rotina com uns a irem e outros a virem e o país a habituar-se a este vai-e-vem.

E, para quem ia, chegava a parte mais marcante do serviço militar. Tudo era diferente nas terras onde se desembarcava. Umas mais ricas e progressivas; outras muito pobres e outras que quem chegava nem sequer sabia classificar, como as dos interiores, onde eram procuradas semelhanças com as gravuras dos tais livros escolares. E vinha uma enxurrada de situações vividas a um ritmo alucinante, durante dois anos. É absolutamente indescritível o número de situações e as suas características que viviam. A primeira operação, fosse ela uma coluna ou uma acção no final do IAO; a progressão no mato ou na estrada, à espera que os turras surgissem; o assalto a uma instalação ou a reacção a uma emboscada, uma mina, um ataque ao quartel com armas pesadas ou “ao arame”. E vinha a primeira baixa: um ferido ligeiro ou grave que, em sofrimento, era evacuado, ou um morto, a cujos últimos segundos assistiam ou que os olhava já de olhos fechados. A revolta que sentiam era enorme e a impossibilidade de sair “dali” tornava-a insuportável. Surgia a pergunta: o que é que estamos aqui a fazer?

Hoje pega-se nisto tudo, mete-se dentro do mesmo saco e chama-se-lhe “síndrome pós-traumática”. Não se faz nada, mas o tempo remedeia tudo. Mas naquela altura nem nome científico havia para o fluxo das vicissitudes pelas quais se passava.

Claro que havia coisas “giras”, situações cómicas, mas seria necessário ir para tão longe para nos rirmos uns dos outros? A entreajuda, a confraternização e a amizade fortaleciam-se, como normalmente sucede no meio da desgraça, quando o inimigo é comum. As condições de vida eram as que “podiam ser” e aquelas que se podiam ir granjeando na esperança que o tempo passasse, pois ninguém estava interessado em ir além da defesa da sobrevivência, embora houvesse que manter o inimigo em respeito e evitar que nos surpreendesse.

E as horas de incerteza, antes, durante e depois do que acontecia, fosse o que fosse? Um verdadeiro suplício durante o qual eram levantadas as mais diversas hipóteses.
Era um infinito de coisas que sucediam num dia-a-dia sem que se pudesse fazer algo para controlar o que acontecia.

E, no regresso vinham velhos. Muito velhos, às vezes. Não em idade, pois que essa era a mesma, mas de espírito. Algo desenraizados, aprendiam a questionar qual era efectivamente o seu papel e já não ali, mas na vida e na relação com os outros. Concluíam da relatividade da vida e da facilidade com que ela se ia, sem que pudessem fazer nada para o evitar. Podiam ter momentos de nostalgia ao contemplar a beleza natural, que sempre existe nas Áfricas e contactavam com povos que, vivendo no “mesmo país”, eram tão diferentes. Se estivessem atentos aprenderiam, como sempre acontece, mas, se quisessem aprender, a guerra não fazia falta nenhuma e nem todos tinham em si um antropólogo amador…

A soma, não necessariamente algébrica, de todas as amolgadelas que o destino lhes tinha imposto era o seu principal enriquecimento e é daí que, quer se queira, quer não, tiravam um amadurecimento que fazia dos que passaram por esta experiência mais capazes de, numa rápida apreciação, determinarem o que é mais importante na vida que daí em diante iam levar.

Depois de tanta provação ficavam “mais homens”? Certamente, na medida em que ficavam a conhecer melhor a natureza humana no seu melhor e no seu pior e estavam com maior apetência para a prática do bem, da paz e da solidariedade. Pena que a aprendizagem tivesse sido tão dura. Há quem diga que os maiores pacifistas são os que passaram por uma guerra. Nem sempre será assim, infelizmente, mas creio que no nosso caso será.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de setembro de 2015 Guiné 63/74 - P15104: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (15): Afinal houve mesmo guerra?

domingo, 17 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15628: (Ex)citações (304): O que fez de mim um homem ? Sei lá!... Quando entrei para a tropa, aos 22 anos, já era um homem: trabalhava há 10 anos... Quem me dera agora ter 12 anos! (Valdemar Queiroz)

Valdemar Queiroz

1. Comentário do Valdemar Queiroz [ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70; , foto à esquerda, em Contuboel, 1969] ao poste P15622 (*)


O que fez de mim um homem ?....

