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segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24214: Manuscrito(s) (Luís Graça) (222): Circadiana, a vida




















Quinta de Candoz >  9 de Abril  de 2023 > Páscoa: a vida que sucede à morte.

Fotos (e texto): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 

Circadiana, a vida

por Luís Graça

Circadiana,  a vida!...
Depois do solstício do inverno, virá o solstício do verão
e aos dias suceder-se-ão as semanas, os meses, os anos.

Circadiana, a vida!...
Pior que o suplício do inferno
é o pavor do eterno retorno.
É a eternidade, dizem-te,
que nos move ou demove ou comove, 
a eternidade ou a sua cruel ilusão,
os seus sucedâneos terrenos, efémeros, 
a fama, a honra, a glória,
 a vaidade, o ouro, os diamantes,
o elixir da juventude, a beleza,
o amor até que a morte nos separe,
o poder, orgástico, de mandar matar e morrer
talvez a paternidade e o egoísmo genético.

Circadiana,  a vida!...
Afinal todos os anos é Natal
e todos os anos por aqui  passa(va) o compasso pascal.
Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou,
a vida triunfa sobre a morte.

Circadiana,  a vida!...
Todos os anos, com sorte…
Exceto quando deixaste a tua terra e foste para a guerra:
perdeste a noção do dia e da noite,
dos dias, das semanas, dos meses, e das estações,
que eram duas, a do tempo seco e a das chuvas.

Circadiana, a vida!...
Disseram-te que o velho general
esteve à beira da tua cama no hospital:
- É uma subida honra, para qualquer mortal,
a sua visita, meu general ! –
terás tu dito mas, por favor, e por pudor, não ponhas isso
no teu “curriculum vitae”.
Esquece a Guiné, camarada, meu herói,
e os pauzinhos que gravaste na parede da caserna,
na contagem decrescente para o fim da tua (co)missão.

Circadiana,  a vida!...
Quando eras jovem, tinhas um calendário perpétuo, 
na tua mesinha de cabeceira,
na secreta esperança de que os dias não tivessem 24 horas,
não tivessem noite, não tivessem fim.
Depois, deixaste de te fiar nas leis imutáveis da natureza
e, todos as manhãs, tomavas o lugar de Sísifo
e pegavas na tua pedra de granito,
montanha acima, montanha abaixo!

Circadiana, a vida!...
E, se Deus quiser, a primavera há de chegar, 
e c0m ela as cerejeiras em flor,
e os melros que vão pôr os seus ovos 
nos arbustos de alecrim no caminho para a leira cimeira,
e as andorinhas que irão reconstruir o seu ninho 
na varanda da casa de cima.

E trazem histórias de coragem,
as tuas andorinhas de torna-viagem,
vêm do norte de África, quiçá da Guiné,
e não precisam de passaporte,
nem de GPS, nem de código postal, nem de carimbo das alfândegas.
São heroínas, sobreviveram a mais um ano,
fogem da guerra, e das alterações climáticas,
sem o aval nem a ajuda do alto comissário para os refugiados,
ou a benção dos imãs 
e dos demais representantes de Deus na terra.

Circadiana,  a vida!...
E todos os anos fazes anos
e haverá sempre um bolo de aniversário
e uma vela para soprares.
E oxalá nunca te falte à mesa
quem te cante os parabéns a você.
Mas o que é que tu sopras, afinal,
meu pobre feliz aniversariante ?
Sopras a vida, sopras a vela da vida, de fio a pavio!

Circadiana,  a vida!...
Até as almas têm estados, dizem-te, circadianos,
estados de alma, bipolares,
ora de euforia ora de depressão,
socalco acima, socalco abaixo...
Afinal, tão certo como dois e dois serem quatro,
à noite sucede o dia, 
e não há lua sem sol, nem maré alta sem maré baixa!

... Nem a morte sem  a vida.
Mas chorarás sempre  os teus mortos, 
até que as tuas lágrimas te sequem.

