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sábado, 30 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23472: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXVII: China: Visita à Falésia Vermelha, no outono de 1081, a 16 do sétimo mês, por Su Dongbo (1037-1101) (tradução de António Graça de Abreu)





China  > Falésia Vermelha > s/d > O António Graça de Abreu

Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2022) Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


[ António Graça de Abreu, foto à esquerda, com a esposa: (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos (sem legendas) enviados em 26/7/2022 ]



Primeira visita à Falésia Vermelha

por Su Dongbo (1037-1101) / António Graça de Abreu


No Outono de 1081, a 16 do sétimo mês, fui de barco com alguns amigos até à Falésia Vermelha. Soprava uma brisa doce, serenas as águas do rio. Ofereci vinho aos meus amigos, recitámos poemas em louvor da lua, entoámos canções da minha autoria.

Depois, a lua apareceu sobre as montanhas do leste e começou a sua viagem entre as constelações. Uma leve névoa branca estendia-se sobre o rio, o brilho das águas confundia-se com o resplandecer do céu. Demos liberdade à frágil barca e vogámos para águas distantes, como se flutuássemos no vazio, cavalgando brisas, despreocupados quanto a parar, como se tivéssemos abandonado o mundo suspensos nas asas do vento e fôssemos uma espécie de génios imortais.

Bebíamos, satisfeitos, cantávamos marcando a cadência na madeira da barca. Foi esta a canção:

Os remos traseiros são de pau de canela,
os remos da frente são caules de orquídeas.
Batem na luminosidade do céu,
subindo no cintilar da corrente.
No espaço ilimitado
abre-se o sentir de um coração.
Ao longe, um homem sábio,
caminha pelos confins do mundo.

Um dos convidados da jornada sabia tocar flauta e acompanhou a nossa canção. A música suspirava, como um queixume, um soluço, um gemido, o som prolongava-se, ondulante, estendendo-se como fios de seda. O dragão das águas dançava na sua caverna escondida, lágrimas encharcavam a barca de uma viúva solitária.

Emocionado, apertei os panos da minha cabaia e perguntei ao meu amigo o porquê da tristeza e da melancolia. Respondeu:

“O príncipe guerreiro Cao Cao já tudo explicou.
Clara a lua, raras as estrelas,
os corvos sombrios voam para sul.”


Ora a oeste de onde nós estávamos, situa-se Xiakou, do outro lado, a leste, fica Wuchang. Misturam-se as montanhas e os cursos de água, imensos, sombrios, azuis. Aqui foi Cao Cao derrotado pelo jovem Zhou Yu. Depois de ter tomado de assalto a cidade de Jingzhou e submetido Jiangling, o príncipe Cao avançou para leste, seguindo o leito do rio. As suas barcaças de guerra estendiam-se por cem léguas, os seus pendões e bandeiras escondiam o céu. Sentado nas margens do rio, tendo guardado a sua alabarda, bebia vinho e recitava poemas. Cao Cao foi um dos grandes heróis da nossa História, mas onde está hoje?

Como falar então de mim ou de vós, lenhadores, pescadores nas ilhotas do rio, camaradas de peixes e amigos de veados… Viajamos numa barca minúscula como uma casca de árvore, em vez de termos taças de vinho, bebemos em humildes calabaças, esvoaçamos entre céu e terra como gente efémera, somos simples grãos de cereal no meio de infindáveis mares.

Lamentamos a passagem de uma vida tão breve e rápida, temos inveja do grande rio Yangtsé que jamais se cansa de correr. Gostávamos de nos juntar aos imortais no seu voo, de partir para longe, de existir para sempre, arrastados pelo brilho do luar. Sabemos que tudo isso é impossível de alcançar e deixamos cair na placidez do vento o eco lúgubre das nossas queixas.

Eu pergunto: 

“Conhecem a água e a lua? Desaparecem, mas jamais se separam de nós. A lua cresce, decresce, mas não aumenta nem diminui.”

Se considerarmos o todo do ponto de vista do que muda, então o céu e a terra não deviam durar mais do que um piscar de olhos. Se considerarmos o todo do ponto de vista do que não muda, então a natureza e nós próprios, mudamos mas pouco.

Vale a pena invejar o que quer que seja?

Para tudo o que existe na natureza, entre céu e terra, surge sempre um mestre. É algo que não podemos escolher e decidir. Mas podemos contar com a brisa serena por cima do rio e uma lua clara entre montanhas. A primeira traz o som aos nossos ouvidos, a segunda, as cores aos nossos olhos. Estas podem ser nossas, para fruir sem gastar, o que mostra que o criador não escondeu tudo, há prazeres à solta ao alcance do coração dos homens.

Feliz, o meu amigo sorriu. Enxaguámos então as calabaças que enchemos outra vez de vinho. Comemos fruta e umas tantas iguarias. Os pratos e os copos espalhavam-se em desordem. Deitámo-nos nas tábuas da barca, encostados uns aos outros, sem nos apercebermos que, a leste, o dia já nascia.



赤壁赋
壬戌之秋,七月既望,苏子与客泛舟游于赤壁之下。清风徐来,水波不兴。举酒属客,诵明月之诗,歌窈窕之章。
少焉,月出于东山之上,徘徊于斗牛之间。白露横江,水光接天。纵一苇之所如,凌万顷之茫然。浩浩乎如冯虚御风,而不知其所止;飘飘乎如遗世独立,羽化而登仙。于是饮酒乐甚,扣舷而歌之。歌曰:
“桂棹兮兰桨,击空明兮溯流光。渺渺兮予怀,望美人兮天一方”
客有吹洞箫者,倚歌而和之。其声呜呜然,如怨如慕,如泣如诉,余音袅袅,不绝如缕。舞幽壑之潜蛟,泣孤舟之嫠妇。苏子愀然,正襟危坐而问客曰:“何为其然也?
”客曰:“月明星稀,乌鹊南飞,此非曹孟德之诗乎?西望夏口,东望武昌,山川相缪,郁乎苍苍,此非孟德之困于周郎者乎?方其破荆州,下江陵,顺流而东也,舳舻千里,旌旗蔽空,酾酒临江,横槊赋诗,固一世之雄也,而今安在哉?
况吾与子渔樵于江渚之上,侣鱼虾而友麋鹿,驾一叶之扁舟,举匏樽以相属。寄蜉蝣于天地,渺沧海之一粟。哀吾生之须臾,羡长江之无穷。挟飞仙以遨游,抱明月而长终。知不可乎骤得,托遗响于悲风。”
苏子曰:“客亦知夫水与月乎?逝者如斯,而未尝往也;盈虚者如彼,而卒莫消长也。盖将自其变者而观之,则天地曾不能以一瞬;自其不变者而观之,则物与我皆无尽也,而又何羡乎!
且夫天地之间,物各有主,苟非吾之所有,虽一毫而莫取。惟江上之清风,与山间之明月,耳得之而为声,目遇之而成色,取之无禁,用之不竭,是造物者之无尽藏也,而吾与子之所共适。”
客喜而笑,洗盏更酌。肴核既尽,杯盘狼籍。相与枕藉乎舟中,不知东方之既白。


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Nota do editor:

Último poste da série > 20 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23448: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXVI: Brasil, Rio de Janeiro, 1989, 2015, 2020

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23448: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXVI: Brasil, Rio de Janeiro, 1989, 2015, 2020



Brasil, Rio de Janeiro > 2020 > No alto do Pão de Açúcar, com a Praia Vermelha, na Urca, e a praia de Copacabana, ao fundo.


Brasil, Rio de Janeiro> 2020 > Uma favela, tirada do alto do navio de cruzeiros, à distância, no cais de Mauá.
 
Fotos (e legendas): © António Graça de Abreu (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Vinicius de Moraes e Helo Pinheiro... A Garota de Ipanema é a canção brasileira mais conhecida em todo o mundo, de tal icónica que tornou Ipanema, a belíssima praia carioca,  um dos maiores cartões   do Rio de Janeiro e de todo o Brasil. A música composta, em 1962, por Tom Jobim, génio da bossa nova, em parceria com o poeta Vinícius de Moraes, faz também parte do nosso imaginário lusófono. Foi o próprio Vinícius de Moraes quem,  três anos mais tarde, revelou o segredo bem guardado: a musa de inspiração, a "garota de Ipanema", era Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto Pinheiro, ou simplesmente Helô Pinheiro, uma adolescente de 17 anos em 1962.

Foto´(Vinícius de Moraes e Helo Pinheiro): Créditos: Divulgação. Fonte: Letras > Quem é a Garota de Ipanema (com a devida vénia...)



António Graça de Abreu, foto à esquerda: (i) docente universitário reformado, escritor, sinólogo (especialista em língua, literatura e história da China); (ii) natural do Porto, vive em Cascais; (iii) autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); (iv) ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74; (v) é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de 310 referências no blogue; (vi) texto e fotos (sem legendas) enviados em 15/7/2022 ]


Rio de Janeiro, Brasil, 1989, 2015, 2020


por António Graça de Abreu (*)


O Rio de Janeiro é a natureza feita cidade (Stefan Zweig)


Gosto do Rio de Janeiro. Três vezes cirandando pela grande cidade, como diria Zweig, recortada pelo esplendor da natureza.

Em 1989, meio à aventura, um mês no Brasil, de lugar em lugar num velho Wokswagen Golf, e a minha tia Hermínia, irmã do meu pai, com muitos anos de terra brasileira, a amedrontar-me “ai, o menino, ai o menino.” E não houve ladrão para assustar e atacar, por Niterói, Cabo Frio, Búzios, Petrópolis, Nova Friburgo. Depois Paraty e Angra dos Reis. Desbravar o grande Brasil e ser feliz em lugares de encantamentos breves, em hotéizinhos de passagem na berma da estrada.

De volta ao Rio de Janeiro, em 2015, ao encontro reconfortante da família, primos do meu sangue, com uma conferência pelo meio na Universidade de São Paulo. Outra vez, mergulhar sozinho na cidade e nas ondas límpidas de Copacabana. Sem ladrão, nem assalto, o meu pobre aspecto de meio ventrudo septuagenário, careca e feio, quase assustando o homem da favela sobranceira que desce para o mar procurando angariar sustento na praia, e que devia pensar que o ladrão era eu.

2020, outra vez o Rio de Janeiro. Desta vez, cheguei majestosamente de barco, entrando ao alvorecer pela baía de Guanabara, pintada pela brisa da manhã a azul escuro e prateado. Foram dois dias para me aconchegar na cidade, subida ao Pão do Açúcar, compras em Copacabana, ida ao Maracanã onde joga o Flamengo e o Fluminense, mais uma caminhada curta pelo centro do Rio com breve visita à estranha Catedral e a descoberta, junto ao navio, no cais de Mauá, do original Museu do Amanhã, do arquitecto espanhol Santiago Calatrava, o mesmo da nossa Gare do Oriente.

Tempo de praia, molhar o corpo no sal de Copacabana. Porque o mar estava agitado, com ondas altas, procurei um recanto mais sossegado, a praia Vermelha, na Urca. Meus olhos deram de chofre em umas tantas moças pouquíssimo ataviadas de roupa, usando fio dental da cabeça aos pés, beldades perfeitas, descendentes dessas índias tamoio de antanho à mistura com sangue quente português, ninfetas do mar e da terra, companheiras e amigas, superiores aos homens, todas netinhas da "leda e formosa" garota de Ipanema, das travessuras de Vinicius de Moraes e Tom Jobim.

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela, menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar.

Moça do corpo dourado
Do Sol de Ipanema
O seu balançado
É mais que um poema
É a coisa mais linda
Que eu já vi passar.

__________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 28 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23390: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte XXXV: Teruel, Aragão, Espanha, 2017

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."






Marco de Cananveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 18 de abril de 2022 > O fotógrafo escondido por detrás da sua sombra. Visita do compasso pascal, que não se realizava há dois anos por causa da pandemia. 


Foto (e legenda): © Luís Graça  (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Viva o compasso pascal

Viva  o compasso pascal
Desta linda freguesia,
Fizeram-nos muito mal
Estes dois anos de pandemia.


