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quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23513: Historiografia da presença portuguesa em África (329): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Graças ao indefetível apoio da bibliotecária da Sociedade de Geografia de Lisboa lá vou mergulhando por mares nunca por mim navegados, cheguei a porto ignoto, o Boletim Mensal das Missões Franciscanas, sempre à busca de uma nova pérola, sei muito bem que não posso encontrar nada de mais completo daquilo que escreveu o Padre Henrique Pinto Rema sobre as missões católicas da Guiné. Mas logo me chamou a atenção este Padre António Joaquim Dias, andou em missionação mais de oito anos pela Guiné, guarda recordações inolvidáveis de Bolama e as suas impressões são dignas de ser postas em público, três quartos de século depois.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (1)

Mário Beja Santos

A leitura do Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, um conjunto de cartapácios que ando a folhear na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, reserva surpresas quanto à Guiné. No boletim referente a janeiro de 1943 começam a ser publicadas as impressões do Padre António Joaquim Dias. Começa por alertar quem para lá viaja, e deste modo: “Como na Guiné é verão todo o ano, o sol é fogo e o suor hábito inveterado, muna-se de roupas leves, claras e sem forros. Os casacos brancos e batinas da mesma cor, coadjuvados pelos capacetes ou chapéus coloniais, igualmente brancos, são os únicos para-raios a defender-nos das picadas terríveis do sol tropical”.

E começa a sua descrição da Guiné, não se pode dizer que não seja bom observador:
“Para quem leva os olhos feridos e a alma picada pelas penedias basálticas das ilhas de Cabo Verde, a entrada na Guiné sabe bem, enternece até ao fundo da alma. Da água do oceano, ergue-se a planície imensa, aveludada. É um alfobre, risonho e ondulado, de um quente verde-amarelo, a espreguiçar-se, convidativo, acariciador. O mangal mergulha as raízes na própria água salgada e lança outras, aéreas e robustas, a segurar melhor a Guiné, a vincá-la mais ao chão, que o mar lhe disputa. Não se sabe onde o oceano termina e a terra começa.
Aquele, atrevido, infiltra-se por todos os lados, em baías e canais, no continente fronteiro; e estende também os seus braços, numa luta titânica, a procurar arranjar mais espaço, maior domínio, mais um pedaço para o seu leito. Investe contra os próprios rios, a quem desrespeita, às vezes, por léguas e léguas, com lhes sujar e salgar a água cristalina, ósculo amoroso de terra amiga. É por isso que, na Guiné, viaja-se navegando; e, navegando, se vai a toda a parte, como dizia o outro”
.

Dá-nos a saber que andava a pesquisar sobre as antigas missões da Guiné, mas preferiu começar por crónica ligeira, continua a dar muita importância aos roteiros e viagens, acha proveitoso lermos arquivos de Geografia, de Etnografia e até de História. Promete não escrever nenhum roteiro, dizendo que foi apenas à Guiné e regressou, começou no porto de Bolama e terminou no de Bissau, por onde voltou. Ficamos a saber que embarcou para a Guiné em fevereiro de 1934, foi para África por livre vontade, ia acompanhado por outro confrade missionário, “levávamos umas roupas, uns livros, muito entusiasmo para o trabalho, muita confiança no Senhor e a saúde precisa”. Fora-lhes abonada a viagem, encontraram benfeitores em Bissau, eram missionários sem côngrua. Terá feito o seu apostolado até 1942, e confessa o seu pesar pela partida: “Não é debalde que, durante oito anos, nos afazemos a chamar nossa terra mesmo à África. Ao dobrar Caió – a porta da Guiné –, duas lágrimas, grossas e quentes, desceram rapidamente as faces”.

Confessa que está a escrever no Hospital de Jesus, com data de outubro de 1942, veio com pouca saúde, e dedica os seus textos aos obreiros evangélicos, presentes e futuros, da saudosa Guiné. Disserta sobre o trabalho de missionário, não é só o apostolado, há a instrução literária, o saber acompanhar as técnicas agropecuárias e observa que é da máxima conveniência haver missionários que saibam traçar, em escala, projetos simples de edifícios a levantar nas missões, e explica porquê: “As missões sofrem, não raro, pelo prejuízo que lhes advém da falta dos edifícios, das demoras dos traços, sujeitando-se a perder os auxílios financeiros terminado o ano económico. Os técnicos, por via de regra, gostam de delinear bonecos bonitos, alçados vistosos que, amanhã, possam despertar a curiosidade pública… Nem sempre, porém, essas belezas e devaneios artísticos se coadunam com a exiguidade de recursos das missões”. E deriva para uma outra observação: “Não são contrários à tradição missionária portuguesa os estudos e coleções de História Natural e de Etnografia, recomendados, insistentemente, e favorecidos, desde 1926, pela legislação missionária o Comandante João Belo”.

Dá-nos uma impressão de Bissau, capital da Guiné desde dezembro de 1941, parece estar a conversar connosco:
“Para além, para nascente, a parte antiga, a começar na Amura ou pequeno recinto muralhado, onde ainda se conversam em minúscula igreja paroquial e os edifícios do quartel e repartição militar; ali o centro, a este lado do poente e lá para o alto, a parte nova. Repare numa coisa: a cidade parece reclinar-se numa encosta que não existe; espreguiça-se molemente. E para dar-se tom, para roncar, como aqui dizem, ela rasgou avenidas, abriu ruas; mas esqueceu-se de levantar casas. Anda agora empenhada nisso. Entre os edifícios, novos e menos novos, sem serem velhos, avultam: a imensa Casa Gouveia, da CUF, a maior empresa comercial da Guiné; depois, o Banco Nacional Ultramarino, única entidade bancária da colónia; ainda o edifício dito das Repartições; a imponente Catedral, em românico estilizado, mas não rematada; a Companhia da África Ocidental Francesa; um dos improvisados hotéis, que são três ao todo; mais algumas casas comerciais; um ou outro chalé modesto, particular ou do Estado; os bairros dos funcionários, que há para todos os gostos; talvez também o hospital, com seus múltiplos pavilhões de um só piso, e não vejo mais nada que mereça citar-lhe, a não ser a nova Alfândega. Ao centro da Praça do Império, no alto da povoação, atira-se para os ares uma espécie de obelisco granítico de uns quinze metros de altura; um monumento ao Esforço da Raça. A vasta praça, incontestavelmente uma das mais amplas do Império Português, aguarda que adotem de edifícios condignos, entre os quais há de sobressair o Palácio do Governador, em construção. Acrescentemos a isto umas dezenas de casinhotos térreos, em paredes de barro, meia dúzia de edifícios de primeiro andar, rodeados das indispensáveis varandas, ainda algumas ruas e vielas, - e aí tem o meu amigo a ínclita cidade de Bissau”.

Deplora a desolação de Bolama: “Chorarei eternamente com quem me hospedou durante sete anos e me livrou dos mosquitos enfadonhos e venenosos de Bissau, das temíveis biliosas, perniciosas e quejando as esferas africanas". Começara a desventura de Bolama, tal como ele a descreve: “Dia e noite, as ruas mais desertas, ainda mais tristes. Muitas casas apagadas, diminuídas as luzes nas ruas, desolados os comerciantes. Bolama assemelhava-se a cemitério imenso. E, noite fora, manguços aos punhados – espécie de gatarrões, feios e fedorentos, monopolizavam os passeios do jardim público, para seu folgar ameno”.

Recorda aquele jardim, o quintal da sua casa, o adro da igreja, e pergunta-se: “Como viverá agora, esse malfadado jardim de Bolama e o burgo inteiro? A acarinhada povoação de outros tempos terá sucumbido, enfim? Os coqueiros do lado fronteiro ao hidroporto poderão continuar a distrair-se com as evoluções, os soberbos Clipper que por ali vão zumbir, despejar forasteiros, levar movimento e vida”. Suspira uma Bolama nova, pede benevolência ao leitor por exaltar a sua querida Bolama. As impressões vão continuar, as que escreveu agora datam de Lisboa, 1 de janeiro de 1943.

(continua)


R.P. António Joaquim Dias
Dançarino Mancanha da nossa Guiné
Bolama, interior da Igreja
Bolama, Câmara Municipal e Administração do Concelho
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23486: Historiografia da presença portuguesa em África (328): Bissau, 1753: Escaramuças na construção da Fortaleza de S. José (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23401: Notas de leitura (1460): “O percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira em Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa”, por Graça Maria Correia de Castro; Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2001 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Serão os franciscanos o pilar fundamental da missionação católica na região da Guiné, está historicamente comprovado, basta ler a obra exemplar do padre Henrique Pinto Rema. Os jesuítas fizeram uma aposta forte, entre Cabo Verde, Guiné e Serra Leoa. Iam impulsionados por um museu apostólico considerado difícil de conciliar com as adversidades do terreno e a crítica frontal à natureza do tráfico de escravos. Inflexíveis em negociar os trâmites do seu apostolado, morreram ou tiveram que regressar com a saúde abalada. A correspondência do superior da missão, Baltasar Barreira, é encarada pelos estudiosos e investigadores da Guiné como documentação histórica de grande interesse para o estudo da presença portuguesa na região.

Um abraço do
Mário



Baltasar Barreira e a sua importância na literatura de viagens do século XVII

Beja Santos

A obra intitula-se “O percurso geográfico e missionário de Baltasar Barreira em Cabo Verde, Guiné, Serra Leoa”, por Graça Maria Correia de Castro, Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2001. No escopo essencial da obra, vê-se a autora a analisar um conjunto de cartas missivas do missionário jesuíta Baltazar Barreira, Superior da Missão de Cabo Verde e da Costa da Guiné, escritas ao longo de oito anos, entre 1604 e 1612. Em Portugal governam os Filipes, pululam os corsários, as dificuldades da missionação revelavam-se insuperáveis. Os jesuítas estavam sediados em Cabo Verde e ansiavam por missionar em terra firme, sabiam que iam ser confrontados com animistas e convertidos ao islamismo. Houve a pretensão de instalar uma administração civil e militar na Serra Leoa, mas não houve sucesso. A desistência dos jesuítas estará relacionada com a ausência de apoio temporal, não queriam fazer missionação sem a presença de soldados.

Tudo começa por parecer que ia correr bem, com o batismo do rei em Serra Leoa. Na costa da Guiné, os jesuítas apoiavam-se em lançados e residentes, não podiam contar com mais nada, e caminhando mais para norte havia já um avanço do islamismo instalado com estruturas de ensino e culto a funcionar. Baltasar Barreira contava com colaboradores entusiastas mas que morreram cedo. Sendo responsável pela missão, Baltasar Barreira procura sensibilizar os poderes político e religioso, fala com toda a franqueza, pede apoios de toda a ordem, o que ele escreveu bem como os outros jesuítas é um contributo do maior relevo para a história das missões católicas e para a história deste local da costa africana. Vários estudiosos serviram-se das informações de Baltasar Barreira, é o caso de António Carreira.

Os jesuítas chegaram a África munidos da profunda superioridade da sua cultura, vinham ardorosos para a conversão dos gentios. Por um lado, tudo parecia fácil dado haver uma estreita ligação entre a Coroa e a Igreja, estava ainda de pé o “direito de Padroado”, concedido aos reis portugueses por sucessivos Papas. Portugal assumia a convicção de que era nação missionária por excelência. Recorde-se que em Goa havia uma diocese independente que se estendia do Cabo da Boa Esperança à China. A partir de Goa, dirigiam-se as missões de Moçambique e Etiópia. Para esta missionação mobilizaram-se franciscanos, agostinianos, teatinos, carmelitas, jesuítas, fundavam igrejas e conventos. Malaca, conquistada por volta de 1511, era a base do apostolado missionário.

O primeiro Bispado de Cabo Verde e Guiné foi criado por volta de 1533, compreendia Cabo Verde e a costa ocidental africana, desde o rio Gâmbia até ao Cabo das Palmas, portanto um extensíssimo território, a colonização do homem branco era muito fraca. Como tudo era adverso para a missionação, a evangelização na costa da Guiné realizava-se em regime deambulatório a partir da sede, em Santiago. Recorde-se que a população das ilhas usufruía de regalias para comerciar entre os portos da Guiné e os da Serra Leoa, desde que utilizasse apenas produtos do arquipélago. Mas as transgressões eram muitas, os “lançados” sabotavam as diretrizes régias. E a concorrência estrangeira impunha-se, chegavam atraídos pelo comércio de escravos, cedo se soube na Europa que o ouro aqui não abundava.

A autora esboça o que era o ideal missionário dos jesuítas, o que os distinguia das outras ordens religiosas. Dá-nos igualmente uma nota histórica dos antecedentes dos jesuítas em Cabo Verde e de como se processou a missionação com Baltasar Barreira. A colisão frontal dos jesuítas era com o mercado de escravos, não só em África como no Brasil.

Toda esta documentação cabe no âmbito da chamada literatura de viagens dada a riqueza das descrições de Baltasar Barreira não só sobre as ilhas como sobre a costa africana. Descreve aos seus destinatários a história dos povos, a distância entre os reinos, como constroem as suas habitações, quais os seus recursos, enumera reinos, quantifica e qualifica produtos da terra (madeiras, frutas, as aves, o algodão, o marfim, a cera, o gado, as ostras…). Um tanto paradoxalmente, enquanto está atento ao humano e à paisagem, mostra-se de uma grande incompreensão em relação à religiosidade africana. É minucioso nos tempos reais da viagem entre as ilhas e o continente.

E vale a pena registar o que a autora escreve em jeito de conclusão:
“De Cabo Verde narra-se a forma de governo português e a hierarquização social constituída por uma minoria de homens livres e uma maioria de escravos onde era possível a miscigenação de várias etnias. A situação económica das ilhas era difícil, na origem da qual estavam núcleos temáticos tais como as secas, a fome, a carestia, o desamparo face ao corso e à pirataria proveniente da concorrência estrangeira.
A costa africana, sobretudo a Serra Leoa, constitui a vertente panegírica do relato, quer pelas descrições entusiastas da riqueza da terra, quer pelo clima e paisagem paradisíacos, quer pela boa disposição dos régulos em receber a nova religião. A veemência do jesuíta para que se fundasse colégio naquela região chegou ao ponto de citar, numa das suas epístolas, excertos de uma carta de Pedro Álvares Pereira, manifestando o desejo de auxílio necessário para que aí se implantasse a Companhia.

Foi na Serra Leoa que a evangelização de Baltasar Barreira atingiu o maior sucesso, durante cerca de dois anos, continuada depois pelo seu companheiro Manuel Álvares. O método da persuasão encetado pelas relações de amizade entre o Padre e os Povos, os presentes aos régulos, os convites para as cerimónias e festas religiosas, figuravam sempre em primeiro plano, como função persuasiva.
A herança cultural aliada ao desejo de Baltasar Barreira criar um clero local a partir da construção de um colégio que também servisse de seminário, levou a que os outros padres que se encontravam no arquipélago ensinassem a ler a algumas crianças, e o próprio superior a trazer consigo meninos, filhos de chefes africanos, para que se instruíssem em sua companhia e se tornassem padres também.

Estas cartas missivas têm um louvor permanente à Companhia (…). A programação que Baltasar Barreira imprime, como superior da missão e destinador de um programa narrativo evangelizador, coloca em destaque uma imagem de missionário exemplar que em todos os caminhos é protegido por Deus, destinador último, e a quem nunca se esquece agradecer”
.

Uma imagem ideal da missionação, muito divulgada durante o Estado Novo.
Henrique Pinto Rema, missionário franciscano, autor da mais importante obra sobre a missionação na Guiné, a ser condecorado pelo Presidente da República.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23388: Notas de leitura (1459): “Ébano”, por Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil/Porto Editora, 2018, o mais espantoso trabalho jornalístico sobre a nova África (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23359: Notas de leitura (1456): Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Não foi por acaso que a título excecional se detalhou no blogue a "História das missões católicas da Guiné", pelo Padre Henrique Pinto Rema. Bom seria que dispuséssemos de vários contraditórios: o que era efetivamente a presença do islamismo naquelas paragens quando ali arribámos em meados do século XV; é facto que há relatos, e muito esclarecedores, das práticas animistas naquilo que se convencionou chamar a Grande Senegâmbia, a antropologia, a etnologia e a etnografia têm efetuado importantes trabalhos sobre práticas animistas quer no continente guineense quer na área arquipelágica. Já o padre Pinto Rema na sua obra incontornável acima referida dava conta dos inúmeros escolhos que se punham à atividade missionária, o clima, a hostilidade dos traficantes de escravos e outros mercadores, a ignorância das línguas nativas, a solidão. Tudo dificultava a construção de igrejas e a catequização. O diálogo religioso com a comunidade islâmica era impossível, vivia-se em intolerância; e a perseguição aos ídolos revelava-se totalmente ineficaz. Os franciscanos foram os mais persistentes, os jesuítas vieram cheios de entusiasmo, morreram quase todos. Um deles, o padre Manuel Álvares, deixou-nos um documento sobre esse território que era conhecido como a Etiópia Menor que, estranhamente, nunca passou de manuscrito. Coisas da cultura ou da incúria cultural.

Um abraço do
Mário



Os Jesuítas na Senegâmbia, os personagens de um insucesso

Beja Santos

Fez-se referência no blogue, e de modo exaustivo, à obra fundamental de ação missionária na Guiné, “História das missões católicas da Guiné”, pelo Padre Henrique Pinto Rema, Editorial Franciscana, 1982. O padre Pinto Rema referiu-se à presença dos jesuítas, convirá dela dar mais algum detalhe. Uma das figuras fundamentais é o padre Manuel Álvares. Convém não confundir o missionário com o gramático. Sobre a obra do gramático, recomenda-se a leitura do artigo “A época e a obra de Manuel Álvares”, por Rui Nepomuceno, Revista Islenha, n.º 45, dezembro de 2009. Era também jesuíta e ficou especialmente conhecido pelo seu trabalho modelar como gramático. Este padre Manuel Álvares de que vamos falar foi estudado por Manuel Pereira Gonçalves, ele apresentou uma comunicação intitulada “Atividade e obra do padre Manuel Álvares nos rios da Guiné (século XVII), alguns apontamentos”, no Congresso Internacional de História, Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, consta das Atas, volume I, Cristandade Portuguesa até ao século XV, Evangelização Interna, Ilhas Atlânticas, África Ocidental, Universidade Católica, 1993.

Manuel Álvares chegou à ilha de Santiago em 1607 e pouco depois partiu para o continente africano para ajudar o padre Baltazar Barreira, que aqui missionava desde 1605. Álvares de Bissau seguiu para Quínara e depois para a Serra Leoa, ia ao encontro do padre Baltazar Barreira que aqui andava em catequização. O autor deste trabalho enfatiza as principais razões do insucesso deste trabalho de missionação: o clima é devastador, os missionários morrem como tordos, dois logo em 1604, mais dois em 1607 e mais dois em 1608. Quando chegam para missionar já os Mandingas ensinavam o Corão. Acresce que os jesuítas não conheciam as línguas nativas. O bispo em Cabo Verde insistia em mandar visitadores, tentava-se assim estimular a missionação, mas eram visitas inúteis. Para além da região muçulmana, os missionários defrontavam-se com o animismo e o seu cortejo de idolatrias. Como no passado, e até no presente, o africano animista explica o sucesso ou insucesso da sua vida e das suas atividades pela proteção do Irã. E havia uma outra condicionante bem terrível: o isolamento. A vida religiosa só se compreende quando vivida em comunidade, mesmo os Trapistas vivem em comunidade e com regras. Ora estes religiosos, sacerdotes e irmãos auxiliares, iam na disposição de construir igrejas e sentiam que naquele deserto humano não havia ninguém com quem pudessem manter um diálogo. Numa tentativa de ultrapassar esta situação, o padre Baltazar Barreira pediu ao seu superior Provincial que enviasse para a Missão da Serra Leoa pelo menos dois sacerdotes que dessem continuidade ao seu trabalho.

Nove dias após a chegada a Santiago, o padre Manuel Álvares acompanhado pelo Irmão Pedro Fernandes parte para o Rio Grande. Mais tarde, assistiu ao batismo da irmã e do irmão do rei D. Filipe de Leão, rei da Serra Leoa. Baltazar Barreira considerou que foi o casamento católico do irmão que moveu a irmã a receber o batismo. Como havia o receio de que vivendo no meio de pagãos podia perder a fé, a irmã do rei teve de abandonar o local onde vivia. Quem estiver interessado em estudar esta matéria com mais profundidade, recomenda-se a Monumenta Missionária Africana, Padre António Brásio, volume IV, a partir da página 621. Os jesuítas enviaram quinze sacerdotes ao todo, quase todos morreram. Ainda se exerceu missionação no Cacheu, que tinha uma igreja com clero diocesano e religioso e uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Natividade. Eram muito poucos os templos no território do que é hoje a Guiné, Santa Cruz no Rio Grande teve uma igreja dedicada a Nossa Senhora, durante bastante tempo houve um clérigo que lá ia dizer missa.

Um dos mistérios da histografia missionária e dos estudos do colonialismo é nunca a obra deste padre ter passado do manuscrito, Ethiopia Menor e Descripção Geographica da Provincia da Sérra Leõa, é considerado um trabalho de referência, incompreensivelmente não está acessível ao público. O padre Manuel Álvares discreteia sobre muitos assuntos, um deles tem a ver com o catecismo, seguramente que o preparou para a sua ação missionária. Tem aspetos curiosos, vale a pena citá-los:
“Os céus, apesar de incorruptos, imperfeitos, eternos, independentes, não foram feitos por si mesmos. Receberam de alguém o seu ser. É a primeira causa criadora. Também as estrelas, os planetas e todas as coisas deste mundo tiveram a sua primeira causa criadora. Nada há que não tenha um princípio e que não remonte a sua existência à primeira causa”. Mais adiante:
“O homem atingirá o dom da imortalidade por raro privilégio de Deus, ainda que não o possamos atingir pela própria natureza. A imortalidade do homem só é pela Providência Divina, é Deus que o encaminha para o fim sobrenatural; e ao homem não é dado o prémio nem o castigo antes de morrer”.

Porque não se salva o gentio a quem não foi anunciada a mensagem evangélica? O padre Manuel Álvares é da opinião que se tiverem vivido segundo a lei natural serão salvos. E porquê? Desde que tenham adorado quem os criou; tenham falado verdade, não tenham cobiçado o alheio; tenham guardado respeito pelo alheio; não tenham prejudicado em nada o que é dos outros; tenham usado com fidelidade aquilo que lhes pertence; tenham sido fiéis a todos os princípios, mesmo os matrimoniais.

O padre Manuel Álvares morreu em 1617. No século XVII, é possível que um ou outro sacerdote jesuíta tenha, em viagem esporádica, passado por aquelas paragens da África Ocidental, mas não há memória de outra presença efetiva e continuada. Anos mais tarde, em julho de 1642, os jesuítas deixam definitivamente a missão e os últimos sacerdotes rumam em direção a Lisboa.

Vale a pena seguidamente acompanhar a ação missionária do padre Baltasar Barreira, que teve uma atividade significativa em Cabo Verde, na Guiné e na Serra Leoa.

Ritual fúnebre na Senegâmbia, final do século XVII, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Missionário capuchinho queima casa de ídolos na África Centro-Ocidental, década de 1740, imagem retirada de: https://www.researchgate.net/figure/FIGURA-2-Missionario-capuchinho-queima-casa-de-idolos-na-Africa-Centro-Ocidental-decada_fig2_304710892.
Escultura da extremidade superior de sono em bronze com representação de duas pessoas montadas, acompanhantes e provavelmente um cão, imagem retirada de: https://revistas.ufrj.br/index.php/abeafrica/article/viewFile/19406/12989.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23346: Notas de leitura (1455): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 23 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23102: Historiografia da presença portuguesa em África (309): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (13) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o incontestável mérito desta investigação, Senna Barcelos, à luz dos conhecimentos do seu tempo, procurou fazer um levantamento da história de dois territórios desde a chegada da presença portuguesa, é hoje muito fácil dizer que já se investigou muito e que se esclareceu pontos que o autor deixou na obscuridade. O dado relevante é a pesquisa nos arquivos a que ele procedeu de forma meticulosa de modo que podemos dizer sem hesitação que é a primeira vez que se possui um quadro histórico dessa presença na Guiné até ao momento em que esta foi desanexada de Cabo Verde, em 1879. Há lacunas, caso da presença missionária, que está hoje felizmente coberta no trabalho incontornável de Henrique Pinto Rema. Senna Barcelos dá-nos um retrato ímpar dessa presença, envolve-a numa atmosfera de permanentes conflitos com os gentílicos, vivem entre eles em pé de guerra, sempre numa atitude de conquista, e só muito gradualmente vão aceitando a presença portuguesa que ganhará alguma efetividade depois da campanha de Teixeira Pinto na ilha de Bissau. E são elementos que não constam do trabalho de Senna Barcelos, para o tempo ele deixou-nos um quadro valioso do que foi acontecendo no Casamansa e de como a diplomacia portuguesa ao submeter a questão de Bolama e territórios adjacentes à postura arbitral do presidente dos EUA Ulysses Grant garantiu a dimensão sul do território da Guiné-Bissau. Para que conste.

Um abraço do
Mário



Um oficial da Armada que muito contribuiu para fazer a primeira História da Guiné (13)

Mário Beja Santos

São três volumes, sempre intitulados Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné, as partes I e II foram editadas em 1899, a parte III, de que ainda nos ocupamos, em 1905; o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada, oficial distinto, condecorado com a Torre e Espada pelos seus feitos brilhantes no período de sufocação de sublevações em 1907-1908, no leste da Guiné. O levantamento exaustivo a que procede Senna Barcelos é de relevante importância e não há nenhum excesso em dizer que em muito contribuiu para abrir portas à historiografia guineense.

Hoje se conclui este punhado de recensões a uma obra incontornável, Senna Barcelos irá despedir-se do leitor no exato momento em que a Guiné, ainda sem fronteiras definidas, se autonomiza de Cabo Verde, um desastre militar ocorrido em chão Felupe desencadeou tal decisão política tomada por Lisboa. Em 26 de abril de 1859 faleceu na Praça de Bissau Honório Pereira Barreto e o Governador-geral pronto declarou: “A morte do honrado, inteligente e patriota desinteressado, Honório Pereira Barreto, Governador da Guiné, que muito temos a lastimar, não foi efeito de causas extraordinárias. A falta do único homem que conhecia profundamente a Guiné, que estendia a sua influência para o interior e na costa a uma grande distância, instruído e sempre pronto ao serviço do seu país é uma perda irreparável”.
E o autor traça um extenso currículo dessa figura determinante da primeira metade do século XIX na Guiné. Em fevereiro do ano seguinte, o Governador-geral deu ao novo Governador da Guiné, António Cândido Zagalo, instruções sobre as diferentes obras de utilidade para o distrito, a saber, no caso de Bissau: obter uma área em volta da praça de São José de Bissau que deverá ser limitada e defendida, reparar as muralhas da Praça e desentulhar os fossos, cuidar do reparo do quartel, construir uma alfândega e um cais em frente da vila, cuidando também do estabelecimento de uma povoação em frente da vila de Bissau, no Ilhéu do Rei. Quanto a Cacheu, impunha-se alargar a área da povoação da vila, reparar os quartéis e alojamentos, construir um cais em frente da povoação tal como em Bissau. E tanto em Bissau como em Cacheu o novo Governador devia ter em vista a abertura de poços, próximos às povoações, que forneçam água aos habitantes para usos domésticos.

Mas recuemos a 1858, a questão de Bolama marca hostilidades permanentes. Em 4 de junho aportara a Bolama um vapor de guerra inglês carregado de arroz para distribuir aos escravos, ali refugiados, dos seus donos, de Bissau, Rio Grande e Ilha das Galinhas. Fazia esta distribuição o preto David Lawrence, encarregado daquela ilha pelo governo inglês. Depois daquela data nenhum outro navio inglês visitou Bolama, acabou-se o arroz e os escravos voltaram à casa dos seus donos. Os ingleses, à falta de argumentos para provarem os seus, quanto à legitimidade da posse de Bolama e áreas circunvizinhas, continuavam a provocar conflitos com os portugueses, pretendiam promover uma colonização inglesa com escravos portugueses, a troco de umas libras de arroz. Mais adiante, esteve iminente um grande conflito provocado por este David James Lawrence, senhor da Ponta Lawrence em Bissássema contra o negociante português Martinho da Silva Cardoso, senhor da Ponta Martinho, o Governador Zagalo teve de intervir. Senna Barcelos refere que o governador recebera uma carta de um súbdito britânico, Thomas W. Cowan, mestre-escola em Bolama, condenando o procedimento de David Lawrence. Zagalo procurou apurar a verdade dos factos e pediu o apoio das autoridades gentílicas, o conflito ficou temporariamente sanado. Mas, entretanto, o Governador da Serra Leoa escreveu ao Governador da Guiné declarando que tinha em posse tratados que comprovavam que Bolama, o Rio Grande de Bolola e Buba pertenciam à Grã-Bretanha. Zagalo respondeu-lhe polidamente, deixando para as autoridades de Lisboa a resposta. E escreve para o Governador-geral: “Não posso deixar de duvidar da legalidade dos documentos apresentados, porque os reis designados no termo da cessão da ilha de Bolama jamais foram senhores daquela ilha, nem das outras do Arquipélago dos Bijagós, a quem pertencem, e não aos Beafadas do citado rio, cuja margem esquerda até Bolola também pertence aos reis de Orango e Canhabaque que à força conquistaram aos Beafadas em época muito anterior à data do referido termo de cessão”. E no mesmo documento o Governador clarifica a falta de direitos históricos dos franceses no Casamansa.

A diplomacia portuguesa procura uma arbitragem para a questão de Bolama, é o que faz o Conde do Lavradio junto de Lord John Russell. As reivindicações britânicas a Bolama não param, do lado português envolvem o Duque de Loulé e o Conde d’Ávila. A questão que Portugal propõe que se submeta a arbitragem é o exame do fundamento com que as duas nações, Portugal e Inglaterra, reclamam a posse e a soberania da ilha de Bolama, e também o facto de a Inglaterra clamar ainda mais alguns territórios no continente africano.

Senna Barcelos não esquece de registar outros conflitos, caso do que se passa na região do Geba em 1865, envolvendo Futa-Fulas contra Mandingas. O território do Geba pertencia ao rei de Ganadú, este resistiu ao ataque dos Fulas e estes pediram a paz. Também nesse ano o Governador-geral deu conhecimento de um contrato feito pelo Governador de Cacheu com os régulos das regiões limítrofes de Ziguinchor. À volta do presídio de Geba, os Fulas revelavam-se hostis, a questão só será apaziguada mais tarde. Prosseguem as hostilidades britânicas, a bandeira portuguesa é sistematicamente arreada em Bolama, e enquanto isto se passa reacendem-se os conflitos no Rio Grande entre Fulas e Beafadas.

Em 26 de outubro de 1868, solicitou o ministro Carlos Bento ao nosso diplomata em Washington, Miguel Martins d’Antas, a sua intervenção junto de Mr. Seward para este diligenciar se o presidente dos EUA se prestava a arbitragem, a resposta favorável chega a 20 de novembro. O Conde d’Ávila dirige a redação da exposição histórica e jurídica dos factos, acompanhada das provas aduzidas em apoio da mesma, a qual foi enviada para Washington. A sentença favorável a Portugal foi proferida a 21 de abril de 1870 e em 1 de outubro desse ano a bandeira inglesa foi arreada em Bolama. Em maio do ano seguinte determinou-se que o território da Ilha de Bolama e do Rio Grande fosse considerado um concelho do distrito da Guiné.

Dá-se a insubmissão da região do Churo a Cacheu. No final do ano de 1876 criou-se na Guiné uma comarca judicial, com sede em Bissau. E chegamos ao desastre de Bolor. Em 30 de dezembro de 1878 foi massacrada na margem direita do rio Bolor uma força militar que para ali fora com o governador do distrito. O impacto do desastre chega a Lisboa e o Governo decretou em 18 de março de 1879 a desanexação do distrito da Guiné da província de Cabo Verde, a Guiné passava a ser uma província independente e o seu primeiro Governador foi Agostinho Coelho.

Há que fazer o comentário de que estes últimos anos do acompanhamento dos factos históricos da Guiné por Senna Barcelos decorrer a um ritmo muito apressado e apresentado de forma muito sincopada. Ele termina o seu trabalho dizendo: “Ao fim de darmos as nossas investigações que datam de 1460 podemos dizer que os maiores benefícios que a província experimentou começaram em 1859”.

E aqui também damos por finda a extensa recensão daquela investigação que bem merece se encarada, em período contemporâneo, como o primeiro arremedo historiográfico que foi conferido à Guiné.


Mapa histórico da Senegâmbia em 1707
Imagem retirada do blogue ePortuguêse, com a devida vénia
Destroço da estátua de Honório Pereira Barreto no interior da fortaleza de Cacheu
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23085: Historiografia da presença portuguesa em África (308): "Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné", as partes I e II foram editadas em 1899, o seu autor foi Cristiano José de Senna Barcelos, Capitão-Tenente da Armada (12) (Mário Beja Santos)

sábado, 12 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23073: Os nossos capelães (17): José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71), ainda no ativo como padre das Missões da Consolata


José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71)



José Torres Neves, missionário da Consolata,
 um dos 113 capelães  prestaram serviço no TO da Guine





Fonte: Excerto, adapt de Henrique Pinto Rema - "História das Missões Católicas da Guiné": Editorial Franciscana, Braga, 1982, pp. 709-712 (Vd. a extensa recensão bibliográfica feita pelo nosso camarada e colaborador permanente Mário Beja Santos) (*)



1. Mensagem de nosso camarada e amigo Ernestino Caniço, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, Fev 1970/Dez 1971, hoje médico, a residir em Tomar.

Data - 12 mar 2022 16:39 
Assunto - Capelães

Caros amigos

Sobre o tema os nossos capelães (**), e, aproveitando a sugestão do Luís Graça, venho dar um pequeno contributo com algumas notas. E elas referem-se ao capelão José Neves com quem desenvolvi amizade, que ainda hoje se mantem.

Os nossos contactos têm-se mantido com a regularidade possível, uma vez que faz parte das Missões da Consolata, estando em missão em várias partes do mundo, encontrando-nos sempre que vem de férias (não amiúde). Daí, que só agora espicho estas breves notas, após obtida a sua anuência.

José Torres Neves, ex-alf graduado capelão,  integrou o BCAÇ 2885,  sediado em Mansoa. Prestou serviço de 1969.05.07 a 1971.03.03.

De acordo com a sua informação,  foi o único capelão das Missões da Consolata a prestar serviço na Guiné.

Votos de ótima saúde.
Um abraço,
Ernestino Caniço


Brasão do BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). 
Divisa: "Nós Somos Capazes". 
Subunidades de quadrícula: CCAÇ 2587, 
CCAÇ 2588  e CCAÇ 2589




Guiné > Região do Oio > Mansoa > BCAÇ 2885 (1969/71) > 1969 >  O alf graduado capelão José Torres Neves com o cap eng trms, STM, Bento Soares, aqui à civil (sendo hoje maj gen ref, nosso grã-tabanqueiro nº 785). Ambos naturais de Meimoa, Penamacor. 

Foto (e legenda): © João Afonso Bento Soares (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22872: Notas de leitura (1405): "Descobrimento Primeiro da Guiné", por Diogo Gomes; Edições Colibri, Junho de 2002 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Novembro de 2018:

Queridos amigos,
A todos os títulos, a quem se interessa por este período da alvorada dos Descobrimentos Portugueses e do início da presença portuguesa na Guiné, é de recomendar esta obra que tem dois peritos com nome feito, Aires Nascimento e Henrique Pinto Rema, este sobejamente conhecido no blogue, pois fez-se largas referências ao seu incontornável livro sobre a História das missões católicas na Guiné. Diogo Gomes de Sintra, parece dado assente, narrou a Martim Behaim este espantoso relato, em tantos pontos coincidente com a descrição do projeto henriquino feito por Zurara. É uma narrativa com cunho muito próprio, fala-se das Canárias, Madeira e Açores, da Gâmbia, de Cantor, de Tombucutu e do Rio Geba. E parece também historicamente seguro que depois do massacre de Nuno Tristão e companheiros, o Infante D. Henrique e mais tarde o Infante D. Fernando e depois D. Afonso V curaram de usar uma política de diálogo e cooperação com as populações africanas. Com resultados assinaláveis, como se sabe, passou a prosperar o tráfico negreiro.

Um abraço do
Mário



Descobrimento Primeiro da Guiné, por Diogo Gomes de Sintra

Beja Santos

Diogo Gomes de Sintra faz obrigatoriamente parte da relação da literatura de viagens em torno da costa da Guiné, da Senegâmbia, entre outras paragens, já que na sua narrativa refere as ilhas da Madeira, dos Açores e das Canárias e mesmo o descobrimento do arquipélago de Cabo Verde. A edição crítica de Aires A. Nascimento e a introdução histórica de Henrique Pinto Rema enriquecem esta publicação a cargo da Edições Colibri, junho de 2002. Atenda-se ao que se escreve na contracapa: “Diogo Gomes de Sintra, almoxarife desta vila, é um dos homens da casa do Infante D. Henrique, por ele enviado em expedições de descobrimento. É o único navegador desse círculo a legar-nos apontamentos de memórias das navegações. A razão das suas notas envolve relações com Martin Behaim (da Boémia). Não tem sido pacífica a atribuição da autoria do texto que Diogo Gomes escreveu para o alemão e que nos ficou em testemunho do célebre Manuscrito Valentim Fernandes. (…) A nova edição, atendo-se aos critérios filológicos mais estritos, recupera na sua espontaneidade de testemunho escrito em latim para um estrangeiro, revelando particularidades menos atendidas anteriormente. Paralelo à Crónica da Guiné de Zurara, o texto de Diogo Gomes preserva o testemunho e as reações de um homem que tomou parte na aventura dos mares ocidentais”.

Oiçamos Pinto Rema:
“Estamos perante um dos primeiros textos dos Descobrimentos Portugueses. Mais tardio que a Crónica da Guiné de Zurara, e certamente sem a dimensão dela, constitui uma fonte histórica ímpar, pois nele a experiência conta mais do que o purismo da língua latina ou do que a retórica de gabinete. Enunciado o seu relato em primeira pessoa, Diogo Gomes de Sintra entrega-se na espontaneidade de quem não precisa de elaborar construções discursivas para deixar entender como vibra com a sua própria experiência”. Mais adiante, e sempre a propósito da autoria do texto, já que se cruzam os nomes de Diogo Gomes com Martim Behaim e Valentim Fernandes, observa ainda Pinto Rema: “Aduzem alguns autores que apenas Martim Behaim, e não Diogo Gomes, teria formação para escrever um texto em latim. Não parece que ao germânico se possam atribuir qualidades que faltassem ao sintrense”. Pinto Rema não tem quaisquer dúvidas de que a autoria da obra é de Diogo Gomes de Sintra, abonando a seu favor a expressão em primeira pessoa, os lusismos, impossíveis para autores estrangeiros, e a maneira como o autor se refere em eventos em que participou, para já não falar nas ligações ao Infante D. Henrique e a interpretação que faz das razões que levaram o Infante aos Descobrimentos. Ele foi testemunha ocular, reteve pormenores de iniludível valor: as trocas entre negros e portugueses na feitoria de Arguim; ouro proveniente de Tombucutu por troca; no Rio Grande ele próprio comprou seda, algodão, dentes de elefante e malagueta; no rio Gâmbia andou à procura de ouro em troca de tecidos e atingiu Cantor, que lhe deu informações sobre as caravanas de ouro. Exprime com clareza as razões que presidiam à ação do Infante, as comerciais, a procura de estabelecer relações com o Preste João, o estabelecimento de feitorias e a possibilidade de evangelização, ou seja, corrobora o que escreveu Zurara.

Passando ao conteúdo: ele principia pela conquista de Ceuta em 1415; refere as explorações marítimas de reconhecimento além do Cabo Bojador, e assim se chega à região da Costa da Guiné. Vale a pena dar de novo a palavra ao Padre Henrique Pinto Rema:
“Ao atual território da República da Guiné-Bissau, segundo a opinião geralmente aceite até há cinquenta anos, chega, em 1446, o navegador Nuno Tristão, que por segunda vez é mandado à Costa da Guiné. Os Sereres e os Barbacins receberam os cristãos com setas envenenadas, mataram-nos a todos e fizeram a caravela em pedaços. Anos depois, segundo recorda o autor, o rei Nomimans, isto é, o mansa (rei) de Nomi, presenteou Diogo Gomes com uma âncora da caravela destruída. O navegador gaba-se de ter sido o primeiro cristão que firmou com aqueles africanos um tratado de paz.
Segunda outra opinião, só em 1456 terá sido atingido o território da atual Guiné-Bissau. Nomeiam-se os mareantes italianos (ao serviço do Infante D. Henrique) Luís de Cadamosto, Antonioto Usodimare e escudeiros do Príncipe, em três caravelas, e Diogo Gomes, João Gonçalves Ribeiro e Nuno Fernandes da Baía, em outras três caravelas. Cumpriam ordens do Infante de avançar o máximo para o Sul. Diogo Gomes menciona o rio de S. Domingos, hoje com o nome de rio Cacheu, e o rio Fancaso ou Rio Grande, hoje com o nome de Rio Geba.
O relato de Diogo Gomes testemunha as tentativas de encontro pacífico dos portugueses com outras raças e religiões”
.

O padre Rema lembra ainda que esta obra se insere numa série de textos que se completam e explicam mutuamente: a Crónica dos Feitos da Guiné, de Zurara, Viagens de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra, o Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, o Itinerarium, de Jerónimo Munzer e a miscelânea do Códice Valentim Fernandes.

O texto de Diogo Gomes de Sintra é do estilo narrativa, abre com o plano henriquino e as viagens do seu tempo; usa um estilo muito pessoal, diz Ptolomeu se enganou acerca da divisão do mundo, os navegadores descobriram que era tudo diferente, havia terra habitada por negros e “então grande multidão de gente que custa a acreditar; a parte meridional está coberta de árvores e de frutos, ainda que os frutos sejam de natureza fora do comum e as árvores sejam de tal grossura e tão altas que não dá para crer. Sem mentir digo que vi uma grande parte do mundo, mas nunca vi coisa semelhante a esta”; refere as viagens de Nuno Tristão, como se navegou diretamente até Cabo Verde (ponto continental de África), até à região dos Sereres, onde foram trucidados; descreve a viagem em que chegaram à Guiné, passaram o rio de S. Domingos e o rio Grande, aqui se parou, “E não passámos além por causa das correntes de mar. E quando veio a maré vazante aconteceu-nos o mesmo que antes e assim tivemos que regressar aonde tínhamos saído. Tomámos terra num lugar perto da praia. Fomos ali e descobrimos uma terra espaçosa cheia de feno. Naquele campo, vimos mais de cinco mil miongas (espécie de antílopes) como se diz na língua dos negros, são animais um pouco maiores que veados. Ali vimos saírem de um pequeno rio, coberto de árvores, cinco elefantes. Descobrimos na praia do mar muitas tocas de crocodilos. E regressámos às naus”; seguem-se outros relatos, que envolvem a Gâmbia, Cantor, Tombucutu, Arguim; fala do eterno Infante D. Henrique e das expedições armadas ao tempo de D. Afonso V, com idas às Canárias, Açores e Madeira. Um relato deslumbrante, mais um documento precioso para estudar a alvorada da presença portuguesa na Costa da Guiné.

Costa da África e da Guiné até à ilha de São Tomé (Fernão Vaz Dourado, 1571) (ANTT, Lisboa).
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE DEZEMBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22861: Notas de leitura (1404): Joaquim Costa, "Memórias de guerra de um Tigre Azul: O Furriel Pequenina. Guiné: 1972/74", Rio Tinto, Gondomar, Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp. - Parte I: "E tudo isto, a guerra, para quê ? Não sei"...

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22627: Historiografia da presença portuguesa em África (285): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Dezembro de 2020:

Queridos amigos,
Creio que se recordam que aqui se fez a recensão de um livro memorável História das Missões Católicas na Guiné, do Padre Henrique Pinto Rema, é indiscutivelmente a obra com mais significado no campo missionário. Fiz uma súmula de cerca de doze páginas deste incontornável trabalho, espero inseri-lo num livro em preparação "Guiné, Bilhete de Identidade", quem dele quiser ter acesso é só pedir-me. Atenda-se ao espírito da época em que Jorge Velez Caroço exige mais às missões, articula o seu trabalho com a implantação do espírito de ser português, a religião é tida como um dado civilizacional, uma outra acepção do patriotismo, revela o administrador colonial uma manifesta propensão para o uso do crioulo, um passo para a língua portuguesa, e recorda ao governador Carvalho Viegas que onde se põe uma igreja também se deve pôr uma mesquita. Algo mudará nos anos seguintes, com o Ato Missionário, em consequência da Concordata de 1940, mas serão os italianos a aparecer com mais força, como se sabe.

Um abraço do
Mário



Acerca das missões religiosas na Guiné, década de 1930

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, com o n.º Res1-Est145, Pasta P-N.º9 consta um relatório assinado pelo Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Jorge Frederico Torres Vellez Caroço, com data de 19 de maio de 1934, dirigido ao Governador Carvalho Viegas. O assunto tem a ver com as missões religiosas na Guiné e inicia-se num tom um tanto bombástico:
“Serão talvez as minhas palavras a minha sentença de morte como elemento de ação funcional nesta colónia, mas não importa, pois que, acima dos interesses pessoais e dos interesses de coletividade estão os da Nação. Abordo, Sr. Governador, o problema das Missões Religiosas.
Tem colhido benéficos resultados para a colónia vizinha a ação desenvolvida pelos seus missionários e o seu cuidado vem sendo tal que têm educado e feito missionários indígenas – conforme em tempos idos em Portugal se praticava – entre os quais se contam um Felupe e um Manjaco. Sabe V.ª Ex.ª quem são estes dois indígenas? Um Felupe de Jufunco e um Manjaco da Costa de Baixo. Dois indígenas da nossa colónia. Preferiram estes aos seus próprios indígenas. Sabe V. Ex.ª qual é a língua que estes e outros missionários franceses da região do Casamansa falam aos indígenas da sua própria colónia? O crioulo. Cito até um facto curioso e muito interessante. Em 1932 fez-se em Cacheu uma festa religiosa à Nossa Senhora da Candelária, a santa padroeira daquela vila. Vieram assistir à festa os missionários da colónia vizinha – a pedido dos missionários de Santo António de Bula – e autorizado pelo então vigário-geral nesta colónia, que impôs a condição de os missionários franceses pregarem obrigatoriamente em português e, de facto, tendo um deles subido ao púlpito para pregar disse o seu sermão em crioulo da Guiné, fazendo-se compreender por toda a gente melhor que os nossos próprios missionários. Mas há mais. Até o catecismo que é distribuído aos indígenas é escrito em crioulo da Guiné. Como eles cuidam de tudo, em que nós nem sequer pensamos…


É desolador, Sr. Governador, entrarmos em território estrangeiro e vê-lo repleto de indígenas portugueses, e a toda a hora nós vemos os missionários nas suas bicicletas percorrendo toda a região sem olharem a perigos. Numa palavra, as Missões Religiosas Francesas cumprem religiosamente a sua missão; as nossas têm até hoje sido nulas ou quase nulas, procurando instalar-se apenas nos grandes meios, ou nos meios mais pacíficos, rodeados unicamente dos indígenas chamados cristãos, desenvolvendo apenas o seu papel de padres e tendo até hoje posto completamente de parte a sua ação missionária e civilizadora. Até em Bula, único meio indígena onde instalaram a sua ação, longe trazer benefícios à colónia, tem trazido inconvenientes.

Caraterizava outrora os nossos missionários o espírito de sacrifício levado ao exagero, ao serviço da Cruz, sim, mas ao serviço da Nacionalidade, carateriza-se hoje o espírito da conveniência e do comodismo, com um desapego quase absoluto pelos interesses da nação, preocupando-se apenas com o que convém à sua comunidade e querendo apenas ser padres. Têm oposto, como V.ª Ex.ª sabe, uma resistência passiva enorme à sua ida para os Felupes e os Bijagós. Para que são necessários missionários em Cacheu e Geba? Para que são necessários três missionários em Bula? Porque não se vão estabelecer nas regiões em que os interesses da Pátria exigem a sua presença? A sua função na colónia não é dizer missa, não é para isso que ela faz o sacrifício de centenas de contos. Se as populações católicas das povoações aonde estão fixados querem padres que façam como se faz na Metrópole, que os mantenham, porque os missionários são necessários para outros fins, e estes não se resumem apenas em aumentar o número de adeptos à religião cristã, circunstância que dentro do importantíssimo papel que lhes compete desempenhar deve ocupar apenas um lugar secundário. Vejamos o que dizia esse grande português e colonial que se chamou António Enes, no seu relatório de 1893: ‘O catolicismo já dispôs de toda a África Portuguesa durante séculos, quando também dispunha de heróis e mártires para o apostolado, quando a espado servia de haste à Cruz, quando eram de oiro as conchas dos batizados, quando se exterminavam povos para lhes salvar as almas, quando os mosteiros eram paços tendo reinos por cercas, e, todavia, da sua propaganda e da sua tutela, servidos pelo poder civil de joelhos, impostas pelas armas quando não logravam fazer-se aceitar pela palavra, ajudados por todas as fascinações da riqueza, só ficaram ruínas pomposas nos sertões e nas crónicas memórias elegíacas de sacrifícios estéreis, ou triunfos efémeros! As ordens religiosas prestaram em África serviços que não se podiam exigir do seu caráter. Ensinaram coisas novas e muitas ciências, revelaram descobrimentos à Geografia, deram valiosos socorros à Política. Mas não deixaram arvorada a cruz senão onde a força ficou de guarda e esse símbolo da religião do amor não entranharam nos espíritos, nos sentimentos, nos costumes dos povos não ficou uma recordação do Cristianismo. Dos milhões de indígenas que batizaram não se gerou um cristão. De tantas conversões de régulos que operaram, não resultou uma única modificação no estado social das raças africanas".

E Jorge Velez Caroço continua:
“Em Portugal apenas se fazem padres e não os padres que nós necessitamos. É uma utopia pensar em aniquilar as crenças religiosas dos indígenas. Mas se o indígena for ao mesmo tempo educado no respeito pela Nação e identificado nas vantagens que do seu domínio resultam para o seu bem moral e material, teremos atingido os fins que a Nação exige, e a religião terá conquistado sempre o mesmo número de adeptos. É, pois, este último, o critério que devemos adotar. Há dias foi o administrador da circunscrição de Suzana procurado em Ziguinchor por indígenas Brames que do nosso passaram para o território francês, manifestaram-lhe a pretensão de voltarem e de se fixarem na área da circunscrição de Suzana, região de S. Domingos, desde que lhe dessem um padre e uma igreja, acrescentando ser grande – algumas centenas – o número de indígenas que tanto desejavam. Só a necessidade absoluta de instalar uma missão em plena região dos Felupes não fosse já indiscutível e imprescindível, a conveniência e a oportunidade de podermos povoar a quase deserta região de S. Domingos, só por si também impõe essa medida, e, assim, Sr. Governador, afigura-se-me indispensável a intervenção do governo da colónia na ação das missões religiosas aqui instaladas, impondo-lhes a obrigação de se fixarem onde os interesses da Nação assim o exigem, visto que a iniciativa com elas pouco os preocupa. As conveniências dos cristãos de Cacheu, Geba e outros pontos nada valem, em face dos interesses da Nacionalidade e obrigarem as missões a cumprirem o seu dever será motivo bastante para que elas amanhã agradeçam a quem as despertou do marasmo.
Pode V.ª Ex.ª com os meios de que dispõe auxiliá-los na construção de casa própria para a sua instalação e uma igreja na região dos Felupes, Suzana ou Varela podiam ser os pontos a escolher. A construção de uma pequena ermida em S. Domingos é também indispensável. Na região de S. Domingos há muitos indígenas que professam a religião muçulmana, e como estes não têm contato algum com aqueles que se aproximam dos princípios da religião cristã – porque o pediram já e porque tanto convém ao repovoamento da região – aconselhável se torna que auxiliemos também a construção de uma mesquita. Assina em Bolama, em 8 de março de 1934, Jorge Frederico Torres Velez Caroço".

Igreja de S. José de Bolama na atualidade
Casas da Rua de São José, na região de Alfândega, Bissau, década de 1890
Bissau na década de 1960, ao fundo a estátua de Honório Pereira Barreto
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Nota do editor

Último poste da série de 6 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Guiné 61/74 - P22604: Historiografia da presença portuguesa em África (284): História breve da Guiné Portuguesa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Outubro de 2018:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, era uma tremenda injustiça não referir este ensaio inserido num número da revista "Ultramar" onde há outros trabalhos que merecem destaque, como é o caso do artigo de António Carreira dedicado à Guiné e às ilhas de Cabo Verde, o estudioso refere a sua unidade histórica e populacional, bem como o artigo de Rogado Quintino, sobre os temores ao Deus-Irã, entre outros. Em dezenas de páginas, o historiador Banha de Andrade circunscreveu-se à problemática do descobrimento da Guiné, ao histórico da presença portuguesa até à I Guerra Mundial e dados civilizacionais como as missões. Discreto e sóbrio, nada propagandístico, não há para ali nenhuma mentirola sobre os nossos cinco séculos na Senegâmbia.

Um abraço do
Mário



História breve da Guiné Portuguesa

Beja Santos

É do conhecimento geral que a Guiné Portuguesa não dispõe de um livro histórico minimamente atualizado. Houve tentativas, no todo ou na parte, deixaram o seu rasto, e a sua leitura é recomendada. Logo João Barreto com a sua “História da Guiné (1418-1918) ”, de 1938; a “Guiné Portuguesa” de Avelino Teixeira da Mota, 1954; Mário Matos e Lemos publicou “Os portugueses na Guiné – apontamentos para uma síntese”, em 1917; e possuímos uma vasta bibliografia parcelar com autores como António Carreira, José da Silva Horta e Eduardo Costa Dias, Carlos Lopes, Peter Karibe Mendy, René Pélissier, Armando Tavares da Silva, Julião Soares Sousa, Francisco Travassos Valdez, Philip Havik, António Duarte Silva, Francisco Henriques da Silva e este autor. Mas havia um esquecimento imerecido, na revista “Ultramar” N.º 32, 1968, dedicado à Guiné tem destaque a história breve da Guiné Portuguesa, de António Alberto Banha de Andrade, historiador e professor universitário.

O seu ensaio é organizado em torno dos problemas da descoberta da Guiné, da soberania portuguesa e da civilização, com destaque para os problemas de missionação. Pode trazer muitos dados consabidos, outros entretanto aclarados, mas o historiador consulta fontes probas, fez uma súmula de acontecimentos que ajudarão o investigador e o curioso. E como? Falando da origem do termo ‘Guiné’, das viagens em torno da Costa de África e quando se dobrou o Cabo Bojador, a ignorância dos nautas portugueses e dos árabes era profunda quanto a geografia e as populações residentes. Recorda o autor as viagens feitas no interior do continente para contatar o chefe dos Mandingas no alto Níger, Diogo Gomes subiu pelo Gâmbia até Cantor. “Duarte Pacheco Pereira, em 1505, informa que os portugueses denominam Guiné a Etiópia que se estende do rio Senegal até ao cabo da África”. Sonhava-se em chegar a Tombuctu, era a miragem das relações comerciais. E mais adiante, já precisando a descoberta da Guiné: “Atribui-se essa glória a Nuno Tristão, morto pelos nativos do rio Grande, o atual Geba. Duarte Leite, porém, secundado por Damião Peres, acreditam nas narrativas de Diogo Gomes e Cadamosto e optam pelo descobrimento por um destes, em 1456. Avelino Teixeira da Mota ainda deixa a Nuno Tristão a glória de haver sido o primeiro português a entrar em contato com os Mandingas. Nuno Tristão não teria chegado ao atual território da Guiné Portuguesa, porque fora trucidado na região do Niumi, entre o Gâmbia e o Jumbas, a região dos Barbacins dos nossos cronistas”. Pondo ainda outros nomes em cima da mesa, conclui o autor: “Assentamos que, sendo natural ter-se efetuado o descobrimento da Guiné Portuguesa em 1446 ou perto deste ano, e nunca em 1456, as honras dessa proeza se devem continuar a atribuir a Nuno Tristão, à falta do nome do navegador que se seguiu à sua viagem e à de Álvaro Fernandes”.

Quanto ao problema da soberania, o historiador recorda a gestão do comércio cedida pela Coroa aos habitantes de Cabo Verde, o arrendamento a Fernão Gomes, a concorrência de espanhóis, ingleses e holandeses no então vasto litoral da Senegâmbia. O período filipino foi nefasto para os interesses portugueses na região, o comércio transitara para as mãos dos espanhóis, franceses, ingleses e holandeses, recuou a presença portuguesa para limites geográficos bastante próximos àqueles que irão ser definidos na Convenção Luso-Francesa de 1886. O autor refere que após a Restauração, se fundou capitanias, companhias de comércio, se mantém o tráfico de escravos, predominantemente na região de Cacheu, surge a primeira fortificação de Bissau, a ameaça da presença inglesa e o progressivo alargamento de feitorias francesas no Casamansa. Na primeira metade do século XIX, distingue-se Honório Pereira Barreto que redigiu a cáustica e exemplar “Memória sobre o estado atual da Senegâmbia Portuguesa, causas da sua decadência, e meios de a fazer prosperar”, com data de 1843. Em 1879, a Guiné passa a ser província independente de Cabo Verde, reorganizam-se os serviços e a pressão francesa é sufocante. “A França exigiu que, em troca do apoio ao plano de ligar Angola e Moçambique, o governo português lhe reconhecesse a posse da rica bacia do rio Casamansa. Barbosa du Bocage, ministro dos Negócios Estrangeiros, aceitou a condição. Entretanto, novo Governo subiu ao poder, e o progressista Henrique de Barros Gomes, que sobraçou aquela pasta, não aprovou, de entrada, a renúncia do seu antecessor. Porém, era tarde de mais e as negociações foram fechadas”. O autor explana sobre a organização administrativa da colónia e releva a Carta Orgânica de 31 de maio de 1917.

A última parte do trabalho de Banha de Andrade prende-se com a questão da civilização, é uma presença praticamente reduzida ao litoral durante séculos, o contributo cabo-verdiano é determinante, a presença tem destaque no Casamansa, em Cacheu, em Bolola, na região de Buba, em Bolama e outros locais dos Bijagós. O autor socorre-se de documentos como o de Francisco Lemos Coelho, do século XVII, que dá um retrato da presença portuguesa na região. A história missionária que Banha de Andrade aqui descreve tem afinidades com o trabalho incontornável do padre Henrique Pinto Rema sobre as missões católicas na Guiné, digamos que as missões foram mal sucedidas menos por encontrar populações evangelizadas, mais pelos problemas do clima e a hostilidade dos comerciantes e traficantes. Tal como estudou Teixeira da Mota, Banha de Andrade faz menção a uma visita pastoral do Bispo de Cabo Verde à Guiné, ilha de Bissau, onde chegou D. Vitoriano do Porto, em 27 de março de 1694. O régulo recebeu-o ao som de música. Depois D. Vitoriano seguiu para Farim e Cacheu e daqui regressou a Santiago, Cabo Verde.

É um estudo onde está ausente o espalhafato ou a exaltação propagandística de que os portugueses estavam presentes por toda a Guiné, o que não tem ponta de verdade. Diz o que efetivamente aconteceu nas missões e recorda aquela figura invulgar do Padre Marcelino Marques de Barros, autor do livrinho “Literatura dos Negros” e o primeiro arremedo de dicionário português-crioulo. É de elementar justiça pôr o trabalho de Banha de Andrade na bibliografia geral sobre a Guiné Portuguesa.


António Alberto Banha de Andrade
Almirante Teixeira da Mota
Obra de 1973 em que Teixeira da Mota republicou o seu incontornável trabalho sobre o descobrimento da Guiné.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE OUTUBRO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22587: Historiografia da presença portuguesa em África (283): Texto dos acordos de Argel, Lusaka e Alvor e seus anexos

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21579: (In)citações (172): Frei Francisco Macedo (1924-2006), um madeirense, homem de Igreja e de Cultura, profundamente ligado à história contemporânea da Guiné-Bissau (Paulo Salgado, ex-alf mil op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72)


Guiné- Bissau > Bissau > c. 2010 > Vista aérea do centro histórico: Av Amílcar Cabral (, antiga Av da República, que partia da Praça do Império). Em primeiro plano, a Catedral de Bissau. 


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] (*)



Paulo Salgado

1. Mensagem do Paulo Salgado [ex-Alf Mil Op Esp, CAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72); transmontano de Torre de Moncorvo, administrador hospitalar reformado;  autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier"; autor também da série do nosso blogue, "Bombolom"; tem mais de um centena de referências no blogue]


Data - 27/10/2020 , 22:28
Assunto - O Padre Macedo: a memória de um franciscano, um cidadão e um clérigo exemplar.

Camaradas do Blogue,

Desejo partilhar convosco uma referência ao Padre Francisco Macedo, natural da Madeira, tendo-lhe sido prestada uma singela e sentida homenagem em 2007. Mas nunca é demais recordá-lo. 

Por esta razão, respigo, abaixo, alguns trechos da referida homenagem. Escreveu-se, bem, sobre Frei Heitor Pinto Rema (**). Permiti-me que invoque Frei Francisco Macedo.

Confesso que não conhecera o Frei Francisco Macedo, no tempo da guerra; apenas travei conhecimento com este grande cidadão e clérigo por força de duas circunstâncias felizes.

Na minha primeira ida à Guiné-Bissau, entre Novembro de 1990 e Outubro de 1992 – portanto quase dois anos, tantos quanto a tal estada entre 1970 e 1972 – fui à residência dos franciscanos para cumprimentar o Padre Sobrinho, também franciscano, irmão do Dr. Sobrinho, meu antigo professor no Colégio Campos Monteiro, em Torre de Moncorvo. Naquele momento, tive oportunidade de conhecer o Padre Macedo. Por três vezes visitei os decanos franciscanos na sua residência e havia…um sempre um Porto!

O segundo aspecto respeita ao facto de a minha filha Maria Paula (quinze anos) ter sido aluna de Português (11.º ano) do Padre Macedo. Com a temperança que se lhe reconhecia, os alunos adoravam-no. E acabavam por aprender a língua portuguesa. 

Um dia, fui buscar a Maria Paula ao fim da tarde, e o Padre Macedo chamou-me e disse: "Sabe, a sua filha é, talvez, a melhor aluna de Português que tive ao longo de mais de quarenta anos".

Claro que fiquei feliz!  (***)

Paulo Salgado 
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Frei Francisco Macedo: Homem de Igreja e de Cultura (1924-2006)  (Excertos)

Ecclesia > Abr 4, 2007 - 10:57  

Realizou-se no passado dia 1 de Abril, uma homenagem póstuma ao Fr. Francisco Macedo, no Centro Cultural John dos Passos, na Ponta do Sol, Made
ira.

Sendo o primeiro sacerdote franciscano natural da Ilha da Madeira, após a extinção das Ordens Religiosas em 1834, pretendeu-se com esta homenagem dá-lo a conhecer na sua terra natal e perpetuar a sua memória. 

Esta homenagem contou com o apoio da Câmara Municipal da Ponta do Sol e da Direcção Regional dos Assuntos Culturais. Para além dos autarcas locais, marcou ainda presença o Bispo do Funchal, D. Teodoro de Faria e o Provincial dos Franciscanos, Fr. Isidro Lamelas. (...) 

Fr. Macedo nasceu na Ponta do Sol a 2 de Abril de 1924. Por influência da avó paterna, terceira franciscana, entrou para a Ordem Franciscana em 1937 (Colégio de Montariol, Braga), tendo realizado a Profissão Solene em 1946, no Convento de Varatojo, e a Ordenação Sacerdotal em 1949, no Seminário da Luz, em Lisboa. 

Após uma curta permanência na Casa de Sto. António à Sé, partiu para as missões da Guiné-Bissau em 1951. Como missionário distinguiu-se, sobretudo, como pedagogo e educador da juventude. Sendo professor do Liceu Honório Barreto, em Bissau, recebeu a mais alta distinção do país pelos bons serviços prestados ao serviço da Educação: a condecoração com a Ordem de Instrução Pública, a 4 de Fevereiro de 1968, pelas mãos do então Presidente da República, Américo Tomás. 

Em 1973 toma posse como Reitor do mesmo Liceu, na presença do então Governador da Guiné, General António Spínola, sendo reconduzido no cargo, em 1975, pelos novos dirigentes da Educação, após a independência do país. 

No ano seguinte, convidado a trabalhar no Ministério da Educação, torna-se Assessor e Conselheiro do Ministro da Educação, chefiando o Gabinete de Planeamento e Estatística, departamento central do ministério. 

Foi ainda Director do Liceu Diocesano João XXIII, desde 1983, por indicação do Bispo de Bissau, D. Septtimio Ferrazetta. (...)

Fr. Macedo dedicou-se ainda à promoção do cinema, da fotografia, do teatro e da dança. Contudo, foi na música e no canto que mais se fez sentir o seu pendor artístico.

Criou o Orfeão de Bula, com cerca de 100 vozes, executando, estes, canções em latim, a três e quatro vozes, na Catedral de Bissau, nos ofícios e cerimónias da Semana Santa.

Presidiu à Comissão Diocesana de reforma e adaptação do canto litúrgico, tendo musicado, em três livros, os salmos dominicais vertidos para o Crioulo.

Foi ainda o responsável pela encomenda do órgão de tubos da Catedral, de fabrico alemão, em 1955, por ocasião da visita do Presidente da República, Higino Craveiro Lopes, tendo composto a música e letra de um hino, para esse efeito, que ficou célebre em toda a Guiné.

Deixando de trabalhar no Ministério da Educação da Guiné, em 1989, é condecorado pelo Governo do país que o louvou, oficialmente, pela Ordem nº 1/89, do Conselho de Ministros, reconhecendo-lhe as “excepcionais qualidades reveladas no exercício das diferentes funções que lhe foram confiadas no âmbito da educação, pelos seus dotes de inteligência, capacidade de trabalho, dedicação e espírito de sacrifício do que adveio uma profícua colaboração em prol do ensino, o que é grato destacar em sinal de reconhecimento do governo e do povo guineense”.

Em 1997, regressa a Portugal, por motivos de saúde. Após algum tempo no Convento de Leiria, foi colocado no Convento de Nª. Sra. da Penha, no Funchal. 

Foi Superior da Fraternidade, Assistente da União Missionara Franciscana (UMF), Capelão do Instituto Prisional da Cancela e, sobretudo, Confessor em muitas comunidades religiosas e paróquias. Faleceu a 6 de Março de 2006. 

 
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Notas do editor:


(*) Vd. poste de 14 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20344: Roteiro de Bissau: fotos de c. 2010, de um amigo do Virgílio Teixeira, empresário do ramo da hotelaria - Parte I


(***) Último poste da série > 6 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21520: (In)citações (173): Muitos parabéns, Professor Jorge Cabral, meu Mestre! (Petrouska Ribeiro, Luanda)