Circadiana, a vida, meu amor!...
A vida é pura repetição,
é o teu coração que bate forte, até à exaustão,
até a gente queimar a vela, de fio a pavio.

Circadiana,  a vida!
Carpe diem, meu amigo:
ora sabe a muito, ora sabe a pouco,
... a vida, sempre, armadilhada,
presa por um fio de tropeçar.

Última versão, Candoz, 9 de abril de 2023
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domingo, 9 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24211: Blogpoesia (788): "As Palavras estão gastas" (nova versão), poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

AS PALAVRAS ESTÃO GASTAS (Nova versão)

As palavras estão velhas
estão gastas as palavras.
Mesmo velhas
mesmo gastas
as palavras são olhos d’água
as palavras são miragem de horizonte.
As palavras são bonitas
são bonitas as palavras ditas e não ditas.
São boas as palavras
por dentro e por fora
mesmo as palavras más
nos lábios de alguém que chora.
São precisas as palavras
para falar com a paisagem
para sentir a poesia de Grieg
numa Canção de Solveig
ou a melodia de Smetana
nas ondulações do Moldava.
Mesmo velhas
as palavras gastas ainda têm dedos
olhos e lábios.
Eu ainda acredito nas palavras velhas
puídas
sem cor
eu ainda acredito que nelas vivem
algumas sementes de amor.
São as palavras gastas
as velhas palavras de outrora
que ainda acordam a saudade
e acendem as noites com olhos de fora.
Não matem as palavras gastas
assim sem mais nem menos
não deitem fora as palavras velhas
até que me ofereçam
no dia em que ficar mudo
uma caixa de palavras novas.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 5 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24120: Blogpoesia (787): "Botão-flor da primeira folha verde", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 5 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24120: Blogpoesia (787): "Botão-flor da primeira folha verde", poema da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Botão-flor da primeira folha verde

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios finos e uma gota de água no canto dos olhos secos.

Os lábios foram carnudos e vermelhos de sangue e os olhos eram verdes como o sol quando o sol era verde.

Tem o rosto sumido na sombra descaída ao longo dos braços, como vela despregada de navegar.

Outrora, o mar encapelado e nu brilhava-lhe nos olhos, cobrindo de espuma branca as alamedas do desejo.

Havia uma cidade entre os lábios, envolta em lagos de montanha, com peixes verdes voando entre os pinheiros.

Não havia qualquer pomba branca caída no chão da cidade morta nas ruínas da ilusão.

Um edifício branco e muito alto, assente nas paredes do deserto, rompia o céu de nuvens negras.

No vão da noite que acolhe os sonhos, o botão-flor da primeira folha verde inverteu a vida entre o real e o imaginário, nas dobras do tempo, em universal dilema.

Há uma mulher de alvor azul com um fio de azeite nos lábios roxos e uma gota de água gelada no canto dos olhos.

E cedo se fez tarde a madrugada, sem tempo para morrer na vida de um poema.



adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23626: Blogpoesia (786): "O meu poema azul", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24081: In Memoriam (470): António Torres e Arquimínio Silva, recentemente falecidos: pertenciam à CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, 1971/73) (Joaquim Pinto Carvalho)



1. Homenagem poética do Joaquim Pinto Carvalho a dois camaradas seus, recentemente falecidos, pertencentes à CCAÇ 3398 / BCAÇ 3852 (Buba, agosto de 1971 / agosto de 1973):  o António Torres (1949-2023) e o Arquimínio Silva (1949-2023). Nenhum deles é membro, registado, da Tabanca Grande; ambos costumavam participar nos convívios da sua companhia.