Faltam beijos e abraços,
Mas lá iremos ao normal,
Hoje damos mais uns passos,
Viva o compasso pascal!

É uma antiga tradição
Que nos enche de alegria,
E reforça a união
Desta linda freguesia.

Andámos todos com medo
E com máscara facial,
Duas Páscoas sem folguedo
Fizeram-nos muito mal.

Sem compasso nem foguetório,
Sem convívio nem folia,
Nem sequer houve peditório
Nestes dois anos de pandemia.

Saúde, paz e alegria para todos e todas,
Obrigado em nome dos cá da casa.


Quinta de Candoz, 18 de abril de 2022


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Nota do editor:

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23163: Manuscrito(s) (Luís Graça) (210): Quinta de Candoz, no país do arco-da-velha...


 

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Vista das janelas da nossa casa, na Quinta de Candoz > 11 de abril de 2022, c. 19h16 > 

Um  arco-íris  (ou o "arco-da-velho") sobre a albufeira da barragem do Carrapatelo, no rio Douro, a maior dos cinco aproveitamentos do Douro Nacional, com uma superfície inundada de quase mil hectares, e uma queda de 36 metros. Estende-se por 40 km e vários concelhos, atingindo na extremidade de montante o aproveitamento hidroeléctrico da Régua.

Nas fotos, vê-se ao fundo parte da albufeira e o Porto Antigo, na margem esquerda, já no concelho de Cinfâes, distrito de Viseu, a terra do explorador Serpa Pinto (1840-1900), Coberta de nuvens, em frente a serra de Montemuro (a sul). Candoz, a norte, está em contacto visual com Cinfães (não visível na foto, à direita de Porto Antigo, a caminho de Montemuro).

Segundo a Wikipedia, "Arco-da-velha é uma expressão usada quando se quer referir algo de tempos antigos, espantoso, inacreditável, inverossímil. Pensa-se tratar-se de uma forma reduzida de arco da lei velha, em referência ao arco-íris, que, segundo a Bíblia Sagrada, Deus teria criado em sinal da eterna aliança entre ele e os homens."

Também é a Wikipedia que nos explica, em termos simples, que o "arco-íris (também popularmente denominado arco-da-velha (...)  é um fenômeno óptico e meteorológico que separa a luz do sol em seu espectro (aproximadamente) contínuo quando o sol brilha sobre gotículas de água suspensas no ar. É um arco multicolorido com o vermelho em seu exterior e o violeta em seu interior. (..:).É mais conhecido por uma simplificação criada culturalmente que resume o espectro em sete cores na seguinte ordem: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil (ou índigo) e violeta" (...) 

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Candoz,  no país do arco-da-velha...

por Luís Graça

Não sei quantos habitantes tem Candoz,
entre indivíduos das diferentes espécies, 
da fauna e da flora que Deus criou,
do grilo à andorinha, 
do azevinho à videira,
do castanheiro ao sobreiro,
do ouriço-cacheiro ao gaio,
do melro de bico amarelo à boeira,
sem esquecer o "homo sapiens sapiens"...
que cultiva a vinha e cuida da horta e limpa os montes...
ou do javali que de vez em quando desce, esfaimado, até ao milheiral.

Ainda venho cá meia dúzia de vezes por ano,
pelo Natal, Carnaval, Pàscoa, 
Festa de Nossa Senhora do Socorro,
vindimas, Festa da Família (no nosso querido mês de agosto)...
e, claro, pelos batizados, casamentos e funerais.

Fica a Norte, a 400 quilómetros de Lisboa, a 320 da Lourinhã
(itinerário: IC 17, A8, A17, A25, CREP, A4, 
e depois  EN 222, Marco de Canaveses, Paredes de Viadores, Alto, 
e M642, Candoz...).

De Candoz vê-se Cinfães, 
a albufeira do Carrapatelo no rio Douro, 
o Porto Antigo, a serra de Montemuro...
e, em dias de nevoeiro,
os fantasma do Zé do Telhado, do Serpa Pinto ou do Eça de Queiroz,

Tenho uma grande ternura por Candoz,
e sobretudo pelas suas gentes, 
incluindo bichos, árvores e plantas.
Às vezes fico lá uns dias,
mesmo que não tenha o oceano Atlântico para "limpar a vista"
e os dias sejam mais curtos por causa da cidade e das serras...
Há sempre coisas novas para descobrir
e outras para confirmar:
o amor, a amizade, a ternura, a solidariedade
(coisas estas que são mais difíceis de captar pela máquina fotográfica)...

Quando eu morrer, 
vou ter saudades de muitas coisas e gentes,
a começar por Candoz  onde fui feliz,
pelos seus socalcos de pedra que sustem a terra arável,
roubada à floresta de castanheiros e carvalhos,
e pelo arco-íris sobre a albufeira do Carrapatelo,
e o seu caleidoscópio de mil e uma cores 
que guardam memórias da mágica ligação da terra ao céu...

Foi lá, em Candoz,  que aprendi coisas que não existiam 
nos lugares da minha infância, no Oeste Estremenho,
na ponta mais ocidental da Europa,
como comer as "cebolinhas do talho" com presunto 
e um naco de broa de milho, 
acompanhadas com o vinho verde tinto, 
bebido pela malga de barro vidrado...

Para não falar do anho assado com o arroz de forno,
ou do sável frito com a açorda de ovas,
ou da dança do fado ao som da rebeca...
Ou ver um avô a brincar com o seu pequeno neto macho, 
sentado nos seus joelhos, e a cantarolar:
"O fadinho é bonito, os c... ao pé do pito!".

Tinha de se passar, há quase meio século atrás, 
vários testes  
até se ser aceite  no clã dos Ferreiras e Carneiros de Candoz,
terra que pertenceu ao concelho de Bem Viver,
extinto em 1852 e com foral de 1514...

Testes difíceis, 
ainda para mais quando se era mouro, 
se usava barbas e cabelos compridos, 
cachimbo e boina preta basca ...

