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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Guiné 63/74 - P14225 Agenda cultural (378): De 3 a 6 de fevereiro, a televisão pública (RTP2) evoca o início, há 54 anos, da guerra colonial: filmes, documentários, debates

1. De 3 a 6 de fevereiro, a nossa televisão púlica, através da RTP2 assinala o início da guerra colonial  (1961/74) através de documentários, filmes e debates. Embora possa não ser ainda consensual, este período da nossa história vai de 4 de Fevereiro de 1961 (assalto a prisões de Luanda) a 25 de abril de 1974 (a chamada revolução dos cravos, em Portugal).


RTP2 > 3ª feira,  3 de fevereiro de 2015,   23h34 A>  QUEM VAI À GUERRA [vd. aqui trailer]


A enfermeira paraquedista e nossa grã-tabanqueira
Rosa Serra, uma das participantes
do filme de Marta Pessoa (realizadora, ela própria filha
de militar que esteve na Guiné)

Quem Vai à Guerra é um filme de guerra de uma geração, contada por quem ficou à espera...

Entre 1961 e 1974, milhares de homens foram mobilizados e enviados para Angola, Moçambique e Guiné-Bissau para combater numa longa e mal assumida Guerra Colonial. Passados 50 anos desde o seu início a guerra é, ainda hoje, um assunto delicado e hermético, apoiado por um discurso exclusivamente masculino, como se a guerra só aos ex-combatentes pertencesse e só a eles afetasse. No entanto, quando um país está em guerra, será que fica alguém de fora?

Quem Vai à Guerra é um filme de guerra de uma geração, contada por quem ficou à espera, por quem quis voluntariamente ir ao lado e por quem foi socorrer os soldados às frentes de batalha. Um discurso feminino sobre a guerra.Com: Ana Maria Gomes, Anabela Oliveira, Aura Teles, Beatriz Neto, Clementina Rebanda, Conceição Cristino, Conceição Silva, Cristina Pinto, Ercília Pedro, Fernanda Cota, Giselda Pessoa, Isilda Alves, Júlia Lemos, Lucília Costa, Manuela Castelo, Manuela Mendes, Margarida Simão, Maria Alice Carneiro, Maria Arminda Santos, Maria Augusta Filipe, Maria de Lourdes Costa, Maria Laura Silva, Maria Odete Barata, Maria Rosa Redondo, Natércia Neves, Rosa Serra


Título Original:Quem vai à Guerra
Realização: Marta Pessoa
Produção: REAL FICÇÃO
Ano:2009
Duração:123 minutos

RTP2 > 4ª feira, dia 4 de fevereiro de 2015, às 23h30 >  ANDAR RÁPIDO E EM FORÇA (Série documental “A Guerra”)
[Disponível aqui, na íntegra, no portal "A Guerra Colonial", parceria da RTP e da A25A]

Este episódio relata o dia 4 de fevereiro de 1961. Antes dos ataques da UPA, em Março, já o pânico dominava Luanda desde 4 de Fevereiro, quando centenas de angolanos assaltaram as prisões da cidade. A resposta portuguesa, civil e militar, leva o terror aos muceques. E a violência sem limites propaga-se a todos os grupos sociais, quando o 15 de Março lança o pavor em todo o norte. Angola reclama por apoio militar, mas Salazar só mandará “andar rápido e em força”, depois de afastar Botelho Moniz, o general que, entretanto, tentara depô-lo.


RTP2 > 5ª feira, dia 5 de fevereiro de 2015, às 23h30 > O HERÓI [vd. aqui trailer]

Luanda é uma cidade assaltada por milhares de pessoas, à procura de uma só coisa: sobreviver

Vitório regressa da guerra. Uma guerra que durou quase três décadas, na qual entrou forçado, aos 15 anos, como soldado raso, pau para toda a obra. Vitório matou gente, viu os amigos morrerem, passou fome e antes de ser desmobilizado, pisou uma mina e perdeu uma perna. 

Após uma lenta recuperação no hospital, Vitório como milhares de angolanos, tenta a sua sorte nas ruas de Luanda.

O seu principal intento: sobreviver.

Título Original: O Herói
Realização: Zézé Gamboa
Produção: Paula Ribas [co-produção: França, Angola, Portugal]
Autoria: Carla Batista
Música: David Links
Ano: 2002
Duração: 97 m


RTP2 > 6ª feira, dia 6 de fevereiro de 2015 > 23h02 > DESCOLONIZAÇÃO - 40 ANOS


 Um debate moderado por Luís Marinho sobre a descolonização, com a presença dw:

Prof. Jaime Nogueira Pinto | Embaixador de Angola - Dr. Luís de Almeida | Embaixador Francisco Seixas da Costa.


RTP2 > 6ª feira, dia 6 de fevereiro de 2015 > 23h68 >   A COSTA DOS MURMÚRIOS [vbd. aqui trailer]

Uma visão feminina sobre a Guerra Colonial

"Sim, é verdade, nesse tempo chamavam-me assim... Nesse tempo Evita era eu..."
Evita recorda e corrige uma história que já lhe pertenceu.


No final dos anos 60, Evita chega a Moçambique para casar com Luís, um estudante de matemática que ali cumpre o serviço militar. Nos dias que se seguem, Evita rapidamente se apercebe que Luís já não é o mesmo e que, perturbado pela guerra, se transformou num triste imitador do seu capitão, Forza Leal.

Os homens partem para uma grande operação militar no norte. Evita fica sozinha e no desespero de tentar compreender o que modificou Luís, procura a companhia de Helena, a mulher de Forza Leal. Helena, submissa e humilhada, é prisioneira na sua casa onde cumpre uma promessa. É ela que vai mostrar a Evita o lado mais negro de Luís e a tenta atrair numa relação ambígua de destruição e morte.

Perdida num mundo que não é o seu, Evita cai numa teia de violência mesquinha, sem glória e sem honra. A violência de um tempo colonial à beira do fim. Um tempo de guerra, de perca e de culpa.
Trata-se de uma visão feminina sobre a Guerra Colonial, que assinalou a estreia da realizadora Margarida Cardoso no domínio da ficção cinematográfica e tem integrado importantes festivais de cinema, entre os quais se destacam a selecção para o Festival de Veneza 2004, na secção Giornate degli Autori, a participação no Festival de Manheim, durante o qual foi distinguido com o prémio especial do júri internacional e as mais recentes participações no Festival de Cinema Latino, em Chicago e no CINEPORT 2005.

"A Costa dos Murmúrios" é a adaptação livre do romance da escritora portuguesa Lídia Jorge.
"A Costa dos Murmúrios" foi distinguido com o Prémio Revelação, na 7º edição do Festival de Cinema Europeu, Cinessonne 2005


Ficha técnica:

Título Original: A Costa dos Murmúrios
Com: Beatriz Batarda, Carla Bolito, Monica Calle, Sandra Faleiro, Custódia Galego, Adriano Luz
Realização: Margarida Cardoso
Produção: Maria João Mayer
Autoria: Cedric Basso, Margarida Cardoso
Música: Bernardo Sassetti
Ano:2004
Duração:115 minutos

 RTP2 > 4ª feira,dia 11 de fevereiro de 2014,  às 00h15 >  GUERRA OU PAZ [vd. aqui trailer]

Uma outra face da guerra e a sua influência na sociedade atual. Entre 1961 e 1974, 100.000  [?] [, é uma grosseira gralha da produção!, foram mais de 1 milhão!] jovens portugueses  partiram para a guerra nas ex-colónias . No mesmo período, outros 100.000, saíram de Portugal para não fazer essa mesma guerra. Em relação aos que fizeram a guerra já muito foi dito, escrito, filmado. Em relação aos outros, não existe nada, é uma espécie de assunto tabu na nossa sociedade. Que papel tiveram esses homens que "fugiram à guerra" na construção do país que somos hoje? Que percursos fizeram? De que forma resistiram?