O Pinto de Carvalho, que tem 60 referências no nosso blogue, e é membro nº 633 da Tabanca Grande, foi alf mil da CCAÇ 3398 (Buba) e CCAÇ 6 (Bedanda) (1971/73).  Natural do Cadaval, é advogado, poeta e régulo da Tabanca do Atira-te ao Mar, Porto das Barcas, Atalaia, Lourinhã. É autor de uma brochura com a história da unidade, a CCAÇ 3398,  distribuída no respetivo XXV Convívio, realizado no Cadaval, em 18/9/2021.

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24076: In Memoriam (469): Manuela Gonçalves (Nela) (Castelo Branco, 1946 - Caldas da Rainha, 2019), professora aposentada, cooperante, esposa do ex-alf mil, Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60, 1969/70, vítima de mina A/C , em 13/11/1969, na estrada São Domingos-Susana

domingo, 18 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23626: Blogpoesia (786): "O meu poema azul", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


O MEU POEMA AZUL

Não sei fazer uma rosa nem me interessa
não sei descer à cidade cantando nem é grande a pena minha.
Não sei comer do prato dos outros nem quero
não sei parar o fluir dos dias e das noites e nem isso me apoquenta.
Não sei recriar o brilho do poema azul...
e isso dá-me vontade de morrer.
Procuro para além das sílabas e dos versos
a voz poderosa mais vizinha do silêncio
o meu poema azul…
o suspiro de Outono onde a brisa se aninha
no breve silêncio do perfume do alecrim
lugar das palavras e dos versos no caminho do teu rosto
junto ao rio dos teus olhos
onde a vida se faz poema
e o mar se deita nos lençóis de luz do fim do dia.
Procuro para lá das sílabas e dos versos
encontrar meu barco à entrada do mar
onde repousa teu corpo entre algas e maresia
meu amor perdido num campo de violetas.
O meu poema é tudo isto que me vive e que me ilude
que me prende ao lugar azul que procuro dia e noite
por entre os versos do meu ser.
O poema mais lindo da minha vida ainda não nasceu
não tem asas nem olhos nem sentimento
que o traga um dia o vento se vento houver
que a saudade o encontre onde ele estiver.
Dizem que no cimo dos pinheiros ainda é primavera
mas tão alto não chego
mais à mão molho a minha camisa primaveril
no regato cristalino que vai correndo por entre os dedos
num solo de cores e violino.
Não sei colher uma rosa nem sei descer à cidade cantando
sou apenas aquele que ontem dormia sobre um poema azul
e das asas da ilusão se desprendia.
Sou aquele que ontem se despia nos braços do poema que vivia
sou aquele que ontem habitava em silêncio
o poema azul que acontecia
sou aquele que ontem sonhou em vão…
com o poema azul de mais um dia.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23608: Blogpoesia (786): "Esta cabeça esgotada", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 11 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23608: Blogpoesia (786): "Esta cabeça esgotada", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


ESTA CABEÇA ESGOTADA

Este livro
este copo
esta mesa…
…este mar d’águas quentes
bordando a lodo o cais de Pindjiguiti
onde caiu meu corpo
no dia da memória.


Este livro
este copo…
…este mar d’água e sangue
estoirado na cabeça
do último respiro
da vida e da história.


Este livro…
…este Wiriyamu fuzilado
na penugem de Chinteya
nas balas de Vaina
no esventrar de Zostina.


Esta cabeça esgotada
de milhões de pensamentos
perdidos na estrada…
…este chão de Babi-Yar de sangue regado
nas lágrimas caladas
do Dniepre.


Esta cabeça esgotada
de acordar pensamentos…
…este grito do vento
nas entranhas do Soweto
dos rios da morte
e do silêncio.


Esta cabeça esgotada…
…esta louca mania
de semear momentos
em séculos de nada.


adão cruz (poema e pintura antigos)

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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23606: Blogpoesia (785): "Estrela que brilhas no horizonte sem idade" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

sábado, 10 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23606: Blogpoesia (785): "Estrela que brilhas no horizonte sem idade" (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Na mensagem de 1 de Setembro de 2022, onde vinha a estória do Senhor Augusto, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos também um cartaz com a publicidade ao seu livro "Palavras que o Vento (E)Leva", a lançar brevemente, e um poema dedicado a uma criança, quem sabe, um neto:

Meus amigos editores
(...)
Junto também um cartaz publicitário do livro que vou lançar e um poema para juntar.

