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sexta-feira, 21 de junho de 2019

Guiné 61/74 - P19906: Historiografia da presença portuguesa em África (163): Ainda a viagem, ao Indornal (na atual Gâmbia), em março de 1883, do alferes Francisco António Marques Geraldes, cmdt do presídio de Geba, para ir resgatar duas mulheres cristãs, raptadas em São Belchior (Cherno Baldé / Armando Tavares da Silva / Mário Beja Santos)



Parte V - De Catedi (dia 15) a  Indornal (dia, 16)


Parte IV - De Salicocum (dia 14,) a  Catedi (dia 15, pernoita)



Parte III - Menino Cundá (dia 13, pernoita) a Salicocum (dia 14, pernoita)



Parte II -  De Sede  Cundá (dia 12)  Menino Cundá (dia 13, pernoita)



Parte I - De Geba, dia 11 de março de 1883, a  Sede Cundá (dia 12, pernoita)



Percurso seguido pelo alferes Francisco Marques Geraldes entre Geba e o Indornal, de 11 a 16 de março de 1883 (feita a partir da Carta original conservada na Sociedade de Geografia de Lisboa)





1. Comentários (ao poste P19905),  de Cherno Baldé, Armando Tavares da Silva e Mário Beja Santos (*):

(i) Cherno Baldé:

Caro amigo Armando da Silva,

No dia 17 do corrente fiz um comentário num Poste de Luís Graça sobre a região de Ganadu/Joladu e do seu primeiro régulo Fula, Mbucu ou Umbucu, contemporâneo do ten Marques Geraldes, nos seguintes termos:

Luís,

O Régulo de Joladu que é o mesmo que dizer Ganadu, seria da linhagem do régulo M'bucu ou Umbucu que, em 1886, ofereceu a logística e o serviço dos seus homens para apoiar o ten Marques Geraldes na Batalha de Fanca (Sancorlã) contra os homens de Mussa Molo, rei de Fuladu, com a capital em N'dorna ou Indornal (grafia portuguesa), tendo mudado mais tarde para Hamdalaye, localidades situadas entre o rio Gambia e o rio Casamansa.

Mbucu ou Umbucu era de ascendência Fula-Forro e por isso as suas relações com o Mussa Molo, rei de Fuladu, de ascendência Fula-preto, não eram muito amistosas pelo que a sua aliança com a administração portuguesa através do presídio de Geba era uma forma subtil de recusar a vassalagem ao Mussa Molo, rei do Fuladu que tinha destronado o seu tio, Bacar Demba (vulgo Dembel). De notar que o mesmo (estes conflitos de poder) não acontecia na época de Alfa Molo, pai de Mussa Molo e fundador do reino, que respeitava muito e permitia uma larga autonomia aos Fulas-forros a quem ele próprio tinha entregado a gestão de vastos territórios, muitos dos quais ainda por conquistar às mãos dos mandingas / soninques como era o caso de Joladu.

Abraços,

Cherno Baldé
17 de junho de 2019 às 17:31


Observando atentamente o conteúdo do Poste de hoje e a descrição do percurso seguido até Ndorna (Indornal), a capital do império de Fuladu ou Firdu (ver parágrafo seguinte).

"Prosseguindo viagem atravessam as povoações de Duricundá, Chume-Cundá, Sede-Cundá, Sincho, Nhama-Dicundá, Menino-Cundá, Banco, Quinheto, Cuento, Salicocum, Caredi-Cundá, Pate-Cundá, o rio de Farim, as povoações de Mori-Cundá, Camaco-Geba, Tambuiel, Cotedi, o rio de Selho, e as povoações de Culijan-Cundá, Cutetó e Ille-Cundá".

Deve ter havido algum mal entendido nesta descrição, pois as localidades de Saré-Minine (Menino-Cunda), Banco e Solucocum (Salicocum) que ainda existem e habitadas, estão localizadas na margem direita do rio Farim e não na margem esquerda como esta aqui descrito. Com a Convenção Luso-Francesa de 1886, Solucocum estaria mesmo junto à linha da fronteira e perto de Sitato, entre as localidades de Cuntima e Cambaju.

É muito interessante notar que alguns meses após a passagem do ten Marques Geraldes ao Indornal, mais precisamente a 3 de Novembro de 1883, o mesmo Mussa Molo assina um tratado de amizade e de protecção com representantes da França presentes no presídio de Sedio (Selho) e deste modo garantir o apoio das forças francesas para destronar o seu tio (Bacar Demba) e afastar o irmão Dicory Cumba, também pretendente ao trono. Mas, daí para a frente estaria em guerra permanente com os régulos Fulas-Forros de Sancorlã, Joladu e de Gabu/Forreá que, aliando-se aos portugueses em Farim e Geba, não reconheciam a autoridade de Mussa Molo sobre esses territórios.

Estou a terminar um texto sobre esta parte menos conhecida da história da Guiné e de Casamança, conhecida como o reino de Fuladu, ou a tentativa da construção do último império na África ocidental.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 13:29

PS - Há uma grande probabilidade de a designação de Ganadu ter a sua origem a partir da localidade de Saré-Gana, onde residia o régulo Mbucu, aliado dos portugueses, em detrimento de Joladu, a antiga designação do regulado


(ii) Armando Tavares da Silva:

Caro amigo Cherno Baldé,

Obrigado pelos comentários. Eu já tinha notado que a carta com o itinerário seguido por Marques Geraldes contém alguma incongruência. Creio que esta deriva do facto de quem desenhou a carta (que terá participado na expedição ?) ter confundido o rio de Pateá pelo rio de Farim, de que é afluente. Penso que é o rio de Pateá que se encontra assinalado na carta como rio de Farim.

As guerras contra os régulos fula-forros empreendidas por Mussá Moló estão largamente referidas no meu livro, para as quais foram arrastadas as autoridades portuguesas, interessadas na “manutenção do sossego” no território, indispensável para que o comércio progredisse, bem como o papel dos franceses nestas contendas. E até conduziram à tentativa de realização de um tratado de paz com Mussá Moló em Abril de 1887, já depois da Convenção Luso-Francesa de 1886.


Em 1901 escreve o governador Judice Biker referindo-se a Mussá Moló: foi um ”grande chefe-de-guerra que expulsou os beafadas e os mandingas, antigos senhores do território, dividindo este, depois, por diferentes cabos-de-guerra seus. Alguns destes cabos-de-guerra tornaram-se independentes de Mussá Moló, procurando o auxílio do nosso governo, e a maior parte conservou-se-lhe fiel. Daqui a origem das guerras constantes em Geba – o Mussá procurando bater os que lhe não eram fiéis, o nosso governo auxiliando-os e procurando bater os que se conservavam fiéis àquele”.

“Com o tempo e as derrotas que foi sofrendo, Mussá foi perdendo o prestígio e, de 1892 para cá, Geba tem-se conservado sensívelmente sossegada, o que não quer dizer que aquele não conserve ainda alguma influência e não possa incomodar-nos mandando reunir gente para realizar alguma correria no nosso território”.

A operação de 21 de Setembro de 1886 empreendida por Marques Geraldes, em que participou o régulo Umbucú e todos os seus filhos, e em que as forças de Mussá Moló são atacadas em Fancá (San Corlá) está, entre outras, também, detalhadamente relatada no meu livro.

Uma questão: a povoação de Caramtabá (ou Carantambá) ainda existe? Fiz uma cuidada tentativa de a encontrar nas cartas actuais, sem sucesso. Pode o Cherno dizer-nos alguma coisa sobre isto?

Com um abraço amigo,

Armando Tavares da Silva
20 de junho de 2019 às 18:06


(iii) Cherno Baldé:

Caro amigo Armando,

Nao posso confirmar a existência da localidade de Carantaba na zona de Ganadu, parece que já não existe com esse nome no mesmo sítio onde, em contrapartida, existem outras com designações diferentes em língua fula, tais como Saré-Banda e Sincha Sutu.


Todavia, no conjunto da regiao do nordeste guineense, existem muitos Carantabas descendentes e espalhadas pelo território e que em mandinga significa literalmente "a árvore do saber".

A parte II do percurso traçado corresponde a minha zona (Cansonco/Fajonquito), onde passei toda a minha infancia, pastando gado bovino nas matas e que conheço melhor, e posso confirmar a existência das seguintes localidades citadas: Sanecunda (Sede Cunda), Saré-Minine (Menino Cunda), Banco, Quenhato (Quinheto) e Solucocum (Salucocum). Poderão verificar, consultando o mapa de Colina do Norte, inserido neste Blogue, subindo de sul para norte na carta.

Saré Minine esta perto de Saré-Jamara e que foi um dos destacamentos das companhias que passaram por Fajonquito na estrada para Canjambari-Jumbembem-Farim.

Muito agradecido pela simpatia e carinho no meu dia de aniversario. Um bem haja para todos os Editores e Colaboradores do Blogue.

Um forte abraço,

Cherno Baldé
20 de junho de 2019 às 19:05

(iii) Mário Beja Santos

Prezados confrades, é da mais elementar justiça relevar quem foi destemido e zelador pelas vidas alheias, como lhe cabia. Todo este episódio já aqui foi referido no blogue e permite-me acentuar que a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia, sobre o assunto, enviou para Lisboa, possui finura literária, foi este documento que conduziu à elevada condecoração deste militar que, infelizmente, anos mais tarde irá ter problemas disciplinares muito graves, que lhe mancharam a carreira.