Ficha técnica:

Título Original: Guerra ou Paz
Com: António Setas; Arlindo Barbeitos; Cláudio Torres; João Freire; José Mena Abrantes; Luis Cilia; Manuel dos Santos Lima; Manuela Torres; Rui Simões
Realização: Rui Simões
Produção:Real Ficção - ICA/MC/RTP
Ano: 2012
Duração: 77 minutos

________________

Nota do editor:

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > Junho de 1969 > O fur mil armas pes inf Luís Manuel da Graça Henriques, CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Fotos e texto: © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados.


Luís (*):

Eu tinha nascido no ano zero. 1945.
Lembro-me de teres escrito isso,
muitos anos depois, 
no catálogo da minha primeira exposição de pintura no SNI... 
Lembras-te, em 1965 ?!... 
Ainda pensámos em dar o salto até Paris, 
éramos vagamente existencialistas, 
anticolonialistas 
e anti-imperialistas, 
eu sonhava com Montmarte,
a boémia
e as copines das belas artes
(o meu lado mulherengo!),
enquanto tu devoravas o Camus e o Sartre!...
Tinhas a mania da filosofia e eu da pintura...
Não conseguimos convencer o nosso gestor de conta 
a financiar este inconsistente projecto de aventura.
Tu eras mais politizado 
e, sobretudo, mais realista do que eu:
– E os nossos pais ?
E a PIDE (, mais tarde DGS) à perna ?
E a Guardia Civil antes de chegares aos Pirinéus?
E os dez contos de réis para dares ao passador ?
E vais fazer o quê, em Paris ?
Trabalhar como maçon ?
E dormir no bidonville ?
E comer baguetes com marmelada ?

1945… 
Ano zero da idade atómica, 
escreveste tu no catálogo do SNI.
Hiroshima. 
O cogumelo. 
O horror. 
Mas também o fim da guerra. 
Libération!, proclamavam, eufóricos,  os franceses. 
O fim do pesadelo da ocupação nazi. 
O direito à esperança,
em toda a parte, incluindo a nossa terra.
O recomeço da humanidade… 
As palavras continuam a ser tuas,
que sempre tiveste muito mais jeito para a escrita do que eu,
e vinham no meu catálogo 
que até estava bonito,
não estava ?! ... 

Ah!, 1945, que raio de ano para se nascer, 
o fim de uma época, o início de outra… 
Que ilusão, meu amigo, 
tu que me chamavas o Renoir de Montemuro… 
só por que eu andava no 1º ano das Belas Artes
e fazia umas coisas démodées,
vagamente impressionistas,
já a caminho do abstracionismo... 
Enfim, aprendiz de Renoir, 
talvez imitador da Vieira da Silva,
de que só conhecia umas reproduções de má qualidade.
Ainda ganhei uns tostões com serigrafias,
havia gentinha com dinheiro fresco
que comprava tudo...

Na minha cédula pessoal, 
um nota a lápis já meio sumida,
letra talvez de regedor, de merceeiro, de padre 
ou de conservador do registo civil...
Qualquer coisa como 
mais uma boca com direito a senha de racionamento. 
Milho, açúcar, farinha, azeite… 
Havia racionamento de géneros por causa da guerra, 
a II Guerra Mundial. 
Lembras-te ? 
Talvez não,
nasceste depois, já em 47,
na Lourinhã (, se bem me lembro,)
já não apanhaste esses tempos que foram duros 
para os nossos pais e irmãos mais velhos.

Nesse mesmo ano e mês em que nasci, 
acabava de regressar da Índia 
(da Índia portuguesa, como então se dizia, 
englobando os territórios de Goa, Damão e Diu) 
o filho do francês
o cabo chefe da aldeia 
e um dos poucos que sabia ler, escrever e contar. 
Tinha uma pensão do ministério da guerra,
fora gaseado na Flandres, 
regressara tuberculoso e herói de La Lys. 
Admirava o Pétain, o Franco e o Salazar. 
Vociferava contra  a malta do reviralho,
os que eram contra a situação, como então se dizia. 

Era meu padrinho.
Por favores que lhe deviam 
(e deferências que lhe prestavam) 
os meus pais, 
nunca soube quais, 
nem nunca quis saber. 
Quando comecei a pensar pela minha própria cabeça, 
passei a detestar as relações de clientelismo e dependência 
que vigoravam na minha aldeia. 
Na minha aldeia da Serra de Montemuro, 
uma aldeia de pastores 
que não era muito diferente de tantas tabancas fulas 
que depois irei conhecer na Guiné, no Gabu… 
Ainda hás-de visitar a minha aldeia, 
num próximo verão em que fores lá cima ao Norte… 
Em agosto, no teu querido mês de agosto,
como tu lhe chamas,
num escrito, algures, que eu li no teu blogue…
Mas já nada tem a ver 
com a aldeida da minha infância
nem com as invernias agrestes daquele tempo.

Havia sempre festa na aldeia 
quando um filho regressava das colónias, 
mais tarde, do Ultramar. 
No nosso tempo, Ultramar, como bem te lembras. 
Quando puto, imagina, 
ainda sonhei ser missionário, 
e ajudar a converter os pretinhos 
lá nas missões de Além-Mar. 
Problemas de pulmões impediram-me de seguir 
essa vocação precoce...
Estás-me a imaginar de sotaina branca
e longas barbas pretas,
não estás ?! 
E acabar, santo e mártir,
frito no caldeirão de uma tribo de canibais!... 
Ah! Como era rica e delirante a nossa imaginação de putos!…
Não sei quem me metei essa ideia maluca na cabeça,
por certo o padre da freguesia, a catequista ou a professora...
Mas a serra de Montemuro,
Resende, Cinfães, Arouca, Castro Daire, Lamego,
deu muita gente para as colónias 
e depois para a guerra,
mas também para a emigração.

Em 45,  os tempos ainda eram bem duros, 
escondia-se, dos fiscais do Governo, 
na serra, nas minas,
o milho, os cabritos e os anhos,
como sempre se escondera
de todos os invasores e usurpadores. 
Isso contavam os meus pais. 
Mesmo assim fazia-se festa rija. 
O foguetório não era como hoje, 
nesse tempo era um luxo. 
Lançavam-se uns petardos, 
de pólvora seca,
não havia dinheiro para mais nada. 
Só no São João,
era a altura em que se fazia algum dinheirito. 
Os cabritos e os anhos do São João
ajudavam a compor o tísico orçamento das gentes da minha aldeia. 
Iam para o Porto, de comboio, pela linha do Douro, 
ou até nos barcos rabelos, 
embarcados no ancoradouro de Porto Antigo,
à boleia de algum patrão, amigo, compadre ou conhecido.
Ainda não havia as barragens, 
e o Douro era belo, puro, duro e selvagem… 
Hoje está completamente amansado.

O francês, meu padrinho, emprestava dinheiros a juros. 
Era o banqueiro do povo, diríamos hoje. 
Negociante de gado ou, melhor, intermediário.
Antes disso, ganhara muito dinheiro
no garimpo e no contrabando do volfrâmio,
com um sócio de Moncorvo,
seu antigo camarada de armas,
também "francês". 
Era, além disso, o dono da única mercearia da aldeia, 
com um anexo, misto de café e tasco, 
onde se podia ouvir a Emissora Nacional, 
através do único rádio existente ali e nas redondezas… 
Enfim, uma espécie de rádio, uma galera… 
Ele era engenhocas. um homem de vida, 
e, sobretudo, dava-se bem com gente graúda: 
por exemplo, um tal major de Porto Antigo, 
que, segundo se dizia, descendia do Serpa Pinto 
e estava bem colocado nos meios políticos e militares da época. 
A esposa desse tal major mandava cartas ao Salazar, 
contava a minha mãe, sempre atenta a 
(mas não menos temerosa de) 
os fios com que se costurava o poder. 
Nem por isso o meu padrinho metera uma cunha 
para livrar o filho da tropa,
durante a II Guerra Mundial. 
O rapaz esteve em Goa, como expedicionário,
com muito orgulho do pai 
e maior mágoa da mãe.