Fraternal Abraço do
Zé Teixeira


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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23585: Blogpoesia (784): "Meu amigo Dostoievsky", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 4 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23585: Blogpoesia (784): "Meu amigo Dostoievsky", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


Meu amigo Dostoievsky

Meu amigo Dostoievsky, nada temos a ver aparentemente
um com o outro, a não ser o nosso encontro pelos meus
dezoito anos.
Apetece-me chorar, ao recordar as noites em que à luz de um
foco olho de boi, debaixo dos lençóis para que minha mãe
não visse, eu invadia os teus livros numa das maiores e mais
deliciosas aventuras da minha vida.
Ainda hoje me são familiares o rosto de Sonia e a figura
de Raskolnikov, luz mítica e mística dos que têm coisas em
comum, orientando-se na direcção do símbolos e do mundo
sem forma.
Da mesma forma que te marcaram Balzac, Schiller, Victor
Hugo e Goethe, tu imprimiste em mim a sensação que te
fez desmaiar perante a beleza de Seniavina, na casa dos
Wielgorsky, e eu não sou homossexual, meu caro Dostoievsky.
Perante a beleza, eu não sei ao certo onde pára o sexo, se no
esperma de Úrano derramado no mar, se na poesia da Morte
em Veneza.
Não é a realidade física que interessa ao simbólico, mas o
significado do sexo na imaginação.
A dualidade do ser funde-se na tensão interna de quem ama
e a união sexual não é mais do que o apaziguamento da
tensão interior.
Nunca te concebi humano, sobretudo depois dessa manhã de
rosto de pedra e gelo em que viveste o mais trágico minuto
da tua vida.
Um vento glacial varreu-me a fronte ao ouvir o teu nome
na chamada para a morte: Akcharumov, Shaposhnikov,
Dostoievsky.
Hoje, depois de ter amado tanto, aceito a tua epilepsia como
o estigma mais marcante da pureza da condição humana e
passei a considerar-te meu irmão para o resto da vida.
Por isso me senti prisioneiro quando entrei na fortaleza de
S. Pedro e S. Paulo, e por isso chorei na Praça Semenovsky,
onde viveste uma vida inteira em dois minutos de morte.
Era como se fosse eu o condenado.
Também chorei quando reencontraste Suslova, apenas pelo
que sofreste ao ver que o amor não se repete.
A noite e o vazio estão na origem cosmológica do mundo e o
amor é uma criança que cresce...
e deixa de ser criança.
Amor e morte quando descobertos acordam e fogem.
Para escrever bem é preciso sofrer, disseste um dia ao jovem
Merejkovsky, quando a vida confundia as chamas do teu
inferno com relâmpagos de visionário.
Sofrer pode ser apenas sorrir...
frente a toda a utopia palpável não paranóica nem delirante.
Foi a mim que o disseste meu caro amigo, foi a mim que
o disseste na tarde cinzenta da tua morte, na hora da
hemorragia que te vitimou.
Até hoje ainda não te agradeci.
Perdoa não ter acompanhado o teu féretro, mas nessa altura
eu não existia...
ou será que te acompanho ainda hoje neste
pesado caminho do fim?

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 28 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23562: Blogpoesia (783): "Mãos de hoje que foram de sempre", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 28 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23562: Blogpoesia (783): "Mãos de hoje que foram de sempre", poema ilustrado por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


Mãos de hoje
que foram de sempre


Na noite que já não é noite de madrugadas, perpassa em doce
silêncio por entre os dedos dormentes uma brisa dolente,
esquecendo as mãos na paz adormecida.