Fui lá pela primeira vez no verão quente de 1975,
quando o meu país estava a arder...
Percebo agora melhor a história deste país do arco-da-velha
que nasceu entre dois vales apertados, 
o do Sousa e o do Tâmega...
Disso fala a fabulosa rota do Românico
que é obrigatório percorrer, pelo menos uma vez na vida...

Hoje o arco-da-velha ilumina-nos,
sinal de que Deus ainda não se cansou totalmente desta terra milenar.

Luís Graça

Candoz, 12 de abril de 2022, semana santa
(Poema dedicado também à minha neta Clarinha, 
que hoje faz 29 meses)

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Nota do editor:

sábado, 26 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23115: Agenda cultural (805): No âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril: lançamento de nova edição do livro "Salgueiro Maia - Um homem da liberdade", de António Sousa Duarte: Lisboa, Quartel do Carmo,1 de abril de 2022, 17h30





Aquele que na hora da vitória
Respeitou o vencido

Aquele que deu tudo e não pediu a paga

Aquele que na hora da ganância
Perdeu o apetite

Aquele que amou os outros e por isso
Não colaborou com a sua ignorância ou vício

Aquele que foi “Fiel à palavra dada à ideia tida”
Como antes dele mas também por ele
Pessoa disse.

— Sophia de Mello Breyner Andressen


Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril


Lançamento da nova edição do livro 
“Salgueiro Maia – Um Homem da Liberdade”, 
de António Sousa Duarte



No âmbito das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a Associação 25 de Abril e a Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril convidam-no(a) para o lançamento da nova edição do livro “Salgueiro Maia – Um Homem da Liberdade” de António Sousa Duarte.

Esta sessão de homenagem a Fernando Salgueiro Maia contará com a presença de Adelino Gomes, António Sousa Duarte, Carlos Matos Gomes e Maria Inácia Rezola.

Local: Quartel do Car
mo, 27, 1200-092 Lisboa


Data e hora: 1 de abril de 2022, 17h30


Solicita-se confirmação de presença até dia 30 de março de 2022 
para os seguintes contactos:

(i) Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril

Sítio: www.50anos25abril.pt
Email: geral@50anos25abril.gov.pt
Telef +351 213 217 183

(2) Comando Geral da GNR

 Largo do Carmo 27, 1200-092 Lisboa | Telef  + 351 21 321 7000

[Esta informação chegou-nos pela mão do nosso camarada e amigo Mário Vitorino Gaspar, a quem agardecemos e desejamos as melhoras]

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23113: Agenda cultural (804): Dia Mundial da Poesia: Em Volta de Herbero Helder. CCB, Belém, Lisboa, hoje, sábado, dia 26, das 15h00 às 18h00. Entrada gratuita.

Guiné 61/74 - P23113: Agenda cultural (804): Dia Mundial da Poesia: Em Volta de Herbero Helder. CCB, Belém, Lisboa, hoje, sábado, dia 26, das 15h00 às 18h00. Entrada gratuita:



Imagem: Sítio da Fundação Centro Cultural de Belém (2022), com a devida vénia


Dia Mundial da Poesia: 

Em Volta de Herberto Helder


Centro Cultural de Belém, Lisboa, sábado, dia 26 de março de 2022, 
das 15h às 18h. Entrada gratuita.


Seleção de alguns eventos (*)


15:00 – 18:00 | Feira do Livro | Receção do Centro de Congressos e Reuniões – Piso 1

Realizar-se-á na Receção do CCB uma Feira do Livro com a presença de várias livrarias e editoras. Aqui poderá encontrar aquele livro que há muito quer ler, a obra do seu poeta preferido ou as mais recentes edições do mercado.

15:00 – 18:00 | Exposição Bibliográfica | Foyer da Sala Luís Freitas Branco – 
Piso 1

Estarão em exposição algumas das primeiras edições da obra de Herberto Helder. Esta exposição bibliográfica foi concebida em parceria com a Biblioteca Nacional Portuguesa.


15:00 – 18:00 | Maratona de Leitura | Sala Fernando Pessoa – Piso 2

Leitura dos poemas vencedores do concurso Faça lá um Poema e entrega de prémios aos mesmos. Este momento será intercalado com a leitura de poemas de Herberto Helder por diferentes convidados. Nesta Maratona de Leitura terá ainda lugar o lançamento de Postais da República com os poemas vencedores. A apresentação estará a cargo da atriz Ana Sofia Paiva.

Parceria com o Plano Nacional de Leitura. (...)


15:00 – 18:00 – Exposição | Foyer da Sala Sophia de Mello Breyner Andresen – Piso 2

Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder

A obra poética e literária de Herberto Helder é o mote desta exposição de ilustração de Mariana Viana, que interpretou livremente os textos do livro Os Passos em Volta através de desenhos de figuras de animais (alguns explícitos no texto), ou antropomórficas, como se de um Bestiário se tratasse. Esta exposição é composta por formas que viajam de lugar em lugar, metamorfoseando-se ao longo de um fio condutor que se renova e que evoca um novo lugar.


15:00 – 18:00 | Diga Lá um Poema | Bengaleiro Norte – Piso 1

Espaço aberto ao público para leitura dos seus poemas em voz alta. Estas leituras são filmadas e reproduzidas no monitor que se localizará na receção do CCB. O alinhamento é feito mediante inscrição do público no local.


(...) 16:00 – 17:00 | Conversa | Sala Luís de Freitas Branco – Piso 1

Em Volta de Herberto Helder

Uma conversa informal sobre a vida e obra de Herberto Helder, com a presença de Rosa Martelo, Luís Quintais e moderação de Vasco Santos.

16:30 | Documentário | Sala Almada Negreiros – Piso 2

Meu Deus Faz Com Que Eu Seja Sempre Um Poeta Obscuro

Será exibido o documentário biográfico Meu Deus faz com que eu seja sempre um poeta obscuro, de António José de Almeida, sobre a obra de Herberto Helder (**). O documentário tem como base depoimentos de diversas personalidades, intercalados com a leitura de excertos de obras da sua autoria.

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Notas do editor:


(**) Sobre o poeta, Herberto Helder (Funchal, 1930 - Cascais, 2015) ver a entrada na Wikipedia.