Já doente, com setenta e muitos anos, 
o meu padrinho soube da minha partida para África,
em 1968,
depois de eu ter chumbado em Belas Artes.
Eu nunca lhe pedira nada,
e muito menos agora 
lhe iria pedir que me safasse de ir parar à Guiné. 
Nem ele era homem
para aceitar um pedido desses, 
mais do que humilhante, 
inconcebível, para ambos.

Proibi, inclusive, os meus pais de o fazerem por mim. 
Tinha a mania dos princípios, dos valores, da palavra dada,
e da coerência, 
coisas que hoje não vejo ser valorizadas 
pelos mais novos, 
por exemplo os meus filhos e sobrinhos.

Quando voltei, deficiente, no verão de 1970, 
já ele tinha acabado de morrer. 
Ele e o Salazar,
que eu penso que ele nunca terá conhecido pessoalmente,
mas de quem era um admirador completamente acrítico.
O seu maior desgosto na vida 
terá sido um dos netos 
que devia seguir as peugadas do pai, 
advogado no Porto, bem de vida. 
Numas férias de verão, em meados de 60,
o neto ficou em Londres, a lavar pratos,  
e em setembro estava na Suécia. 
Foi dado como refratário ou desertor, 
não te sei dizer ao certo, 
que eu de RDM fiquei farto até aos cabelos. 
Como estava a estudar na Faculdade de Direito,
em Coimbra, 
beneficiava do adiamento da data de incorporação,
tal como eu, de resto.
Eu sei que nessa época ninguém escapava à guerra, 
até filho de general era mobilizado, diziam. 
Nunca conheci nenhum, 
nem general nem filho,
a não ser o Schulz e o Spínola,
mas não sei se esses tinham filhos em idade de ir para a tropa.
Imagino que, na pior das hipóteses, 
ficariam na guerra do ar condicionado: 
em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques…

O avô, pelo menos publicamente, 
viu na traição do neto uma desonra para a família,
e para a terra,
que ele,  abusivamente, considerava
uma extensão da família. 
Coimbra, a república dos estudantes, 
dera-lhe a volta à cabeça, lamentava-se. 
Para mais era o seu neto querido, 
o mais inteligente, 
o mais parecido com ele.
Rédea comprida e chicote curto, eis a desgraça
concluía o meu padrinho, 
quando o fui visitar, nas minhas férias em julho de 1969. 
Sua bênção, padrinho!
foram as primeiras palavras que lhe disse, 
desde há anos… 
– Já o pai não prestava, 
era um fraco
arrematava ele, entre dois ataques de tosse. 
As melhoras, padrinho! – 
foram as últimas palavras que lhe dirigi… 
Julgo que eram sinceras, 
que nada tinham de cínico. 
Impressionou-me a sua decadência, 
a sua descida do pedestal, 
desgastado pela doença,
acabrunhado pelos acontecimentos dos últimos tempos… 
A família a desmoronar-se,
o Salazar a morrer,
a Pátria a esvanecer,
a aldeia a minguar com a emigração… 
Não podia ouvir falar do Marcelo Caetano, 
que era para ele o coveiro do Estado Novo.
Ele próprio morreria, na aldeia, um ano depois,
respeitado mas não amado. 
Durante décadas fora pai, padrinho e patrão, 
um verdadeiro capo,  cabo chefe,
de uma aldeia serrana do nosso velho Portugal…
Era um régulo, se quiseres...

Gustavo, o neto do meu padrinho, 
ainda me escrevera um dia para o meu SPM,
quando eu estava em Nova Lamego.
Éramos amigos, 
ou melhor, mais conterrâneos do que amigos, 
tínhamos brincado juntos, quando garotos, 
nas férias de verão. 
Havia aquela cumplicidade de putos,
pesem embora as diferenças sociais.
Estudara em colégio particular, 
vivia no Porto, na Foz, em zona fina, 
passava esporadicamente férias na aldeia. 
Agora, em Estocolmo, na Suécia, 
militava num grupúsculo marxista-leninista qualquer 
e angariava dinheiro para o PAIGC. 
Dinheiro que tanto servia para comprar livros e medicamentos 
como armas e munições, questionava-me eu. 
Irritou-me a sua missiva, 
cheia de metáforas, 
clichés, 
prosápia,
slogans,
frases pomposas, 
retiradas do livrinho vermelho do camarada Mao 
(Devo dizer-te que sempre fui mais sinófobo do que sinófilo)…

As minhas próprias simpatias iniciais pelo PAIGC,
algo quixotescas,
guevaristas, 
desvaneceram-se 
com os imperativos da camaradagem na caserna 
e a prova de fogo na  frente de batalha. 
Não se podia objetivamente estar do lado de cá, 
fardado de camuflado,
e equipado com a G3,
a comandar 30 homens,
e ser-se um simpatizante, 
vagamente romântico, 
daqueles que nos combatiam,
de Kalash na mão
(e que nós combatíamos, objetivamente falando)… 
Além disso, chocavam-me os métodos de terror
usados pelo PAIGC 
contra os fulas, na zona leste.
Fiz alguns amigos guineenses,
quando passei pela região do Gabu,
em tabancas onde estive destacado
(Não me perguntes quais,
que os nomes varreram-se-me da memória)...

Nunca lhe respondi. 
Achava-o um puto mimado, burguês e provocador. 
Não me admirei de o vir a encontrar,
depois do 25 de Abril, 
num dos partidos do poder. 
Andará hoje  (ou andou) por Bruxelas,
segundo me disseram. 
Tinha-se casado com uma sueca, 
mas já estava divorciado nos finais da década de 1970. 
Secretamente, invejava-lhe a sorte, 
ele ali no bem bom da Suécia 
e das suecas louras, de olhos azuis,
que faziam parte do nosso imaginário de machos latinos… 
e eu a gramar a pastilha
de uma comissão de serviço militar na Guiné. 
Achei que o mundo não era justo,
mas mesmo assim não me podia queixar,
estava vivo,
e os primeiros tempos, 
passados entre Bafatá e Nova Lamego,
até nem foram maus de todo. 
Ainda fiz o gosto ao dedo 
e pintei alguns quadros 
que até tiveram um ou outro comprador. 
Outros ofereci, 
a um família de comerciantes
cuja casa costumava frequentar,
e que tinha uma filha que ainda andei a catrapiscar. 
Mas depressa percebi que esgotara o meu filão artístico. 
Afinal o teu Renoir nunca passara da cepa torta,
uma deceção...
Nunca me perdoei, de resto, ter chumbado nas Belas Artes
e de ter sido chamado para tropa...

Passei por uma crise existencial,
ou lá o que queiras chamar, não sou psicólogo,
ainda tive, uma vez, 
uma única vez, 
depois de ter despejado uma garrafa de uísque no bucho, 
a pistola Walther apontada ao céu da boca.
Senti a atração da morte, 
a vertigem do nada,
a comiseração da autodestruição,
a autopiedade...
Mas, mesmo anestesiado, 
era demasiado cobardolas para resolver, 
com um tiro mortal, 
as minhas contradições, 
pequeno-burguesas, dirias tu em 1965,
agravadas por uma idiota dor de corno.

A Flora, 
que ainda tu ainda chegaste a conhecer, 
no tempo da minha/nossa famosa exposição do SNI, 
a bela menina-família do Funchal, 
que estava a estudar serviço social, 
ali no Campo de Santana, em Lisboa, 
tinha-me trocado...
por um javardo de um herdeiro de uma fortuna venezuelana… 
Ainda trabalhara uns tempos,
na Misericórdia de Lisboa, 
num dos projectos de realojamento 
de população de um bairro de lata. 
Não esqueço a última carta que ela me mandou, 
de despedida. 
Era um encanto de miúda, 
delicadíssima, 
linda de morrer,
com pele de veludo e blusinhas de renda,
mas com pouca margem de decisão 
em relação à sua vida pessoal.