Por entre os frágeis dedos da quietude e do silêncio vagueia
agora em suave melancolia o magro regato da secura da vida,
arrastando em seu leito rugoso a triste canção de um tempo
sem cor nem movimento.

O lento gesto do abrir destas mãos de tantos anos vividas cai
agora em pesado silêncio por entre as malhas da sombra, no
impiedoso vazio das mãos cheias de nada.


Foi-se embora a madrugada das manhãs perdidas no tempo
em que o sol sorria entre os sonhos e as mãos cantavam a
força da vida com ondas do mar por entre os dedos frementes.


No penoso abrir e fechar de mãos deste plangente gesto
do fim do dia, feito canção de tão gélido silêncio, apenas a
saudade se aninha em negro fundo para morrer sozinha.

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23542: Blogpoesia (782): "O ar fresco da tristeza" e "A grávida mais linda que já vi", poemas ilustrados por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 21 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23542: Blogpoesia (782): "O ar fresco da tristeza" e "A grávida mais linda que já vi", poemas ilustrados por e da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


O AR FRESCO DA TRISTEZA

A vida havia-lhe ensinado
que o mais belo poema
se faz de gestos e palavras simples
quando dois corpos amantes se unem
como a clara e a gema.
Fora da jaula e com a ponte ao longe
sentia-se voar
e dizia que o ar fresco da liberdade
acendia nela o desejo ardente
de fugir e não voltar.
O céu abria-se dentro de casa
quando ele a via frente ao espelho
provando a blusa que lhe trouxera de fora.
Tocar ao de leve a sua pele de seda
coberta apenas pela blusa que vestia
sentir nos dedos a maciez do sexo
que à luz dos olhos se oferecia
era um poema…
que em versos de fogo se fundia.
Para lá da beleza e da lacrimosa melancolia
era a ternura da infelicidade
o que mais lhe prendia aos olhos
aquele corpo de sonho e magia.
Os seus beijos
não tanto pela sensualidade
como pela necessidade de fuga
para um qualquer lugar de paz e segurança
tornavam mais dolorosa
a hora que viria a seguir sem ela
e sem esperança.
A alegria que tinha ao vê-la entrar era tão grande
quanto a tristeza que sentia ao vê-la sair
contando-lhe os passos.
Era como se o mundo caísse ao chão e se partisse
e não houvesse forma de unir os pedaços.


adão cruz


********************
© ADÃO CRUZ


A grávida mais linda que já vi

Foi a grávida mais linda que já vi.
Tinha olhos aguados de ternura
olhos mansos de sonho e distância
olhos de sexo infinito.
Tinha estrelas pequeninas nas maçãs do rosto
e os lábios frutavam de carnudos
com gosto a sol e a sal.
A grávida mais linda que já vi
dormia no ventre da serra-mãe
entre asas e desejos
cabelos mortais sonhados de horizonte
hálitos de feno e maresia
que o sol acordava no acordar de cada dia.
O seu corpo nascia das ondas eternas
e ondeava como seara madura.
A grávida mais linda que já vi
na paisagem lisa e amarga do tempo
dormia na areia branca
e tinha flores brancas
na raiz branca das coxas
dos beijos da espuma branca
que do mar sobrava.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23524: Blogpoesia (781): "Na Foz do Douro" e "Uma andorinha do Arctíco", poemas ilustrados da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

domingo, 14 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23524: Blogpoesia (781): "Na Foz do Douro" e "Uma andorinha do Arctíco", poemas ilustrados da autoria de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