Vd. também o poste de 29 de março de  2015 > Guiné 63/74 - P14416: (Ex)citações (269): O poeta Herberto Helder (1930-2015) que eu "conheci"... (António Graça de Abreu)

terça-feira, 15 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23082: Antologia (84): Poema dedicado ao Tono d'Amelita, meu companheiro de carteira no velho colégio, morto em combate em Moçambique (Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3853, Aldeia Formosa, 1971/73)


Vale de Cambra. Brasão de armas.
 Fonte: Cortesia de Heraldry of World


Poema do Alberto Bastos  ao Toino d'Amelita





1. Poema do Alberto Bastos, a um amigo e conterrâneo que morreu, em combate, em Moçambique, o Tono d'Amelita (sic), "meu companheiro de carteira no velho colégio".  Escrito na Guiné, em 22 de fevereiro de 1973.  

Fonte: Alberto Bastos:  "Alguém".  Lisboa: Chiado Editora, 2008,  pp. 50-51. Seleção e digitalização: Joaquim Pinto Carvalho.  (*) 


Segundo pesquisa feita no portal Ultramar-TerraWeb, Mortos na Guerra do Ultramar, Concelho de Vale de Cambra, o infortunado amigo e camarada do Alberto Bastos, o "Tono d' Amelita",  deverá ser o António Augusto Soares Almeida, natural de Vila Chá, terra banhada pelo rio Caima, concelho de Vale de Cambra, fur mil at inf, CCAÇ 3474 / BCAÇ 3868, morto em combate no TO de Moçambique, em 30/10/1972.

Está sepultado na sua antiga freguesia natal, Vila Chã, hoje (depois da reforma administrativa de 2013) freguesia de Vila Chã, Codal e Vila Cova de Perrinho. Com ele morreram, no guerra do ultramar, mais 14 camaradas naturais de Vale de Cambra, segundo a mesma fonte.

O Alberto Bastos, natural também  de Vale de Cambra,  foi alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73). Morreu recentemente, de doença súbita,  logo no início  do ano de 2022. (**). 

Entrou para a Tabanca Grande, a título póstumo, no dia 11 de janeiro de 2022 (***). 

Já aqui publicámos mais alguns dos teus textos poéticos (****).
 
__________
 
Notas do editor:



(***) Vd. poste de 11 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22897: Tabanca Grande (529): Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), natural de Vale Cambra, o primeiro grã-tabanqueiro do ano, o nº 856, embora infelizmente a título póstumo

(****)  Vd. postes de:

12 de janeiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22898: Antologia (81): A grande paródia da guerra... "Pessoal, bó berra, ir no guerra bó persiste?... Nega!... Cá miste!" [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]

17 de janeiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22916: Antologia (82): Mariema, mãe-mártir... [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]

Vd. também 16 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23003: Notas de leitura (1419): Prefácio do nosso camarada Adão Cruz, ex-alf mil médico, CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Caquelifá e Bigene, 1966/68) , ao livro "A Máscara (teatro)" (2015), de Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73)

quinta-feira, 3 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23046: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte VI: Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado

1. Porque alguns dos nossos leitores mais recentes não acompanharam, na altura, a série "Memórias do Chico, menino e moço" (de que se publicaram, a partir de 2011, mais de meia centena de postes), decidimos "repescar" alguns postes do Cherno Baldé, no contexto do pós-independência da Guiné-Bissau, relacionados com o seu  percurso escolar (ciclo preparatório e liceu, em Bafatá e Bissau, 1975/1982, e depois universidade, na URSS, Moldávia e Ucrânia, 1986/1990). 

 Voltará ao seu país, em 1990, com uma licenciatura em Planificação e Gestão Económica, pela Universidade de Kiev, já depois da queda do muro de Berlim e do fim da URSS.(*)

Sobre o tempo de Kiev (1986/90), só temos alguns poemas, que republicamos, juntamente com alguns comentários sobre essa época, de que ele guarda, naturalmente,  boas e más recordações,

Recorde-se que o Cherno Baldé, que vive em Bissau, é nosso colaborador permanente para as questões etno-linguísticas e, profissionalmemte, é gestor de projetos na empresa MF CAON FED, Guiné-Bissau. (Vd. aqui a sua página do Facebook). 

Segue-se então  colagem de vários comentários e excertos de postes ainda relacionados com o seu tempo passado no "império dos sovietes", inckuindo uam seleção dos seus poemas de Kiev (1986-1990).


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte VI:  Com a Ucrânia hoje a ferro e fogo, o meu coração está dilacerado


por Cherno Baldé (*)


(...) Neste preciso momento a Ucrânia está a ferro e fogo. O meu coração está dilacerado e lamento que gente boa e pacífica que aprendi a gostar e admirar, esteja a sofrer por motivos que os ultrapassam.

Choro por Ucrânia, mas compreendo a Rússia. É uma guerra entre irmãos da mesma mãe, a Kievski Rush. A Russia tem suas raízes enterradas terras ucranianas apelidada nostálgicamente de "Ukraína" a nossa terra distante, longínqua.

Não há palavras para expressar nem de justificar (...)

24 de fevereiro de 2022 às 21:32

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(...) Eu estudei na antiga URSS, sim, onde, juntamente com o leite e mel servido na cama individual, também nos serviam expressões agradáveis como " Ó macaco preto,  volta para a tua terra!".

Uma vez, em Kiev, conversando entre amigos e colegas de turma de várias nacionalidades, um Russo nos interpelou cheio de curiosidade:
- Disseram-me que vocês,  africanos,  nos vossos países, vivem em cima das árvores, mas como é que conseguem montar as camas ?

E alguém dos nossos respondeu-lhe:
-Sim,  é verdade,  e se queres saber mais digo-te que o vosso embaixador que vive lá connosco, está hospedado e dorme na árvore mais alta da nossa floresta. (...)

14 de setembro de 2010

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(...) Para aqueles que não sabem (o que é pouco provável) quero informar que, também, nós, Africanos (Pretos, se quiserem), tivemos a oportunidade de viver em terras da Europa, esta velha Europa, orgulhosa e racista, mas que também sabe ser, às vezes, acolhedora e bondosa. E também nós tivemos, temos e teremos as nossas experiências não menos dramáticas com as Marias e as Natachas.

Diz um ditado popular que "o mundo é como o rabo de uma pomba" que faz viragens permanentes. Eu nunca utilizarei o termo puta porque penso que o não foram e aí o Jorge Cabral é bem explícito. Se todos os homens fossem tão humanos como o são as mulheres (todas as mulheres), o mundo seria mais justo e a vida mais fácil de viver. (...)  

20 de julho de 2009

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(...) O meu pai era um homem muito decidido e sensato para a sua época e, ao mesmo tempo, era um homem de convicções muito fortes, sobretudo religiosas. 

Da mesma forma que nunca aceitou a ideia da chegada do homem a lua, também não aceitava a teoria da terra redonda. Não discutia isso com as outras pessoas fora do circuito restrito da família, mas não admitia que os seus filhos metessem na cabeça muitas fantasias. Uma vez, ameaçou mesmo retirar-me da escola se continuasse a falar dessas coisas anti-religiosas que nos ensinavam na escola. Isso aconteceu quando ainda estudava no ciclo preparatório e depois no Liceu de Bafatá (1975/79).

Um dia, depois do meu regresso da URSS em 1990, numa conversa em família, inadvertidamente falei de uma viagem que tinha feito às cidades históricas de Samarcanda e Bucara (Uzbequistão), no âmbito de uma excursão escolar, pensando que ele ficaria satisfeito por ter perdido o meu tempo a visitar localidades islâmicas históricas. No fim, o meu pai perguntou-me onde estavam situadas. Respondi que estas cidades eram da Ásia Central, para lá da cidade santa de Meca.

Não devia ter falado. O velho levantou-se visivelmente irritado e foi para a sua casa, sem dizer mais nada. No dia seguinte atirou-me à socapa : "Tu,  Cherno, não sei o que a tua escola te serviu, pois ainda continuas a mesma criança idiota que saiu daqui há mais de 15 anos e nem consegues entender que Meca é o fim do mundo?!... Como podes afirmar que há outro mundo para lá de Meca e que tu estiveste lá?!"

Era assim o meu pai, muito corajoso e sensato, mas completamente irascível nas suas crenças, de tal modo que não valorizava muito os nossos estudos na escola dos brancos, exceptuando, claro, a contrapartida monetária que podíamos fornecer.

Ao que parece e por aquilo que aprendi das suas relações, os brancos (portugueses e franceses) desconfiavam sempre dos fulas e da sua religião islâmica, da mesma forma que os homens grandes fulas (como bem disse o Mário Migueis) aceitavam e suportavam com dignidade o domínio dos brancos, mas sempre desconfiados da sua comida, da sua ciência e das suas reais intenções a longo prazo. (...)


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Poemas da Juventude (Kiev, 1986-1990) (seleção)

PENSAR

Acontece-me pensar…Pensar…pensar…
Como aos poetas, sonhar.

No denso sepulcro da memória
No despertar inadiável da vida
O caminho ainda longo.

Acontece-me querer voltar ao passado longínquo da origem
Sempre presente em silêncio.
No passo das minhas pegadas, mal varridas pela erosão do tempo
Medir a força das lianas, razões de tropeço na caminhada.
Acontece-me pensar, acontece-me querer voltar
Aos tempos primeiros da infância
A altura daquelas montanhas agrestes, sulcadas pela corrente de suor,
Do meu corpo na luta
Uma vista de olhos passar a Baobab que eterniza a tabanca
Berço dos meus sonhos
Sentir no corpo e na alma, a brisa que embalou a infância
A voz da floresta em pranto e o gosto amargo das raízes violadas

Lá, mais para oeste …
De El-miná ou Ouida
De Badagry ou N´goré
O caminho do mar,
Em ondas lacrimosas da viagem sem regresso

(Kiev, Dezembro de 1987)



OBSERVADOR



Observador
Espectador
Nos parques
O mundo a renascer
Em cada primavera
Nas ruelas,
Em compassos lentos
Dos pares e dos sonhos floridos

E tu desvairado, aonde vais? Ao “magazin" (1)
Não! Eu vou para Magadan (2),
Ainda antes do Buran (3),
Antes do voo e das vozes do mundo,
Que estão por nascer.

(Kiev, Abril de 1990)

Legenda do autor:

1- Magazin – Loja, mercearia de produtos de primeira necessidade
2- Magadan – Localidade Russa situada algures na Sibéria oriental
3- Buran – Vaivém Espacial Soviético inaugurado em finais da década de 80


[Seleção, fixação e revisão de texto / negritos / título e subtítulo: LG]


24 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...

23 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23018: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte II: Casar com uma tubab!?... Hééé Tchernô!!!...Tubab é uma senhora e senhora não é mulher

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P23023: Memórias do Chico no Império dos Sovietes (Cherno Baldé) - Parte III: Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


URSS > Ucrânia > Kiev > 1987 > O Cherno Baldé, à esquerda, com mais dois colegas da Guiné Equatorial

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2011). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 




Cherno Baldé, Kiev, Ucrânia, 1986


Memórias do Chico no Império dos Sovietes, 1985-1990
(Cherno Baldé) - Parte III:  Em Kichinev, Moldávia... Pôr-se em pelota, na inspeção médica perante um mulher?!... Mostrar tudo?!... Subahaanallai!...


por Cherno Baldé (*)


(x) A primeira viagem de comboio: até Kichinev, capital da Moldávia

A viagem para Kichinev [, capital da Moldávia,] foi de comboio. Depois da viagem do avião, esta era uma nova descoberta não menos interessante. Blagat... Blagat... Blagat... Este som, provocado pelos veios de um velho e lento comboio, tinha ocupado os seus ouvidos durante toda a noite, povoando o seu sono inquieto.

Viajavam dez a doze pessoas por vagão, divididos em compartimentos, com camas individuais, o que, visto com a lupa de hoje, constituía de facto um grande luxo se comparado com as condições dos outros comboios, que viria a conhecer nas terras mais a oeste, fora do território da URSS.