O clã é sempre quem mais ordena. 
O pai, tanto quanto percebi, 
era um homem do regime, 
da média burguesia funchalense, 
mas com problemas financeiros, 
por negócios mal sucedidos, 
na área do import-export, 
bananas, frutas tropicais, flores, ou coisa do género. 
Família numerosa, católica, um bando de filhos. 
Nunca iria dar certo o meu casamento com a Flora, 
nunca pensara, de resto, em pedir-lhe a mão, 
muito menos depois de conhecer o inferno na terra 
que foi a Guiné. 
Não me lembro de alguma vez lhe ter pedido a mão, 
achava-me no direito de a ter como namorada 
e madrinha de guerra e confidente...
Fui surpreendido 
quando um dos meus amigos do Funchal 
me veio lembrar que seria bom decidir-me, 
porque havia mais pretendentes na fila...
Foi um choque,
não estava preparado para tomar nenhuma decisão, 
muito menos para decidir 
quem deveria ser a mãe dos meus filhos. 
Estava na Guiné,
estava na guerra,
a milhares quilómetros da minha terra,
sem saber o que fazer ao certo da minha vida… 
sem saber sequer se iria chegar à meta, 
que era cumprir a minha pena, de 21 meses, 
de “perigos e guerras esforçados, 
mais do que prometia a força humana”, 
a pena a que fora condenado 
sem ter cometido nenhum crime… 
a não ser o de ter nascido em 1945, em Montemuro...
No mínimo, queria chegar à meta,
inteiro, de cabeça, tronco e membros.
Ainda tentei telefonar-lhe,
dos correios de Nova Lamego,
horas a fio à espera por um ligação para Lisboa... 
Em vão. 
A chamada caiu, 
nunca mais tive a conversa que gostaria de ter tido 
com a minha noiva,
que afinal nunca o fora. 
Acabei, já em Lisboa, bancário,
por casar com uma galega de Orense, 
que nunca chegarás a conhecer, 
pela simples razão de que já fomos,  
cada um de nós,
à sua vida.
É apenas a mãe dos meus filhos.

Depois, meu amigo, 
veio o rol de desgraças que me aconteceram:
a descida aos infernos,
a cafrealização, à maneira do Rimbaud, 
a porrada do segundo comandante no Gabu,
a ida para o sul, 
de casttigo, em rendição individual,
a mina anticarro 
que me mandou, mais de um ano e tal, 
para o estaleiro,
com passagem pela Estrela, Alcoitão, Hamburgo.
Poupo-te os pormenores,
um dia contar-tos-ei,
se tiveres tempo e pachorra,
eu próprio só agora ando a desenterrar esses esqueletos
guardados no armário da minha memória…

Tentei esquecer a Guiné durante décadas,
(o que é difícil quando se tem uma prótese...)
até ao dia em que, 
não sei porquê, 
por mero acaso,
vi o teu nome na Net 
a tua cara, 
os teus óculos, 
vi o teu nome associado a Bambadinca, 
um dos poucos sítios,
de passagen obrigatória para malta do leste,
de que guardava algumas, poucas, boas memórias…
Reconheci-te, numa foto antiga,
sem barbas, 
em tronco nu,
de óculos esfumados,
a G3 ao ombro,
em pose turística...

Em suma, desencontrámo-nos na Guiné. 
Eu nem sequer sabia que tu também lá tinhas estado,
podíamos ter ido a sorte de dar de caras um com o outro,
em Bafatá,
onde devemos ter estado alguma vez,
no mesmo dia e hora,
embora em sítios diferentes.
Mas achei piada ao teu jogo de palavras,
no mail em que me respondeste ao meu olá:
“o Mundo é Pequeno 
e a nossa Tabanca … é Grande”.

Um dia prometo telefonar-te
para marcarmos um encontro
e matar saudades.
Preciso de ganhar coragem.
Confesso que tenho medo de revisitar o passado.
E por agora ando a recuperar o tempo perdido,
depois de uma vida de idiota atrás de um balcão de um banco.
Até lá, um alfabravo,
como vocês dizem,  
do tamanho do nosso Rio Geba.
Parabéns pelo teu blogue
de que sou apenas um fortuito visitante.

Assina este relambório
o teu falhado amigo pintor, 
e, pior do que isso,
frustrado companheiro da viagem a salto
até Paris, 
viagem que nunca passou de um devaneio
de umas tantas tardes de verão 
em que estivemos, juntos, em 1965, 
no SNI, o Secretariado Nacional de Informação,
ali no Palácio Foz,
a preparar uma exposição que foi a minha vernissage,
entre copos de ginjinha nos Restauradores. 

Teu F...
o Renoir de Montemuro.

PS – Nunca mais voltei aos Restauradores 
para beber uma ginjinha… 
E perdi-te o rasto depois que fomos cada um para seu lado.. 
Mas pago-te uma ginjinha, com todo o gosto,
quando voltar a Lisboa.
Afinal fiquei com uma boa pensão de DFA,
a par da  reforma do banco.

Nota de L.G.:

Ainda estou para beber a tal ginjinha,
prometida pelo meu amigo F...
Nunca mais deu sinal de vida, 
depois que falámos longamente ao telefone,
há uns anos atrás.
Deve ter mudado de mail e de telemóvel.
Sei que adora(va) viajar.
E que tem(tinha) um filho, 
casado, arquiteto, 
a viver nos arredores de Paris. (**)

Adaptação livre, fixação e revisão de texto: LG


______________

Notas do editor


(*) Último poste da série > 26 de setembro de  2014 > Guiné 63774 - P13654: Manuscritos(s) (Luís Graça) (39):Portugueses pocos, pero locos... Ou como vemos (e somos vistos por) os outros...O que fazer com tantos clichés, estereótipos e preconceitos idiotas ? E não se pode exterminá-los ?

(**) Vd. também os postes já publicados da série "Selfies / autorretratos":

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13634: Selfies / autorretratos (1): por que é que fomos à guerra... (Vasco Pires / Luís Graça / Francisco Baptista / José Manuel Matos Dinis)

22 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13638: Selfies / autorretratos (2): filho único, com pai emigrado no Canadá, podia também ter saído do país, aos 17 anos... Passei pela universidade de Coimbra e lutas académicas, tendo decidido participar na guerra colonial, contrariado e sabendo ao que ia (Manuel Reis, ex-alf mil cav, CCAV 8350, Guileje, 1972/74)

30 de setembro de 2014 >Guiné 63/74 - P13669: Selfies / autorretratos (3): Em 1966 o meu pai preparou tudo para que eu fosse a “salto”, seguindo assim o trilho de milhares de portugueses (Juvenal Amado)

domingo, 26 de janeiro de 2014

Guiné 63/74 - P12636: Em busca de... (235): Nelson Silva, natural de Oliveira do Hospital, o qual terá pertencido a uma Companhia de Comandos, e que terá desertado (Rui Poeira)... Resposta do nosso colaborador José Martins

1. Mensagem de nosso leitor Rui Poeira, com data de 23 do corrente:

Caro Senhor,

Somente agora descobri o vosso blog, precisamente por tentar encontrar o rasto de um familiar desaparecido.

Na verdade, tenho um primo, de seu nome Nelson Silva, natural de Oliveira do Hospital, o qual, segundo o pouco que sei, terá pertencido a uma Companhia de Comandos que desertou na Guiné.

Como sou mais novo que ele, somente me recordo de ouvir dizer que o mesmo se tinha tornado mercenário, que tinha casado com uma italiana,  e que residia na Rodésia, mas que certo dia teve que fugir...
Se souber algo deste meu familiar, se o conheceu, ou mesmo alguns pormenores sobre as eventuais motivações da dita deserção,  agradeço, desde já, que me faça chegar alguma ínformação.

Com os melhores cumprimentos, Rui Poeira

2. Pedido de informação, com data de 23 do corrente,  ao nosso colaborador José Martins:

(i) Zé: Tens alguma ideia ? Haverá alguma lista de desertores ?

Já tenho encontrado alguns (desertores e prisioneiros) no Arquivo Amílcar Cabral > vd. Casa Comum, site da Fundação Mário Soares. Estamos autorizados a reproduzir fotos e outros documentos mas em formato reduzido... Os documentos,  transcrevo-os...