Na Foz do Douro

Generoso abraço
verdade solitária
o mar infindo onde colhes as palavras
e o pequeno gesto da areia fina
riscada dos pés das gaivotas.
Entra-me nos olhos o mar como em ti
como tu tenho os olhos inundados de mar
mas fogem-me as sílabas férteis
que ele te põe nos lábios e nos versos.
A vibração das palavras de água
salva-me da paz sacrificial das rochas erectas e firmes.
Quase me sinto futuro aqui
a lembrar que o passado só existe para enganar o presente.
Sinto-me bem aqui
ao lado do possível e do impossível
na orla do silêncio das tuas palmeiras
saboreando o Sal da Língua como fruto roubado
que me liberta da longa noite acumulada na boca.
Arde em mim a luz de fogo que abre o mar e o peito
quando o sol se derrama e vai dormir.
Aqui eu sinto bem dentro dos sentidos
o esplendor da água fervente
e dos corpos entontecidos
que só podem amar-se no ventre do mar.
Um vento leve com cheiro a maçãs acaricia-me a face
trazendo pela mão a paz da tarde
e quase me adormece.
Perdi a página já não sei onde ia
também o sol se foi e com ele o dia.
Bate agora a noite com estrondo
no casco frágil da solidão.
Penso que tudo se vai desmoronar
talvez morrer
mas de novo retomados
teus versos dizem-me que não.


adão cruz


********************

© ADÃO CRUZ

Uma andorinha do Árctico

Abri o peito a uma andorinha do Árctico
vinda das auroras de frescura
trazia em cada asa um poema
e um abraço de ternura.
Trazia um sonho no bico
sonho que eu perdi
não sei onde nem quando
não sei se dentro de ti
não sei se na vida errando.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23503: Blogpoesia (780): "Se eu fosse um avião", "A dor" e "Um sopro de vento", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

domingo, 7 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23503: Blogpoesia (780): "Se eu fosse um avião", "A dor" e "Um sopro de vento", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

1. Poemas, ilustrados, enviados ao regularmente ao Blogue pelo nosso camarada Adão Cruz, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68), médico cardiologista, pintor e escritor. Hoje, mais três intitulados: "Se eu fosse um avião", "A dor" e "Um sopro de vento".

© Adão Cruz

Se eu fosse um avião

Se eu fosse um avião
com um motor em cada mão
voava…
não sei para onde
mas voava à procura da ilusão.
Se eu fosse um avião
com um sonho em cada mão
voava…
não sei para onde
mas voava para fora da ilusão.
Ai… se eu fosse um avião
com um copo em cada mão
voava… voava…
não sei para onde
mas sempre rentinho ao chão.


adão cruz


********************

© Adão Cruz

A dor

A dor vestiu-se de mulher de terra e flores
e voou para lá das nuvens onde mora o vento.
A vida é um lugar muito longe
lá para as bandas do sonho
nas margens do silêncio
na arte do encontro-desencontro
na alegria de ser triste.
Nesta Galiza de poetas e água e céu e solidão
onde um mar de rias baixas desagua dentro de nós
pinta Jordi um rosto de mulher
a ocre, terra-siena e carmim.
...Que os cabelos e os jardins
querem-se soltos e naturais
como as aves e as manhãs!
Um homem nu toca Mussorgsky ao vivo
como se Jordi pintasse Quadros de uma Exposição.
Bem perto daqui
há muito foi sonhada a Nostalgia
mas ninguém viu a luz vermelha fendendo as águas verdes
e a dor já se vestia de terra e flores
e a dor já fugia para lá dos montes
onde moram mulheres de vento.


adão cruz


********************

© Adão Cruz


Um sopro de vento

Um sopro de vento na janela entreaberta
depôs no chão uma folha desajeitada.
Ela assustou-se
apertou os olhos e espremeu uma lágrima.
Serenamente
vestiu a saia e disse que não voltava.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23491: Blogpoesia (779): "Universo", por José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23491: Blogpoesia (779): "Universo", por José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381

1. Em mensagem de 1 de Agosto de 2022, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos a sua visão sobre o "Universo".


Universo

Universo,
Em longo momento gerado.
O Cosmos.
Planetas, estrelas, o Sol doirado.
Vida.
Água, plantas, coisas tão belas!
Animais.
O Homem...
Conjunto de ínfimas parcelas.

Universo.
Criado,
E a cada momento recriado,
Sem que nada mais seja acrescentado.
Nada mais.
Milhões de anos em movimento,
Contínuo.
Permanente vida a nascer,
E assim será eternamente,
Sem nada se perder.


Universo.
Desafio ao conhecimento.
Conjunto de átomos,
Por forças invisíveis, ligados –
Integram-se,
Desintegram-se,
Reintegram-se,
E animados, geram novo Ser.
Força viva.
Vida que faz viver,
Energia que tudo faz girar
À sua volta, sem nada parar.
Segredos em livro aberto, escondidos,
Que os mais Sábios dos Sábios
Procuram decifrar,
Apaixonadamente envolvidos.
Estudam o que vê toda a gente,
A realidade evidente,
E também o que não se vê,
Mas faz parte da realidade existente.

Universo,
Razão do SER,
Ouso perguntar-te –
Eu, quem sou?
Conjunto de átomos – sei-o bem.
Mas onde estavam no ato de amor
Que os congregou,
E deram vida, a mim também? –
Num pigmeu africano?
Num animal pré-histórico?
Num Pele-Vermelha americano, talvez!


Universo,
No teu eterno andarilhar,
Tu és um perene hino de louvor
Ao divino Criador
Que do nada tudo fez,
Ao seu bel-prazer,
Num excelente ato de amor.


Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23482: Blogpoesia (778): "O deserto", "Tu vens" e "Delicadamente", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23482: Blogpoesia (778): "O deserto", "Tu vens" e "Delicadamente", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887

Em mensagens enviadas regularmente ao Blogue, o nosso camarada Adão Cruz, médico, pintor e escritor, (ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68) presenteia-nos com os seus poemas ilustrados com as sua magníficas pinturas de alta qualidade artística. Aqui ficam estes três poemas, intitulados respectivamente: "O deserto", "Tu vens" e "Delicadamente".

© Pintura de Adão Cruz


O deserto

O deserto tem de ter uma porta
uma saída
um caminho que não encontro.
Sei que sou buraco de mim mesmo
mas não é por aí que eu quero sair.
Meu sonho foi ser um pássaro
voar na proporção do amor
sem medo nas asas…
Meu pesadelo é ser um homem sem vento
arrastando a vida.
Sou apenas caminho andado
sou fim de tempo
resto de palavras e gestos perdidos
na eternidade de um dilema.
Já não giram os olhos mortos
nem os lábios descarnados suspiram.
Já o coração não treme
e a alma desliza pela areia infinda.
Tudo é longe e sem destino
foi-se embora o cheiro a alfazema…
mas no silêncio do deserto
há-de haver um verso para acabar o poema.


adão cruz


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© Pintura de Adão Cruz

Tu vens

Tu vens
eu acredito que vens
neste céu de cabelos soltos e seios ao vento
nesta fome de corpo e pensamento.
Tu vens
eu sei que vens
é hora de vires
nesta vespertina voragem de felicidade
neste céu da cor da angústia.
Tu vens construir a Primavera
em teu vestido branco de espuma
tu vens dominar meu indómito cabelo
com jogos simples dos teus dedos.
Eu quero acreditar que tu vens
pegar docemente nas minhas mãos cegas
e fazer delas uma flor de acácia
com que amacias os lábios
e abres o cofre dos teus seios de fogo.
Tu vens
eu sei que vens
por isso sou feliz no meu silêncio.


adão cruz


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© Pintura de Adão Cruz

Delicadamente

Delicadamente
ela abriu a blusa
e levantou os olhos decidida.
Era uma mulher de guerra combatida
daquelas cuja face conta a história.
Mansamente
baixou a medo as alças do soutien
inclinou a cabeça
e fechou os olhos à espera da minha mão.
Depois comemos pão de centeio
molhado num golpe de azeite
bebemos um capitoso vinho
e fomos à procura de uma paisagem com cegonhas.


adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23457: Blogpoesia (777): "Ontem à noite… quem diria", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887