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quarta-feira, 28 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22147: Historiografia da presença portuguesa em África (260): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Que importância se pode atribuir às descrições do então Tenente do Corpo de Engenharia que terá percorrido com algum cuidado uma Guiné Portuguesa ainda sem fronteiras definidas no final da década de 1830? Traz-nos elementos esclarecedores de uma presença portuguesa em regiões do Litoral, na região dos rios, uma presença sem profundidade no Interior, e já não se fala de estabelecimentos para além do Tombali, veja-se o mapa de 1843. Tudo precário, com compras de negociantes, uma tropa indesejável, padres degredados, os franceses a cercar o Casamansa. Poucos anos depois da publicação desta Corografia Cabo-Verdiana é a vez de Honório Pereira Barreto vir apelar às autoridades em Lisboa para cuidarem da Guiné, uma colónia praticamente reduzida a praças e presídios, e tudo parecia que estava condenada à extinção. Atenda-se a estes documentos da época para melhor se perceber como decorreu a luta pela independência.

Um abraço do
Mário


Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (2)

Mário Beja Santos


José Conrado Carlos de Chelmicki é autor da Corografia Cabo-Verdiana ou Descrição Geográfico-Histórica da Província das Ilhas de Cabo Verde e Guiné, em dois volumes, tendo sido o primeiro publicado em 1841. Este Tenente do Corpo de Engenharia nasceu em Varsóvia, é um jovem quando vem combater pela causa liberal em Portugal, distingue-se pela sua bravura, foi Cavaleiro da Ordem de Cristo, da Torre e Espada, de Nossa Senhora da Vila Viçosa, igualmente condecorado em Espanha, distintíssimo oficial colocado em vários pontos do país, deve-se-lhe uma obra singular, uma descrição ampla e certamente documentada de uma Guiné que poucos anos depois da publicação do Tomo I é alvo de um documento que vem confirmar o que ele observara na sua digressão numa Guiné sem fronteiras, refiro-me concretamente à Memória da Senegâmbia, de Honório Pereira Barreto.

Recorde-se o que já se escreveu anteriormente. Começa por nos dizer que a Costa da Guiné que nos antigos portugueses abrangia o espaço compreendido entre o Rio de Senegal e a Serra Leoa, começou a ser descoberto depois que Gil Eanes, pelos anos de 1433, dobrou o Cabo Bojador. Dá-nos depois a dimensão do refluxo, dizendo que ainda em 1650, o distrito da Guiné, que pertencia à capitania de Cabo Verde, começava no Rio Sanaga (Senegal), estendendo-se até ao princípio do distrito da Serra Leoa. A sua descrição começa no Rio Casamansa, dizendo que na sua embocadura tem o Ilhéu dos Mosquitos, “agora segundo nos consta ocupado pelos franceses; este rio dista da foz do Gâmbia vinte léguas. No Casamansa fica situado Ziguinchor. Dali até ao Rio de Cacheu, ou de S. Domingos, toda a terra é habitada por Felupes. O Rio de Cacheu tem duas entradas, vinte léguas acima da foz do rio está a Praça de Cacheu. Do Sul, a primeira terra de frente de Bolor é a Mata de Putama, ponta cheia de arvoredo e que é terra de Felupes. Daqui para Bissau há três caminhos, o primeiro entre a terra dos Felupes e Papéis; o segundo, por fora, pelo Canal das Caravelas ou pelo Canal das Âncoras; o terceiro, partindo da Mata de Putama e correndo a terra dos Felupes”.

Fala pormenorizadamente de S. José de Bissau, de várias ilhas dos Bijagós, situa perfeitamente a embocadura do Rio Grande, dizendo que houve povoações e estabelecimentos portugueses de que só restam alguns sinais.
Continuando o percurso, fala do Rio dos Tombalis dizendo que os moradores são Beafadas e que daqui à boca do Rio Nuno são trinta léguas de costa, habitadas por Nalus. Mudando de agulha diz que a Guiné Portuguesa é dividida em dois distritos: o de Bissau e o de Cacheu. O distrito de Cacheu abrange Cacheu, Ziguinchor, Bolor e Farim; terá dois mil habitantes sujeitos ao domínio português, espalhados por todos estes pontos, incluindo 93 soldados que os guarnecem. Ziguinchor situa-se no Rio Casamansa nas terras dos Banhus e tem comunicação pelo interior com o Rio Gâmbia. “Negoceia-se aqui com os gentios Felupes, Cassangas, Banhus e Mandingas, comprando cera, arroz, marfim, couros de vários animais a troco de contas miúdas, ferro, pólvora, alambre (âmbar), cristal e cola”. E logo regista a crescente presença francesa no Casamansa, fazendo notar que no Tratado de Paz celebrado em Paris em 1814 fora reconhecido o Rio de Casamansa como propriedade da Coroa de Portugal, e sugerindo que o Governo devia tomar esta violação em consideração. Descreve Ziguinchor, adiantando que a sua guarnição em 1836 era de nove soldados, admitindo que ao tempo em que escreveu a sua corografia não fosse maior.