Tudo decorreu conforme estava previsto. Receção na estação, distribuição de residências, roupas de frio, visita médica, salas de aulas; era simplesmente impressionante a capacidade de organização das estruturas que os recebiam. Tudo estava planeado ao mínimo detalhe, uma máquina a perfeição como só o espírito europeu sabe criar. Quando chegavam num sítio já estava alguém à espera para recebê-los e conduzi-los, a seguir, para o local indicado. 

Se o comunismo era assim, então, de certeza que podiam contar com ele, dizia para com os seus botões. Viva o Lenine!... Viva a revolução comunista!...


(xi) Inspeção médica: "uma afronta à dignidade de homem africano"...

Bem, depois passou por uma pequena afronta durante a inspeção médica que teria diminuído um pouco o seu entusiasmo. Que fosse obrigado a entregar as suas fezes e urina já era um grande sacrifício e quase que um atentado à sua dignidade de homem africano, agora pediam que tirasse toda a roupa que cobria a sua nudez, assim como veio ao mundo, diante de uma mulher.

Ele ficou aterrorizado, outros gracejavam. É bom que conste, também, que só um espírito europeu, talvez comunista, era capaz de exigir uma coisa semelhante a um indígena africano que tinha passado toda a sua vida sob uma dupla educação conservadora, tradicional e muçulmana. Mostrar tudo!?... Subahaanallai!

As enfermeiras que procediam ao exame não queriam saber de tabus, ele tinha que mostrar-lhes tudo. O Chiquinho recusou e, por isso, foi acantonado ao lado, dando lugar aos outros menos envergonhados. Quando finalmente cedeu, pegaram no seu sexo, ou do que dele restava, virando e revirando-o em todos os sentidos como que para mostrar a insignificância do seu falso sentido de pudor.

Apanhado de surpresa, o desgraçado do sexo, centro nevrálgico de pudor, de timidez mas também de orgulho e da força masculina, ficou tão retraído e minúsculo ao ponto de ser ridículo. Para o Chiquinho tinha sido uma experiência decepcionante e, para aquelas curiosas senhoras de bata branca, também, mas por motivos diferentes.

Uma das enfermeiras, pegando numa ferramenta que parecia um martelo, bateu ao de leve nos seus joelhos. De seguida, pegou no seu braço esquerdo, depois o direito à procura de uma veia saliente donde poderia retirar sangue para as análises. Deu trabalho encontrar a veia e no fim, dirigindo-se ao tradutor, aconselharam o Chiquinho a pegar numa enxada e ir trabalhar a terra todos os dias a fim de desenvolver os seus músculos de bebé. Com tais características, certamente que não se enquadrava na classe dos trabalhadores, um conceito caro aos comunistas.

(xii) Quatro meses de aulas intensivas de língua russa, segundo um método tão eficiente quanto brutal... que o fez esquecer o português!

As aulas começaram de imediato. Uma primeira fase de aprendizagem da língua onde, diga-se de passagem, se utilizava um método tão eficiente quanto brutal, em salas especiais de audição linguofónicas durante horas intermináveis. Após quatro meses de aulas intensivas da língua russa, quando o Chiquinho se sentava para escrever uma carta em português já não encontrava as palavras certas nos espaços onde estavam antes.

Ele percebeu então que o método de ensino utilizado provocava este fenómeno de erosão cerebral. Percebeu também que, apesar das graves insuficiências de instrução escolar no seu país, faziam figura de avantajados diante de outros estudantes vindos de países ditos amigos da URSS, confrontados com profundas mudanças políticas, sociais e/ou de orientação ideológica como o Congo, de Marien N’gouabi, a Etiópia, de M. Hailé Marian, a Nicarágua, Laos, Camboja, entre outros. Alguns, como era o caso do meu amigo Peruano, Aníbal, não teria feito nem o ensino primário e tinha que lidar com o teorema de Pitágoras ou dissecar o capitalismo com as pinças de “O Capital”, de Karl Marx.

(xiii) Síndroma russa, provocada pela 
desoladora visão da natureza morta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar (1)

Passados alguns meses, o Chiquinho começou a sofrer de um estranho mal-estar físico, com sintomas de uma espécie de nostalgia aguda acompanhada de uma sensação de vazio profundo provocado, provavelmente, pela desoladora visão da natureza morta à sua volta, pela omnipresença do frio e pela escassez da luz solar.

Um dia, recusou-se a ir às aulas, pronto. Só queria que o deixassem dormir aconchegado no calor do quarto e dos cobertores. Impossível. A sua professora de língua russa, a meiga e simpática Victoria Aleksandrovna, veio falar com ele para dissuadi-lo. Juntamente com a professora, tinha vindo também a Vika, uma jovem moldava, sua afilhada, que ela o tinha apresentado. Parecia ter encontrado o remédio certo. A Professora, ao menos, compreendia o mal que o clima provocava nos africanos e estava habituada a resolver estas situações de crise emocional à sua maneira. As suas palavras calmas e serenas mobilizaram o Chiquinho ao ponto de fazê-lo desistir da greve.

Não obstante, a primeira vítima desta sua estranha doença seria ela, Victoria Aleksandrovna. Num dia normal de aulas de língua russa, após três dias sucessivos a falarem do mesmo assunto, o Chiquinho não tinha conseguido conter a sua irritação e tinha afirmado, em voz alta, que já estava farto das aulas que só falavam de Lenine. Lenine na Suíça!... Lenine em Petrogrado!... Lenine em Moscovo!... Poça, vida!

Para a grande surpresa de todos, que esperavam ouvir uma repreensão muito dura da parte da professora, ela simplesmente desatou a chorar, feita uma criancinha, revelando as linhas da idade que começavam a aparecer na sua linda cara de velha solteirona.

Teria ele mexido no tabu do espírito sagrado da União Soviética e Empiriocriticista?...

(xiv)  "Com que então, estava farto de Lenine!?"