Aqui se reproduz o que veio publicado no nosso blogue, em 30 de julho de 2014, segue o link (***):


https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/07/guine-6374-p13449-biblioteca-em-ferias.html

Um abraço aos dois, Mário Beja Santos

21 de junho de 2019 às 12:43
_________________
Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série > 20 de junho de 2019 > Guiné 61/74 - P19905: Historiografia da presença portuguesa em África (161): Viagem do alferes Francisco Marques Geraldes, de 11 a 17 de março de 1883, de Geba ao Indornal, feito que lhe valeu a atribuição, por el-rei D. Luís, do grau de cavaleiro da Torre e Espada (Armando Tavares da Silva)

(**) Vd. poste de 30 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13449: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (1): Francisco Marques Geraldes, um herói militar português na Guiné

(...) No Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa vem reproduzida a carta que o governador Pedro Inácio de Gouveia dirigiu a partir do palácio de Bolama, em 4 de Maio de 1883 ao Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. A carta reza o seguinte:

Ilustríssimo e excelentíssimo senhor,

Em princípios de Março, os Fulas Pretos agrediram a pequena povoação de São Belchior, na margem direita do rio Geba, onde existiam alguns grumetes de Bissau, gente pacífica e inerte, que faziam algum comércio com os poucos recursos que dispunham.

Os Fulas Pretos, capitaneados por Deusá [Dansa, segundo Cherno Baldé], queimaram as cubatas, levando prisioneiros dez homens e duas mulheres, todos cristãos.

Este ponto fica sob a jurisdição imediata do presídio de Geba e do concelho de Bissau.

Depois deste ataque à povoação, foi Deusá com a sua corte para os lados de Geba, e parece que receando-se de algum agravo da parte do governo português, que ultimamente não tem poupado os díscolos, apresentou-se ao comandante do presídio de Geba o alferes Francisco António Marques Geraldes, levando-lhe um presente de vacas e não lhe falando em nada do ocorrido.

Aquele oficial, sabendo então do procedimento do chefe em São Belchior, recusou-lho e exigiu-lhe os prisioneiros que ele conservava em seu poder; o chefe intimidou-se e entregou os homens, pois as duas mulheres iam a caminho do Indornal, que fica pouco mais de um dia proximamente ao SE de Gambia e dois proximamente ao NE de Selho.

Aquelas mulheres iam fazer naturalmente parte do serralho do régulo gentílico Dembel, potentado entre os Fulas Pretos, e a que todos obedecem, e pai [, irmão, segundo Cherno Baldé,] do agressor do Deusá, ou então trocadas por vacas, conforme os usos do gentio.

Deusá desculpou-se com o chefe do presídio de Geba, por atacar aquela povoação, dizendo ignorar que São Belchior [, na margem direita do Rio Geba Estreito,] pertencia aos portugueses, entregando três dias depois os prisioneiros, explicando a impossibilidade da entrega das duas mulheres, aliás que lhe seriam também apresentadas.

Aqui principia a fase brilhante e digna do alferes Francisco António Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba; participa o ocorrido para o seu imediato chefe, o comandante militar de Bissau, e dizendo que ia buscar as mulheres, estivessem onde estivessem, pedindo para ser relevado de não esperar autorização superior pelo receio de que, esperando, chegasse tarde, receio fundado, pois no dia seguinte à sua chegada ao Indornal já estariam trocadas por vacas, segundo os ajustes feitos.

Põe-se este oficial a caminho, acompanhado apenas de um enfermeiro ao serviço na praça, António Mendes Rebelo, de José Lopes, comerciante em Geba, e quatro grumetes para conduzir a pequena bagagem da expedição, levando fazendas, tabaco e cola na diminuta importância de 35 mil reis, para lhe facilitar a passagem nos caminhos das diferentes povoações que tinha de atravessar.

Aí vai este oficial, convencido da sua nobre causa, em condições excecionais, sem cómodos, sem força, levando a ideia inabalável de que devia exigir e havia de trazer as duas mulheres cristãs, que, abusiva e violentamente, foram arrebatadas dos seus lares. Chegada à tabanca do régulo Umbucú, apresentou-se-lhe completamente uniformizado, dizendo quem era e qual o seu destino. Este régulo, bastante poderoso e dominando o território vizinho de Geba, recebeu-o admiravelmente, e ofereceu-lhe três cavalos para fazer a jornada e quatro Fulas armados para o acompanharem, e seu filho para lhe servir de guia e obviar a algumas dificuldades de ocasião, que em seu trajeto lhe aparecessem.

Andando nove a dez horas por dia, percorreu aquele trajeto (cerca de 54 léguas) sob um sol ardente, bebendo má água, seguindo tranquilo e cônscio de que realizava a sua nobilíssima ideia. Atravessou o rio Farim no dia 15, dois dias a jusante desta praça, onde é estreitíssimo e obstruído de paus, de difícil navegação, e no dia seguinte o rio Casamansa, a maior distância de Selho [Sedio, no atual Senegal, segundo o Cherno Baldé], também a jusante, chegando no dia 16 às oito horas da noite ao Indornal.

No dia seguinte, expôs ao régulo de Dembel o fim da sua visita, declarando-lhe as boas relações que têm havido entre o governo português e os da sua raça; que não podia acreditar que ele, régulo, permitisse as correrias dos seus, o que aliás obrigava o governo português a usar de represálias, como já tinha procedido para com os Fulas Forros, Beafadas e todos que praticassem violências para com gente sossegada, que apenas trata do seu comércio, concluindo por exigir as duas mulheres e uma indemnização para aqueles que sofreram na agressão em São Belchior.

O régulo ouviu no mais profundo silêncio a peroração do oficial, e considerou-a caso tão melindroso que só depois de conferenciar com os seus “maiores” lhe poderia responder. No dia seguinte, mandou-o chamar e disse-lhe que estava pronto a entregar as duas mulheres que seu filho tinha mandado para ali; que a indemnização aos roubados não podia ser a que ele entendia dever satisfazer, pois havia pouco tinham sido devoradas pelas chamas duas povoações importantes, como o próprio oficial presenciou, e daí grandes despesas a fazer para abrigar os seus vassalos; que também ia mandar cavaleiros buscar o seu filho para o repreender e proibir-lhe de fazer guerra sem ordem dele, e nunca que pudesse indispô-lo com o governo português.

Convidou-o a esperar pelo regresso do filho.

No dia 24, apareceu o filho de Deusá, e foi severamente repreendido pelo pai, entregando este as duas mulheres e 40.560 reis para distribuir pelos prejudicados de São Belchior.

O oficial saiu no dia 26 do Indornal, sendo acompanhado por Mussá, sobrinho e sucessor do régulo Dembel e seu primeiro-cabo de guerra, em quem deposita toda a confiança (***). A este ofereceu o alferes Geraldes uma espingarda de repetição que possuía, como presente dos seus bons serviços. Mussá declarou que, em quaisquer circunstâncias que o governo português carecesse dos seus serviços, que podia contar com ele e toda a sua gente, cuja força é superior a 6 mil homens.

No dia 26 saiu às seis horas da tarde do Indornal, seguindo o mesmo itinerário, tendo sido, tanto na ida como no regresso, admiravelmente recebido pelos povos onde passou.

Causou espanto no Indornal à aparição do oficial, pois ali nunca esteve um europeu, chegando a pedir-lhe para descalçar as botas, duvidando se também o corpo era branco,

Excelentíssimo senhor, um oficial que assim procede, nas condições e fim nobre como realizou esta expedição, parece-me merecedor de uma remuneração condigna, que à munificência régia lhe apraza conceder. Este oficial levou a sua abnegação a querer custear as despesas à sua custa, não obstante os seus pequenos vencimentos, e só instado é que se resolveu a mandar para a junta da fazenda a despesa feita, que importa apenas em cerca de 70 mil reis.

Pedindo toda a atenção de vossa excelência para o serviço relevante que o alferes Francisco António Marques Geraldes acaba de prestar ao país, entende cumprir o meu dever levando ao conhecimento de vossa excelência tão relevante serviço.

Deus guarde a vossa excelência.

(***) Segundo o nosso especialista em questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé (*), (...) "sabe-se que o Dembel assim como Bacar Demba eram irmãos de Alfa Molo, rei de
Firdu, que fez a Guerra aos soninques / mandingas de Gabu e em consequência disso eram sérios pretendentes ao trono que acaba por ser arrebatado pelo filho, o Mussa Molo, o mesmo que acompanhou o Marques Geraldes no seu regresso ao Geba e, mais tarde, em 1886 estarão frente a frente na batalha de Fanca onde o Mussa e seus numerosos partidários são destroçados por M. Geraldes, tendo ao seu lado poucos homens (menos de 200 homens armados)."

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22983: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte IV: A morte da ave-real mensageira, que já não canta, no triângulo de vida de Canhánima, Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti! (... "A árvore da vida floriu!")



Guiné > Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina),  
conhecido na Guiné como ganga...Em inglês, "Black Crowned-Crane".

Ganga (crioulo)
Balearica pavonina
Grou-coroado (português), N’ghanghu (balanta), Eghatai (fula)
Comp 100 cm | Env 190 cm

Ao contrário das aves apresentadas neste guia, a ganga é rara e localizada. Ocorre nos vales dos principais rios do país, de forma isolada ou em pequenos bandos, frequentando zonas de água doce pouco profunda, incluindo bolanhas. Devido à sua beleza e comportamento é frequentemente capturada e mantida em cativeiro. Está ameaçada de extinção.

Fonte: Guia das aves comuns da Guiné Bissau / Miguel Lecoq... [et al.]. - 1ª ed. - [S.l.] : Monte - Desenvolvimento Alentejo Central, ACE ; Guiné-Bissau : Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas da Guiné-Bissau, 2017, p. 19).


Foto (e legenda): © Armando Pires (2010).Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 



Cherno Baldé > Com cerca de 19/20 anos, em 1989, em Kiev,  na Ucrânia, que então integrava a antiga URSS. Recorde-se que, ainda criança, a família deslocou-se de Canhámina para Fajonquito, em 1968, onde o pai era empregado da Casa Ultramarina.  Até à independênxia, passava os dias enfiado no quartel de Fajonquito. Aqui  aprendeu as primeiras letras.  Sairá depois para Bafatá, onde fez o ensino secundário. Entre 1986 e 1989, foi estudante universitário, na antiga União Soviética, primeiro na Moldávia e depois na Ucrânia (1986-1989). Na sequência da guerra civil que estlou na Guiné, em 7 de junho de 1998, opondo Ansumane Mané e 'Nino' Vieira (e seus aliados senegaleses), o Cherno Balde e a família refugiarm-se em Fajinquito. Uma parte dos textos que temos vindo a republicar foram escritos "durante o periodo que passei em Fajonquito a quando do conflito politico militar de Junho 98. O regresso forçado a minha terra fez revivar a memória do passado."


Comentário do editor LG: 

Cherno, à medida que vou lendo e relendo as tuas memórias deste período de 1974/75,  elaboradas numa escrita tão elegante quanto, ao mesmo tempo,   dramático (pelas sombras negras que evocas e que atravessam a história da tua Pátria, durante muito tempo - para ti, menino e moço - Sancorlã e o seu coração vital, Fajonquito / Canhámina), vou-me dando conta que o deserto do Sahará, física e simbolicamente,  vai progressivamente tomando conta da África negra outrora subsahariana (e, a norte, claro, o sul do mediterrâneo, Espanha, Portugal)... E a tua Canhámina,  r0deada de sagrados poilões, e embora protegida durante a guerra colonial por "forças" que tu chamas misteriosas, acaba por sucumbir, em 1974/75 pela maléfica conjugação da acção dos homens e da natureza... É o luto da tua infância perdida, que fizeste, ou que ainda estás a fazer ou, se calhar, que nunca chegarás a fazer...

Há algo de profundamente pungente (, e que nos amarfanha o coração),  nestes teus textos quando falas desse mundo perdido da tua infância, e que bem pode ser sintetizado  pela expressão "Adeus, Fajonquito"...



1. Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte IV (*)


(ix) Gueloghal ou a ave real mas também mensageira

Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.

- Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.


(x) Canhánima. capital do regulado de Sancorlã, parte do reino de Firdu, fundado por Alfa Moló


Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:

- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [ou Saracolés], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:

- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer.

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:

- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).


(xi) O sagrado triângulo da vida de Sancorlã / Canhánima


Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina / Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974), se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.



Guiné > Região de Bafatá > Sector de Contuboel> Carta de Colina do Norte (1956) > Posição relativa do regulado de Sancorlã, e povoações de Fajonquito (com Canhámima, a leste, na carta de Tendinto, não disponível "on line") e, junto à fronteira com o Senegal, Cambaju e Lenquemembé.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (diwal): 

  • a área de Canhámina (ângulo sudoeste) (carta de Tendinto, não disponível "on line");
  • a área de Lenquebembé / Cambaju (ângulo noroeste)  (carta de Colina do Norte);
  • e a área de Panambo / Kerwane (ângulo nordeste) [ já no Senegal ou fronteira (?), carta de Tendinto, não disponível "on line" ];

e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).


(xii) Os portugueses e os seus aliados fulas

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses, ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos, eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês.

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida, a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que, juntando-se a colecta da borracha, se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). 

Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.


(xiii) Fajonquito, "guarda-costas" de Canhánima


Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. 

Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.


Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. 

O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. 

Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas, etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. 

Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

(xiv) O fim da aliança dos portugueses com os fulas


Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: 

“A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. 

O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

(xv) O martirológio dos valorosos fulas, fuzilados, ou apodrecendo nas masmorras do PAIGC, em Bafatá, Bambadinca, Farim


Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. 

Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):

- Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

Bissau, Junho de 2010. (**)
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Notas do autor

(1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo!

(2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

(4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto

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Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

8 de fevereiro de  2022 > Guiné 61/74 - P22979: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé): Parte III: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado

7 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22976: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte II: A chegada dos guerrilheiros, outrora "bandidos", agora "heróis da libertação da Pátria"...A (mu)dança das bandeiras... Os meus novos amigos, balantas...

6 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P22973: Adeus, Fajonquito (Cherno Baldé) - Parte I: Os sinais de uma mudança anunciada, os recados vindos do Oio e a delegação que voltou de mãos a abanar

(**) Excertos do poste de 30 de Junho de 2010 >Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã

quarta-feira, 6 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11202: (In)citações (49): Quando os vencidos é que fazem a história... Ou, como lá diz o provérbio, "dunu di boka más dunu de mala" [, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala] (Cherno Baldé)


1. Comentário de Cherno Baldé ao poste P11190:

Caro Mário,

O conteúdo deste texto policopiado reporta-se as crónicas guerreiras do reino mandinga do Gabú, na sua última e derradeira fase que coincide com a revolta dos Fulas encabeçados por "Alfa" Molo Baldé rei do Firdu pai de Mussa Molo, este último bem conhecido pelos portugueses pelas suas frequentes incursões e razias nos territórios ainda em disputa dos regulados de Ganadu/joladu, Sancorla e Mancorse, antes da conquista final pelos Almames de Timbo e Kadé(Futa-Djalon).

Relativamente ao Djanké Uali, penso que se trata, como já referi, de crónicas guerreiras e não lendas, por tratar-se de um periodo mais ou menos recente (2ª metade do sêc. XIX), mais ou menos bem conhecido da historiografia africana ou europeia, tanto escrita como oral.

As localidades de Beré-colon (Sector de Contuboel, arredores de Fajonquito) e Kansala (Sector de Pirada) são bem conhecidas e os seus vestígios são objeto de visitas de pesquisadores e simples curiosos.

O mais interessante nestas crónicas, popularizadas pelos Djidius,  mandingas de Korá, é o facto de que são os vencidos que fazem a história, transformando os derrotados (os guerreiros de Djanké Uali) em heróis invencíveis, cujo fim deve ser visto como o fim do mundo (Turban) o que, a meu ver, constitui um enigma ou, no mínimo, um paradoxo da nossa história que a discrição prática, própria dos fulas,  permitiu crescer até atingir dimensões delirantes. Isto é tão real que quase ninguém conhece os nomes dos comandantes e chefes dos exércitos fulas que estiveram na origem das derrotas dos mandingas tanto em Beré-colon como Kansala.

É, como diz um provérbio krioulo, "dunu di boka más dunu de mala",  ou seja, mais vale ter uma grande boca do que uma grande mala [, mais ou menos equivalente ao português "ter mais fama do que proveito", ... se bem que "fama sem proveito faz mal... ao peito"... LG].

Um abraço amigo,

Cherno Baldé
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11169: (In)citações (48): Vídeo "A Outra Guiné / The Other Guinea", de Hugo Costa e Francisco Santos, ou o regresso ao passado do Albano Costa, ex-1º cabo, CCAÇ 4150 (Guidaje, Bigene, Binta, 1973/74)

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13500: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (47): Retrato de uma família - A guerra, a pobreza e a presença dos soldados portugueses

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (CHERNO BALDÉ)

46 - RETRATO DE UMA FAMÍLIA 
A GUERRA, A POBREZA E A PRESENÇA DOS SOLDADOS PORTUGUESES

A minha família, até meados de 1948, ano da morte de Braima Djame Baldé, mais conhecido por Branjame, régulo de Sancorla, integrava o núcleo restrito da casa real (Lamido) deste regulado, direito esse adquirido atravês da nossa avó materna, Eguê Baldé, tia de Branjame.

Nesta qualidade, não se pode dizer que não conheciam os portugueses antes do início da guerra colonial, tendo em conta as ligações de uma aliança histórica mais ou menos estreita, de mútua (des)confiança e de dependência que existiam entre os chefes tradicionais e a administração portuguesa sediada nas circunscrições mais próximas em Geba ou Bafatá e/ou mais distantes como Bolama e Bissau, para onde os nossos pais, Nahôr e mais tarde Samba-Gaia (que disputaria o regulado com os filhos de Branjame), nossos patriarcas da família se deslocavam com frequência e, em nome das quais, se convocavam manifestações de júbilo ou se procedia a mobilização de homens válidos para as guerras de pacificação do território no decurso do último quartel do Séc. XIX e principios do Séc. XX.

Nessa altura, ouvia-se falar do homem branco como o eco de um som longínquo, que provocava curiosidade e medo pois se todos o queriam ver com os seus olhos, ao mesmo tempo todos tinham a consciência dos perigos que ele representava antes e depois. Antes porque associado ao temível fenómeno do desaparecimento de pessoas. Sim, pessoas que partiam para os seus campos de cultivo e desapareciam, de repente, sem deixar rastos. Depois porque, infelizmente, em África, este fenómeno de desaparecimento de pessoas não findou com o proclamado fim da escravatura, mas continuou durante algum tempo, inclusive sob a forma de sanções administrativas que consistiam na deportação das vítimas para terras distantes, o terrível desterro.

DESTERRO!!??...

Para o homem africano da época, não podia haver nada pior que o desterro que se traduzia no desenraizamento da pessoa e seu afastamento definitivo ou por largo período longe da sua família. Foi nessa época que apareceu no meio popular, entre os fulas, a frase que dizia: “O Branco que veja se o desterro é bom”, isto quando alguém queria fazer ver ao outro que, também ele, não tinha apreciado uma certa atitude deste num dado momento.


A figura do meu pai, El-haj Tambá Baldé


O meu pai, Aladje Tambá Baldé e o Cabo Tintim (nome emprestado da BD), que frequentava a nossa casa em Fajonquito. A foto é de 1967/68, pelo que o amigo Tintim deve ter pertencido à CCAÇ 1501 do Cap. Rui Antunes Tomaz ou da CCAÇ 1685 do Cap. de Infantaria Alcino de Jesus Raiano, cujas companhias passaram por Fajonquito entre 1967/68.


Nesta família pobre e simples que viveu e atravessou a Guerra colonial de ponta a ponta e, ainda sobreviveu ao genocídio silencioso do pós-independência, quero destacar o importante papel desempenhado pelo nosso pai, como chefe de uma família numerosa que conseguiu sobreviver sem sofrer muitos danos ou perdas de vida a lamentar, e tudo graças ao Deus todo poderoso em primeiro lugar e em segundo, graças ao talento de diplomata inato do nosso pai, acompanhado de uma boa dose de bom senso que o permitiram, sempre, aplicar o princípio segundo o qual: “O que é de César a César e o que é de Deus a Deus”, enquanto esteve à testa da família.

Vivendo num meio difícil, de sobreposição de vários poderes (oficial/tradicional, nacional/local, laico/religioso) e de constantes e rápidas mudanças, de guerras e montanhas de intrigas, soube sempre adaptar-se e relacionar-se bem com as condições vigentes sem nunca se comprometer inteiramente, mas também sem nunca se afastar demasiado para não criar suspeitas. Contrariando a vontade da mãe e nossa avó, desde sempre soube receber bem e criar amizades entre os soldados portugueses que, certamente, vinham a nossa casa por causa das nossas primas-irmãs que, na altura, andavam de corpo nu da cintura para cima e com as mamas ao léu.

Não sei, no fundo, se a sua admiração, como qualquer outro, do seu tempo e etnia, pelos portugueses era acompanhado de uma simpatia especial, o certo é que demonstrou sempre por estes muito respeito e consideração no que era largamente retribuído.

Ao contrário dos seus irmãos, nunca se ofereceu e nem foi mobilizado para a guerra e, felizmente, as suas funções de empregado comercial permitiam-lhe satisfazer o mínimo necessário, sem precisar de entrar em aventuras militares ou intrigas palacianas. O longo trabalho com comerciantes lusos criou nele a ambição legítima de fazer dos seus filhos pessoas preparadas para os desafios do futuro, numa época em que o obscurantismo predominava entre as massas camponesas, decisão a que nunca se renunciou apesar dos numerosos obstáculos pelo caminho.


A minha avó paterna, Eguê Baldé

Ao contrário do filho, a nossa avó paterna não mostrava simpatia pelos brancos em geral e, em particular, dos soldados que invadiam a nossa casa em Cambaju. Dizia sempre, referindo-se a presença destes: “Uoú!... tinha que viver para presenciar isto!..”. Fugia do olhar dos militares para se refugiar no interior da sua palhota. Designava-os por “orelhas vermelhas” e não perdia uma única ocasião para falar mal e criticar o comportamento pouco sóbrio dos jovens soldados que, muitas vezes, se comportavam, de facto, como se estivessem em terras por eles conquistadas bem ao estilo dos tempos romanos. Nunca aceitou nada que viesse do quartel e não queria que os seus netos o frequentassem como se tivesse medo que fossem alienados e entregues à razia da guerra que dava os seus primeiros passos e fazia as primeiras vítimas.

Morreu em Cambaju entre 1966/67, pouco antes de mudarmos para Fajonquito, numa idade bastante avançada. Provavelmente, ela era a única que carregava consigo os ecos dos tempos passados, contendo os resquícios de lembranças menos boas dos primeiros contactos com os europeus em África e da prática nefasta do comércio triangular de má memória e que contribuiu para esvaziar o continente da sua população.


O meu tio Dembaro Baldé

O irmão mais velho do meu pai, Dembaro, era a biblioteca da família, conhecedor profundo do percurso histórico dos fulas desde que saíram de Mácina, as crónicas épicas de Alfa Molo e de seu filho, Mussa Molo, no espaço sócio-cultural Firdunkê. Tinha uma grande admiração pelos portugueses em relação aos quais clamava alto e em bom som: “Sambu ghalel Tubakhô, khabhá pôlle gardânne” o equivalente, na língua fula, da famosa expressão latina “Veni-vidi-vici” de Júlio César ou das Lusíadas “Vós portugueses, poucos quanto fortes” (Canto VII) e, não se cansava de nos falar sobre as míticas figuras das guerras tribais no espaço sudanês de Mali, antes da chegada dos europeus e ainda sobre as guerras de pacificação sob a batuta de inigualáveis e intrépidos chefes de guerra portugueses como o Marques Geraldes, Graça Falcão ou Cap.Teixeira Pinto.


A minha mãe, Cadi Candé

A minha mãe era o que os portugueses vulgarmente chamariam de “moura” da casa, a primeira a levantar-se e a última a deitar-se e sobretudo no período de Ramadão, quando se impunha que as pessoas comessem durante a madrugada para poderem jejuar ao romper do dia, então ela, praticamente, não tinha tempo para se deitar e recuperar da fadiga do trabalho quotidiano da bolanha, do campo, da ordenha das vacas, trabalho caseiro e cozinha, sobretudo a maldita cozinha que lhe deu cabo dos olhos; pequeno almoço, almoço e jantar, quando tudo o que existia em casa era um grande amontoado de milho preto ou milho-basil no seu estado natural e que ainda precisava secar, pilar (esmagar), farinhar, separar em grãos, misturar com folhas da calabaceira em pó (lálôh), buscar lenha, pôr ao fogo, etc., etc.

Não sei o que ela pensava dos brancos, nunca nos disse e nunca ninguém lhe perguntou, mas como boa esposa, ela seguia os passos do nosso pai, isto é, tentar ser gentil, bem educada e acolher o melhor possível os hóspedes. Por falar em hóspedes, aqui está uma palavra mágica para os fulas do antigamente que, no decurso de toda a sua vida não faziam outra coisa senão preparar-se para receber bem e condignamente o seu hóspede. Lembro-me que, na infância, só acontecia comermos arroz e carne de galinha ou de algum outro animal no dia em que aparecia, saído de “nul part”, um hóspede qualquer, mesmo que se tratasse de um viajante maltrapilho, um vulgar vagabundo, bastava que não fosse das redondezas. “Felizes os servos que o Senhor, a sua chegada, encontrar vigilantes... porque o Filho do Homem virá numa hora que não pensais” (Lucas 37/40).

Mas, mesmo nessas raras ocasiões, as crianças tinham muita sorte se lhes calhava algum osso para chupar. Lembro-me de ter comido muita tripa de galinha, sim a tripa que deitavam fora, depois de uma apressada limpeza do conteúdo, metia-se na brasa e a seguir para dentro das nossas barrigas redondas, inflamadas de desnutrição crónica. “Se deitas fora é carne desperdiçada, se o comes, comeste merda”, dizia a nossa avó a respeito das tripas.


Samba Candé ou Sam-forrea, meu avô materno

Por várias ocasiões, já aqui evoquei a figura do meu avô materno, o seu nome era Samba que as pessoas transformaram em Sam-Forrea por ser originário da região de Forrea (Contabane). Era caçador profissional e fez parte do contingente mobilizado para a guerra de Canhabaque. Conta a minha mãe que, quando voltou da guerra, estava irreconhecível devido a enorme cabeleira e a barba de muitos meses que lhe cobriam toda a face. Fizeram mais de 60 km a pé, de Bafatá a nossa aldeia de Farimbali. Voltaram de mãos a abanar, como tinham partido, sem dinheiro, sem espólio de guerra. Tinham lutado pela honra de Sancorla e da pátria portuguesa, afirmavam. Claro que esperavam obter alguma compensação material, o que neste caso não aconteceu.

No caminho de regresso a casa teria cruzado com o grupo de pessoas da sua aldeia que o vinham acolher, mas nem eles o puderam reconhecer envolto naquela enorme cabeleira e barba de um ano nem ele os reconheceu vindo daquela ilha maldita dos Canhabaques onde muitos dos seus companheiros tinham perdido a vida, incluindo o príncipe herdeiro de Sancorla, Abdu Branjame, que pouco antes tinha participado numa exposição colonial em Portugal, muito provavelmente a de junho de 1934 no Porto.

Na Guiné, desde o Séc. XIX que os portugueses tinham descoberto e privilegiado a contribuição da classe dos caçadores nos conflitos que os opunham a certos grupos indígenas. Homens singulares, de coragem ímpar e conhecedores do terreno, seriam largamente utilizados também, durante a guerra colonial, principalmente, como guias e/ou para organizar os grupos nativos de milícias e de auto-defesa.

Ao contrário do meu pai, ele era o que se podia classificar de anti-social e politicamente nulo, pois passava todo o seu tempo metido no mato a conviver com as aves e animais selvagens e raramente participava em eventos da comunidade. Homem de poucas palavras, durante as festas religiosas, quando toda a gente se preparava para vestir as suas melhores vestes e pavonear-se na reza colectiva, ele se oferecia para pastar o nosso gado bovino em substituição das crianças que, por norma, tinham essa incumbência.

Em Fajonquito, foi ele que teve a ideia genial de introduzir-me no quartel, quando, na verdade, nunca lá deveria pôr os pés por imposição da minha avó. Se não falava com os seus próprios conterrâneos muito menos o fazia com os jovens soldados portugueses que, inebriados com a visão das bajudas semi-nuas, raramente perdiam tempo com os velhos da tabanca. Pela manhã, quando estes entravam na morança ele pegava na sua “Longa” (arma de fogo de fabrico artesanal que funcionava por meio de pólvora e pedaços de metal embutidos no interior do cano, de frente para trás) e saía para o mato, onde fazia dias ou semanas antes de voltar. De vez em quando lá trazia partes de uma gazela ou de porco-espinho que distribuía pelos familiares, amigos e vizinhos.


Mariama Baldé ou Néné-Maudhô, a minha avó materna

De todos os membros da família, foi ela que mais me marcou em virtude da sua insistente e inútil teimosia de fazer de mim um homem de bem, deveras. Nunca desistiu, desde a idade de 4 ou 5 anos, em meados de 1964, quando fugimos juntos do primeiro ataque a nossa aldeia e, desorientados pelo medo, acabamos por dormir no meio de uma bolanha infestada de bichos e capim selvagem, com folhas tão afiadas que nem facas de cirurgião. No dia seguinte, quando finalmente nos encontraram, tínhamos cortes em tudo que era corpo, mas pelo menos estávamos vivos.

Incansável, todas as manhãs ia a casa que servia de dormitório dos rapazes para nos lembrar que a sorte estava com aqueles que se levantavam cedo, depois da primeira oração da manhã. Até hoje não o consegui fazer. Todas as tardes, antes de escurecer ia procurar-me a fim de certificar-se que já tinha tomado banho e trocado de roupa.

O seu nome era Mariama Baldé, ou Néné-Maudhô (Mamãe-velha) e faleceu em 1994 estava eu, na altura, em Lisboa. Como habitualmente acontece, só damos o devido valor àquilo que já perdemos. Era uma mulher alta e sofria de elefantiase numa das pernas o que lhe dava um aspecto algo bizarro em que uma das pernas era normal e pequena e a outra exageradamente grande e deformada, facto que a impedia de usar sapatos.

No entanto, era a todos os títulos uma pessoa especial e de valor inestimável para mim, pois ela foi a minha guardiã e verdadeira educadora durante a nossa atribulada infância e adolescência que se estende, praticamente, desde o inicio da guerra no norte (1964) até 1975, altura em que deixei a família para continuar os meus estudos no Liceu de Bafatá.

Dizem que ela viveu os cem anos, é bem provável. Não raras vezes, nas narrativas sobre a sua juventude, referia-se à cidade de Farim, importante centro de trocas comerciais em princípios do Séc. XX, onde as jovens bajudas iam trocar ou vender produtos junto dos comerciantes europeus e sirio-libaneses como o Coconote ou a borracha natural, extraído de uma planta selvagem e concentrado em formatos redondos como as bolas de futebol, resultado de meses e meses de labuta na floresta.

A Néné-Maudhô encarava a sua obrigação de nos dar uma boa educação de tal modo que era capaz de tudo para cumprir com a sua obrigação. Uma vez, já era quase noite e ainda não tinha saído do quartel para casa quando, surpreendendo tudo e todos pela ousadia, a minha avó penetrou dentro do quartel à minha procura. Passou pela sentinela na porta de armas que ou estava apanhado do clima e já não distinguia uma bajuda de uma mulher grande ou se calhar julgara tratar-se da lavadeira do 1.º Sargento e por isso, não queria arranjar encrencas.

A semelhança de todas as mulheres grandes que conheciam o irreverente atrevimento dos soldados nas tabancas, procuravam sempre ficar longe para não servir de bode expiatório às suas maluquices o que, de forma alguma não queria dizer ter medo, pois no dizer da minha avó, estes não passavam mesmo de “crianças grandes”, irrequietas e mal-educadas.

A sentinela saiu da sua sonolência acordado pelo barulho das vozes que de todos os lados gritavam dentro do quartel dirigindo-se a pobre da minha avó com uma canção que lhes era peculiar naquele tempo:
- “mulher grande cá tem cabaço óh-lé-lé-lé-lé... foi o Manel que o tirou óh lé-lé-lé-lá...”- no meio da algazarra de assobios e gargalhadas.

Imperturbável, ela seguiu caminhando e a todos que a perguntavam através da mímica gestual o que procurava ali, respondia em língua fula por uma única frase que ela sabia ser irreversível, aconteça o que acontecesse, universal, até ao fim do mundo: “Tcherno Abdulai!.. o meu neto... vai pra casa... já e agora!..”. Com excepção dos meus colegas rafeiros, ninguém sabia quem era o Tcherno Abdulai, pois no quartel o meu nome era Chico e por isso, os soldados pensavam estar diante de uma velha maluca com duas pernas diferentes uma da outra.

Assolada por uma multidão cada vez maior de soldados curiosos, não arredou pé enquanto não foram à caserna dos condutores, onde era faxina, para me alertarem. Tinha sido a primeira vez, mas não seria a última e, as tantas, o Dias (o meu amigo e patrão), quando via a sua silhueta invulgar aproximar-se da porta de armas, antes que se iniciasse o diálogo de surdos entre a sentinela e a minha avó, gritava com a sua voz rouca:
- Óh Chico, desanda dai que a velha já está a tua espera!...

Com estas palavras de alerta, sabia que estava na hora de deixar o quartel e voltar pra casa, que a minha avó estava ali a minha espera donde não arredaria o seu pé de elefante com que assustava os soldados, mesmo com tiros de G3.

Passados muitos anos depois, quando li o maravilhoso livro “A Mãe” do escritor russo, Máxim Gorki (Alekxei Makxímovich Peshkov), não podia deixar de pensar na minha avó e compreender finalmente, que estava perante um fenómeno universal. Então os meus sentimentos de raiva e de ódio devidos a teimosia daquela mulher grande se transformaram, de repente, numa grande compaixão.

No que me concerne, depois do choque inicial, pouco a pouco comecei a ser atraído pelo quartel tal qual a luz nocturna atrai os pequenos bichos voadores. A curiosidade de conviver e conhecer pessoas diferentes, o gosto pela comida do quartel tinha começado desde Cambaju entre 1965/67, mas em finais de 1967 ou inicio de 68, o nosso pai foi transferido e mudou com a família para Fajonquito. Nessa altura o aquartelamento situava-se no meio da tabanca e havia alguma promiscuidade entre a população local e os militares ocupantes do quartel que se traduzia na infiltração constante das crianças na zona ocupada pelos soldados.

Em 1969, com a chegada da companhia do Cap. Carvalho fez-se um reordenamento que transferiu toda a população do lado oeste para leste e isolou o aquartelamento com arame farpado e portas fechadas. Este sistema de apartheid, por assim dizer, por um lado permitiu separar as águas e impor certa ordem e disciplina no quartel, mas por outro criou um fosso enorme entre dois mundos que se complementavam mutuamente e que, pouco a pouco, se foi aumentando para se transformar numa guerra fria de mútua desconfiança. Este facto não será alheio ao destino final do comandante da companhia antes do fim da sua comissão.

 Cherno Baldé, aos 14 anos, em Fajonquito (1974)

Cherno Baldé, estudante do Instituto Superior de Economia de Kiev (1986/90), com duas colegas (russa e ucraniana) da mesma promoção. A imagem que serve de fundo é o rio Dnepr que divide a cidade de Kiev em duas partes

O meu irmão Carlos (2 anos mais velho, hoje Farmacêutico, formado pela faculdade de Farmácia da Universidade Técnica de Lisboa), durante a alocução por ocasião do dia 10 de Junho de 1971, Dia de Portugal e de Camões, na escola primária de Fajonquito. Na imagem estão dois oficiais da companhia do Cap. Figueiredo (CART 2742), um dos quais, o Alferes Félix encontrou a morte no mesmo dia que o seu Capitão. Talvez o José Bebiano que esteve na mesma altura em Fajonquito, em rendição individual, possa ajudar o identificar os dois oficiais aqui presentes.

 O amigo José Cortes (CCAC.3549 - 1972/74), junto a porta d’armas do quartel de Fajonquito

Festa em Fajonquito com a presença de artistas portugueses para animar a malta (1971), ao fundo está o Cap. Borges de Figueiredo a esquerda da cantora Eva Maria. 
Foto cedida por José Bebiano

O mesmo grupo de artistas portugueses, constituido por Eva Maria, Tino Costa e Fernando Correia, actuando no palco, em Galomaro (1971)
Foto de Antonio Tavares, BCAC 2912 (1970-72), extraida do nosso Blogue (P13433)

Os nossos amigos da Ferrugem, Torres Berliet e o 1.º Cabo Sérgio (CCAC 3549) na nossa morança, em Fajonquito (1972/73).

O 1.º Cabo Condutor-auto, Sérgio Rodrigues, fazendo companhia às bajudas, Fajonquito (1972/73)


Homenagem póstuma ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo(*)

Em 1970 chegou uma nova companhia (CART 2742 do Cap. Figueiredo) e com ele inaugurou-se o período mais profícuo e dinâmico de Fajonquito. Nessa altura sentiu-se, de facto, que a Guiné estava a mudar e positivamente. Foi nessa altura, também, que acabei por me fixar no quartel como faxina num dos quartos da ferrugem (condutores), onde tinha a clara consciência de estar no meio de amigos, mas nem por isso isento de perigos. Sentia-me a vontade quando estava na caserna com os meus amigos condutores, mas sempre vigilante quando deambulava sozinho dentro do quartel. A idade, o stress provocado pela guerra, as saudades da terra natal e, provavelmente, o sentimento de impunidade por actos considerados menores, propiciava alguns exageros em forma de brincadeira que não eram sancionados. Claro está que, salvo raras excepções, normalmente os lobos não se comem uns aos outros.

O Cap. Figueiredo baniu a proibição da entrada no quartel, abriu as portas aos meninos, mas como contra partida pediu para que todos fossem à escola depois das horas de trabalho de faxina. Não era agradável, mas compensava. Pela primeira vez, foram colocados postes de iluminação na rua principal da vila, para alegria da criançada. Os oficiais da companhia davam apoio aos professores locais dentro e fora das aulas, com modalidades de futebol e ginástica. Foi instituída uma merenda para todos os alunos e prémios aos que se distinguiam nas aulas e nos exames finais, por exemplo, a participação nos campos de férias da Mocidade Portuguesa.

Muitas das pessoas que hoje são quadros nacionais na Guiné têm uma dívida de gratidão aos soldados portugueses que, como o Cap. Figueiredo e o grupo dos seus oficiais e sargentos, contribuíram para a sua formação de base. O meu caso não é paradigmático porque fui obrigado a ir às aulas que detestava com todas as minhas forças, mas a teimosia dos meus pais, em particular a minha avó, e também, porque o quartel já não servia de refúgio aos refractários, tinha que cumprir as condições do nosso Capitão, depois pouco a pouco o meu horizonte que antes estava confinado à vida da minha aldeia e arredores, foi-se abrindo as maravilhas da ciência e do mundo externo.

Mas como se costuma dizer, Deus escreve direito por linhas tortas, porque depois de tudo o que fizeram por nós, estava predestinado que ele e parte dos seus oficiais nunca voltariam à sua terra natal. Eis a razão desta homenagem, também, ao Cap. Carlos Borges de Figueiredo.

A toda a sua família e aos que o conheceram ou partilharam parte da sua vida e do seu percurso, quero expressar, em meu nome pessoal e em nome de todos os habitantes de Fajonquito, os meus sentimentos de pesar, mesmo que tardios e enaltecer o comportamento do Cap. Figueiredo, como homem e como militar que, a justo título, foi um comandante exemplar para a sua época, que veio, sem medo, para o cenário da guerra trazendo consigo a semente da paz; que sem descurar a defesa dos seus homens, transformou as operações militares em operações para a promoção do desenvolvimento; acreditou na capacidade dos mais novos para a construção de uma Guiné melhor sem esquecer a sabedoria dos mais velhos; que investiu parte dos poucos recursos de que dispunha numa derradeira tentativa de construção dos fundamentos do homem novo que a Guiné tanto precisava.

Carlos Borges de Figueiredo foi oficial e comandante que compreendeu como poucos e soube executar com mestria a nova filosofia que o Gen. Spínola queria com a sua politica por “uma Guiné melhor”.

Bissau, Agosto de 2014
Cherno Abdulai Baldé (Chico de Fajonquito).
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Notas do editor

(*) - Sobre o Cap Carlos Borge de Figueiredo, ver poste de Cherno Baldé de 14 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9041: Memórias do Chico, menino e moço (30): A propósito do poema K3, de Nuno Dempster: Relembrando dois malogrados capitães de Fajonquito, Carlos Borges Figueiredo (CART 2742) e José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549) (Cherno Baldé)

Último poste da série de 3 de Abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12929: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (46): Depois do ataque

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6661: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (16): Canhámina, 1974: o fim do triângulo da vida e do poder do regulado de Sancorlã




Guoleghal, a ave peralta do conto de Canhánima ... Grou-Coroado (Balearica Pavonina), dizem os nossos especialistas José Corceiro, Mário Dias, Nelson Herbert... Conhecida na Guiné, coloquialmente,  como ganga...

Foto: Armando Pires (2010)



Guiné-Bissau > Bissau > 2004 > Cherno Baldé e família, no Tabaski  ou festa do carneiro (i)


Guiné-Bissau > Bissau > 2006 > Família Baldé > Construir hoje e amanhã...


Fotos: © Cherno Baldé (2010). Direitos reservados


1. Mensagem do Cherno Baldé (ii)

Data: 16 de Junho de 2010 17:20

Assunto: Envio de mais uma crónica

Caro amigo e irmão Luís Graça,

Envio mais uma das minhas crónicas habituais, cabendo a vocês, da incansável equipa do blogue, a decisão de publicar ou não.

Juntamente envio, também, a imagem de uma ave pernalta, que encontrei no poste (P6536) do Sr. Armando Pires, onde ele pede ajuda para a identificação da ave. Esta ave pernalta corresponde exactamente à descrição da 'gueloghal' do conto que acabo de vos enviar.

Com um grande abraço

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)



2. Memórias do Chico, menino e moço (16): Canhámina, o  fim do triângulo da vida e do poder de Sancorlã 

por Cherno Baldé (ii)

Estamos no ano de 1975, alguns meses após a independência. Só agora começamos a compreender todo o tamanho do trama em que estamos metidos. Pessoalmente, estou na fase da readaptação de uma nova vida.

Não é fácil para mim, sobretudo, ter de voltar à comida de farinha de milho preto. De manhã vou à escola e à tarde cuido do nosso gado na companhia de outros miúdos. As dificuldades são de vária ordem mas, na memória da criança não há lugar para a saudade.

Não é fácil para os outros também. Os antigos serviçais do quartel (ii) estão a morrer lentamente, inexoravelmente. O Primeiro foi o Sadjo, coitado, com a sua enorme barriga e a gordura acumulada ao longo da sua vida de cozinheiro, debaixo do sol, não conseguia obter o mínimo para sustentar os filhos e as suas três mulheres. Resultado, morreu. Sem jeito para mendigar, sem forças para trabalhar a terra, passava dias a fio metido no mato, escondido, a cogitar milagres. Além do mais, sofria de diarreia constante devido a fome e a mudança do regime alimentar.

Depois, foi a vez do Mamadu, profissão, ex-cozinheiro. Depois foi o Samba, profissão, ex-padeiro. O Maudhô Uri, esse, conseguiu safar-se trabalhando como mecânico de velocípedes. Por pouco tempo.
- Tcherno!...Tcherno Adulai!... Adulai shall!...

Ė a minha avó que me vem acordar. Todos os dias é a mesma coisa. Ela insiste de que a porta do meu quarto deve estar aberta de manhã cedo, antes da primeira oração do dia, altura em que a sorte nos bate à porta. Apesar de tudo, ela sabe que não pode entrar no meu quarto, pois o estatuto de circunciso me protege. Fica-se à porta a cacarejar. A contra-gosto levanto-me para ir lavar o rosto. Não é por causa dela, é que hoje temos um desafio de futebol contra a equipa de Canhámina. Tento encontrar, na confusão do quarto, a minha escova de dentes.
- Menino, levante-se! Olha que os teus colegas já passaram na estrada e chamam por ti dizendo: Tchernó!...Tchernó…

Era inventiva a minha avó, os alunos em marcha para Canhámina, na verdade, clamavam: 
- Um, dois, três!... Um, dois, Três!...A esquerda!...A esquerda!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...Quem somos nós?! Somos pioneiros!...

Rapidamente, meto os calções, meto as sapatilhas e agarro a camisa indo ao encalço dos colegas. Já estão longe e tenho que correr sem parar. Felizmente é um percurso já habitual e a minha vida é feita de corrida. Entro no pelotão pouco antes da última subida para a aldeia.

Em Canhámina, esperava-nos um espectáculo desolador. Em pleno centro da aldeia e debaixo de um poilão gigante, estavam agrupadas algumas pessoas formando um círculo, ao meio se encontrava um homem relativamente jovem, amarrado por trás, com as cordas de nylon penetrando na carne dos braços inchados, o peito todo bombeado para a frente.

Era o chamado “peito de pomba”, método preferido dos Comissários do PAIGC. Tinha sido preso no posto de controlo da fronteira com o Senegal. Via-se pelo aspecto do corpo e pelo sangue seco nas têmporas e no rosto que estava assim havia muito tempo e tinha levado porrada a valer. Da multidão, alguém lhe sussurrou na língua local:
- Diga que tu és! Diga que tu és! Senão ainda te matam, palerma!

Como não reagia, o homem levou ainda com uma coronhada na cara ensanguentada que o derrubou ao chão. Levantou-se com dificuldade mas levantou-se pois, ele era um homem e devia continuar a sê-lo enquanto tivesse o mais leve sopro de vida no seu corpo, é o que lhe ensinaram desde a mais tenra idade. Olhando, desta vez, para os seus torcionários, falou com a boca a escorrer sangue, em língua Fula:
- Eu sou!..
O Comissário perguntou-lhe:
- Tu és o quê?
- Eu sou! - respondeu.
-Tu és da FLING, não é? - sugeriu o Comissário.
-Eu sou, sim!.. sou isso mesmo. Isso que você disse.

Finalmente, ele tinha confessado o seu crime. Todos acabam por confessar. O Comissário, cuspiu para o chão o resto do tabaco que tinha na boca e, com desdém, ordenou que o levassem dali. Levaram-no para o acampamento dos guerrilheiros, ali, um pouco metido na mata que circundava a aldeia. Mesmo regressados a casa, estes, por força do hábito, ainda se sentiam melhor e mais seguros entre as árvores como os animais selvagens, com as suas inseparáveis Akas (iii)  na mão.

Um grupo de curiosos, na maioria crianças, acompanhou o cortejo. Nós seguimos para o campo de futebol, situado ao lado do acampamento militar.

No terreno, frente a Canhámina, ganhamos o jogo sem grandes problemas mas, em vez da satisfação habitual estava invadido por uma tristeza vinda de não sei onde. O meu espírito ainda não se tinha libertado do choque do que tinha presenciado. Assaltavam-me a memória muitas coisas que não me permitiam acompanhar a alegria dos colegas. Estes, na corrida de regresso a casa, gritavam, transformando as palavras do prisioneiro em slogan de vitória:
- Eu sou!... Eu sou aquilo!... Eu sou isso mesmo!... Eu sou o que você disse!... - E riam, desgraçadamente.

Ao chegar perto do cruzamento, procurei a sombra de um poilão e, com o rosto virado para a entrada principal de Canhámina, fiquei durante alguns minutos a olhar para a aldeia que alguns anos antes, fora o símbolo da coragem e do poder de Sancorlã. Esta era a terra do meu pai, também, onde recebeu o baptismo e foi circuncidado. Alguma coisa me roía por dentro. A sabedoria popular nos ensinou que: O rabo de um macaco pode ser muito comprido mas não é por isso que deixa de sentir a dor quando picado.

No contexto da vida de Fuladu, a história de Canhámina é invulgar e toca a todos os habitantes do antigo regulado, pequenos e grandes. Uma História breve, colorida de enigmas e que teve um fim trágico.

***
Ainda hoje, a primeira coisa que nos chama a atenção quando visitamos a localidade de Canhámina é a sua mata de poilões bem no centro da aldeia. Ė impressionante.

Contam que, em tempos idos, quando a relação dos homens com a natureza ainda era muito próxima e viva, aqui habitava uma miríade de aves de diferentes espécies e a sua vozearia era audível a quilómetros de distância. A mais importante, dentro do imaginário colectivo era, sem dúvida, a Gueloghal ou ave real, cuja presença testemunhava a sacralidade e proeminência do lugar no contexto do mundo espiritual dos homens da época, onde tudo era importante e tudo fazia sentido.
-
Kru-ghaak! Kru-ghaak! Banenguél wilti ! Maudhô yannô to dourôh, banenguél wilti ! Si bhô uri men ganda, banenguél wilti ! Si bo may men ganda, banenguél wilti … (1)

A
Gueloghal, para além de se distinguir pela sua beleza e graciosidade que lhe valeram o epíteto de ave real, também, era conhecida como ave mensageira, dotada de capacidades de transportar mensagens de partes incertas e/ou de revelar aos homens, acontecimentos vindouros. A sua presença nesse lugar misterioso se revestia de uma auréola simbólica e ancestral de confiança na probabilidade de uma vida de paz e tranquilidade. Não se deve admirar muito pois, todos os povos que chegaram até aqui, vindos do interior do continente, sem excepção, vieram na vã esperança de encontrar a paz e a tranquilidade a que ansiavam.

Quem terá sido o primeiro habitante de Canhámina? Uma pergunta difícil de responder porquanto, os actuais habitantes de Sancorlã seriam capazes de jurar, a pés juntos, que foram os seus antepassados e com provas provadas dentro do esquema mitológico habitual do tipo: “Era uma vez, a família de caçadores do grupo dos nossos antepassados que, após um longo percurso, em perseguição de um animal de caça, acabaram por desembocar neste local milagroso…”

O que, porém, não deverá suscitar muita controvérsia, é o facto de que estas paragens já eram habitadas quando os Fulbhé (fulas) chegaram com as suas manadas de gado, vindos de Macina (Mali), de Tekrur (Senegal) ou Futa-Djalon (Guiné-Conacri).

Conta-se que, no seu périplo pela região na primeira metade do século XIX, El-Adj Omar, imperador do Sudão, teria passado por aqui a caminho de Futa-Djalon acompanhado do seu
djatigui (2) e futuro rei de Firdu, Alfa Moló a quem ele teria dado todas as terras situadas entre as bacias dos rios Gâmbia e Geba, mais concretamente até ao local designado Dandum (Dandum Cossará?), à condição que as pudesse retirar aos “infiéis” reis Soninquês, claro. Despediram-se após ter recebido das mãos do grande homem de letras a promessa de que a sua aventura seria coroada de êxito.

De regresso a casa, Alfa Moló convocou os grandes de entre os Fulbhé [, fulas,] e disse-lhes:
- Como todos sabem, desde que vivemos entre os Soninquês [, ou Saracolés, gravura à direita, 1890, co
rtesia de Wikipédia], não somos mais os donos das nossas vacas, das nossas ovelhas nem das nossas próprias mulheres, por isso, vamos combatê-los e acabar com os seus abusos de poder.

Os grandes de entre os Fulbhé após terem escutado e, cheios de medo, responderam:
- Nós não vamos combater os Soninquês e tão pouco iremos ajudar aquele que o irá fazer. 

Então o Alfa Moló levantou-se em toda a sua altura e, sacudindo o fundilho das calças, disse a frase que ficaria para sempre gravada nos anais da história épica do reino de Firdu:
- Se não me ajudarem a combatê-los, então ajudar-me-ão a fugir.

E foi assim que tudo começou, Alfa Moló e os seus apoiantes atacaram os Soninquês e, com o apoio decisivo dos
Almamis de Futa-Djalon, acabariam por conquistar a região e instalar o reino de Firdu (Fuladu), repartido em pequenos regulados entre os quais o de Sancorlã que ele confiou aos seus aliados locais (Samba Shábu?) e que escolheram para capital a localidade de Canhámina. (3).

Na lógica e submundo do homem e da consciência tradicional africana, nada acontece por acaso, tudo se justifica e se fundamenta em fórmulas simples e ao mesmo tempo complexas, e neste caso concreto de Canhámina/Sancorlã, conta-se que a origem da força e do poder local se devia à conjunção de determinados factores de ordem mística e que, por conseguinte, a perda daquela força e do poder, verificada mais tarde (1974),  se deveu a violação do princípio regulador do equilíbrio ou pacto inicial estabelecido, que começou com a penetração de elementos estranhos ao meio, entrando nesse leque tudo o que veio a ligar-se com o processo da dominação colonial, da submissão e da penetração do sistema mercantilista da produção e comercialização (borracha, coconote, amendoim etc.); de elementos novos de sujeição, de opressão e alienação cultural e espiritual que se lhe seguiram os passos, onde os impostos de capitação e a balança dos comerciantes eram os elementos mais nocivos dentro do sistema de exploração e empobrecimento das populações, terminando com a entrada silenciosa e criminosa dos guerrilheiros do PAIGC que transformaram o recinto dos poilões num campo de tortura e de exterminação dos próprios filhos de Sancorlã.

***

Conta-se que, antigamente, da mata de poilões situada no centro de Canhámina, descia uma linha de força para sul até a floresta de palmeiras (
surumael), situada nos limites do regulado e no meio da qual se encontrava uma nascente cujas águas abasteciam a população da aldeia, estando ligada, por sua vez, à bolanha, (prolongamento da bacia hidrográfica do rio Farim-Canjambari).

Surumael (matagal) representava o ângulo feminino do triângulo de Canhámina onde se praticavam não só a produção do arroz nas terras baixas mas também todos os rituais femininos ligados a educação e/ou reprodução social (cerimónias de casamento, fanados etc.).

De
Surumael, seguindo sempre o percurso da bolanha para poente até à distância de três  km, estava situado o terceiro ângulo ou o complexo masculino, Djunkoré, formado, por uma extensa área alagada durante a estação das chuvas e no meio da qual se encontrava um grande lago bem no centro da bolanha.

As populações das aldeias mais próximas e as aves pescadoras vinham aqui encontrar os peixes que subiam com as águas do rio Farim. Também aqui davam de beber as grandes manadas de gado (vacas, ovelhas, cavalos) que faziam a fama da região, acompanhadas de crianças nuas e barulhentas, com a flauta numa mão e a varra noutra.

Na margem esquerda do lago
Djunkoré encontrava-se um poilão bem alto e que, durante o período nocturno, irradiava uma luz florescente provocando o efeito bômina (claridade), que era visível a uma grande distância. Djunkoré funcionava como o refúgio dos homens e das aves, onde se praticavam as cerimónias e rituais masculinos. Todas as gerações passadas fizeram-se homens neste espaço mítico e verdejante.

Deste ângulo subia outra linha de retorno à aldeia, formando assim uma espécie de triângulo, o triângulo de vida de Canhámina. O conjunto formava um ambiente natural propício para a vida animal, em particular das aves selvagens. Mas, também constituía o centro da vida económica, social e cultural da aldeia e seus arredores.

E, numa escala maior, reproduzindo fielmente o triângulo de Canhámina, a organização social e política do regulado, também, se apoiava em três pilares ou áreas geográficas (
diwal): A área de Canhámina (ângulo sudoeste), a área de Lenkebembe/Cambaju (ângulo noroeste) e a área de Panambo/Kerwane (ângulo nordeste) e, cada uma das quais gozando de uma certa autonomia.

Esta divisão administrativa fomentava muitas rivalidades, algumas das quais ainda hoje subsistentes, mas também era factor de concorrência e de dinâmica criativa que permitia manter a necessária coesão social e política assim como a chama guerreira do regulado.


***

Todavia, a sucessão de Alfa Moló na segunda metade do Séc. XIX, não viria a ser nem bem sucedida e muito menos pacífica, obrigando ao seu sucessor, o intrépido Mussá Moló, a disputar não somente o trono com outros pretendentes dentro da família, como fazer face a pretensões autonomistas dos pequenos regulados em que estava dividido o reino de Fuladu, (com particular incidência naqueles cuja liderança era chefiada por Fulas-Forros, antigos suseranos e pouco inclinados a aceitar a vassalagem
vis-a-vis dos Fulas-pretos cujo poder representava Mussá Molo), sob o olhar atento dos Almamis de Futa e ainda a presença cautelosa mas insidiosa das potências europeias (os Portugueses a partir de Farim e Geba, e os Franceses a partir do Senegal) que cobiçavam a região meridional do Firdu. (4).

Nestas circunstâncias, os pequenos regulados Fulbhé do nordeste e leste Guineense tinham que escolher entre submeter-se à tirania de Mussá Molo, apoiado subrepticiamente pelos Franceses,  ou aliar-se aos Portugueses. Assim nasceu a aliança de interesses entre os Fulas e Portugueses que, tudo somado, pareciam distantes e sem quaisquer interesses em comum.

Porém, esta aliança fortuita não estava isenta de algumas contradições. Os Fulas, de um lado, precisavam dos Portugueses para se proteger das ameaças e razias constantes dos homens de Mussá Molo mas, sendo muçulmanos,  eram portadores de um inevitável “proselitismo religioso” que estava na base da sua libertação e do seu poder conquistado perante os Soninquês. 

Os portugueses, por seu turno, precisavam de aliados no interior onde não conseguiam chegar para fazer valer as suas pretensões para lá do Geba mas, também, tinham na bagagem a Bíblia e o compromisso da salvação de almas perdidas para justificar as suas conquistas de além-mar.

Mas tarde e, sempre que se sentiriam aflitos, os portugueses não hesitariam em recorrer aos seus aliados muçulmanos do interior (Fulas e Mandingas) para reprimir os povos guerreiros “animistas” do litoral Guineense mas, logo que se sentiam minimamente aliviados da pressão, se apressavam a afastá-los destas zonas para não espalhar a sua indesejada influência religiosa.

Com Teixeira Pinto e seus auxiliares muçulmanos, os portugueses fecharam o capítulo da conquista e pacificação (?) do território da Guiné no início do século XX, impondo de seguida,  a todos os habitantes da Guiné, a obrigação do pagamento de impostos. Com estes, veio a necessidade de produzir excedentes comerciais abrindo, desta forma, uma porta de entrada a produção do amendoim que,  juntando-se a colecta da borracha,  se transformariam, durante muito tempo, nas actividades obrigatórias de toda a região do interior.


***

Com o florescimento do comércio nos anos 40 e 50, houve a necessidade de abrir vias de acesso e de ligação com as zonas portuárias de Farim e Bafatá. As medições feitas determinaram que a estrada tinha que passar no meio da mata de poilões de Canhámina, que seria o ponto de convergência das três estradas (Cambaju ao norte, Bafata ao sul e Farim a Oeste,). Esta foi a primeira abertura (ferida) no triângulo de Canhámina, o primeiro sinal inquietante da mudança dos tempos, que abriu as portas para a penetração de elementos estranhos no círculo de vida de Sancorlã.

Com o intuito de preservar Canhámina da invasão do novo mundo e das suas consequências inevitáveis, Fajonquito serviu de escoadouro e aldeia satélite para canalizar todos os elementos que não se enquadravam no pacto de equilíbrio do mundo antigo. Foi assim que as casas comerciais que queriam instalar-se em Canhámina, foram empurradas para lá, a três quilómetros a oeste a fim de preservar o triângulo.

Foi assim que, pelas mesmas razões, tanto a escola portuguesa (1964) assim como a primeira companhia de tropas metropolitanas (1965) enviada para reforçar o regulado com o início da luta para a independência, ficaram pouco tempo na aldeia, tendo sido, de seguida, transferidas para Fajonquito. Era preciso manter o equilíbrio do pacto, tanto assim que, pese a vontade de o fazer, os guerrilheiros do PAIGC nunca conseguiriam penetrar no triângulo e atacar Canhámina, o coração de Sancorlã, mesmo desguarnecida de tropas. Eram desviados para longe por uma força misteriosa.



***

Mas, nem tudo correu tão bem como se pensava, e o mal já estava feito e pouco a pouco assistir-se-ia ao desmoronar da vitalidade do sistema que vigorara até ali. O primeiro sinal de alarme foi a diminuição drástica do barulho das aves e das chuvas, também. As espécies mais inteligentes simplesmente tinham desaparecido dos poilões de Canhámina, entre as quais a famosa Gueloghal. Em seguida, veio um outro alarme do sudoeste com a extinção da luz de Djunkoré e do seu lago que parecia inesgotável. O velho poilão florescente, completado o seu ciclo de vida, tinha cessado as suas actividades de faroleiro para as aves viajantes.

Por fim, as mulheres, alarmadas, vieram informar que os olhos da fonte de Surumael tinham secado e já não corria água da nascente. Também, os macacos (babuínos, pára-quedistas,  etc.) que espantavam as crianças no seu interior, já não viviam no matagal. Era o fim do pacto de equilíbrio? Parecia incrível, e os olhos virados para Canhámina não encontravam nenhuma resposta. Decididamente, os ventos da história tinham mudado de direcção e com esta viragem, acontecia o fim de um ciclo histórico e, por coincidência, também climático.

Tudo parecia combinar para acelerar as mudanças. Em 1974, aconteceria o improvável. Os portugueses, cansados de ver seus filhos morrer longe da sua terra natal, por uma causa cada vez mais difícil de defender, tinham descoberto uma nova pátria, mais pequena desta vez mas, assim mesmo, a pátria mãe, abandonando a guerra nos territórios do ultramar com o seu calor infernal e seus insuportáveis mosquitos. E numa coluna como nunca dantes visto, levaram consigo todo o equipamento de guerra. Canquelifá… Gabu…Canjufa…Pirada…Canjadude… Piche…Bafatá…Bambadinca…Farim…Guidaje, tudo.

As milícias, eternas sacrificadas, voluntárias da sua própria desgraça, num repente incompreensível, se pasmaram na vã gesticulação de mãos vazias. Adeus, camaradas, nada se pode fazer, é o virar de uma época. Os tempos mudam e os homens também.

Com a conquista da independência, os guerrilheiros do PAIGC, qual exército de Gengis Cã, silenciosa e furtivamente instalaram-se nos portões de Canhámina bem no centro dos poilões, tecendo paciente e meticulosamente a sua teia de morte, desafiando insolentemente os deuses de Sancorlã, completando a missão histórica que Amílcar Cabral lhes tinha legado: “A sociedade fula é do tipo vertical, em cima estão os régulos, no meio os Djilas ambulantes e, em baixo, os camponeses. Entre os vários segmentos sociais, uma coisa os une fortemente, são contra a luta armada…”

Enfraquecida pela guerra que quase esvaziou as suas aldeias, ferida mortal e traiçoeiramente pela abdicação dos seus aliados, Sancorlã não conseguiu reagir atempadamente ao infortúnio que se abateu sobre ela e, em menos de dois anos completou-se a destruição (decapitação) das suas forças vivas e da sua elite dirigente, encurralada, fragilizada e justamente vitimada. O mundo aplaudia a Guiné-Bissau independente, pais onde não havia lugar para aqueles que tinham fraquejado. O acordo de Argel, uma quimera e, não se esqueçam: ”Nem toda a gente é do povo”.

Todos os valorosos que não quiseram pactuar com o novo regime e eram demasiado orgulhosos para fugir dos seus ex-inimigos, entregaram seus peitos às cordas de nylon dos comissários políticos de PAIGC e mais tarde as suas vidas, fazendo a viagem sem regresso para os cárceres de Bafatá e Bambadinca. As justificações teóricas e práticas não faltaram. As festas também. “Páa-nô-uni! Páa nô mamáa… Páa-nô-uni, Pa-nô-mamáá, Panó terráá…”.

Em Fajonquito, ainda continuamos durante muito tempo, a pescar e a nadar no lodo do que restava do rio Farim/Canjambari e, sem pudor, ao sabor da brisa, mudamos também de camisola e hino. Continuamos a pedir as armas mas já não eram contra os canhões mas contra os colonos e seus aliados. Os heróis de mar não tinham aguentado tão bem em terra firme. Os peixes também, assim como os ex-soldados, para se adaptarem ao novo clima, se metamorfosearam em coisas pequenas e escuras escondidas na imundície da lama das bolanhas, escorregadios como o sabão chinês que invadiu os nossos mercados.

Alguns realizaram a proeza de, em tempo recorde, arrastando seus bubus brancos, transformar-se em Marabus de esquinas e mesquitas com salmos e cuspo na testa, pedindo a perdão dos nossos pecados colectivos. Outros passaram as fronteiras. Mas, muitos foram os que morreram sufocados nas prisões de Farim, brigando por escassos graus de cereais crus. Os deuses estavam a ouvir? Aláau…akbaar!

Os tempos, verdadeiramente, tinham mudado e nós vivíamos ou melhor sobrevivíamos sem dar por isso. Aconteceu exactamente como no poema ecológico de Júlio Roberto (5):
 - Onde se encontra o matagal?... Destruído!
- Onde está a água, o lago e o poilão?... Desapareceram!
- Onde estão os valorosos de Sancorlã?... Morreram!

 Bissau, Junho de 2010.

[ Revisão / fixação de texto / bold a cores: L.G.]
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Notas de Cherno Baldé:


 (1) Canto das aves mensageiras “Guelodhé” em língua fula: A árvore da vida floriu! Ao velho que tinha visitado as terras altas, informamos: A árvore de vida floriu! Se estiver em vida que nos informem! Se não estiver em vida, que nos elucidem! A árvore da vida floriu de novo! 

 (2) Djatigui – Anfitrião, palavra de origem incerta utilizada em quase todas as línguas de África do oeste.

(3) Crónicas guerreiras dos reis de Firdu (Fuladu)

 (4) Ver René Pélissier: Historia da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegambia. (1841-1936), vol. I e II, Imprensa Universitaria, Editorial estampa, Lisboa, 1989.

(5) Carta do chefe Seattle (Índio) em 1884 ao grande chefe branco de Washington, inserido no poema ecológico de Júlio Roberto
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 Notas de L.G.:

 (i) Tabaski ou festa do carneiro: comemoração da vontade de Abraão de sacrificar o seu filho por vontade de Alá... Uma das mais importantes festas do calendário religioso muçulmano.

 (ii) Vd. último poste da série > 18 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6417: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (15): Obrigado, Mortágua, salvaste-me a vida!

Vd. os postes anteriores, e em especial o de 13 de Julho de 2009 >  Guiné 63/74 - P4679: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (6): Uma gesta familiar, de Canhámina a Sinchã Samagaia, aliás, Luanda

 (...) A minha família, descendente de Fulas originários de Macina, no espaço territorial do antigo Sudão Ocidental (actual Mali), e que se consideram a si mesmos de Fulbhê Arábbhê, cujo significado se deve ter perdido na noite dos tempos e que, no entanto, tem uma similitude muito próxima da palavra Árabe, vivia em Kerewane (uma deformação de Kairuan?), localidade situada entre Kumakara (Senegal) e Saré Bacar (Guiné-Bissau), mesmo na linha da fronteira entre os dois países.

Dessa época não sei quase nada que possa transmitir. Mais tarde, a familia mudou-se para Canhámina, capital do regulado de Sancorlã, [a nordeste de Fajonquito, carta de Tendinto, ainda não disponível 'on line' ,] o que aconteceu após a morte do nosso avô paterno, Morô Baldé (Morseide), ocorrida, provavelmente, entre os anos de 1922/23.

Os seus descendentes eram sobrinhos directos da casa reinante de Sancorlã (Soncoia?), através da mãe, nossa avó paterna, Eguê Mariama Baldé, facto que certamente terá pesado na decisão de se mudar para esta localidade. Em Canhámina, durante muito tempo, a nossa família viveu sob protecção da casa do régulo, tendo beneficiado de algumas regalias daí inerentes, encabeçada pelo mais velho dos irmãos, Naor, que foi pajem de seu tio Braima Djame Baldé, mais conhecido por Burandjame (ou Brandjame?), o régulo de Sancorlã, e era colega e amigo íntimo de Abdu Buram, o príncipe herdeiro do trono, que encontrou a morte na última guerra de Canhabaque entre 1935/36 [, nas Ilhas Bijagós, referência à repressão de uma das últimas revoltas dos habitantes locais] . (...)


(iii) AKA - Kalash, Espingarda Automática Kalashnikov (AK),  Calibre 7,62 mm

 (iv) Soninquês (também chamados Saracolês): grupo etnolinguístico mandinga maioritarimente islamizado. Habitam a África ocidental. Em francês, Soninkés.