Falando de Cacheu, adianta que é cabeça de concelho e distrito do mesmo nome, situada na terra de Papéis e Brames. No princípio era uma feitoria, em que habitaram alguns negociantes portugueses, comprando escravos, cera e marfim dos gentios Papéis. Atualmente, “aquilo que chamam casa-forte não tem de fortaleza senão o ser de pedra e cal”. Quase sempre está Cacheu em guerra com o gentio vizinho, e diz com toda a franqueza que a guarnição é de 74 praças, tanto oficiais como soldados dos piores. O caminho por terra de Cacheu a Ziguinchor era o mais conveniente e cómodo.
Quanto a Bolor, dá a saber que os reis gentios cederam esta ponta à Coroa Portuguesa, é a ponta chamada do Baluarte de Bolor, onde então o Sr. Lopes de Lima, que fez este tratado de aquisição, principiou a formar um estabelecimento, e diz mesmo que antes de chegar a Bolor há ainda à beira-mar duas grandes aldeias, Usol e Jafunco. “Em todas estas partes se cultiva arroz, que pode ser um grande ramo de comércio a troco de ferro, pólvora, tabaco, treçados, missanga, aguardentes, panos, quinquilharias, etc.”. Identifica Farim, dizendo que dista 60 léguas de Cacheu pelo rio de S. Domingos acima, ficando em terra de Mandingas. “Até 1692, era uma simples feitoria de negociantes sujeitos a todas as insolências e maus-tratos dos gentios”. Aqui viviam dois naturais de Santiago, o padre João Cabral e Pereira Simão Vassalo, degredados então pelo bispo D. Frei Vitoriano Portuense, fortificaram a povoação e persuadindo aos cristãos que ali se achavam que pegassem em armas e se defendessem dos gentios. E observa que Honório Pereira Barreto, em 1835, aqui montou seis peças de artilharia à sua custa. “O melhor negócio é o da cola. Os naturais compram também com muita avidez prata para fazerem manilhas e apreciam este metal mais do que o ouro”. E termina esta digressão pelo distrito de Cacheu dizendo que é o único ponto na Guiné onde uma grande extensão de terreno vizinho a Farim pertence de facto e de direito aos portugueses, terreno esse que terá sido comprado por um tal senhor Pascoal e outros comerciantes ali estabelecidos. “Este ponto é muitíssimo importante por ser ponto de passagem de todos os gentios que vão levar à Gâmbia e ao Senegal os seus marfins, ouro em pó, etc., por não acharem aqui sortimento de fazendas próprias”.
Concluída que fica a descrição do distrito de Cacheu, segue-se Bissau.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE ABRIL DE 2021 > Guiné 61/74 - P22123: Historiografia da presença portuguesa em África (259): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21580: Historiografia da presença portuguesa em África (240): Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens no Boletim n.º 1, 6.ª Série de 1886, da Sociedade de Geografia de Lisboa (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos, 

Não conhecia nada de semelhante, um garboso francês que garantia a um rei tiranete, na maior ilha dos Bijagós, que um francês nunca mentia, e tudo vai terminar com um golpe de astúcia, recuperam-se as mercadorias roubadas que retornam a Bolama com alguns presentes de déspota que quer modernas armas de fogo para entrar em guerra com o rei de Uno. 

Não vale a pena insistir que a França tudo fazia para espartilhar o território onde havia presença portuguesa, na altura circunscrita a Bolama. E há os belíssimos pormenores que ele nos dá sobre o animismo e a justiça bijagó, a descrição que faz da floresta de Orango é de alguém que se rende completamente aos encantos de uma natureza incomparável. Questiono como é que é possível este texto tão belo não aparecer referenciado na literatura luso-guineense.

Mistérios!

Um abraço do
Mário



Uma viagem à Ilha de Orango em 1879, um magnífico relato de viagens (3)

Beja Santos

Vista geral da Ilha de Orango

Aqui se conclui o acervo de peripécias vividas pelo vice-cônsul da Turquia em Bolama e Bissau, na ilha de Orango, em 1879, e dado à estampa no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1886. 

Max Astrié foi detido, o tirano da ilha, o rei Oumpâné Caetano, “nacionalizou” os seus bens, mas ao mesmo tempo deixa-o passear, até se matou um touro em sua honra e houve festejos públicos. O francês e a tripulação do barco passeiam-se pela floresta, o “turista à força” confessa o assombro que lhe provoca aquela portentosa catedral verde. 

Estava nesta contemplação quando deu por uma imensa gritaria, eram cinquenta negros agrupados à volta de um imenso tronco abatido, procuravam fazer uma piroga destinada ao rei, o único habitante da ilha que podia dar-se ao luxo de possuir tal embarcação. E Max Astrié faz considerações sobre a construção de uma piroga, repara que os indígenas estavam munidos de instrumentos rudimentares, seriam forçados a trabalhar meses seguidos para fazer a piroga, qualquer trabalhador europeu só precisaria de alguns dias, na posse de ferramentas adequadas, observou. 

O rei procurava substituir a sua piroga de guerra que tinha ficado inutilizada depois do último maremoto, intentava uma expedição contra o rei de Uno. A piroga é considerada pelos bijagós como o verdadeiro sinal de poder e de riqueza. Por isso, escreve Max Astrié, não surpreendem as demonstrações de que fui alvo quando me viram chegar na soberba chalupa construída em Marselha. 

Os indígenas admiravam as formas elegantes desta embarcação, capaz de resistir à mais inclemente tempestade e navegando, houvesse boa brisa, cerca de sete nós à hora. O chefe dos trabalhadores mostrou-me uma cabeça de touro em madeira, com cornos imensos, que devia ser colocada na popa da piroga à semelhança dos emblemas que nós vemos nos navios europeus. Entretanto, chegou um negrinho enviado pelo meu cozinheiro, encaminhei-me para a tabanca.

Cerca das duas horas, em plena sesta, entrou-me em casa o ministro da justiça que me conduziu ao rei. Oumpâné esperava-me deitado sobre uma esteira, a cara inchada e os olhos injetados de sangue: pareceu-me ainda fatigado e nauseado pelas orgias da noite anterior.

Informou-me que na minha ausência ele mexera nas minhas mercadorias e que escolhera os objetos que mais lhe agradara, e tinha expedido para um outro ponto da ilha o meu barco, não muito longe dos bancos onde naufragara o navio austríaco. 

Procurei usar da diplomacia e mostrei uma indiferença aparente. Mudando de assunto, o rei queria conhecer a maneira como os brancos procedem para fazer a guerra, para praticar a justiça e para receber os impostos. O seu espanto foi imenso quando lhe falei de exércitos permanentes, da cavalaria, de metralhadoras, de fuzis de escopeta. Manifestou-me logo o desejo de possuir tais armas e de se servir delas contra o seu inimigo, o rei de Uno. 