O Chiquinho não sabia e, na verdade, nem queria saber. Não era aquela a manifestação do espírito comunista que esperava encontrar, depois de toda a propaganda sobre o comunismo científico e a dialética marxista que tinha lido durante anos. Era simplesmente incrível como um espírito tão crítico, tão pragmático e oportunista como Lenine teria podido parir (produzir) uma mentalidade tão seguidista e apática, um charco de água parada. Para ele já era o bastante para perder a razão.

Depois das aulas mandaram-no chamar no gabinete do Reitor para interrogatório. O que não o surpreendeu, pois já estava prevenido pelos mais velhos de que uma provocação destas podia valer a expulsão.
- Com que então, estava farto de Lenine!?...

Quiseram saber, entre outras coisas, a profissão dos seus pais. Ele disse-lhes a verdade, que a sua mãe era camponesa e seu pai comerciante. De filho de comerciante, certamente, terão deduzido que era da pequena burguesia, logo reacionário, anticomunista.

“Autant mieux” [, tanto melhor, em francês], pensava ele. Se o mandassem de volta, até agradecia, maldito clima. Desde que o inverno começara, ele não conseguia andar direito, os pés gelavam, escorregava e caía com muita frequência, não raras vezes tivera que andar de gatas para descer ou subir nas encostas, embrulhado num enorme paletó e botas de tropa que mal conseguia arrastar com os seus pequenos pés de criança. Deslizar em cima da neve era um exercício delicado para um homem dos trópicos. Nunca poderia imaginar que pudesse sentir tanta saudade dos raios do sol e do chão firme e vermelho da sua terra natal.

O reitor foi brando com o Chiquinho, quase simpático. Provavelmente, os ventos da mudança (**) já estavam a soprar. Não o mandaram embora e, ao invés, redobraram a atenção para com ele, convidando-o para excursões e visitas culturais. Foi durante esse período que o levaram ao teatro da cidade para assistir ao ballet de Lebedinoye Ozero (O lago dos cisnes), de Tchaikovsky.

Extraordinário!... Sem o saberem, tinha sido a melhor prenda que lhe poderiam oferecer. Tratava-se de uma interpretação poética e musical de envergadura universal, executada num cenário de sonho, animada com uma cativante variação de estilos e ritmos. A dança dos cisnes, a dança polaca, húngara, russa, espanhola. Tempo de valsa, allegro, allegro moderatto, allegro vivo.

Ao contrário da maioria dos seus colegas, tinha passado a melhor noite desde a sua chegada à União Soviética. Aconteceu naturalmente. Tchaikovsky constituiria assim o primeiro passo e a porta de entrada para a poesia e a música clássica russa e europeia.
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RASSIA (1)

Eu fui a Rassia
Para ler poesia,
Cheguei no Outono,
O maldito nevoeiro
Que mudou o sentimento;
Acordei no inverno
Quando a terra,
A Ukraina inteira,
Não era beleza para sedução,

O mar de lágrimas, eu vi,
Deste povo que nunca chorou,
As vítimas isoladas
Porque justamente vitimadas,
O regresso doloroso, eu vi,
Desta gente que nunca partiu.

Eu fui a Rassia
Para ler poesia
Adorei Ecenin e Tsvetaeva
Pushkine e Akmatova
Em toda a mística e gratidão,
Em toda a dor e solidão,

Eu fui a Rassia
Onde a beleza de forma radiante
Acompanha a rudeza de gente arrogante
Ha...! Poltava!...
Ha...! Smolensk!...
Ha...! Tchornobyl!...
E as vossas lavras?
E as vossas lágrimas?
E Kaniev Tcherkassy?
E Taras Sevtchenko?

“Dumi moi...”
“Dumi moi...”


(Viagem pelo Dnepr/Kiev-Kaniev, Abril de 1989)
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Notas do autor:

(1) Rassia=Rússia; Ukraina=Ucrània;

Ecenin+Tsvetaeva+Pushkine+Akmatova=Poetas Russos do virar do séc.XIX/XX;

Poltava+Smolensk+Tchornobyl=Regiões e localidades Russas e Ucranianas, teatros de batalhas sangrentas e de tragédias humanas;

Tcherkassy+Kaniev=Região e localidade histórica e cultural ucraniana ligada ao maior poeta ucraniano de todos os tempos, Taras Sevtchenko [1813-1861]

“Dumi moi...”= Pensamentos meus...= expressao poética de Sevtchenko num poema da sua coletânea Kobazar, o Bardo.


[Fixação / revisão de texto / negritos / título e subtítulos: LG]

(Continua)
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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

(**) 'Ventos de mudança' que se traduziam nas célebres expressões russas Glasnost (гла́сность, transparência) e Perestroika (Перестройка, reconstrução, reestruturação) introduzidas no vocabulário político dos russos, em 1985, pelo governo de Mikhail Gorbachev, num processo de reforma que conduziria em 1989 ao fim da guerra fria e ao desmantelamento da URSS.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22916: Antologia (82): Mariema, mãe-mártir... [Poema de Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73), poeta, dramaturgo, encenador e ator, natural de Vale de Cambra]


Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999. Capa de Joana Rodrigues.


Dedicatória do autor: "Ao meu 'irmão' Joaquim Pinto de Carvalho com amizade. (...)  99/11/17"


Dedicatória do autor no livro de teatro "A Máscara": "Ao meu velho camarada de armas, e meu atual e grande amigo,  Joaquim A. Pinto de Carvalho que muito, muito, me tem incentivado em tudo, mormente nas 'coisas' do teatro. Agradecido, o autor  (...)  15/11/2015"

Fotos (e legenda): © Joaquim Pinto Carvalho (2022). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Mais um  tocante poema do Alberto Bastos (1948-2022), ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3852, Aldeia Formosa, 1971/73, poeta e homem de teatro (dramaturgo, encenador e ator), natural de Vale de Cambra. 

Entrou para a Tabanca Grande a título póstumo (*). É o único representante da CCAÇ 3399.










Fonte: Excerto de Alberto Bastos - “Bailam Flores: poemas”. Vale de Cambra: Câmara Municipal de Vale de Cambra, 1999, il Honório Rodrigues e Joana Rodrigues, pp. 127/  128.

Seleção e digitalização: Joaquim Pinto Carvalho. (**)
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Notas do editor: