Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > s/ d > Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito. Adapt. de Foto: © Cherno Baldé (2013).
Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Dr. Cherno Baldé, em Bissau (2019) |
1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé já confessou que estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos, e que ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)...
Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:
(i) qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?
(ii) alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português?
Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25Abril74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o general Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso à metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias.
LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLÃ
Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens que desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante à eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do Partido-Estado.
Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de um certo Portugal e em nome de uma certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorlã omo Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau (1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam:
O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25 de Abril, na Guiné a expetativa de um hipotético regresso do general, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorlã que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo, sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.
SPÍNOLA CONTRA OS IRÃS DE BANDIM
Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no início dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.
Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho general, “amigo” dos guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto governador, parecia estar distante da realidade atual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos.
O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da política por ele conduzida na Guiné, desde que chegara àquela província em 1968 e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente à deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé” (3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.
É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável.
Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num país, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas.
O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um ato de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso Partido-Estado, e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num cto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo. (...)
Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
Notas do autor:
(1) - Guelá Baldé – Alferes, comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a capitão de milícias, antes da sua morte).
- Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca)
- Alf Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70;
- José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael)
- 2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70;
- Mamadu Baldé (Mama Djamara);
- Alf Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90;
- Alanso Candé, 2.ª Companhia de Comandos;
- Bodo Djau, Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.
(2) - Guerreiro, herói e mártir.
(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante.
Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida à linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.
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(*) Vd. poste de 29 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)
(**) Vd. poste de 26 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"
Não sei se se deve empolar muito esta história que, na altura, nos causou um choque tremendo e muita incompreensão, pois durante todo o período anterior ao gen Spínola, nunca tinha acontecido uma cena igual.
O ex-capitão Carvalho ainda é vivo e residente, ao que parece, na zona de Arruda dos Vinhos, segundo a sua ex-esposa que, na altura, me contatou amigavelmente, mas para desmentir que o capitão tivesse levado uma chapada na cara.
Se relatei o caso foi porque me marcou para sempre e fez do incompreendido gen Spínola o meu herói predileto, sobretudo com a dececão que depois tivemos no reinado do PAIGC.
A citação que acabas de recuperar ainda é da actualidade e reconfirmo, pois:
"Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do 'gentio' rebelde e num território em guerra." (...)
Antes de terminar queria dizer que, revendo as datas com a ajuda preciosa do trabalho de pesquisa do amigo José Marcelino Martins, graças ao qual descobri o Blogue, cheguei à conclusão que, a quando da nossa mudançaa de Cambaju para Fajonquito, em 1967, a companhia que estava no subsector de Fajonquito era CCAÇ 1685 ("Os Insaciáveis") do cap Raiano (cap de infantaria Alcino de Jesus Raiano), homem alto e possante que, sentado no seu pequeno jipe, parecia que estava de pá. Os nossos deram-lhe a alcunha de "Lello Dadhe", o cabeça inclinada.
Quanto à CCAÇ 2435, alguns dias após o acontecido, foi substituida pela CCAÇ 2436 (a 20 de Abril 1970), do cap inf José Rui Borges da Costa que antes estava em Contuboel, até ao fim da comissão (13/08/1970).
30 de abril de 2024 às 15:11