O modo como se pratica a justiça em França só lhe provocara uma admiração muito reduzida, interrogando-se para quê tantos juízes quando em Orango eram suficientes o rei e o ministro da justiça. Ele questionou por que é que, tendo um assunto ido a julgamento, podiam outros juízes decidir o contrário do que tinham decidido os primeiros, e disse claramente que gostava de ver o seu ministro da justiça ter a audácia de o contraditar…

Uma coisa digna de reparo é que as diversas questões postas por este Luís XIV falhado, em nada afloraram o modo de vida da Europa. Nunca me interrogou sobre a maneira como se vive nos nossos países, como se alimentam as pessoas, quais os seus desejos. Tudo o que toca à vida puramente material parecia deixá-lo completamente indiferente.

A nossa conversa foi bruscamente interrompida porque trouxeram ao rei uma grande quantidade de vinho de palma. O rei explicou-me que estava na hora das libações que duravam regularmente das cinco à meia-noite. Ele iria beber até ficar completamente bêbado na sua esteira. Vim a descobrir que me tinham sido retiradas cinquenta jardas de tecido de algodão, muitas folhas de tabaco, dois fuzis, um barril de aguardente de 140 litros e muito mais coisas.

No dia seguinte, fui testemunha de um acontecimento bizarro, um pobre diabo sucumbiu a uma doença misteriosa muito espalhada na costa ocidental africana, a doença do sono. E Max Astrié enuncia as manifestações desta doença e como num processo de gradual degradação se chega à morte. Segundo ele, atribui-se a doença do sono a um veneno vegetal que seria muito comum nas florestas onde há seringueiras. Mas logo diz que a questão não está elucidada se bem que tenha sido estudada pelos médicos da Senegâmbia e da Serra Leoa.

Segue-se a descrição de novo sacrifício, morrera alguém e suspeitava-se que tinha sido assassinado pela mulher. De novo se consulta um boneco em madeira, que se manteve imóvel às pessoas que o interrogavam perguntando se ele era o assassino até que, quando chegou a mulher do falecido, o boneco estremeceu e balançou-se duas vezes, seguiu-se a sua prisão e uma cena selvagem que ele descreve de tormenta e grande sofrimento, a condenada é conduzida para uma masmorra subterrânea onde já lá estão outros punidos condenados a morrer no meio de excrementos e de restos de comida, o francês retira-se agoniado.

Ao sexto dia depois da sua chegada à ilha, o ministro da justiça veio pedir mais aguardente, Max Astrié achou então oportuno retomar a ideia de um contrato comercial e pede ao rei para ir a Bolama, compromete-se a trazer todas as mercadorias exigidas pelo rei, pede a contrapartida de levar produtos da terra. 

O rei leva-o até a um conjunto de casas fechadas que manda abrir e mostra-lhe coconote e depois manda abrir outras casas onde há couros, esteiras, borracha, milho-miúdo e amendoim. A última casa aberta tinha restos de um naufrágio que ele veio a apurar tratar-se do naufrágio do capitão inglês John Peens, supostamente desaparecido nas costas do Gabão, os restos ali amontoados pareciam uma autêntica caverna de Ali babá. 

O rei Oumpâné dispõe-se a que o francês possa levar para Bolama o que lhe interessa desde que traga aguardente, tabaco, quina, fuzis e metralhadoras, caso os deuses agora lhe sejam favoráveis. Se o sacrifício o permitir, ele parte na chalupa pouco tempo depois. Max Astrié explica como corrompeu o sacerdote e como é que o galo decapitado veio cair a seus pés.

Tudo vai terminar com uma façanha do francês, quando descobriu que na chalupa estavam cascas de amendoins ou amendoins estragados. Ele apercebeu-se que o rei tinha com ele um tratamento inqualificável, chegara a hora da vingança.

Comunica à tripulação que irão astuciosamente até à tabanca enquanto o rei está a terminar o embarque dos presentes que lhe tinha anunciado, foram buscar tudo quanto lhes tinha sido roubado aquando do desembarque dias antes, esvaziaram as caixas e encheram-nas de ramos e de terra.

O rei mandara embarcar bois e porcos e juntou uma tartaruga magnífica com um metro de diâmetro e um pacote de cinquenta esteiras. A tripulação, dissimuladamente, levou para bordo tudo quanto tinha sido roubado. O rei pediu-me o meu revólver, escreve Max Astrié. À cautela, retirei todas as balas e entreguei-lho.

O vento estava de feição, chegara a hora de partida, o rei conduziu-me até ao embarque, sempre exprimindo agrado por ter ficado com as minhas mercadorias, julgava ele. Na praia, os marinheiros estavam a postos, levantou-se a âncora, disse adeus ao rei, a chalupa pôs-se ao largo. Foi mesmo a tempo!

Ouvia-se uma enorme gritaria do lado da tabanca, uma multidão avançava para a praia com os ministros da guerra e da justiça à cabeça. O rei teve conhecimento que eu lhe tinha deixado as caixas vazias, gesticulava freneticamente, lançava gritos roucos e desarticulados. Possesso, apontava-me o revólver e procurava disparar. Cinco bijagós lançaram-se à água, o rei Oumpâné incitava-os com a voz e gestos. 

Mas a âncora estava levantada e a brisa a nosso favor, pusemo-nos rapidamente ao largo. Então eu gritei aquela palavra que me tinha acolhido à chegada: Toubaba! Toubaba! 

E assim termina este portentoso relato, uma pérola da literatura de viagens do século XIX.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Guiné 61/74 - P21315: Historiografia da presença portuguesa em África (229): "Madeira, Cabo Verde e Guiné", de João Augusto Martins; edição da Livraria de António Maria Pereira, 1891 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
A diferentes títulos, as notas de viagem de João Augusto Martins são incontornáveis. Não é novidade o que nos diz na sua descrição de Bissau nem de Bolama, salvo que aqui António da Silva Gouveia que viera anos antes como Guarda-Fiscal se tornara um potentado económico. Não conheço na literatura colonial nenhum outro deslumbramento pela mulher como o que ele aqui nos deixa, tocado por uma sensualidade pouco usual na época, mesmo se atendermos que ele era um cultor do naturalismo, todo este documento é prova desta corrente literária. E nas conclusões será implacável com a natureza das cedências que fizemos à França, correlacionando estas cedências com o quadro de decadência nacional.
Vale a pena ler este João Augusto Martins na íntegra, ele não era peco em denunciar a lástima a que chegáramos.

Um abraço do
Mário


Impressões de viagem quando a Guiné já era província, com fronteiras definidas (1)

Beja Santos

O livro de viagens intitula-se "Madeira, Cabo Verde e Guiné", o seu autor é João Augusto Martins, veremos mais adiante que foi alguém influente na definição das fronteiras da colónia, a edição foi da Livraria de António Maria Pereira, 1891. Feito o périplo pela Madeira e Cabo Verde, chega-se a Bissau e o autor dá-nos assim notícia da vila:  
“A cidadela a altos muros e a poilões gigantes, o último reduto da vitalidade da Província, hoje o mais importante centro comercial da Guiné. O cheiro nauseoso e acre das suas praias (lodaçal extenso que se evidencia na baixa-mar por dezenas de metros), vinha, arrastado pela aragem da tarde, envolver-nos numa atmosfera sulfídrica, enquanto bandas de pássaros de múltiplas espécies e variadas cores atravessavam marcialmente para os ilhéus, marcando no horizonte rubro da tarde as curvas ondulosas do seu voo, que as trevas da noite foram a pouco e pouco apagando, até deixar-nos sós, isolados e esquecidos, na contemplação estática de quem espera, divisando na sombra as cumeadas altivas dos baobás, escutando o carpir plangente das corujas e dos jagudis, e sentido aos nossos pés como um vagir de criança, o marulhar hipnótico das águas pantanosas do rio”.
Bem interessante o estilo, ultrapassado que estava o romantismo, a escrita assumia o naturalismo e já parecia acolher os assomos do impressionismo pictórico. Adiante.

Chegaram à capital, o autor vai dizer:  
“Em Bolama fomos acolhidos principescamente por Caetano Macedo, cujo nome se prende à história da Guiné por títulos de valiosos serviços reconhecidos. Aí visitámos tudo: os quartéis, as repartições públicas, o hospital, a igreja, a casa do governador e o mais sumptuoso edifício de Bolama, pertencente a esse nomeado Gouveia, que veio para aí há nove anos como Guarda-Fiscal e que hoje representa o Rotschild da terra, à custa do trabalho, da perseverança e da felicidade, esse orvalho abençoado, capaz de fazer robustecer a planta mais exótica… Na terra ainda mais ingrata”.

O nosso João Augusto Martins vai revelar-se um cultor da mulher, não sei se há retrato mais sensual e venerador da mulher guineense daquele que ele escreveu:
“Foi-nos dado ver a mais extraordinária beleza de mulher, realçada por tudo o que há de mais irresistível nas atrações do seu sexo.
Era uma Fula: tipo indiano caldeado nas forjas incandescentes de África. Tinha apenas treze anos, e a adolescência irrompia das indecisões do seu sexo com toda a destreza da vida com que desabrocha uma flor. Seus grandes olhos pensadores, de uma expressão meiga e inquieta, a cor cuprina metálica das suas faces, as linhas suaves da sua fisionomia, seus lábios carminados que se entreabriam em risos de uma tristeza sedutora, os longos cabelos de um negro-azulado que pareciam envolvê-la em cintilações de desejos, o seu talhe esbelto, nu, de movimentos graciosamente ondulados, a harmonia das suas formas esculturais, a lubricidade das suas curvas e a têmpera vibrátil das suas carnes, tudo, enfim…”.

Mas este esplêndido elogio da mulher Fula não fica por aqui, a exaltação ainda vai subir de tom, num intercalado lírico:
“A sua límpida fronte pendia para o solo, na atitude melancólica de um sonhar de virgem. As suas mãos pequenas uniam-se na postura de uma súplica infantil e a sua inocência evolava-se na expressão do seu olhar como a alma das flores se evola nos aromas que nos inebriam.
Que tons, que formas, que cores e que curvas!
Oh! Mulher casta, pecaminosa na tua nudez virginal, permite que te relembre emoldurada nessa paisagem fulgurante, permite que sonhe ainda, pensando em ti… Perdendo-me em conjecturas”.
Então, leitor, não temos aqui a expressão máxima de um amor cortês e de uma sensibilidade ao feitiço africano em desmesura?

Veremos que ainda há muitas mais anotações de viagens, delas aqui se fará menção.

João Augusto Martins dirá nas conclusões quem é e a importância que teve a sua passagem pela Guiné, ficam aqui uns tópicos:
“Regressados há muito da Guiné, onde estivemos conjuntamente com os comissários de França e Portugal, para a célebre delimitação convencionada em Paris em 1886, esperávamos ver por escrito a história deste acontecimento dolorosamente ridículo e improducente, para apreciarmos sobre bases oficiais este convénio de lesa-nação, esse golpe fatal com que a diplomacia nos deixava então esquartejar saudavelmente pelos franceses, na Senegâmbia, como o nosso histerismo e o nosso idealismo tradicional nos tem deixado torpe e irremediavelmente espoliar pelos ingleses na África Oriental. Esperávamos ver posto a limpo esse facto monstruoso, que não tem decerto uma alta significação económica, atento o desleixo da administração colonial, mas que representa mais uma das muitas extorsões feitas à sombra da nossa imprevidência e das nossas facilidades, dando lugar a que todo o coração português tivesse mais um motivo a confranger-se em África ante o desprestígio da dignidade nacional.
A delimitação da Guiné, traduzindo uma perda enorme de território, uma regulamentação absurda de fronteiras e um verdadeiro bloqueio à nossa administração e ao comércio português nestas regiões, exprime um ato de leviandade política que não pode deixar de fazer corar de pejo todos os filhos da nação desmembrada”.

Prepare-se o leitor, pois iremos retomar esta catilinária, João Augusto Martins participou na operação de delimitação e tem uma ideia muito própria de que esta oferta à França obedecia a um contorcionismo diplomático um tanto parecido com o Tratado de Lourenço Marques, era revelador de uma política de decadência. Estranhamente, vemos esta exortação à dignidade nacional praticamente esquecida.

(continua)



Imagens retiradas do livro "Madeira, Cabo-Verde e Guiné", de João Augusto Martins.

Baobá-africano
Imagem tirada da Wikipedia, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de agosto de 2020 > Guiné 61/74 - P21294: Historiografia da presença portuguesa em África (228): Guiné Portuguesa - Terra de Lenda, de martírio, de estranhas gentes, de bravos feitos e de futuro (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Guiné 61/74 - P21167: Historiografia da presença portuguesa em África (218): Tratados, convenções e autos firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné (1828-1918) - Parte I (1828 -1855) (Armando Tavares da Silva)




Africa Ocidental Francesa > Senegal > Casamansa > Postal ilustrado > c.  1910 > Ziguinchor > A região de Casamansa, incluindo a sua atual capital , Ziguinchor, foi cedida à França em 13 de Maio de 1886. A sua origem (portuguesa) remonta ao princípio do séc. XVII.


Imagem: cortesia de Armando Tavares




1. Mensagem do nosso grã-tabanqueiro de Armando Tavares da Silva 

[ foto   à esquerda:  (i) engenheiro, historiador, prof catedrático aposentado da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra; 

(iii) "Prémio Fundação Calouste Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo" (, atribuído pelo seu livro “A Presença Portuguesa na Guiné — História Política e Militar — 1878-1926”); 

(iv) presidente da Secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa]

Date: domingo, 12/07/2020 à(s) 23:42

Subject: Guiné - Tratados



Caro Luís,
Capa do livro
"A Presença Portuguesa na Guiné:
História Política e Militar: 1878-1926”

 Já várias vezes que tenho visto no blogue a afirmação que pouco se conhecia (e conhece) sobre a Guiné. 

Esta falta de conhecimento poderá levar-nos a interpretações ou juízos errados ou precipitados, os quais podem surgir dentro dos mais variados contextos, e que levem a concluir "que precisamos de mais e melhor investigação historiográfica sobre pontos de contacto comuns entre nós, Portugal e a Guiné".

Ora, os Tratados e Convenções que no decorrer dos tempos foram firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné inserem-se precisamente naqueles "pontos de contacto". 

 E é para melhor conhecimento daqueles contactos e melhor conhecimento da evolução histórica da relação estabelecida, que elaborei uma lista (que considero exaustiva) daqueles "Tratados e Convenções". 

São 76 no total e tiveram lugar durante quase um Século (entre 1828 e 1918). 

Segue em baixo a respectiva relação [Parte I, de 1828 a 1855]. Os seus textos estão disponíveis em referências conhecidas, e que poderão ser consultadas por quem se interessar por aprofundar aquele conhecimento.

Com um abraço

Armando Tavares da Silva
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Tratados, convenções e autos firmados entre as autoridades portuguesas e os representantes dos povos da Guiné (1828-1918):
lista organizada por Armando Tavares da Silva

Parte I (1828-1855)


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1828, 12 Julho                       S. José de Bissau
Declaração dos régulos de Canhabac [, Canhabaque,] e Rio Grande, Damião e Fabião, sobre a soberania da ilha de Bolama perante o coronel Joaquim António de Matos
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1829, 12 Março                    Bissau
Doação da ilha das Galinhas que fez o rei Damião de Canhabac, senhor da dita ilha, ao coronel Joaquim Antonio de Matos. Mais tarde, em finais de 1830, este faz entrega da Ilha à coroa portuguesa
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1830, 9 Maio                     Bolama                          


Auto da ocupação da Ilha de Bolama pela coroa de Portugal a 9 de Maio de 1830, perante o rei de Canhabac, Damião, e os enviados do rei do Rio Grande, Injorá Danfan 
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1831, 15 Fevereiro         Bolor                             
Contrato de aquisição da Praça de Bolor entre o 2.º tenente da Armada José Joaquim Lopes de Lima e Ambrósio Gomes de Carvalho e os reis de Bolor, Jaguló e Girambo
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1835, 8 Janeiro           Etame (Bolor)                   
Ratificação da aquisição da praça de Bolor entre Honório Pereira Barreto, provedor do concelho de Cacheu, e Jabudó, rei de Bolor
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1843, 5 Novembro                          Mata de Putama                 
Contrato por cessão de território entre o governador de Cacheu, tenente José Xavier Crato e o régulo da Mata de Putama, Gongobé
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1844, 11 Abril              Zeguichor                      
Contrato feito entre Honório Pereira Barreto, comerciante em Cacheu, e Francisco de Carvalho Alvarenga, comandante do presídio de Zeguichor [, Ziguinchor], com o gentio de Afinhame
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1844, 11 Abril                Zeguichor              

Contrato feito por Honório Pereira Barreto com o gentio de Jagobel, representado pelos principais Vicente, Boncante, Coujena, Bugunde, Jambali, Anheba, Jimpor e Cobungul
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1844, 21 Dezembro           Bissari                  
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de Bissari, representado pelo Rei Banhuna de Sangodogu, Ianhate
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1844, 29 Dezembro             Marraço                       
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios banhunes de Marraço, representados entre outros por Tumane Sajo e Maçajumá
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1844, 29 Dezembro Gono                     
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios banhunes de Gono e Cobone representados, entre outros, por Rangala e Biquidor 
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1844, 30 Dezembro Santaque                    
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com o gentio felupe de Santaque, representado por Cabeça e Arungo
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1844, 30 Dezembro Nhamul                         
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com o gentio de Nhamul (felupes) representado por Arungo e Uacha 
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1844, 30 Dezembro      Blandor                        
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com o gentio felupe de Blandor,  representado por Cajaon, Sambali e Gimanjam
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1845, 2 Janeiro Nhesse                          
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios banhunes de Nhesse e Bricama, representados por António Rei, Ugaga, Megentem e Gegen 
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1845, 3 Janeiro Ianho                            
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de banhunes de Ianho, representados por Cuncó, Ujarife, Budele e Core 
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1845, 4 Janeiro Bonbudá                            
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de banhunes de Bonbudá representados, entre outros, por Aminha e Bram 
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1845, 4 Janeiro Senguer                         
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honrio Pereira Barreto, com os gentios de Senguer,  representados por Quellé, Matambá e Galicó
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1845, 5 Janeiro Faracunda                             
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de Farancunda,  representados por Nhala, Sanhada, Galan, Damião e Ianpo
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1845, 9 Janeiro Sangaje                            
Contrato feito por Gregório José Domingues, em nome e como procurador de Honório Pereira Barreto, com os gentios de Sangaje representados, entre outros, por Uimate e Bagamba 
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1853, 18 Fevereiro Bolor                           
Convenção entre o governador interino de Cacheu, Honório Pereira Barreto, e os régulos de Bolor, Jougam  e  António Vermelho 
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1855, 8 Outubro Cacheu                           
Tratado feito entre Honório Pereira Barreto, governador da Guiné, e o régulo da aldeia papel de Bianga,    representado por Catempe e Nacancal. Tratado aprovado e ratificado pelo régulo Datarau em Bianga em 24.10.1855
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(Continua)

[Atualizámos a grafia de alguns topónimos comhecidos, como pro exemplo Ziguinchor, Canhabaque, Xime, Cossé, Cacine; vêm indicados entre parênteses retos. O editor LG]

quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20197: Historiografia da presença portuguesa em África (179): “Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2017:

Queridos amigos,
Quanto às ilustrações que aqui se apresentam, constam de uma esplêndida publicação da Sociedade de Geografia de Lisboa onde se mostram os seus tesouros artísticos. Pedi autorização ao seu presidente para destacar no nosso blogue estas quatro peças artísticas guineenses, amavelmente acedeu.
Continuo a frequentar com regularidade a biblioteca desta Sociedade, possuidora de valiosa documentação que me permite estudar e recolher belíssimos relatos de viajantes para uma obra que idealizei com o título "Guiné: as suas páginas de ouro", uma recolha de preciosidades escritas a partir de Zurara até aos nossos dias. O trabalho prossegue e o ânimo não desfalece, é um prazer documentar-me e descobrir pepitas de ouro nesta literatura tão injustamente esquecida.

Um abraço do
Mário


Francisco de Lemos Coelho, aventureiro seiscentista na Guiné (2)

Beja Santos

Francisco de Lemos Coelho é autor de duas impressivas descrições que avivam e complementam os conhecimentos e relatos de outros viajantes anteriores e contemporâneos.

Em texto anterior, vimos como ele define territorialmente a Guiné a partir do rio Senegal, viaja e comenta tudo quanto vê no que é hoje correspondente ao território senegalês, demora-se em Cacheu e Bissau e quando parte escreve: “Antes de passar daqui para diante me parece dar notícia das ilhas dos Bijagós que ficam já de trás e começam de frente das ilhetas ao mar, e vão correndo para a banda do Sul, farei sua narração, e direi primeiro o costume e natural dos negros, e o que foram, e são hoje de presente”. E enceta a descrição do território Bijagó, seus ritos e costumes: “Esta casta de negros dizem os antigos que foram povoadores do Reino dos Beafares, os quais foram conquistados pelos ditos Beafares, gente do sertão adentro e que vendo-se apertados fugiram em canoas que também chamam almadias, e vieram povoar estas ilhas”. Tendo sido perseguidos pelos Beafares acabaram por vencer e arrebanharam as suas presas como escravos. Os Bijagós fizeram-se grandes guerreiros, atacaram os Papéis, chegaram ao Geba e a Cacheu, em toda a parte eram temidos.

Mais adiante Lemos Coelho observa: “Hoje é a gente mais doméstica que tem a Guiné, e mais amiga do branco”. Considera as mulheres Bijagós como formosíssimas, dizendo que na sua terra vestem saias de palha até ao joelho. E adianta: “Não é proibido o matrimónio se não no primeiro grau de consanguinidade, o homicídio não se castiga mas os parentes do morto podem matar o matador se podem, não há rei entre eles mas os grandes são juízes em suas desavenças”.

O relato prossegue com a descrição a partir da ilha de Bissau para o rio de Geba. “Corre da ilha de Bissau para Leste o rio de Geba o qual tem à banda do Norte os Balantas, que vão correndo da terra de Antula, e da banda do Sul o Reino de Guinala, que é o maior que têm os Beafares; assim que da banda do Norte acabando a terra dos Balantas se dá logo no Reino de Gole, também de Beafares, aqui começa o rio a estreitar, e aqui começa o macaréu que há neste rio, o qual é uma correnteza de água quando vem a enchente com tanta veemência, que quando se sente que vem porque antes de chegar vem fazendo estrondo como de trovoada, e o navio que está solto suspende a âncora para não soçobrar”. Adianta que acima de Gole, da mesma banda do Norte está o reino de Amchomene, também de Beafares, “gente ruim os deste reino, e traidores, logo se segue a terra de Geba sujeita ao Farim de braço, tem seu reizinho, mas está a Farim sujeito”.

“Da banda do Sul está o reino dos Beafares sujeito ao rei de Guinala, ou do rio grande. É a povoação de Geba a terceira que há hoje na Guiné, e agora faz 30 anos que se podia dizer era a primeira no trato (comércio), como nos moradores, mas como o capitão de Cacheu mandou levar os moradores para com eles fazer a povoação de Tubabodaga (Farim) e hoje não há nela mais do que filhos da terra, se bem ainda destes há mais de 200 almas cristãs e costuma o Cabido de Cabo Verde mandar aqui um clérigo para administrar os sacramentos a estes cristãos”. E retrata Geba: “Era a dita povoação de Geba de maior trato de toda quantas havia em Guiné, aqui era que se vendia à cola, aqui se despachava muito ferro a troco de cera, aqui se comprava muito marfim que vinha da terra dos Cocolins, gente que confina com os Beafares. Esta é a povoação que foi de Geba à qual não ficou mais do que o nome, e com isto torno ao porto de Bissau para dele fazer o caminho para o Rio Grande”. E começa a descrição do Rio Grande, dizendo que indo de Bissau para o Sul se chega à ilha de Bolama, que era povoada de Beafares e que por causa dos Bijagós está hoje despovoada, observa que tem à entrada muito bons portos a que se chama prainhas por causa de umas alegres praias de área que tem em terra e junto delas há muito bons recifes de pedra; “a terra é fertilíssima mui cheia de palmeirais e de árvores frutíferas”.

E começa a descrição de Guinala: “Há no fim da terra de Guinala uma grande aldeia que se chama Corubal que é como feira adonde vêm mercadores de todas as partes a comprar e vender, vende-se nela principalmente muitos negros, roupas e tintas com que se tinge a roupa na Guiné de azul. Os moradores desta aldeia são geralmente Mandingas. Há também na terra de Guinala o melhor gado vacum que tem toda a Guiné, nem entendo se há melhor no mundo, assim na gordura como no sabor”. E começa a comentar o povo Beafare: “Os Beafares não têm religião nenhuma mais que adorarem uns paus a que chamam Chinas, aos quais sacrificam vacas e galinhas, e os untam com o sangue como os Bijagós”. E tece outros comentários: “Tem o porto de Guinala o melhor peixe que há em toda a costa da Guiné, principalmente umas tainhas brancas de que há tanta quantidade que fazem negócio delas secas ao sol".

O primeiro documento de Francisco de Lemos Coelho caminha para o fim, no que toca à descrição do território onde aproximadamente se vai constituir a presença portuguesa na pequena Senegâmbia. Este texto descreve o que ele vê do Rio Grande para o Rio de Nuno, ou seja a região Sul da Guiné e a orla litoral do que é hoje a Guiné Conacri. “Partindo do Rio Grande a primeira terra que nos fica pela costa abaixo é o rio dos Tambalis, os moradores da terra são Beafares, o negócio é negros, marfim e muito mantimento, não há má viagem para os brancos que vivem no rio Grande. Toda a mais terra daí até ao rio de Nuno que são pela costa abaixo mais de 30 léguas tudo são Nalus, se bem não temos comunicação com este gentio pelos seus portos por quanto há por este caminho muitas coroas e recifes”.

O rio de Nuno tinha grande importância nestas viagens até à Serra Leoa, daí a presença de brancos: “Tem na povoação do rio de Nuno uma igreja de Santo António, santo para quem se tem notável devoção, daqui para baixo não só os brancos mas também o gentio; morou aqui um frade capucho castelhano que veio morrer em Bissau. Também costuma o Cabido de Cabo Verde mandar aqui às vezes sacerdote administrar os sacramentos a estes cristãos”.

Vai seguir-se “Descrição da Costa da Guiné e situação de todos os portos e rios dela, e roteiro para se poderem navegar todos os seus rios”, quem o escreve é o Capitão Francisco de Lemos Coelho, em São Tiago, Cabo Verde, 1684.

(Continua)

Espada Mandinga
Irã Bijagó
Máscara Nalu

Machado, ritual Nokubê
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20174: Historiografia da presença portuguesa em África (177): “Duas descrições seiscentistas da Guiné”, de Francisco Lemos Coelho, introdução a anotações históricas por Damião Peres, Academia Portuguesa de História, 1953 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 18 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19599: Notas de leitura (1160): “Bijagós, Património Arquitetónico", por Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade, Fotografia de Francisco Nogueira (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,

O livro é irresistível, pelo rigor do conteúdo e pela preciosidade das imagens. Os Bijagós sempre provocaram um grande fascínio tanto pelos dons naturais, pela cultura, pela identidade do povo que durante séculos viveu em contenda com o continente, nomeadamente com os Beafadas, os vizinhos mais próximos.

Não se pode ficar indiferente com estes cadastros do legado colonial, impressiona o que se construiu e o que ainda está a tempo de ser conservado. Felizmente que alguma cooperação garante restauros e trava o aniquilamento de edifícios emblemáticos do que fora concebido com capital com contornos imperais.

Quem perdura o seu amor pela Guiné não pode deixar de olhar esta obra primorosa sem orgulho e indignação.

Um abraço
do Mário



Bijagós e o seu património arquitetónico: que beleza de livro!

Beja Santos

O património arquitetónico dos Bijagós é uma edição da Tinta-da-China, tem por autores Duarte Pape e Rodrigo Rebelo de Andrade e fotografias de altíssima qualidade de Francisco Nogueira. Tem história, enquadramento urbanístico, análise do espaço tradicional Bijagó e do espaço colonial e desvela os mais significativos edifícios coloniais. 

Na base do empreendimento está o projeto “Bijagós, Bemba di Vida! Ação cívica para o resgate e valorização de um património da humanidade”, uma parceria do Instituto Marquês de Valle Flôr e da organização não-governamental Tiniguena. Trata-se de um estudo que se insere no projeto de conservação dos recursos naturais e de desenvolvimento socioeconómico numa das zonas centrais da Reserva da Biosfera do Arquipélago de Bolama-Bijagós: as ilhas Urok.

Os autores preparam-se bem e o resultado está à vista, nesta edição cuidada, edição para guardar pelo cuidado posto no grafismo e na riqueza das imagens, fala-se dos Bijagós e de um património colonial que ameaça ruína, as imagens são tão impressivas que ninguém pode deixar de indignar-se com o descalabro que por ali vai.

A herança arquitetónica bijagó compreende o passado, através da compreensão dos textos, dos enquadramentos e das suas influências em comparação com outros patrimónios guineenses e coloniais; está o registo fotográfico do património existente e indaga-se o futuro, alguém tem que responder pela salvaguarda de um património comum de uma região com 88 ilhas e ilhéus, num total de 10 mil quilómetros quadrados. 

Há menção dos Bijagós em documentos dos descobridores a partir de 1457, são da maior importância as narrativas do navegador veneziano Luís de Cadamosto e do navegador genovês Uso de Mare. Os primeiros registos cartográficos surgiram em 1468 quando o navegador alemão Valentim Fernandes terá chegado às imediações de Canhabaque.

O processo de crescimento de Bolama está relacionado com a história e a cultural mercantil na região de Quínara e no rio Grande de Buba. O povo Bijagó vivia em permanente tensão com os Beafadas que se espraiavam entre Tombali e Fulacunda. A presença portuguesa era episódica e a hostilidade Bijagó indisfarçável aos colonos. Bolama foi fundada em 1752, muito depois de outras vilas e cidades da Guiné, quando o governo português ordenou ao Coronel Francisco Roque de Sotto-Mayor, Governador de Bissau, que tomasse posse da ilha, erguendo um padrão esculpido com as armas dos reis de Portugal. Recorde-se que a ilha de Bolama só pertenceu oficialmente a Portugal em 1870, após a arbitragem pelo presidente norte-americano Ulysses Grant do conflito luso-britânico.

A estrutura urbana baseia-se em modelos europeus: grelha ortogonal, reticulada, implantada a nordeste da ilha, e em contracto direto com o mar. Impuseram-se inicialmente os edifícios da Alfândega, o Palácio do Governador e Casa Comercial Gouveia. Surgiram depois outros edifícios-chave: o Banco Nacional Ultramarino, a Escola, o Arsenal e o Hospital, a Câmara Municipal e os Paços de Concelho. A escala da cidade de Bolama, observam os autores, é definida por um grande número de edificações térreas, pontualmente marcada por construções com dois ou mais pisos. Nos anos 20 do século XX, surgem planos da autoria do engenheiro Guedes Quinhones inspirados nos modelos humanos ingleses do final do século XIX, da Garden City, de Sir Ebenezer Howard e dos ideais norte-americanos da City Beatiful Movement.

Quando Bolama deixou de ser capital, em 1941, tentou-se torná-la um destino turístico muito apetecível, daí as piscinas municipais, o cineteatro e o complexo balnear da praia de Ofir. Hoje, os seus largos e praças perderam grande parte do caráter, em virtude do abandono dos serviços públicos. Era tal a beleza e a graciosidade da cidade que muitos a tratavam por Nova Mindelo e nos meios intelectuais dizia-se que aqui se tinha radicado o berço do crioulo.

Folheia-se o álbum fotográfico e sentimos o coração pequenino com as ruínas do antigo Palácio do Governador, as ruínas de Bubaque, estão entregues às ervas a casa de férias de Luís Cabral e as casas inacabadas para generais. De premeio, os autores mostram-nos a organização das tabancas Bijagós, construídas em clareiras, têm um ar delicado na envolvente paisagística.

Uma imagem muito bela pode potenciar no leitor um cruel sofrimento, ele tem que perguntar porquê a decomposição daquele edifício da central elétrica, como ainda guarda majestade a Câmara Municipal em ruínas, como é grotesco o belo exótico das ruínas do Hospital Militar e Civil, e como ainda resiste o Palácio do Governador e o Quartel Militar. Há uma Bolama que nasce e renasce. Por exemplo, o edifício da Alfândega foi totalmente recuperado pela cooperação espanhola, AICCID. O cineteatro de Bolama resiste, é um assombro de Arte Deco já tardio. A Escola Superior de Educação é um dos equipamentos de maior interesse da Bolama atual. Ficamos sem fôlego a ver a notável Imprensa Nacional, os autores advertem para o seu enorme potencial turístico e museológico.

A análise patrimonial não se circunscreve à ilha de Bolama, já se falou de Bubaque, Canhabaque tem património em decadência, aqui se mantém de pé o monumento comemorativo das operações de pacificação de 1935-1936.

Os autores concluem que é muito grande a qualidade patrimonial deste arquipélago e que é iniludível a importância do legado patrimonial do colonialismo português, ainda há muita recuperação, conservação e restauro que podiam tornar esta região muitíssimo apetecível pelos dons que a natureza que lhe ofereceu.

Enquanto lia com sentimentos contraditórios este álbum de indiscutível interesse, procurando conhecer as linhas da presença colonial, tanto na fase de consolidação de Bolama como capital da província da Guiné e o período posterior, até ao momento da independência, sempre de coração contrito com o património em ruínas, lembrava da visita que aqui fiz em 1991, a embarcação a chegar ao cais de onde se avista aquele espantoso monumento em pedra que Mussolini ofereceu à cidade de Bolama em homenagem aos aviadores italianos mortos, procurava as placas esmaltadas com os nomes insignes dos políticos da I República que aqui ficaram consagrados, passeara-me neste mar de ruínas perplexo como era possível dois povos espezinharem esta esplendorosa memória de uma vida em comum.

Pescadores bijagós
Imagem retirada do blogue LusONDA, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19588: Notas de leitura (1159): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (77) (Mário Beja Santos)