Queres responder ao leitor, em nosso nome ? Um abraço. Luis

(ii) Zé: Tu estás em boas condições de fazeres trabalhos nesta área. És um camarada consensual... Sabes que o assunto é fraturante... Vejam-se as polémicas que já deu... no blogue. Mas faltam-nos nomes, números e até histórias, porque não? Se não formos nós, outros fá-lo-ão por nós... E nós temos mais legitimidade para falar dos desertores (não dos refractários)... Os desertores foram nossos camaradas, os outros, os refratários, não...

Um abraço. LG

3. Resposta, com data de 24 do corrente,  do José Martins [, foto atual, à esquerda,] ao nosso leitor Rui Poeira:

Caro Rui Poeira:

Acusamos a recepção do e-mail que enviou a Luís Graça e Camaradas da Guiné e coube-me a mim, na qualidade de colaborador, tentar dar alguma pista sobre o assunto que nos coloca.

Desde o inicio da II Série deste blogue, em junho de 2006, que o tema DESERÇÃO, não sendo tabu, nunca foi levantado para discussão. Entendemos que é um assunto do foro íntimo de cada um e que  foram várias as motivações que originaram tal situação.

Também não conhecemos, ou pelo menos algum de nós partilhou tal informação, da existência de estatísticas sobre refractários ou desertores, termos utilizados para referir quem sai do âmbito da organização [militar], apesar de terem significados diferentes, consoante a altura em que acontece.

A única estatística conhecida, e que por mim foi organizada a partir de diversas fontes, refere-se a quem não se apresentou à inspecção (refractários), que não ultrapassou os 20% dos mancebos recenseados. [Pode ser vista em  http://ultramar.terraweb.biz/CTIG_JoseMartins_Recrutados2Guine.htm]

No caso especifico que nos coloca, apenas o nome e a possibilidade de ter sido tropa Comando são poucos elementos, uma vez que, na Guiné além de 3 Companhias de Comandos Africanos, estiveram 9 companhias formadas na metrópole/continente, além de alguns grupos que, localmente, foram voluntariados.

Para saber mais elementos do seu primo Nelson Silva, poderá pedir informações ao Arquivo Geral do Exército, instalado no Largo de Chelas - 1949-010 Lisboa; E-mail: arqgex@mail.exercito.pt, Telefones 218391600 e 218391619 e Fax 218391611, ou à Associação de Comandos.

Sabendo a unidade a que o seu primo pertenceu, poderá solicitar elementos ao Arquivo Histórico Militar, instalado no Largo dos Caminhos de Ferro, nº2 - 1100-105 Lisboa; E-mail: ahm@mail.exercito.pt, com o telefone 218842563 e Fax:218842514.

Lamentamos não ter meios de poder fornecer as informações que nos solicita, fazemos votos para que consiga obter esses elementos do seu família, apresentamos as nossas saudações.

José Martins
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segunda-feira, 26 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6787: Estórias cabralianas (62): À Tesão, Pelotão!... Este é o Alfero Souza, meu amigo (Jorge Cabral)


1. Estórias cabralianas (*),
por Jorge Cabral

À TESÃO,  PELOTÃO! 

Com o Pelotão [, o Pel Caç Nat 63,] em Bambadinca, preparando-me para arrancar para o Xime, eis que deparo, com um Gandhi,  de camuflado, que avança para mim com os braços abertos. É o Souza, com "z", meu amigo e camarada de Vendas Novas.

Indiano de Damão, logo em 1961, partira para a Inglaterra, onde se doutorara em Física. Não conhecia Portugal, mas em Fevereiro de 1968 teve que vir ao funeral da Tia. Foi quanto bastou, foi incorporado. Já tinha 34 anos, era casado, Professor Universitário, pai de 3 filhos, quase não falava português. Pois bem, atirador de artilharia, meu companheiro de Pelotão [, em Vendas Novas]. Magríssimo, usava uns oculinhos redondos e nunca se queixava.

Fazia parte da nossa instrução, dar voz de comando, apresentando o Pelotão.  Começava, " Atenção Pelotão…", mas quando calhou ao Souza, ele clamou:
- À Tesão,  Pelotão! -  (Não me lembro se nós respondemos afirmativamente…).

De passagem por Bambadinca em trânsito, para o Leste do Leste, o Souza estava ainda mais magro, conservava os pequeninos óculos e aquele ar de suprema resignação. De partida, sem tempo para conversas, quis que conhecesse os meus Soldados. Reuni o Pelotão e disse:
– À Tesão,  Pelotão! Este é o Alfero Souza, meu Amigo!

Muitos anos passaram. Mas ainda hoje, quase como uma divisa, em momentos de chatice, desânimo ou tristeza… eu penso "À Tesão Pelotão!" …e as coisas melhoram…

Jorge Cabral

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 21 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6769: Estórias cabralianas (61): Os Poderes do Professor Wanatú... (Jorge Cabral)

sábado, 8 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4801: (Ex)citações (37): Propaganda (Vítor Junqueira)

1. Caros companheiros

Mais uma vez estou a chamar a vossa atenção para os momentos menos bons do nosso Blogue, criados por alguns, poucos, mas reincidentes, camaradas que fervendo em pouca água, começam a usar de uma agressividade que nada tem a ver com o espírito do Blogue.

Vamos assentar uma coisa. A partir de hoje sempre que um comentário menos feliz despoletar outros mais violentos, eu, pura e simplesmente retiro-o assim como aos sequentes.

Reafirmo que devem resolver os vossos desentendimentos pessoais via mail, onde poderão à vontade usar palavras mais ou menos acintosas sem poluírem o Blogue.

A propósito de mais este desentendimento, recebi hoje uma mensagem do nosso camarada Vítor Junqueira com um comentário que deve ser lido com atenção.


2. Mensagem de Vítor Junqueira (*), ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2753 - Os Barões, (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, de hoje.

Carlos,

Começo a temer que a minha insistência se torne enfadonha. Mas, com sabes, ultimamente foram publicadas matérias que agitaram um pouco as águas. O que é óptimo. Se por um lado, são as que mais aprecio, por outro noto que alguns camaradas se deixam embalar nos comentários, podendo gerar-se alguma crispação. Ora é nessas alturas que me apetece dizer de minha justiça...

Se achares que o texto pode merecer a atenção de alguns dos nossos camaradas, publica p.f.

Com amizade e ao dispor,
VJ


Meus queridos amigos e ex-camaradas, da direita ou da sinistra, refractários, faltosos e desertores, visitantes e seguidores habituais deste Blog;

A todos, o meu abraço fraterno e descomprometido, e o pedido de desculpas por estar a aparecer com demasiada frequência.

Peço-vos uns momentos da vossa atenção para, em conjunto, reflectirmos sobre uma matéria publicada recentemente, que já fez saltar algumas tampas. O que na nossa idade é muito perigoso como já acautelei!

Começo por me corrigir a mim próprio: Quando me dirijo aos meus ex-camaradas, no mínimo estou a cometer uma blasfémia. Porque, no âmbito daquilo que aqui nos traz, ex-camaradas é coisa que não existe! Enquanto durar a nossa viagem à volta do sol, havemos de ser camaradas. O laço pode ser ténue ou forte, mas é indestrutível. Por isso, daqui em diante, aos da família passarei a tratar por camaradas, simplesmente.

Camaradas, poderá haver igual, mas não há ninguém que aprecie mais uma boa peleja do que eu. De qualquer natureza! E quando os contendores se batem por ideias, valores, princípios, honra e dignidade, coisas que para mim, como para vós todos são muito mais do que simples palavras, aí tiro-lhes o meu chapéu. Que fique bem claro que está nos antípodas do meu pensamento, fazer qualquer apelo à calma, armar em medianeiro, interpor-me no seio daqueles que sentem os pêlos do espinhaço arriçados. E se houver de correr sangue, que corra até que os cães o bebam de pé. Mas, por favor, não ofendam a vossa inteligência. Nem a minha. Vamos ao osso! Antes permitam-me que escreva um parágrafo justificativo.

Como já o afirmei nesta sede, fui voluntário para a tropa, fui voluntário para a Guiné, passei lá dois dos melhores anos da minha vida e notem que até então, ela, a vida, não me tinha dado razões de queixa. Participei, compartilhei o fardo convosco. Fi-lo consciente e convictamente, por respeito ao meu julgamento de então. Se a História se repetisse e as circunstâncias fossem as mesmas, hoje voltaria lá, certamente.

E no entanto, quero abraçar:

Os compelidos, faltosos e refractários que, à força ou depois de pensarem melhor, lá acabaram a fazer a queda na máscara ao meu lado.

Aqueles que espalhados pelo Mundo, obtiveram junto dos consulados as suas Licenças Militares definitivas, podendo dar continuidade às respectivas actividades profissionais, e remeter para a Pátria, as paletes de francos, marcos, dólares etc., que tanto jeito nos deram quando a pesada herança bateu no fundo. Os da sinistra, p.f. não levem a mal esta farpa! Abraço também os que por alergia ao teatro de operações, preferiram servir o país de outra forma, como por exemplo, integrarem a frota bacalhoeira (sabiam?);

E quanto aos desertores, porque tiveram a coragem de arriscar a prisão ou uma vida inteira no exílio, obedecendo a respeitáveis e nobres ideais, ou partiram por amor à pele, atitude que não se revestindo de uma nobreza por aí além, é igualmente compreensível, envolvo-os também no meu amplexo, mas sem direito a aplauso.

Por outro lado, não são meus camaradas:

Aqueles que vestindo a nossa farda, eram objectivamente combatentes do IN, a quem forneciam informações e até segredos de que tinham conhecimento por força das funções que desempenhavam;

Os que tendo integrado as FA de Portugal e jurado fidelidade à sua bandeira, saltaram para o outro lado da paliçada, oferecendo-se para colaborar activamente em planos que visavam a liquidação física de ex-companheiros de armas, incluindo os amigos;

Todos quantos encapotadamente, tal qual laboriosas toupeiras, se colocaram ao serviço de ideologias, objectivos e interesses de potências estrangeiras e pela escrita, pela palavra ou pela acção conspiraram, visando o desprestígio e aniquilação do exército fascista, nós! Esses não são meus camaradas.

Mas, notem bem, o facto de não serem meus (nossos) camaradas, não me dá o direito de os julgar sob qualquer prisma e ainda menos de os condenar, cabendo esse desígnio a outras instâncias, entre elas a História, que amparada pelo Tempo há-de apreciar de forma asséptica e distanciada os Homens e os factos do último quartel do séc. XX português.

Se estou certo até aqui, cabe-me deixar algumas perguntas:

Porquê então litigar à volta de acontecimentos sobre os quais, todos o sabemos, haveremos de discordar até ao fim dos nossos dias? De que serve apontar factos do passado ou nomes de pessoas que nunca nos caíram no goto, mas que sabemos serem objecto de grande estima e admiração por parte de importantes franjas da sociedade? Porque não cuidar da forma, para que não pareça cáustica, amarga ou revanchista, como avaliamos comportamentos de tempos idos, sabendo que o que foi já não é e o que ontem era uma virtude, amanhã será uma aberração? Admitamos por absurdo que à luz dos princípios e valores de hoje, uma qualquer entidade intemporal se punha a escrutinar os factos que consideramos mais relevantes da nossa história como nação. Apenas alguns exemplos:

A usurpação de terras à moirama, que para não criar chatices futuras era passada à espada, aquém e além mar, os trabalhos da Santa Inquisição, o holocausto dos Judeus de que os sobrantes tiveram que fugir ou viver escondidos até ao 25 de Abril, a execução (assassinato) dos Távoras a golpes de marreta no peito, com esposas e filhos a assistir enquanto aguardavam o mesmo destino, o genocídio de milhares de negros, índios e indianos, a escravatura mais obscena, negócio que controlámos através de famosos entrepostos ao longo da costa ocidental de África (ex. Senegal), o envio de homens para as trincheiras das Ardenas, pagos por cabeça como carneiros, as campanhas de África cujos protagonistas mais importantes dão o nome a muitas praças, ruas e avenidas cá do burgo, a nossa participação em bandalheiras como as que estão a ocorrer no Iraque e Afeganistão, em que um dos porteiros da guerra – lembram-se da conferência dos vendidos nos Açores? –, foi recompensado com um alto cargo na EU? Bem, com um currículo destes não haverá muitas nações no mundo, e a haver julgamento, hoje, estaríamos feitos!

Quer isto dizer que devamos assumir algum complexo de inferioridade ou culpa? Não, e por muito que estas manchas nos incomodem, a verdade é que factos do passado têm que ser visto à luz de contextos muito diferentes das envolventes sociais, económicas, religiosas etc., dos nossos dias.

Então as rádios Voz da Liberdade e Portugal Livre, mentiam? Claro que mentiam e desbragadamente! E a velha Emissora Nacional de Radiodifusão (buuuun…) se calhar não lhes ficava atrás! O Manuel Alegre desertou? Bem, ninguém o nega. Para uns, ele e muitas figuras gradas da nossa democracia, desertaram. Para outros, foram combater além fronteiras. Há ainda quem considere que todos não passam de um bando de oportunistas ressabiados com o regime. O Manuel Alegre foi para Argel onde seria difícil a polícia ir buscá-lo. Houve quem se fartasse de sofrer em Paris, Londres, Estocolmo … E depois?

O que eu pergunto é o seguinte; alguém quer ser juiz, alguém tem folha de serviço e tomates para os julgar? Eu digo já que não tenho!

Por isso camaradas, aqui vai o pedido de um amigo. Quando o tema for quente como este, não deixemos que ele nos fique atravessado na garganta com receio de melindrar alguém. Dissequemo-lo com o frio escalpelo da ponderação, deixando as acaloradas emoções de reserva para os nossos encontros!

Duas notas finais:

1.ª - Acabo de ouvir na TV que dois líbios detidos no inferno de Guantánamo, virão para Portugal. Se estão inocentes e foram vítimas de arbitrariedades monstruosas, dou-lhes as boas vindas. Se têm culpas no cartório, ou são potencialmente perigosos, têm ou tiveram ligações com redes terroristas, devemos exigir um esclarecimento exaustivo por parte das nossas autoridades.

Também li recentemente na Net que uma comissão do Senado dos States vai exigir a presença de Bush, Rumsfeld, Dick Cheney e mais uma série de personalidades importantes da anterior administração. Como arquitectos das guerras em que o país se envolveu no médio oriente, vão ter de se explicar quanto a um conjunto de atoardas cozinhadas pelas suas agências de informações, como aquela das armas de destruição massiva, que serviram para justificar perante o seu povo e o mundo, a catastrófica decisão de avançar para a guerra. Deverão ser também questionados acerca dos métodos utilizados no interrogatório de prisioneiros aos quais deram cobertura. No reino Unido, uma comissão com idênticos poderes e pelos mesmos motivos, vai chamar o Blair à pedra.

E aí, comecei a pensar: Querem lá ver que um dia o nosso Barrosito ainda vai assentar o cu no mocho?

2.ª - No Post 4785, em que se fala da propaganda by rádio, deixei um daqueles comentários rápidos citando sem citar Boake Carter “Em qualquer guerra, a primeira vítima é sempre a verdade”. Aqui fica o nome do pai da frase, assim como a sua tradução correcta: “Em tempo de guerra a primeira vítima é a verdade

Como sabem, para publicar é preciso ter conta no Google. Por isso usei o meu alias naquele browser que é JUAN de JUnqueira ANastácio, e é o mesmo com que assino um Blog cuja construção iniciei há pouco: http://kurtviagens.blogspot.com/

Quando o Juan voltar a atacar, já sabem que se trata do Vítor Junqueira.

Com muita amizade,
VJ
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4789: (Ex)citações (36): As minhas lágrimas há muito secaram (Vítor Junqueira)

(**) Vd. poste de 5 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4785: Estórias avulsas (47): Rádio “Voz da Liberdade” também mentia! (José Marques Ferreira da CCAÇ 462, Ingoré 1963/65)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4242: Histórias da CCAV 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia (2): Curiosidades, humor, histórias do Gasparinho (José Afonso)

1. Continuação do texto anexo à mensagem de José Afonso, ex-Fur Mil da CCAV 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, com data de 22 de Abril de 2009, sobre a sua Companhia e seu Comandante, Capitão Salgueiro Maia.


CURIOSIDADES / CCAV 3420 (Bula, 1971/73)

[Fixação / revisão de texto / subtítulos: L.G.]

Quando a Companhia de Cavalaria embarca em Lisboa, leva já consigo a sua 1.ª receita: um jogo de Matraquilhos que em 6 dias de viagem esteve sempre ao serviço. Trabalhava de dia e noite sem parar. Foi um bom Fundo de Maneio. Quando chegámos a Bula, o mesmo jogo foi posto em frente do alçado da caserna dos soldados da Companhia, continuando ali a dar a receita pretendida.

Talvez vendo a fonte de receita que ali tínhamos, o Comandante do Batalhão pede a Salgueiro Maia que mande retirar dali os respectivos Matraquilhos, pois estavam em local central do Batalhão e não davam muito bom aspecto.

Não se tendo conseguido nessa altura demover a tomada de posição do Comandante do Batalhão, lá tiveram que ir os Matraquilhos para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard. Aqui a receita era insignificante já que os homens eram muito menos, e também nem sempre o pessoal da Companhia ou Batalhão se deslocava cerca de 300 metros para jogar matrecos.

Salgueiro Maia tinha de arranjar maneira de os matrecos regressarem à origem. Como o Batalhão tinha falta de padeiros e os dois da Companhia estavam emprestados ao Batalhão, Salgueiro Maia vai dar a volta ao Comandante, dizendo que, com a falta de pessoal que tinha, necessitava dos padeiros da Companhia para alinharem para o mato. Levava já na manga a hipótese de deixar os padeiros onde estavam e, como contrapartida, os Matraquilhos regressarem ao Batalhão e colocados nas traseiras da caserna.

A esta proposta o Comando do Batalhão cedeu e uma vez mais Salgueiro Maia venceu.





Uma heli-evacuação

Quando a 28 de Novembro de 1971, um elemento da Companhia acciona uma mina, ficando sem uma perna e outro elemento também ferido, ambos do 3.º Grupo de Combate,  é solicitada a evacuação por Via Aérea para o Hospital de Bissau.

Ao chegar o helicóptero, sai dele uma enfermeira, que ao ver o soldado Santos sem roupa diz que assim não leva o ferido. Para ser socorrido, utilizaram-se os restos das calças para fazer garrotes à perna e ao braço. E com tiras da roupa seguram-se alguns pensos que tapam feridas menores. O homem estava nu.

Para satisfazer o pedido da enfermeira, foi pedido ao enfermeiro que tinha uma camisola interior vestida para que a tirasse e com ela tapasse o soldado ferido.


As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião


Em Abril de 1972 aos elementos da Companhia que estavam no período de descanso, Salgueiro Maia pede voluntários para ir ao Km 13 da Estrada Bula – S. Vicente onde o 1.º Pelotão da Companhia estava emboscado e necessitava de apoio devido a um grupo de Balantas, que vinha do Senegal onde tinha ido roubar vacas, ter caído no campo de minas e algumas vacas andarem na estrada. Assim vão elementos da CCAV 3420 até ao local.

São apanhadas 2 vacas que são carregadas numa GMC. Satisfeitos os elementos da Companhia, com Salgueiro Maia à frente entram em Bula, gritando:
- Queremos carne.

À entrada do Batalhão está o Comandante que manda parar a coluna de 4 viaturas. Quando se pensava que ia dar um louvor aos voluntários, houve-se uma reprimenda do Comandante por a tropa vir a fazer muito barulho e, dá ordens para que a coluna entre na sede do Batalhão (a CCAV 3420 era uma Companhia de Cavalaria independente mas de reforço ao Batalhão de Infantaria). Toda a actividade mais perigosa era desempenhada pela 3420.

Contrariando as ordens do Comandante, Salgueiro Maia manda avançar a coluna para o Esquadrão de Reconhecimento Panhard 2641 que ficava aí a 300 metros do Batalhão pois, era ali que as vacas iriam ser comidas. Ao regressar ao Batalhão o Comandante dá ordem a Salgueiro Maia para que entregue as vacas porque diz ele que todo o material capturado ao IN tem de ser entregue ao Batalhão. Salgueiro Maia diz então que as vacas não foram capturadas, mas sim oferecidas e que foi o pessoal da Companhia que as foi buscar estando de descanso e o Batalhão não mandou sair nenhumas forças.

Mais diz Salgueiro Maia:
- As vacas roubadas que andam de mão em mão, acabam sempre comidas em boa ocasião.

O Fur Mil Afonso de calções... à POP

Um dia no Destacamento de Capunga aparece um helicóptero a sobrevoar a Zona e, de seguida, faz-se para pousar no minicampo de futebol. Desconhecia-se quem vinha nele, pois não havíamos sido informados. O furriel Afonso, que na altura estava a comandar o Destacamento, dirigiu-se tal como estava para receber quem nele vinha. Está vestido como normalmente se anda nos destacamentos. De chinelos, sem bivaque, de t-shirt e calções que já tinham sido calças, agora transformados em calções que, com as vezes que tinham ido a lavar e como não tinham baínhas, se encontravam todos desfiados.

Vinha no helicóptero o Coronel, Comandante do COP de Teixeira Pinto e o Comandante da Companhia 3420. Ao ver o Furriel naquela figura, o Coronel pergunta se está apresentável... Antes que o furriel Afonso diga alguma coisa, Salgueiro Maia olha para o Coronel e diz:
- Não vê, meu comandante,. que está com uns calções à POP!

O Velhinho, antigo refractário

Havia na Companhia um soldado que quis fugir à tropa e, então deu o salto para França. Mas, quando o irmão foi nomeado padre e disse a 1.ª Missa, não resistiu e, porque era de Monção, atravessou a fronteira para assistir à missa. Com a informação da Pide, o nosso amigo, foi preso e acabou por ter que fazer a tropa pelo que apareceu na Companhia já com os seus 30 anos. Era por isso conhecido como o Velhinho. Este era um elemento do 3.º Grupo de Combate que nas operações gostava de ir sempre à frente com a HK21 e faca de mato à cintura e dizia para o Capitão:
- Se um dia apanho um turra morto, o capitão vai deixar-me cortar uma orelha para fazer um porta-chaves e os testículos para fazer uma bolsa.

Era homem para isso, só que não estava autorizado a fazê-lo.


Guardando as costas dos senhores da guerra do ar condicionado


Havia determinadas datas em que se fazia a chamada Guerra de Bissau. Datas como Natal e Páscoa, datas do aniversário do PAIGC e datas em que Bissau sofreu alguns ataques.

Assim fazia-se deslocar tropa para os sítios donde o IN alguma vez atacou Bissau ou para zonas de onde era possível atacar. Assim, 2 Pelotões da CCav 3420 por duas vezes foram mandados para Nhamate. Foi o 1.º pelotão por 2 dias duma vez e o 3.º de 19 a 24 de Novembro de 1971.



Fizemos Bula – Binar - Nhamate a pé, para ali passar 5 dias. Em Nhamate, estava a Companhia de Artilharia 3330, não só aqui como nos destacamentos de Manga, Unche e Changue mas era em Nhamate a sua sede de comando.

Achamos estranho quando no primeiro dia, ao pôr-do-sol, toca o clarim para a formatura do arriar da Bandeira. É formada a secção em frente mas o engraçado é que depois da bandeira descida, em vez de o Furriel mandar direita volver, manda meia volta volver. E, nesta posição, de costas para o pau da bandeira, cantava-se:
- E viva a Pátria, viva o nosso General! 

Ao mesmo tempo mandavam como que um coice e gritavam:
- PUM!!!

Histórias do Gasparinho

O Comandante desta Companhia inicialmente foi o célebre Capitão Gaspar, mais conhecido por Gasparinho, que como foi promovido a Major foi para a COP de Mansabá. Na altura que estivemos ali, o Capitão Gaspar, já não estava mas as histórias contadas são hilariante e nem parecem ser reais. Eis algumas delas:

1 - Semanalmente de Nhamate ia uma coluna a Binar buscar os reabastecimentos. Era uma longa picada que deveria ser picada devido à hipótese de haver minas na zona. Isso não se fazia. Ou se montava uma HK21 na primeira viatura e se varria a picada à rajada ou então o Capitão Gasparinho picava-a à rajada de G3, tendo para isso sempre ao lado um homem que assim que acabava um carregador de imediato lhe passava outra G3. Era como ele dizia o reconhecimento pelo fogo.

2 - Em Junho de 1971, Bissau é atacado por foguetões de 122 mm. À Companhia do Capitão Gaspar é dada ordem para ocupar a Ponta Cuboi com um Pelotão, evitando outra possível flagelação de Bissau. Era difícil a esta Companhia dividir-se por 4 locais e a Companhia também não tinha rádios para o pessoal a destacar.

O Capitão Gaspar pedia muitas vezes através de mensagem algum material de que necessitava. Como já era demais conhecido em todas as Repartições de Bissau, quase nunca lhe era dado um sim. Desta vez pediu rádios AVP1. Responderam-lhe que Teixeira Pinto tinha sido o homem que havia pacificado a Guiné e conseguiu fazê-lo sem rádios. Resposta por mensagem:
- Então mandem-me o Teixeira Pinto.

Teixeira Pinto não veio mas o Capitão teve de cumprir a missão. Depois do Pelotão ter saído para Ponta Cuboi, enviou nova mensagem para Bissau:

Em referência às vossas mensagens, informo missão cumprida. Solicito autorização contratar 40 guardas-nocturnos a fim de garantir segurança às minhas posições.

O Pelotão de Ponta Cuboi fazia rotação entre os 4 da Companhia e patrulhava a zona 24 horas por dia. Ao sair para este patrulhamento, o Pelotão saía de modo muito original, com os homens equipados e armados em coluna de dois, cantando em coro, ao ritmo da marcha:

Cá vai a 30
Com arquinhos e balões
Vai P’rá Ponta Cuboi
Ver passar os foguetões!


3 - A Companhia de Nhamate necessitava de uns botes para um dos destacamentos patrulhar um rio. Claro que se pedem uns novos a Bissau pois os que existem metem água. Como sempre, a mensagem chega com um não. Mas, como o Capitão Gasparinho não era de desistir, manda nova mensagem dizendo que estava em época das chuvas, o quartel era subterrâneo, as casernas estão inundadas e o 1.º sargento não sabe nadar. E, assim sendo, que mandassem com urgência pelo menos um bote.

4 - Em Nhamate, como em toda a Guiné de vez enquanto aconteciam pequenos tornados, anunciando que pouco tempo depois iria chover torrencialmente. Uma das vezes voaram as chapas que cobriam algumas casernas do destacamento de Nhamate. Então o Capitão Gasparinho envia uma mensagem a todas as Unidades, com grau de urgência relâmpago, nos seguintes termos:

- Solicito e informem se viram passar as minhas chapas de zinco!

(O grau de urgência relâmpago obrigava a cessarem todas as comunicações rádio, pois era normalmente utilizado para pedir evacuações aéreas, quando havia vidas em perigo)

5 - Durante o período do Natal, o General Spínola visitava todas ou quase todas as tropas aquarteladas na Guiné, mesmo aquelas estacionadas em sítios mais perigosos. Deslocava-se quase sempre de Heli e um Heli-Canhão de apoio. Nestas deslocações toda a zona onde ele circulava e os sectores envolventes tinham instruções para toda a rede de rádios estar em escuta permanente. Como estava prevista a ida a Bula, o Comandante do Batalhão de Bula, ordenou que a Companhia do Capitão Gaspar informasse a sede do Batalhão logo que os hélis sobrevoassem Nhamate e se deslocassem para Bula.

Considerando a importância da missão, o Capitão Gaspar achou conveniente ir pessoalmente para o rádio e, assim, logo que ouviu barulho dos hélis a aproximarem-se chamou o comando do Batalhão de Bula ao rádio e informou:

- Informo Vexa (vossa excelência) que Sexa (sua excelência) passou na mecha !!! Terminado.

No dia seguinte todas as unidades do Teatro de Operações da Guiné receberam a seguinte mensagem:

- A partir desta data é expressamente proibido o uso de abreviaturas SEXA e VEXA.

São muitas e muitas as histórias do Capitão Gaspar ou Gasparinho, não só as passadas na Guiné mas também as de Moçambique. O Furriel de Transmissões desta Companhia deve ter um rol delas para contar pois por ele passavam todas as mensagens ou, pelo menos, tinha acesso a elas como responsável. E foi ele um dos que nos contou algumas quando por apenas 5 dias ali estivemos, não estando já lá o Capitão Gasparinho.

6 - E para terminar este rol de aventuras do Capitão Gasparinho, só mais uma história que, segundo consta, chegaram a vender-se cópias a 20$00 em Bissau. Era uma nota enviada de Nhamate em Março de 1971, ao Comandante de Engenharia de Bissau, com conhecimento do Comando Operacional n.º 3, às Repartições de Operações, População, Assuntos Civis e Acção Psicológica e ao Comandante de Batalhão de que dependia a Companhia.

O assunto da nota era o Quartel de Nhamate ou, mais propriamente “O ABARRACAMENTO.”

1 - Exponho a V. Ex.ª um dos assuntos mais vitais para a continuidade militar e humana de Nhamate.

2 - Passo a descriminar:

a) Depósito de Géneros: quando chover fico sem pão pelo menos 15 dias. Julgo que não é muito agradável.
Informo V. Ex.ª que não como pão.
Gordo, estou eu.
E os outros géneros?
E os autos subsequentes?
Só problemas.

b) Casernas: barracas de lona, todas oficialmente dadas incapazes. Na Birmânia, viveu-se assim um ou dois meses. Os quadros vivem-no há dez anos e os milicianos (os meus, de certeza) dão o litro até ao fim.

Os soldados dão tudo. Há que tudo lhes dar na medida do possível.

c) Cantina: e o tabaco? Desde Napoleão e Fredy da Prússia que o tabaco era uma das bases da eficiência do Exército.

Como combater ou trabalhar sem o velho cigarrinho? E os outros Géneros?
V. Exª. mais experiente meditará sobre o assunto.

d) Caserna de cimento: É único exemplar. Vou demoli-lo. Não tenho materiais. Solicito auxílio da Engenharia.

e) Messe: Desde o início das chuvas não necessita de garrafas de água. Basta as mesmas estarem abertas para que se encham com a água da chuva que cai na referida messe; Ponchos e gabardines: já temos.

f) Chapas de Zinco: ao mínimo vento já voaram no Quartel.

g) Gabinete do Comandante e 1.º Sargento: Com as chuvas, eu e o 1.º Sargento só temos como solução entrar no gabinete de escafandro, visto estar 2 metros abaixo da superfície do solo.

h) O meu pessoal só poderá transitar em canoas balantas. E, alguns não sabem nadar.
Conclusão: Siga a marinha!

3 - Este quartel tem de ser revisto por um oficial de Engenharia, senão começo a construir um novo com os materiais dos Reordenamentos, contra a norma, o que é aborrecido, contende com a disciplina e eu não gosto.

4 - Agradecendo a boa atenção de V. Ex.ª, gostaria de aqui ter como convidado um Sr. Oficial de Engenharia por vários dias, a fim de concordar ou condenar as minhas asserções supras.

Cumprimentos

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Nota de CV:

Vd. postes de:

26 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1213: A CCAV 3420, do Capitão Salgueiro Maia, em socorro a Guidaje (José Afonso)

23 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4240: Histórias da CCAV 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia (1): Era uma vez... (José Afonso)