Sei lá!

Com doze anos já era paquete de escritório numa grande empresa, nos Restauradores, em Lisboa. 

(Quem me dera ter agora doze anos!).

Julgo ter sido o mais jovem empregado descontar prá Caixa: em 1 de abril de 1957, tinha feito doze anos em 30 de março. 

(Quem me dera ter agora doze anos!|).

Na grande empresa, onde trabalhei, o meu chefe de secção era familiar de militares e de comportamentos 'não se pode fazer isso'. O paquete, 'EU', era o primeiro a entrar e o último a sair. 

(Quem me dera ter agora doze anos!).

Depois, com o tempo a passar, fui prá Veiga Beirão, no Carmo, à noite, fazer o Curso Comercial. 

(Quem me dera ter agora aqueles extraordinários anos!).

Quando entrei prá tropa já era um homem. Em Santarém, em 16 de julho de 1967, quando fui prá tropa (não sei porquê, chamaram-me com 22 anos), já trabalhava há 10 anos.

Quem me dera estar, agora, em 1957, tinha doze anos de idade!

Quem me dera, agora, começar!...

Quem me dera!|...

Valdemar Queiroz

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quinta-feira, 12 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14353: Meu pai, meu velho, meu camarada (41): Jorge Manuel Augusto da Silva, o "binte oito", era um orgulhoso sapador de assalto, da arma de engenharia... Fez a tropa em Tancos, em 1947, ainda chegou a jogar futebol e era amigo do histórico guarda-redes do Porto, o Barrigana (Henrique Cerqueira)


Jorge Manuel Augusto da Silva, natural do Porto, fez a tropa em 1947... 
Era soldado sapador de assalto... e conhecido pelo "Binte Oito"


1. Mensagem do nosso amigo e camarada Henrique Cerqueira [ [ex-fur mil, 3.ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72, Biambe e Bissorã, e CCAÇ 13, Bissorã, 1972/74; casado com a Maria Dulcinea (NI), também nossa grã-tabanqueira]


Data: 8 de março de 2015 às 11:32
Assunto: Meu pai,meu velho , meu camarada


Caro Camarada Luís Graça:

Há muito tempo, mais precisamente a partir da altura em que publicaste um dos primeiros postes sobre o tema " Meu pai, meu velho, meu camarada " (*),  que senti um grande carinho pelo tema. No entanto não ganhava coragem para escrever sobre o pai do qual passei quase toda a minha vida a ouvir as suas estórias de quando esteve na tropa (hoje são os nossos filhos e netos a ouvir as nossas).

Bom,  e vai daí, tu relanças novamente o tema e então lá fui procurar no meu "baú" das recordações e encontrei a caderneta militar do meu pai . E assim sendo vou tentar escrever algo que homenageie a memória do meu e de todos os nossos pais que são: "O Meu Pai , Meu Velho, Meu Camarada ". Espero não ser muito aborrecido mas vou escrever principalmente com o coração e amor pelo meu pai já retirado desta vida terrena.

Apresento o Meu pai, Jorge Manuel, que  foi Sapador de Assalto em Tancos [em 1947].

Sempre ouvi falar o meu pai e muitos dos seus amigos da altura que ele era um pouco irrascível na sua vida militar, mas sempre que era necessária aplicação da sua especialidade,  ele então tinha que ser o melhor. Era com muito orgulho que me contava a vitória obtida numa competição (???) entre vários países da NATO, numas provas militares . E como ele era Sapador de Assalto, orgulhava-se de ser bom a lidar com explosivos.

Uma outra estória muito engraçada (para mim,  claro) foi a sua narrativa de uma célebre "fuga" de que foi protagonista precisamente do interior do Castelo de Almourol. Segundo ele a tropa de Tancos na altura fazia serviço nesse famoso Castelo. Pelos vistos,  o meu pai era um "bom Casanova" e nem as muralhas de um Castelo o detinham quando havia "rabo de saia" nas redondezas.

Já agora o meu pai também foi um excelente jogador de futebol mas, que também acabou por ser irradiado dessa atividade por ter "acertado o passo" a um árbitro e a um polícia. Não pensem que o meu pai era um violento, era sim um rebelde e talvez em demasia para a época.

Estou aqui a pensar que tinha tanto, mas tanto para contar sobre o meu pai, mas não sai... não sai mesmo e por isso vou ficar por aqui e até vou pensar ainda se mando ou não este escrito para a malta ler.

Ah!,  é verdade,  o meu pai era conhecido na tropa pelo "Binte Oito" (28),  á moda do Porto,  já se vê. Era eu miúdo e conheci um famoso jogador da altura que era o saudoso Barrigana [, Frederico Barrigana, 1922-2007], penso que jogava no Salgueiros ou Porto. Estava ele junto do meu pai e só falavam da tropa e era então "Binte oito prá qui....binte oito prá acolá"....

Meu Pai, Meu Amigo, Meu Camarada,  que saudades tenho de ti. Dá um beijo à Mãe e aguarda por mim.

Um grande abraço a todos os Pais, Amigos e Camaradas da nossa Tabanca Grande.
Henrique Cerqueira

PS  - Envio em anexo algumas imagens possíveis da Caderneta militar do meu pai, achei particular graça às páginas descritivas do material  recebido para uso pessoal.












Folhas da caderneta militar de Jorge Manuel Augusto da Silva, pai do nosso camarada Henrique Cerqueira


Fotos : © Henrique Cerqueira (2015). Todos os direitos reservados.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2284: Antologia (66): A tropa do bacalhau, na Terra Nova e na Gronelândia: uma estória de vida (Joaquim Sampaio de Azevedo)

Ílhavo > Museu Marítimo de Ílhavo > DVD: A Campanha do Argus, um filme de Alan Villiers.

Veleiro da frota portuguesa da pesca do bacalhau nos Bancos da Terra Nova, construído em 1938, o lugre Argus tornou-se mundialmente conhecido através do livro do escritor Alan Villiers, The Quest of the Schooner Argus,  bem como do seu artigo, publicado no National Geograhic Magazine, em Maio de 1952, "I Sailed With The Portuguese Brave Captains".

Houve uma edição original, em português, sob o título A Campanha do Argus: Uma viagem aos Bancos da Terra Nova e à Groenlândia, com a chacela da Livraria Clássica Editora. Em 2005 , o livro foi reeditad, com o título A Campanha do Argus - Uma Viagem na Pesca do Bacalhau, em iniciativa conjunta da Editora Cavalo de Pau e o Museu Marítimo de Ílhavo .

A campanha do lugre decorreu entre Abril e Outubro de 1950. As filmagens feitas durante essa viagem deram origem ao filme The Bankers - The Quest of the Schooner Argus - do qual existe uma edição em DVD do Museu Marítimo de Ílhavo.


Figueira da Foz > Centro de Artes da Figueira da Foz > Julho de 2006 > Foto de um trabalhador da pesca do bacalhau. Presume-se que a foto original seja de Alan Villiers.

Imagem capturada por Luís Graça (2006).



Capa da revista Ardentia, 2, 2005. Propriedade da Federación Galega Pola Cultura Marítima e Fluvial

"Ardentía é unha Revista Galega de Cultura Marítima e Fluvial como consta na súa portada desde o seu primeiro número.

"O obxectivo da revista é publicar traballos dentro do seu ámbito temático que teñán unha contrastada calidade e interese, e tentando que parte de cada número esté relacionado coa actualidade do tempo no que se pública".


1. Amigos e camaradas: Hoje falamos do pesadelo da guerra que marcou toda uma geração, a nossa geração (Índia, Angola, Guiné, Moçambique, Timor)... 

Mas há outro inferno que tem sido ignorado ou escamoteado: a pesca do bacalhau... Sabiam que um mancebo, oriundo de comunidades piscatórias como por exemplo Ílhavo ou Viana do Castelo, podia escapar à Guiné, oferecendo-se como voluntário para a longínqua pesca do bacalhau na Terra Nova ou na Gronelândia ? 

Tratava-se de trocar um inferno por outro: As condições de vida a bordo eram duríssimas e o capitão de navio era um senhor todo-poderoso... Como se pode avaliar por esta estória de vida... Confesso que sempre tive um enorme fascínio e admiração por esta gente da pesca longínqua. (LG)


Extractos do artigo A pesca do bacalhau. (autores: Ivone Magalhães e João Baptista. Ardentia. 2 (2005): 41-46.


Esta entrevista, inserida no trabalho de campo sob o tema: 'A pesca do Bacalhau, recolha oral de histórias de vida de antigos pescadores', por parte da Associação Barcos do Norte junto da comunidade de antigos pescadores do Bacalhau de Castelo do Neiva foi realizada em 7 de Fevereiro de 2005 por João Baptista e tratada por Ivone Magalhães (comentários, notas de rodapé e arranjo ideográfico a partir de um guião tipo elaborado para a entrevista).


[ Excertos da entrevista a Joaquim Sampaio de Azevedo, de alcunha O Bucha, nascido em 1939, na freguesia de Vila Nova de Anha, Viana do Castelo. Aconselhamos a leitura do artigo na íntegra.]

(...)

Com que idade começou a andar ao mar?

-Comecei a andar ao mar aqui no nosso "mar do castelo" com 14 anos. Aqui pela nossa costa.

E na pesca do bacalhau?

-No bacalhau foi com 20 anos, em 1959.

Porque é que escolheu andar na pesca do bacalhau?

-Para me livrar à tropa, naquele tempo era preciso para livrar à tropa andar 6 anos seguidos ao bacalhau. Chamava-se a Tropa do Bacalhau. Eu fugi mais à tropa por isto: Eu casei com 19 anos e aos 20 estava viúvo, vi-me assim e disse: bom! Vou pró bacalhau pra livrar à tropa. Fiz lá seis anos seguidos pra livrar a tropa. Num passei esses anos e acabou, fui enganado.

Quando acabei a tropa do bacalhau tive de fazer mais 3 anos, fui obrigado pelo Tenreiro senão ia refractário para a tropa e isso não me convinha, pois os refractários eram os que eram apanhados a fugir à tropa e davam-lhe os piores sítios de combate, era para morrerem, eram carne para canhão... por isso no fim continuei, fiz nove anos só para a tropa... Ganhava dinheiro, mais do que se estivesse na tropa mas no fim, não sei se foi boa escolha. Fiz nove campanhas e depois para ganhar mais dinheiro fiz uma viagem ao Alasca a fazer um carregamento de bacalhau.

Em que navios andou embarcado?

- Andei no navio São Gabriel seis anos, no navio Ilhavense dois anos, e no navio Sotto Maior fiz duas campanhas, dez campanhas ao todo.

(...)
Que categoria desempenhava a bordo?

- A bordo era salgador. A minha categoria era salgador, os pescadores é que iam pescar e no fim de cada faina à linha no barquinho "Dóri" ainda vinham para bordo tratar do peixe, escalar, salgar, partir cabeças, tinham que fazer de tudo. 

Mas à parte dos pescadores havia pessoal da companha que tinha uma única categoria a bordo, como os maquinistas, os electricistas, os redeiros... cada um tinha o seu emprego, havia outros, normalmente os moços de primeira viagem a que chamávamos "verdes", porque não sabiam ao que iam, que tinham como função ajudar em tudo e aproveitar nas tripas do peixe o fígado para fazer o óleo, e nas cabeças aproveitar as caras e as línguas. Num navio daqueles cada um tinha a sua função, cada um tinha o seu emprego.

(...)

Como era a vida a bordo?

- A vida a bordo era trabalhar, passar fome e ser maltratados.

E a nível de camaradagem entre os pescadores?

- Os pescadores davam-se todos bem uns com os outros.

E com o Capitão como era o relacionamento?

- Nós tínhamos de nos dar bem senão o capitão mandava-nos prender. Só nos ameaçava com prisão, com cadeia.

Tem conhecimento de alguns que tenham ficado presos a bordo?

- Atão! Só num navio que eu andei e numa só viagem de uma vez foram 7 presos a bordo. Só por reclamar do comer.

(...)

Cuidados de Higiene e Saúde?

- Banho, nunca soubemos o que era tomar banho nesses seis meses que durava cada viagem.

(...)

E alguma história que o tenha marcado?

- Outras historiais que me lembre?... Bem... Muitas. Morrer homens no nosso navio só
morreram dois, afogados, perderam-se e desapareceram com o mau tempo, dizemos que se afogaram, mas nunca mais ninguém os viu... e o mais era quando os navios iam ao fundo, ardiam, estavam velhos.

(...)

Em jeito de conclusão o que nos diria?

- Dizia que ainda bem que hoje as coisas são diferentes. A pesca ainda é dura mas os riscos são menos e as pessoas já são tratadas de outra maneira. São tratadas
como pessoas. Naqueles tempos éramos tratados como animais.


Fonte: Ardentia, 2, 2005, pp. 41-46. (com a devida vénia...)

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça na poda...

Évora > RAL 3 > 1967 > Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na primeira fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz (na altura, aspirante), ambos da CART 2338 (O Diniz é o oficial que irá mais tarde coordenar a travessia do Corubal, no Cheche, na retirada de Madina do Boé, em Fevereiro de 1968). "Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço", escreveu há tempos o Torcato (1). O Asp Mil Torcato Mendonça, dfa CART 2339, está na primeira fila, à esquerda do capitão.

Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados (Foto do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos. A ambos o nosso agradecimento).

Série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Chamei-lhe Estórias de Mansambo (2), por homengem aos heróicos construtores e defensores daquele aquartelamento da Zona Leste, Sector L1 (Bambadinca) (1). A ordem por que aparecem não é nem lógica nem cronológica, é ditada por critérios de conveniência do autor e do editor. A estória do postal foi-me enviado em 12 de Fevereiro de 2007, a par da já publicada, a dança dos capitães (2).

Mais recentemente, pela Páscoa, o Torcato mandou-me mais uma meia dúzia de estórias, subordinadas ao título comum Estórias do Zé... Ora eu já tinha, em boa hora, dado início à série Estórias de Mansambo... Ao telefone, decidimos manter este título... E vamos recuperar outras (pequenas estórias) do Torcato que andam por aí dispersas. Hoje, e numa assentada, publicam-se duas, uma vez que estão interligadas: (i) O José ou o Zé; (ii) O postal [da tropa]...

Estórias de Mansambo (2) - O José ou Zé

por Torcato Mendonça

Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez.

Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez, porque não podíamos fugir ao tema.

Numa tarde fria e baça, recebi a inesperada visita do José para dois dedos de conversa. O tempo cinzentão deixava-me amolecido. Devagar acabava o trabalho. Ele, depois de entrar e dos cumprimentos, sentou-se num cadeirão e começou a folhear uma revista. Continuei a trabalhar, alheado ao que me rodeava. De repente, levanto os olhos e vejo o José a ler os papéis espalhados na habitual desordem, mais aparente que real, sobre a mesa de trabalho.
- Espreitar não vale – disse-lhe, gracejando.
- Pois é - respondeu-me, meio virado para a janela com olhar de nada ver. E acrescentou, com a sua voz grave e calma:
- Eu estive lá; eu também estive na Guiné há muitos anos. Quase nunca falamos sobre isso.
Fitei-o, esperei um pouco, passei o olhar para os papéis e disse:
– São apontamentos, pequenos textos em exercício de memória, sem ordem nem tema. Recordações minhas, desse tempo, transcritas para o papel ao correr da pena ou da tecla. Um dia posso ordenar tudo ou não.

Na sua voz calma, olhando também os papéis retorquiu:
- Fui tentando esquecer mas, como marca de ferro em brasa, aquele tempo ficou-me indelevelmente gravado na memória. Podemos falar um pouco sobre isso... Cedo, ainda criança, por razões várias apercebi-me das desigualdades no nosso País, do cuidado a ter em certas conversas e não só. Isto, para te dizer que, quando me chamaram para prestar o serviço militar e posteriormente fui mobilizado, sabia não ir defender causa justa. Fui, porque tinha e devia ir. Fugir, desertar, nunca tal foi por mim equacionado.



Sentámo-nos mais confortavelmente. Entre os dois a mesa baixa e, sobre ela a bandeja com chávenas, copos, o termo do café, uma garrafa de água e outra de uísque. Nenhum queria iniciar a conversa. Começou ele, titubeante, a não ir directo ao assunto, a rodar o copo com água ora numa mão ora noutra. Tossiu, respirou fundo, pousou o copo e depois de dar uma palmada no joelho falou mais alto que era o seu hábito.
-Vou contar-te, sem sentido cronológico, sem qualquer pretensão de ligação de factos. Vou fazê-lo, à medida que me vier à memória, aquela parte do meu passado tão fortemente vivido e que me transformou tanto - E continmou:
-Começo então e chamo metamorfoses a essas transformações. Porquê metamorfoses? Porque o jovem alegre, brincalhão, bonacheirão, jogador de unha afiada para o ás, amigo do copo e do petisco, do belo sexo – no bordel, hotel e… em tanto lado –, sofre, de forma maquiavélica e bem programada, uma radical modificação. Resiste. Um dia, sem saber como, sente que claudicou. Saltou o muro e tornou-se solitário. Já não é o mesmo de outrora.
Transformou-se. Muito, muito tempo depois, aos poucos, sente que esqueceu…já não diz, quando sente situação de perigo: - Vou vestir o camuflado… isso foi-se. Mas não. Um som, um cheiro, certas palavras ou uma imagem… sem querer, é o suficiente para voltar a ser solitário. Hoje sabe porquê e, mesmo solitário, também está mais solidário com aquilo… E vale a pena, sente que recordar é necessário.

Estórias de Mansambo (3) - O postal

por Torcato Mendonça

Prefiro contar na terceira pessoa, como se fosse referente a outro indivíduo... Posso, eventualmente, fazer o relato na primeira pessoa. Se bem me lembro...

Naquele ano, descera do Alentejo até ao Algarve já com Setembro á vista.

Sabia que mais tarde ou mais cedo, teria que servir a Pátria. Sinceramente não sentia nada por ela. Gostava e gosta de ser português. Mas Pátria? Cheirava a bafio, a botas, a Estado Novo. Pátria, não.

Já tinha ido à inspecção, às sortes, e pedira adiamento. Continuou a estudar. Mas…sorte madrasta…agora, aí estava ele especado, aturdido. Se tivesse levado um murro no estômago, a surpresa não seria maior. Ali estava ele, com o postal na mão e lia e relia a sentença. O texto era de chapa e de prosa curta: Tem que se apresentar, no quartel das Caldas da Rainha, a 12 de Setembro. Não teve direito a adiamentos. Porquê? Logo agora que até tinha trazido os livros, devido a exames no fim de Setembro. E a faculdade, o curso, o… raio que os parta! Sonhos desfeitos ou adiados.

Pôs a toalha ao ombro e foi até á praia. Sentou-se junto da rebentação para melhor sentir o embrulhar das pequenas ondas. Aos poucos sentia-se mais relaxado ou resignado. Logo neste ano que, ao fim de três ou quatro dias, conhecera aquela miúda. Linda! Cabelo loiro, longo e liso, olhos cor de mar. Aos poucos a rápida empatia…as voltas…as conversas…enfim …o estarem sós… no meio do grupo! E agora?

O regresso a casa, no Alentejo, mais depressa do que imaginara. Ficaram promessas no ar, prisões de amor em traição ou infidelidade próprias dos verdes anos. Dias depois a vinda para Lisboa, a despedida na velha Casa de Fados com os amigos. No dia seguinte, manhã cedo, o comboio apanhado no Rossio – Linha do Oeste... Poucas horas depois, aí estava a cidade das Caldas.

Acompanhava-o um amigo, antigo colega no Colégio que trazia uma cunha para um Alferes, antigo camarada de um seu cunhado na Academia. Falaram com ele e rumaram ao Quartel. Que mundo diferente, a cor verde e o cheiro da caserna…

Dias depois ei-lo a sair para fazer os exames.
-Trazes o papel mas não entregas a ninguém, só quando eu disser.

Alferes manda. Passado cerca de um mês, nova ordem:
-Vai á Secretaria e entrega o papel. Já não te mandam para Mafra.

Conseguiu safar-se da porrada que o Comandante de Companhia lhe queria dar.
- Não entregar as habilitações literárias é grave - berrava o 1º Sargento e berrou o Tenente.
- Esqueci-me.
- Assinaste um papel quando foste á inspecção.
- Não me lembro.

Passou. Tudo serenou e continuou nas Caldas. Bela cidade, boas voltas, cidade com atractivos para militares…o museu e o jardim clar0... para descansar o olhar… e… pois isso também... óptima recruta.

Do Pelotão dele, nem meia dúzia foram para atiradores. Ele estava nesse pequeno grupo. Ia para Vendas Novas, curso de oficiais milicianos, especialidade – atirador.

Raios partam… a dança ia começar!
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães