A apresentar mensagens correspondentes à consulta Mina / Fiofioli ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens
A apresentar mensagens correspondentes à consulta Mina / Fiofioli ordenadas por data. Ordenar por relevância Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24726 Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (10): I want you, dead or alive!



O célebre Tio Sam, desenho por J.M. Flagg... Cartaz norte-americano, de 1917, inspirado no original britânico, de 1914. Foi usado pelo exército norte-americano para recrutar soldados tanto para a Primeira como para a Segunda Guerra Mundial. Imagem do domínio público. Cortesia de Wikipedia.


À memória:

do Umaru Baldé,, menino de sua mãe,  que morreu de sida e tuberculose, no terminal da morte que dava pelo nome de Hospital do Barro, em Torres Vedras; membro da nossa Tabanca Grande a título póstumo);

do Abibo Jau (o gigante do 1º Gr Comb da CCAÇ 12, fuzilado em Madina Colhido, logo a seguir à independència da Guiné.Bissau);

do Joaquim de Araújo Cunha (1948-1970), que o Abibo Jau trouxe às costas, da antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, até Madina Colhido, o primeiro de seis mortos e nove feridos graves da Op Abencerragem Candente, em 26/11/1970, trágica lista onde se incluem os nomes do Ribeiro, do Soares, do Monteiro, do Oliveira, todos da CART 2715, e ainda o nosso guia e picador Seco Camará;

do cap art Victor Manuel Amaro dos Santos (1944- 2014),  primeiro cmdt da CART 2715, que começou a morrer nesse fatídico dia de 26/11/1970;

do Abdulai Jamanca (cmdt da CCAÇ 21, fuzilado também em Madina Colhido que eu conheci em Fá Mandonga, por ocasião da formação da 1ª CCmds Africanos);

do Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015). membro da nossa Tabanca Grande, e o único comando africano, ao que se saiba, que escreveu e publicou em vida as suas memórias;

do Iero Jaló (o 1º morto em combate, da CCAÇ 12, em 8/9/1969);

do Manuel da Costa Soares (sold cond auto, da CCAÇ 12, morto em Nhabijões, em 13/1/1971, por uma mina A/C, sem nunca ter chegado a conhecer a sua filha);

do Luciano Severo de Almeida (furriel mil, da CCAÇ 12,  que "morreu de morte matada", já como paisano, após o regresso da guerra, em data que ninguém sabe precisar);

do José Carlos Suleimane Baldé (c. 1951-2022), que chegou a estar encostado ao poilão de Bambadinca para ser fuzilado. tendo sido salvo 'in extremis' pelos homens grandes de regulado Badora; membro da Tabanca Grande;

do António da Silva Baptista (1950-2016), o "morto-vivo" do Quirafo, membro da nossa Tabanca Grande;

 de todos os demais camaradas  de armas, brancos e pretos, mortos em combate no TO da Guiné, ou feitos prisioneiros, ou abandonados à sua sorte, depois do regresso a casa ou da independência da Guiné-Bissau;

de todos os soldados desconhecidos de todas as guerras;

enfim, dos mortos da minha terra que lutaram pela pátria na batalha do Vimeiro,  em 21 de agosto de 1808.
 

I want you, dead or alive!


F_d_r_m-te, meu irmão! Enganaram-te, meu irmãozinho! Traíram-te, amigo! Deixaram-te para trás, camarada!

Não, não era este país milenário que vinha no cartaz de promoção turística, com montes, vales,  montados, e charnecas, com rios, praias e enseadas, com fama de gente patriótica, clima ameno e aprazivel, riqueza gastronómica, brandos costumes e forte sentido identitário. 

Não, não era esta a terra prometida onde corria o leite e mel... 

“I want you”, disseram-te eles, e tu respondeste sem hesitar: “Pronto!”. 

Meu tonto, disseste "presente!", mesmo sem poderes avaliar todas as consequências presentes e futuras da tua decisão, em termos de custo/benefício.

Decidiste com o coração, não com a razão, deste um passo em frente, abnegado e generoso, mesmo sem saberes onde era o distrito de recrutamento, e sem sequer conheceres o teatro de operações, o estandarte, o fardamento, a ciência e a arte da guerra, o comandante-chefe ou até mesmo a cara do inimigo. Nem sequer o RDM, o regulamento de disciplina militar nas principais línguas do mundo.

Um homem não vai para a guerra sem fixar a cara do inimigo, sem reconhecer a voz do inimigo, pode ser que seja teu pai, mãe, irmão, irmã, vizinho, amigo, ou até mesmo um estrangeiro, um pobre e inofensivo estrangeiro, apanhado à hora errada no sítio errado, num dos setes caminhos de Santiago ou na peregrinação a Meca. 

Camarada, um homem não mata outro homem só porque é estrangeiro, ou é branco, ou é preto, ou tem os olhos em bico. Ou só porque não pensa ou não sente como tu. Ou não come carne de porco como tu. Um homem não puxa o gatilho ou saca da espada, sem perguntar quem vem lá!

Enfim, não se mata um homem, de ânimo leve, gratuitamente, só porque alguém o elegeu como teu inimigo. Malhado ou corcunda, tuga ou turra, rojo ou blanco, cristão ou mouro, comunista ou fascista, bárbaro ou romano.

Não, meu irmãozinho, não eram estes outdoors e muros grafitados, ao longo da picada, não, não era este trilho, que era pressuposto levar-te do cais do inferno do Xime às portas do paraíso em Bagdá..

Sim, porque no final, meu irmão, há sempre alguém a prometer-te o paraíso, o olimpo, o panteão nacional ou a cruz de guerra com palma, um coro de anjos e querubins, ou a prenda nupcial das 72 virgens  para os mártires.... em troca da dádiva suprema da tua vida, do teu corpo, da tua alma ou da tua liberdade (no caso de teres o azar de ser apanhado à unha pelo inimigo que te espreita por detrás do bagabaga).

Todos te querem, todos te queremos. "I want you”, sim, quero-te, mas por inteiro, quanto mais não seja para tirar uma fotografia contigo, beber um copo contigo, não vales nada cortado às postas, decepado, decapitado, dinamitado, ou, pior ainda, perdido, errático, com stress pós-traumático,  sem bússola nem mapa, levado para o campo de prisioneiros do Boé ou fuzilado no poilão de Bambadinca ou de Madina Colhido. Ou para forca de Ariz dos anos sombrios das nossas guerras fratricidas de 1828-1834.

Fuzilado, és um cadáver incómodo, apanhado, és um embaraço diplomático, pior do que tudo isso, doente psiquiátrico, apátrida, refugiado... Deixas de ter valor de troca, muito menos valor de uso, diz o comissário político da base central do Morés, de Kalashnikov em punho. 

Não, não foi este destino que compraste, com o patacão do teu sangue, suor e lágrimas, enganaram-te, os safados, os profetas, os iluminados, os gurus, os estrategas, os generais e os seus ajudantes de campo, os burocratas da secretaria, os recrutadores, a junta médica, os psicotécnicos, os instrutores e até os historiadores que escrevem direito  por linhas tortas.   Ou a corte que fugiu para o Brasil para que o Napoleão não pudesse apanhar a rainha louca e o seu filho primogénito, João.

“Guinea-Bissau, far from the Vietnam”, alguém escreveu no poilão de Brá ou na estrada de Bandim, a caminho do aeroporto, tanto faz, "Tuga, estás a 4 mil quilómetros de casa”. 

Ou então foi imaginação tua, pesadelo teu, deves ter sonhado com essa placa toponímica, algures, numa noite de delírio palúdico, deves tê-la visto a sul do deserto do Sará no avião da TAP de regresso a casa. Um pesadelo climatizado. Carregaste no botão errado. Ou então foi um erro de casting. Ou um sonho de menino esse de ires para os rangers, os páraa, oa comandos ou os fuzos.

Alguém sabia lá onde ficava a Guiné, longe do Vietname, alguém se importava lá com o teu prémio da lotaria da história, mesmo que em campanha te tenhas coberto de honra e glória!

Acabaram por te meter num avião “low cost” ou num barco de lata, ferrujento, deram-te um pontapé no cu ou cravaram-te a tampa do caixão de chumbo. "Bye, bye, my friend. Fuck you, man”. Nem sequer te desejaram "Oxalá, inshallah, enxalé, que a terra te seja leve!"

“País de merda!"... Tinha razão o polícia, racista, que te quis barrar a entrada no aeroporto de Saigão (ou era Lisboa ? ou era Amsterdão?). 

Quem disse que os polícias de todo o mundo são estúpidos ? Até o polícia racista entende o sofisma do país de merda: “Pensando bem, soletrando melhor, país de merda, país de merda, só pode ser o meu”.  Por que todos os outros fazem parte da rede turística do paraíso. 

Os gajos estavam fartos de ti, meu irmão, meu camarada, meu amigo. Os gajos pagavam-te, se preciso fosse, para se verem livres de ti, vivo ou morto, devolvido à procedência, usado e abusado.

“I want you, alive or dead”, porque na contabilidade nacional tudo tem de bater certo, diz o cabo RM, readmitido. Todo o que entra, sai, é o deve e o haver do escriturário, encartado, mesmo que seja merda: “Garbage in, garbage out”, se entra merda, sai merda, diz o gajo dos serviços mecanográficos do exército.

Procuraram-te por toda a parte, os fotocines, do Minho ao Algarve, do Cacheu ao Cacine, só te queriam fotogénico, bem comportado, escanhoado, ataviado, de botas engraxadas, se possível herói de capa e espada, medalhado, condecorado, de cruz de guerra ao peito, mesmo que viesses amortalhado, as persianas dos olhos fechadas,  as mãos sobre o peito em derradeira oração, o enorme buraco atrás das costas, feito por um bálizio de 12.7, cozido e recozido pelo cangalheiro da tropa.

E tu ? Sabias lá tu o que era a pátria, onde ficava a tabanca da pátria, onde começava e acabava o chão da pátria ?!...

 Muito menos sabias a geografia da guerra, as nossas geografias emocionais,  Aljubarrota, Alcácer Quibir, Vimeiro, Waterloo, Nambuangongo, lha do Como, Gandembel,  Guidaje, Guileje, Gadamael,  Madina do Boé, Ponta do Inglês, Madina/Belel, Morés, Caboiana, Fiofioli... Ah!, e La Lyz!... Ah, e  o desembarque da Normandia!... Ah!, e Dien-Bien-Phu onde combateste pela Legião Estrangeira!...

Conhecias lá tu, da pátria,  a anatomia e a fisiologia , o intestino grosso e delgado, o que é que a pátria comia, o que é que a pátria defecava, ou até mesmo o que é que a pátria sentia e pensava, se é que a pátria deveras sentia e pensava.

Queriam-te sedado, anestesiado, amnésico, de preferência, sobretudo amnésico, alienado, aculturado, desformatado, paisano, só assim eles te queriam de volta ao teu anódino quotidiano, à tua origem obscura, à tua Sintchã qualquer-coisa, ao teu Montijo, â tua Ventosa do Mar...

Meu irmão, meu pobre camarada, fizeste por eles o trabalho sujo que compete a qualquer bom soldado em qualquer guerra. Mas nem como soldado eles te trataram, nem sequer como mercenário te pagaram, em espécie ou em géneros.

Afinal a guerra acabou, como todas as guerras acabam, até mesmo a guerra dos cem anos teve um fim com o seu rol de mortos, feridos e desaparecidos, a sua nave de loucos, a sua vala comum dos esquecidos...

 “Para quê mexer agora na merda, ó nosso cabo ?!”, interpela o sorja da companhia. “Boa pergunta, meu primeiro, mas há muito já que eu não cheiro, a guerra embotou-me os sentidos”.

Luís Graça
Lourinhã, Vimeiro, 18/7/2015.

Reconstituição histórica da batalha do Vimeiro (21/8/1808).

Revisto em 1/9/2023, 84 anos depois do início da II Guerra Mundial.
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 6 de setembro de  2023 > Guiné 61/74 - P24626: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (9): Requiem para um paisano

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23847: Casos: a verdade sobre... (32): o pós-25 de Abril no CTIG, as relações das NT com o PAIGC, a retração do dispositivo militar e a descolonização

Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART/BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Julho de 1974 > Visita de Bunca Dabó e do seu bigrupo, fortemente armado... Ao centro, o nosso amigo e camarada Jorge Pinto, então alf mil, em farda nº 2, desarmado, descontraído, fazendo as "honras da casa". O aquartelamento e a povoação foram ocupados pelo PAIGC apenas em 2 de setembro de 1974. (Natural de Turquel, Alcobaça, o Jorge Pinto é professor do ensino secundário, reformado)

Foto (e legenda): © Jorge Pinto (2016). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCAÇ 13 (169/74) > Meados / finais de maio de  1974 > Imagens do "glorioso dia do primeiro encontro com as tropas do PAIGC em Bissorã e após 25 de Abril,  creio eu que foi em meados ou finais de maio de 1974" (...). Fotos do álbum do Henrique Cerqueira, que esteve, como fur mil at inf, no TO da Guiné, desde finais de novembro de 1972 até inícios de kulho de 1974, primeiro na 3ª CCAÇ / BCAÇ 4610/72 e depois na CCAÇ 13.

Fotos ( legenda): © Henrique Cerqueira (2012)  Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Região de Gabu < Paunca > CCAÇ 11 (1969/74) > 7 de junho de  1974 >  A paz, depois da guerra, ou guerra & paz, como faces da mesma moeda... >  O fur mil op esp J. Casimiro Carvalho, "herói de Gadamael", no meio dos inimigos de ontem...  Fotos do seu álbum fotográfico, sem legendas... 

Este nosso camarada que vemos aqui a abraçar os inimigos de ontem, foi o mesmo que tinha escrito à mãe,na véspera,  em 6 de junho de 1974,  a seguinte missiva:

 "(...) Ficou, nesse encontro, determinado que amanhã o inimigo vinha a um quartel nosso visitar-nos, conhecer-nos, nós que nos matavámos [uns aos outros] sem nos vermos. Enfim, agora como está previsto, conhecer-nos-emos, se não houver imprevistos, e eu, que tanto os odiei, com o ódio que ganhei com a guerra, devido ao sangue que vi derramar, irei... talvez - quem sabe ? - abraçá-los. Sim, porque eles lutaram para defenderem o que por direito lhes pertencia, um chão deles, bravos soldados como nós." (...).

É o mesmo J. Casimiro Carvalho que na batalha de Gadamael pôs a vida em risco para salvar outros camaradas (e nomeadamente o seu capitão) e que chegou a ser ferido.

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Xitole >  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73 (Xitole, 1974) > Foto do álbum do José Zeferino, ex-alf mil at inf. "Primeiro encontro no Xitole: de costas um comandante do PAIGC – não me lembro do nome – , o nosso médico, Dr. Morgado, eu, o capitão Luís Viegas, o comissário politico Antero Alfama e o 1.º sargento páraquedista Vaz".  O comandante da 2ª CCAÇ / BCAC 416/73 era cap mil inf Luís Fernando de Andrade Viegas (com este mesmo nome, há um membro da Ordem dos Engenheiros da Região Sul, portado ca cédula profissional nº 12.037).

Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Xitole >  2.ª CCAÇ/BCAÇ 4616/73, Xitole, 1974 > s/d    [c. jun/set 1974]>  Chegada ao Xitole de forças do PAIGC, em camiões russos.

Algumas apontamentos do diário de alf mil José Zeferino: 

(i) Xitole, 22 de abril de 1974 - Apresenta-se um guerrilheiro do PAIGC. Má altura, para ele, para desertar das suas fileiras; 

(ii) 25 de abril 1974 - madrugada, cerca das 6 horas: "Zefruíno, alferes Zefruíno"!!!... (...) Era o Jamil, comerciante libanês (...),  que estava a ouvir a BBC em árabe: "Zefruíno, o (...)  Spínola está a fazer uma revolta". (...) Foi assim que tive conhecimento do que se passava em Lisboa. Regressámos de imediato ao quartel. Ficámos na expectativa nos dias seguintes. Patrulhamentos, só o mínimo indispensável, até Endorna. Montagem de segurança nocturna: poucas. Estávamos literalmente presos pela avidez dos comunicados. Acreditámos que o fim da guerra era desejado pelas duas partes. Pelo menos para a população era-o. E muito. (...)

(iii) 15 de maio de 1974 – Violento combate – emboscada. Duas baixas do nosso lado: o alferes Aguiar e o soldado de transmissões Domingos. Cerca de uma dezena de feridos. Sinais de baixas IN;

(iv) 30 de maio de 1974 - São detectadas e levantadas várias minas reforçadas com granadas de RPG;

(vi) 6 de junho de 1974 - Pelas 6 horas, nova rajada. Desta vez de uma sentinela junto ao espaldão do morteiro 81, na zona dos quartos dos oficiais e do abrigo da Breda. Novamente nas valas avistámos, a umas dezenas de metros, uma coluna IN que se aproximava, vinda da tabanca, pela orla da pista de aviação. Sob o nosso fogo fugiram para o mato do outro lado da pista, deixando um deles ferido. Veio a falecer pouco depois na nossa enfermaria. Foi este, realmente, o ultimo acto de guerra na zona e ainda hoje não o entendo totalmente.

(vii) 15 de junho de 1974 - Na picada, para lá da Ponte dos Fulas, suspensa de uma árvore, é encontrada uma carta com um maço de tabaco Nô Pintcha, e um isqueiro. Convidava o capitão a fazer a paz. O que foi feito no mesmo dia, perto do pontão do Jagarajá.

(viii)  de 16 de junho a setembro de 1974 - Começaram então as visitas de comandantes e comissários políticos do PAIGC para combinar a cerimónia da entrega do quartel, com o arriar da nossa bandeira e o hastear da deles. Vinham das matas da margem direita do Corubal – Mina, Fiofioli, etc. (...)

Houve um jogo de futebol entre nós e os guerrilheiros. Gostavam imenso de falar com o nosso pessoal chegando a trocar impressões sobre o material que tínhamos usado na guerra. Creio que numa dessas conversas foi dito que quem preparou a tal emboscada de 15 de maio teria sido castigado. Não aprofundámos a questão (...).

Quase todos os dias apareciam guerrilheiros procurando refeições na nossa cantina geral. A única exigência nossa: tinham que deixar a arma à entrada do quartel, no posto de sentinelaFazendo-se transportar por camionetas civis paravam sempre na casa do Jamil para o cumprimentar. (...) Numa das colunas, e em viatura civil, chegaram também duas prostitutas. Alguns aproveitaram. (...)

O Saltinho já tinha sido entregueBastou um dia para ficarem sem gerador. Os novos ocupantes pedem ajuda ao Xitole para reparar o aparelho. Nesse dia à noite ficámos preocupados por a equipa que foi não ter chegado. Foram encontrados perto de Cambéssé com o Unimog espetado dentro do mato com vários guerrilheiros a tentar repô-lo na picada. O comandante deles, de nome Claude, ficou irritadíssimo quando nos viu. Já estava todo alterado. E foi a única expressão de ódio que registei em todos os contactos com elementos do PAIGC. Mas a nossa equipa foi muito bem tratada por eles.

Entretanto chegam-nos notícias de problemas em Bambadinca: Com as nossas milícias: queriam alimentos e com a CCAÇ 12 que não queria entregar as armas. Depois… o tempo passou-se… lentamente. E entregámos o Xitole  [em ].(...)

 (ix) Bissau, 12 de setembro de 1974 - Embarque no Uíge, para Lisboa. (...)

Foto (elegenda): © José Zeferino (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > 14 de outubro de 1974 > O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC. Foto do álbum  do José Lino [Padrão de] Oliveira [ex-fur mil amanuense, CCS/BCAÇ 4612/74, Mansoa, Cumeré e Brá, 12-7-1974 / 15-10-1974]

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 > Cemitério de viaturas e outros equipamentos militares (GMC, Daimlers,  Panhard, jipes, Obuses 14...) abandonados como sucata, no fim da guerra.

Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) >  9 de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC,  e  da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito... É uma fotos histórica, em que se vê o nosso coeditor, camarada e amigo Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, desde 1/11/2005...

Guiné > Bissau > Brá > BENG 447 >  14 de outubro de 1974 > O último arriar da bandeira no CTIG, mas já sem a presença de representantes do PAIGC.  O último ato da soberania portuguesa não foi o arruiar da bandeira, em Mansoa, em 9 de setembro de 1974....O BCAÇ 4612/74 seria colocado depois de 9/9/1974, no BENG 447, em Brá, Bissau... a útima bandeira portuguesa a ser arriada, no CTIG, seria no próprio "dia do embarque", ou seja, mais de um mês depois, em 15/10/1974. Essa honra coube, de novo, ao Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, da CCS/BCAÇ 4612/73 (12 de julho de 1974 - 15 de outubro de 1974).

Fotos (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné >s/l >  s/d > O último Governador Geral e Comandante-Chefe, Carlos Fabião (1974)... Era um dos militares com mais anos de serviço no TO (3 comissões ou mais). Aqui na foto ainda capitão e depois major, comandante do Comando Geral de Milícias (1971/73), ao tempo de Spínola... Foto de autor desconhecido, reproduzida aqui com a devida vénia. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d., pp. 332 e 335. .


Guiné > Bissau > Cais da Marinha > Outubro de 1974 > Quatro Lanchas de Fiscalização Grandes (LFG), uma pequena, e uma LDM na Ponte Cais em Bissau, poucos dias antes da “retirada final” do dia 14 de outubro do mesmo ano. É visível o navio Uíge ao fundo, preparado para transportar os últimos militares portugueses da Guiné. Foto do álbum do ex-Marinheiro Radiotelegrafista, Manuel Beleza Ferraz.

Segundo o nosso amigo Luís Gonçalves Vaz, membro da nossa Tabanca Grande e filho do Cor Cav CEM Henrique Gonçalves Vaz (último Chefe do Estado-Maior do CTIG, 1973/74),e basedado no depoimento do Manuel Beleza Frerraz,  "no dia 14 de outubro, decorreu a última cerimónia de 'Arriar da Bandeira Portuguesa', ao qual se seguiu o 'Hastear de Bandeira da República da Guiné-Bissau' (a última bandeira nacional em Bissau só foi retirada 4 ou 5 semanas depois de 14 de outubro de 1974, sem cerimónia oficial),  como tal, nesse mesmo momento, todo o que restava do contingente militar português (à excepção de dois pequenos destacamentos de tropa portuguesa, da Marinha e da Força Aérea, esta na já ex-BA 12,  em Bissalanca, mas ainda com helicópteros AL-III, e o destacamento da Marinha nas suas antigas instalações, para colaborarem na transição e transmissão de técnicas/procedimentos, conhecimentos e experiências de navegação aérea e marítima, com elementos do PAIGC), encontrava-se agora em território estrangeiro.

(...) "A comitiva constituída pelo Governador (brigadeiro Carlos Fabião), o Comandante Militar (brigadeiro Figueiredo), o Chefe do Estado-Maior do CTIG (coronel Henrique Gonçalves Vaz), bem como alguns outros oficiais do Estado-Maior, sargentos e praças, depois de assistirem ao embarque de todos os militares nos navios, que se encontravam ao largo do estuário do Rio Geba, e assegurando-se que tudo tinha corrido sem problemas e de acordo com o previsto nos 'Planos de Retirada', elaborados pelo CTIG / CCFAG que nesta altura se afirmava como o único Comando das Forças Armadas Portuguesas neste TO da Guiné, seguiram directamente para o Aeroporto de Bissalanca, onde mantínhamos ainda um dispositivo de segurança.

(...) "Mal acabou a cerimónia referida anteriormente, e segundo testemunho do ex-marinheiro radiotelegrafista, Manuel Aurélio A. Beleza Ferraz, que se encontrava nesta altura na LFG Lira, todas as guarnições dos nossos navios que se encontravam na zona, estavam por ordens superiores, em posição de combate (para qualquer eventualidade), estando todos os operacionais equipados com coletes salva-vidas, capacetes metálicos e as Bofors (peças de artilharia antiaéreas de 40 mm) sem capa e municiadas, prontas a realizar fogo de protecção à retirada das nossas tropas, que ainda se encontravam em terra. Segundo o ex-marinheiro radiotelegrafista, Manuel Beleza Ferraz, os navios que se encontravam a realizar a 'segurança de rectaguarda'  mais próxima às tropas que iriam retirar-se para os navios ao largo no Rio Geba, eram a LFG Órion e a LFG Lira.

(...) "Às 2h30m do dia 14 de outubro de 1974, estes militares serão os últimos a retirar da Guiné. Nesse momento estiveram presentes alguns Comandantes do PAIGC, que quiseram despedir-se dos 'seus antigos inimigos', e assim foi o fim da colonização da Guiné com cerca de 500 anos." (...)

Foto (e legenda): ©  Manuel Beleza Ferraz / Luís Gonçalves Vaz (2012). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No livro de João Céu e Silva,  "Uma longa viagem com Pulido Valente" (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp.), são atribuídas a Vasco Pulido Valente (VPV)  (1943-2021) as seguintes afirmações, a propósito da descolonização (*):

(...) Quando o Dr. Mário Soares chegou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros , já o coronel Fabião estava aos abraços ao PAIGC e o Otelo aos abraços à FRELIMO. Não havia negociação possível.

Quem fez a descolonização não foi o Dr. Mário Soares, mas o MFA. Ele não queria fazer aquela descolonização, e foi assim porque o Exército português se desfez em quarenta e oito horas em Angola, Moçambique e Guiné. Neste último caso, fomos mesmo ao encontro das tropas inimigas e confraternizámos poucos dias após o 25 de Abril. Como aconteceu no Norte de Moçambique e quase imediatamente me Angola (pp. 282/283).

(…) Lembro-me do abraço de Soares a Samora Machel, horrível! E Como aconteceu ? A comitiva entrou na sala de reuniões, Otelo olhou para o Machel e disse: “Ah grande Machel, deixe-me dar-lhe um abraço”, e Soares, que estava a chefiar a delegação, ficou sem saber o que iria fazer. Depois de Machel ter dado um abraço a Otelo, veio ter com Soares de braços abertos, “Meu caro Mário”, e deu-lhe um abraço. Isto só deveria ter acontecido com Moçambique independente” (p. 191).


2. Pergunta-se, aos camaradas da Tabanca Grande que estavam no TO  da Guiné no 25 de Abril de 1974: tem algum fundamento a declaração de VPV, segundo a qual as NT foram logo, "pouco dias após o 25 de Abril" (...)  "ao encontro das tropas inimigas " (leia-se, do PAIGC) e "confraternizaram" ?

Eu não estava lá, mas pelo que sei, e pelos depoimentos já aqui foram publicados ao longo de 18 anos de existência do blogue,  acho estranho que, ao fim destes anos todos (já lá vão 48, quase meio século!), já ninguém se indigne com estas, senão "bojardas", pelo menos "bocas foleiras", vindas para mais de um homem com formação académica, historiador encartado e, de resto,  um dos "cronistas-mor" do regime democrático,  o qual, todavia,  sempre esteve longe (fisicamemte falando) do teatro de operações da Guiné. 

No citado livro (que é um meritório trabalho do João Céu e Silva, como já aqui foi dito), há outras" leviandades" (não quero chamar-lhe outros nomes) que são ditas sobre a guerra da Guiné (como, por exemplo, sobre o acidente de helicóptero, caído no rio Mansoa, em que morreu o seu amigo, o deputado da Ala Liberal José Pedro Pinto Leite, e mais outros 3 deputados da Assembelia Nacional, além da tripulação, e que VPV atribui à pontaria dos artilheiros do  PAIGC) (**)...Para já não falar da infeliz expressão "capitães milicianos mercenários" (também não provocou, ao que parece, a indignação dos nossos leitores, na ausência de comentários ao poste) (***)...

No essencial, as declarações do VPV parecem-me injustas ou menos felizes, em relação aos "últimos soldados do Império" que arriaram a última bandeira verde-rubra na Guiné... No mínimo, não responderão à verdade dos factos... Em zonas como o Xitole, a guerra prolongou-se até quase a meados de junho e ainda houve mortos de parte a parte... Na generalidade dos casos,  a retração do nosso dispositivo militar (aquartelamentos, destacamentos, etc.)  fez-se com ordem e dignidade, de acordo com um plano de retirada superiormente aprovado... E, depois, se uma jogatana de futebol, entre inimigos de ontem, num processo de negocição de paz, ao fim de onde, doze, treze anos de guerra, é uma prova inequícova de "confraternização", então temos que tratar com pinças as palavras que usamos quando falamos da gestão dos conflitos entre os seres humanos...

Na primeira parte deste poste, selecionámos, ao "vol d'oiseau",  algumas fotos e legendas que fomos publicando, a este respeito, ao longo dos anos... Esperemos que estas possam suscitar mais depoimentos e reflexões sobre o tema, sem que a discussão acabe na "fulanização" e na "caça às  bruxas", na patológica tentação, tão portuguesa (e se calhar universal), de querer arranjar logo "bodes expiatórios" quando as coisas não nos correm com ventos de feição como foi o caso, por exemplo, da descolonização... 

Enfim, façamos votos, neste já final do ano de 2022,  para  que os nossos historiadores (militares ou outros, portugueses ou estrangeiros) possam, com mais investigação,  fazer mais luz, em 2023,  sobre este período e estes factos em que as narrativas ainda estão longe de serem consensuais, devido também ao enviesamento político-ideológico (****). LG
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 3 de dezembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23840: Notas de leitura (1527): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte VI: 25 de Abril ? 25 de Novembro ? E descolonização ? Acho que consigo compreender tudo no caso português. Isto parece uma gabarolice, mas não é. A mim, não há nenhum acontecimento que me cause perplexidade" (VPV)

(**) Vd. poste de 18 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23793: Notas de leitura (1518): "Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva (Lisboa, Contraponto, 2021, 296 pp) - O Estado Novo, a guerra colonial, o Exército e o 25 de Abril (Luís Graça) - Parte II: A guerra de África não foi nada parecido como o trauma da I Grande Guerra...


(****) Último poste da série > 25 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Guiné 61/74 - P22397: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Julho de 2021:

Queridos amigos,
É no meio daquela vadiagem entorpecedora , e num quadro de um certo desalento da malta do Xime, que o Comando de Bambadinca resolve apontar os faróis para operações que lhes pudessem levantar o moral. Pela primeira e única vez, mandam-me esboçar uma operação para avaliar o que se passa na Ponta do Inglês, nada de andanças por outros lados, pretendia-se saber no local se efetivamente havia população e grupo militar vigilante, este revelava-se ativo, chegara à desfaçatez de bazucar uma embarcação civil que se incendiou no Geba, fora o número de flagelações sobre o Xime, isto enquanto começavam a ver os resultados do alcatroamento da estrada que vinha do Xime e prometia chegar a Bambadinca, as máquinas da Tecnil já trabalhavam entre Bambadinca, Undunduma e Amedalai. Não posso esconder o orgulho que me deu a conceção de uma operação por itinerários ditos impensáveis, e para um cabal esclarecimento do leitor aqui se reproduz um detalhe da carta para se ver por onde fomos e como retirámos deixando aquela força do PAIGC numa completa desorientação. Levar morteiros 81 no negrume da noite dentro de arrozais, entrando frontalmente num grande acampamento de quem trabalhava os arrozais do Poidom foi obra, ainda fomos recebidos pelos valentes tiros, mas os morteiros 81 impuseram-se e o nosso regresso foi um belo passeio.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (62): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Ma femme adorée, mon inoubliable Annette, mil agradecimentos pela dedicação que estás a pôr nas férias por que tanto anseio. E ouvi-te longamente ao telefone, redigiste num certo estado de dúvida os preparativos e a execução da Operação Rinoceronte Temível. Pensando demoradamente no que vivi neste curto período em que participei num conjunto de operações, sem deixar de vadiar do Bambadincazinho para os Nhabijões, de Amedalai para Bricama, estadeando naquele poiso infecto da ponte do rio de Undunduma, sou levado a julgar que a fadiga me estava a consumir, o que vai levar o médico a propor em abril o meu regresso a Bissau para tratamento hospitalar. Eu procurava manter a normalidade preocupando-me com a logística, com as aulas de ginástica, com os problemas da comida a tempo e horas para os soldados desarranchados, eram todos africanos os que estavam nestas condições, proibi que os soldados andassem com o seu saco de arroz às costas ou a fazer fogueiras quando um dia, na Ponte de Undunduma, vi um cunhete de granadas de bazuca a menos de um metro de uma fogueira. É um período em que escrevo desalmadamente, recebi correio muito edificante, Ruy Cinatti enviou-me por esse tempo uma brochura com o seu conto Ossobó, que já publicara em 1936. Encontrei uma citação num aerograma que enviei à minha irmã, e que mais tarde me ofereceu com toda a correspondência que agora está em teu poder, escuta esta pequena passagem:
“Pousado num ramo de acácia, Ossobó canta e alisa as penas do peito com o bico humedecido… Por momentos, qualquer coisa o atrai lá abaixo, no chão, e rápido desce, pousando sobre a macia cama de folhas secas, ali acomodadas há tanto tempo… Um raio de sol conseguiu atravessar, antes dos outros, a ramaria alta das amoreiras, e espelha a água depositada no limbo das folhas. Com os pés mergulhados, Ossobó alonga o pescoço e sorve com o bico uma das pequenas gotas transparentes… Amanhece dentro da floresta. Um denso nevoeiro a subir do chão e da torrente ainda envolve o espaço. Tudo reanima do torpor da noite. As sensitivas intumescem, abrem devagar as suas folhas, e as flores do pau-lírio lançam baforadas de perfume… Os bicos-de-lacre pararam de brincar e olham inquietos qualquer coisa que se move e que em filas tortuosas vem a subir pelas pedras roliças das margens. Eles lembram-se das cobras traiçoeiras que, em noites escuras, os vêm surpreender no sono, mas o periquito depressa os pacifica… Ossobó olha os vapores que se escondem cada vez mais nos cipós entrelaçados. Por causa deles é que o sol manda daquela maneira os seus raios, e a toalha de água que se despenha das rochas parece uma placa dourada de metal… Ossobó desdenha dos avisos dos celestes. Não é ele quem canta melhor no obó? O próprio periquito lhe dissera que os homens lhe chamavam o rouxinol da ilha. Despreocupada, perscruta por entre as folhas e depois saltita atraído pelo vermelho do inseto que zumbe mais em baixo”. Paro aqui, minha adorada Annette, é uma cobra negra com as estrias vermelhas na cabeça e com dois dentes curvos saindo da bocarra que avança para Ossobó e o irá engolir, é esta a tragédia dos incautos.

Fui chamado ao major de operações, os ventos não sopram de feição na região do Xime, houve para ali flagelações, ardera a tabanca do Enxalé e em Ponta Varela um grupo do PAIGC destruíra uma embarcação civil, o comandante da companhia estava sinistrado, tínhamos que contribuir para lamber as feridas e levantar o ânimo ao pessoal. E deixou-me estupefacto quando recebi ordens para planear uma operação para muito breve, envolvendo gente do Xime, milícias de Finete e de Amedalai e do meu contingente. Perguntei-lhe qual o objetivo, qual a natureza da missão, veio pronta a resposta, percorrer a região até à Ponta do Inglês e procurar esclarecer de uma vez por todas que ali havia gente. Na maior das discrições, meti-me na sala de operações onde um furriel foi questionado sobre tudo quanto dispúnhamos de informações. Dois dias depois, apresentei um esboço, major e comandante aprovaram, apareceu um DO e percorremos a região do Xime e não havia dúvidas sobre a grande quantidade de trilhos à volta do Poidom, via-se perfeitamente que aqueles arrozais eram cultivados. A última reunião com o Comando é na manhã do dia 7, sou informado das condições atmosféricas, a noite do dia seguinte não terá lua, beneficiarei do negrume total, a deslocação será feita dentro dos arrozais, olham-me inquieto quando informo que vou levar morteiros 81 e deixo para o que acontecer o caminho da retirada, na certeza certa de que não passarei pelos caminhos convencionais que já registaram emboscadas sanguinolentas.

Como pudeste observar, inopinadamente informo os meus homens que sairemos ao princípio da tarde, defino o armamento que vai, indispensável transportar em dois cantis, nem uma palavra sobre o destino. Alguém já se pôs a caminho para informar o comandante das milícias de Amedalai de que preciso de todos os seus homens, dará um grupo de combate que sairá de Bambadinca e até ali me acompanhará. E chega um grupo de combate de Mansambo que ficará no Xime no tempo das nossas andanças até à Ponta do Inglês. Respondendo a uma pergunta que tu me puseste, esqueci-me de te dizer a tempo e horas que veio o sargento Cascalheira e o furriel Ocante substituir o Casanova e o Pina. Contratam-se carregadores em Amedalai e no Xime, aqui falo com os oficiais da unidade e defino o que vamos fazer. Como há um obus, preparo em papel manteiga, em duas folhas iguais, uma que fica em meu poder, sabendo o Cascalheira em caso de um sinistro que me atinja deve passar a ser ele a utilizar, introduzimos locais assinalados com letras, através do rádio, se acaso fôssemos flagelados e estivéssemos no ponto C eu pediria fogo para o ponto D, os guerrilheiros ficariam naturalmente intimidados e confusos quanto à nossa localização. Tudo decorreu exatamente como tu podes ler no relatório de operação. Quando, no dia seguinte, ao fim da tarde, na sala de operações informei o comando do dispositivo do PAIGC na Ponta do Inglês, percebi perfeitamente que eles não ficaram felizes. Houve um mau presságio, um pequeno desastre que afetou um 1.º cabo que à saída do quartel disparou um tiro que lhe despedaçou um dedo. Houve de facto uma reação daquele grupo do PAIGC, dispararam umas morteiradas à toa, a apalpar terreno, a ver se reagíamos, isto enquanto flanqueávamos o Corubal já na retirada. Pedimos ao obus do Xime ajuda, lançaram fogo para o local onde previsivelmente eles estariam. E tudo se silenciou. No dia seguinte fiz o relatório que tu tens em teu poder, pedi louvores para o 1º cabo Queirós e para um destemido soldado da Companhia do Xime, Isaías Remoaldo Tendeiro. Entrego o relatório ao comandante, todo pimpão, olhou-me com circunspeção e ditou-me a sentença: “Estamos satisfeitos, mas muito preocupados com as informações que nos trouxe. Fica proibido de dizer seja a quem for que vamos agora continuar com duas operações na região, a Jaqueta Lisa e o Colete Encarnado. E está na altura de V. pensar que vamos voltar à região do Cuor, o nosso major já escolheu um título, em sua homenagem, Tigre Vadio. Depois falamos, vá à sua vida, tem muito que fazer”
.

É assim, minha adorada Annette, que vais ouvir falar de operações em março e abril, e depois dou baixa ao Hospital de Bissau, não era sem tempo.

(continua)

Para se entender melhor a Operação Rinoceronte Temível atenda-se ao que está escrito neste extrato da carta. Saiu-se de madrugada do Xime, contornou-se Ponta Varela e seguiu-se o itinerário considerado impensável: entrou-se na bolanha do Poidom, seguiram-se as informações disponíveis das imagens aéreas, procurou-se entrar diretamente num acampamento do PAIGC, onde se previa haver depósitos de arroz. O que veio a acontecer, no lusco-fusco a coluna de cerca de 200 homens foi detetada, pôs-se a funcionar dois morteiros 81, foi um alarido completamente inesperado, entrou-se numa rede de estradas, depósitos de arroz e camaratas de quem ali trabalhava. Arrasou-se o que foi possível, e para ludibriar quem nos podia emboscar, viemos sempre junto ao Corubal, voltámos a contornar Ponta Varela, infletiu-se para o rio Geba, o PAIGC gostava de emboscar em Madina Colhido, nesse dia tiverem deceção, passámos ao largo, entrámos manhã alta no Xime, cansados e eu particularmente feliz, sem uma beliscadura, deixando aquele grupo do PAIGC na dúvida da nossa progressão, confusos pelo estrondear daqueles morteiros, de uso improvável em lamaçal. Pois assim aconteceu.
Peço a Deus que, quando estiver a fechar os olhos na vez derradeira, volte o meu espírito para todos aqueles que eu amei do fundo da minha alma, pedirei sentidamente perdão pelos meus pecados e possa ter acesso a esta imagem que tantas vezes tive a sorte de contemplar em Mato de Cão, que ela aflua a quem parte deste mundo para me recordar o privilégio da força combativa dos meus soldados, a fidelidade daquela gente que me votou um respeito incondicional e de quem guardo uma irmandade até ao fim dos tempos.
Há muito mais de dez anos fotografei este escombro, bem me arranhei nos arbustos afiados do tarrafo para aqui chegar, enlameado até aos tornozelos, mas era impossível daqui sair sem esta recordação do exato local quase diariamente percorrido, exigindo manhas no percurso para não haver minas nem emboscadas. O que felizmente aconteceu. Este é o ponto de Mato de Cão de vigilância obrigatória para que a navegabilidade do Geba não pudesse ser posta em causa, como nunca foi.
Da minha viagem em 2010, para me despedir dos meus bravos soldados, era indispensável fazer um dos itinerários mais belos do mundo, a estrada do Xime até à Ponta do Inglês, fi-lo em estado de êxtase na motoreta de Lânsana Sori, que ziguezagueou entre poças de lama esverdeada, sempre a ouvir o fluxo trepidante do Corubal, e pouco antes de chegarmos ao povoado digo-lhe para contemplar a foz do rio no exato ponto onde as embarcações traziam os abastecimentos para o destacamento da Ponta do Inglês, quando se deixou de usar a estrada, tal o caudal de minas. E daqui se vê longe Tombali, aqui fiquei especado a pensar em tanto sofrimento que aqui houve, com tal natureza pródiga à volta.
Desse povoado e desse destacamento, que era um embaraço para as culturas do arroz do PAIGC na Ponta Luís Dias, no alegado chão libertado de Tabacutá, Mina, Fiofioli e Galo Corubal, de onde pacificamente o PAIGC fazia trânsito pelas pirogas entre as duas margens, restam escassos vestígios, esta era a casa de comércio, logo abandonada no início da guerra e que os contingentes militares nunca usaram por ser um alvo plenamente a descoberto. Será que o tempo inclemente tudo derruiu?
____________

Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22376: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (61): A funda que arremessa para o fundo da memória

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22189: Notas de leitura (1355): "Vem Comigo à Guerra do Ultramar", por António Luís Monteiro da Graça (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
É sempre uma surpresa agradável encontrar na Feira da Ladra relatos da guerra da Guiné, mesmo aqueles que já são conhecidos e até já estão repertoriados. É o caso destas notas soltas do coronel António Luís Monteiro da Graça que comandou a Companhia de Cavalaria 677 na região de Tite e São João, entre 1964 e 1966. O que mais me impressionou na releitura foi o cuidado posto pelo autor em mostrar-nos, produzindo as cartas geográficas, as dificuldades quase sobrehumanas de percorrer lamaçais atravessados por cursos de água, com a mata cerrada a boa distância, mas dando boa visibilidade para hostis bazucadas e morteiradas. Monteiro da Graça desmonta a falsidade do nosso controlo daquele território, o penoso das assiduidades, a falta de material, a falta de formação, tudo superado pela galhardia e destemor dos seus homens, lêem-se estes relatos de quatro comissões e vê-se que não é fruto do acaso que estes rastos de memória são dedicados a todos os militares da CCAÇ 677, é importante lê-lo para sentir o peso destas solidariedades que nunca se apagaram.

Um abraço do
Mário


Vem comigo às terras barrentas entre S. João, Enxudé e Jabadá

Mário Beja Santos

Já em 2013 aqui se fez menção ao punhado de apontamentos elaborados pelo Coronel António Luís Monteiro da Graça com o título "Vem Comigo à Guerra do Ultramar", episódios soltos das suas quatro comissões em Moçambique, Guiné e Angola (P11399 de 13 de Abril de 2013). Fora possível fazer tal recensão por existir um exemplar que o oficial oferecera à Liga dos Combatentes. Dá sempre gosto voltar a ler estes conjuntos de memórias, tive agora a dita de comprar exemplar na Feira da Ladra, reler com gosto e talvez fazer um comentário com novo olhar. Logo as razões da dedicatória, a Companhia de Cavalaria 677 merece-lhe essa homenagem, foi ele que formou esta unidade independente, mal chegados à Guiné subtraíram-lhe um pelotão que foi reforçar Fulacunda, a sofrer na época uma grande pressão por parte do PAIGC. Recordações não lhe faltam: o alferes Teixeira, que tinha visão deficiente e que bastantes vezes ia de encontro às árvores, as suas grossas lentes nem sempre lhe davam a panorâmica do que estava à frente. E vem o elogio a todos: “Tive a felicidade de comandar homens que iam suportando todas as contingências da guerra com grande espírito de sacrifício, mas eivado de humor e boa disposição que se prolongaram até aos dias de hoje, em que não faltam aos anuais almoços de confraternização. E o elogio é extensivo aos nativos que iam connosco e que sempre foram elementos de grande valor e lealdade, honrando os compromissos assumidos e a esperança de que com a sua participação estarem a contribuir para uma Guiné mais próspera e melhor preparada para a mudança que se esperava”.

Vendo agora com mais cuidado as cartas melhor se percebe como aquela geografia de terras alagadas à volta de Jabadá, Enxudé, Gã Chiquinho eram um tormento na progressão que a guerrilha experimentada aproveitava a oportunidade para flagelar. Em junho de 1964 a guerrilha dispunha de metralhadoras e bazucas. Naquele tempo havia um médico por companhia e o Dr. Pereira não tinha qualquer preparação física, andara duas ou três semanas em Mafra, ia-se abaixo das canetas nas operações. “Daí nasceu uma guerra entre mim e o comandante. Este obrigava-me a levar o médico para as operações. Eu não o levava pois já tinha a experiência e não estava a ver o doutor a mostrar boa vontade para ir. E não o levei mais, chatices tinha eu de sobra. E também analisando bem, que fazia o médico em caso de ferimento grave? Em estancar o sangue e esperar pela evacuação, se possível, coisa que o enfermeiro podia fazer”. Conta-nos a peripécia da CCAÇ 423 que chegara de Lisboa com o destino de São João. Em vez de se ter utilizado um transporte marítimo para pôr a unidade em poucas horas no seu destino, alguém decidiu que deviam partir de Bissau e ir até Bafatá, descer por Fulacunda e Nova Sintra até São João. Foi bico de obra a remover obstáculos nas picadas e já com o quartel de Nova Sintra à vista sofreram uma grande emboscada. Lá seguiram para Tite, depois Enxudé e finalmente São João, que saga. Mas fica-se a perceber como logo no início da guerra muitos itinerários se tornavam progressivamente mais perigosos.

O coronel Monteiro da Graça não deixa de referir o verdadeiro calvário que era percorrer aquelas bolanhas para chegar aos objetivos próximos do Rio Geba. Fazer operações na península de Gampará era igualmente um tormento, do outro lado do Corubal agentes do PAIGC já cultivavam na Ponta do Inglês, na Ponta Luís Dias em Mangai, Mina e Fiofioli. Bem curioso é o que ele nos relata da Operação Crato que se realizou em 18 e 19 de julho de 1964, envolvia a unidade de São João, dois destacamentos de fuzileiros desembarcados em Jabadá, a companhia de Fulacunda e dois pelotões da 677. Saíram do Enxudé, embarque no meio de uma enxurrada de lama, são embarcados em duas LDM, amarinharam por meio de cordas em plena escuridão para o contratorpedeiro Voga, tornearam a ilha de Bolama, entrou-se no Rio Grande de Buba e a progressão começou na península de Buduco, em direção ao norte. Descobrem um acampamento, recentemente abandonado, e ainda com a comida ao lume. Começou a chover torrencialmente e deram de caras com uma patrulha inimiga. Tudo acabou bem. Ficamos igualmente a saber que o PAIGC flagela quando pode a Ponta de Jabadá.

Destaca atos de heroísmo dos seus militares, dois deles foram condecorados com a Medalha de Valor Militar. O controlo do terreno era dificílimo. “A função de intervenção era só teórica, pois as minhas tropas faziam as operações de intervenção e depois de chegarem faziam também as outras atividades. O meu pessoal pouco tempo depois da chegada, três meses, estava quase inoperacional”. Impraticável qualquer tipo de controlo, o terreno não permitia qualquer permanência, e o PAIGC já flagelava com morteiros e bazucas. Havia as marés que obrigavam embarques e desembarques com imensas dificuldades, por vezes Monteiro da Graça tece comentários cáusticos à Marinha.

Em 3 de agosto desse mesmo ano de 1964 três companhias voltam à península de Gampará, na junção dos rios Geba e Corubal. “Acontece que a noite estava de tempestade. Na margem norte do Geba, existia frente à península o quartel de Porto Gole, que não fora avisado da operação. Com a tempestade, as duas LDM foram atiradas para a praia junto ao quartel que começou a atirar morteiradas contra o possível inimigo, nós, neste caso. O segredo da Operação foi-se. No dia seguinte, nem inimigo nem população estavam nos acampamentos e nas tabancas, pouco mais restante do que destruir os seus quartéis”. Queixa-se da falta de instrução da tropa, desde o uso de armas até às granadas. Viveu uma guerra pobrezinha, experimentou a recusa no fornecimento de granadas, a falta de material, e conta uma história de uma operação em que partir às quatro da manhã e às três da tarde antes o comandante do batalhão informa-o de que teria de emprestar para uma outra operação os três morteiros de 60 mm. Surpreendido com a notícia, achou por bem sugerir que se devia suspender a Operação, o comandante recusou-se a tal cancelamento. Veio um avião a Fulacunda e trouxe um morteiro, já ganhara a perceção de que o PAIGC começava a ter mais e melhor armamento.

Tem muitas recordações avulsas, sente-se nesta escrita a densa camaradagem que se estabeleceu e terá sido interrompida quando a litíase renal o obrigou a um tratamento mais sério. Mas esta CCAÇ 677 ficou-lhe no coração, jamais esqueceu todos aqueles lodaçais que encontrou no Sul. Um relato tocante que justificou a releitura de um lugar pouco aflorado na literatura da guerra da Guiné.
Coronel de Cavalaria António Luís Monteiro da Graça (1925-2014)
Companhia de Cavalaria 677, Tite e São João, 1964-1966
Ruínas do antigo quartel português em Tite. Fotografia de Alfredo Cunha, jornal Expresso, com a devida vénia
Porta de armas do quartel de Tite, 1964. Fotografia do blogue
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22167: Notas de leitura (1354): "Nos Meandros da Guerra, O Estado Novo e África do Sul na defesa da Guiné", por José Matos e Luís Barroso; Caleidoscópio, 2020 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Guiné 61/74 - P21823: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (37): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2021:

Queridos amigos,
Annette não se limita a compendiar e a organizar a história da comissão, houvera um pretexto para se fazer romance, a dita guerra da Guiné colou-se-lhe à pele, agora ela estende as antenas para tudo o que pôde acontecer depois do regresso, e perguntou seraficamente ao seu amoroso Paulo Guilherme se e quando se dera tal retorno, qual o seu significado, é o que aqui se relata, em escassos parágrafos, aqueles cerca de cinco meses (nem Annette sonha) dariam uma narrativa bem remexida, estava-se na fase da alvorada do multipartidarismo, Paulo Guilherme ouvia as coisas mais inconcebíveis vindo de políticos que abandonavam o PAIGC e gizavam quadros ideológicos nem imaginando se o povo os podia perceber. E lembra aquelas noites em que calcorreava estradões esburacados entre a pensão da Dona Berta e a CICER, onde tinha guarida, por vezes contava com boleias providenciais, era o seu vizinho Delfim da Silva que vinha com mulher e filhos, mas havia sempre lugar para mais um, nenhum dos dois sonhava que o Delfim viria a ser ministro dos Negócios Estrangeiros, mais tarde passou um mau bocado quando o Nino Vieira se escapuliu para Lisboa e os seus acólitos foram parar à enxovia, são coisas da vida.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (37): A funda que arremessa para o fundo da memória


Mário Beja Santos

Mon amoureuse, é uma frase banal, mas não tenho palavras para te agradecer o modo como organizas o que ainda falta do primeiro ano da minha comissão na Guiné, e não querendo entristecer-te, prepara-te para acontecimentos dolorosos, até agosto de 1969. Num encontro fortuito com um antigo colaborador, recentemente, o então furriel João Sousa Pires, o meu braço-direito para a contabilidade e administração, ele lembrou-me aquela manhã em Mato de Cão em que as embarcações esperadas teimavam em chegar, nisto, e com bom atraso, chega uma embarcação civil a revelar danos, uma roquetada em Ponta Varela estilhaçara o convés e afetara a navegação, o piloto tinha o rosto rasgado por ferimentos de vidros partidos, eu que aguardasse os outros barcos, pediu-me, vinham cautelosamente quase encostados à margem direita, como aconteceu, dei com rostos apavorados de gente que temia o pior. Lerás num aerograma que um dia demos na picada entre Canturé e Sansão com alguém que corria em estado de transe em nossa direção, todo esfarrapado, mandei parar, podia tratar-se de uma cilada, a preceder uma emboscada, não era tal, tratava-se de um fugitivo de uma embarcação civil que fora seriamente danificada também perto de Ponta Varela, não demos por nada, ou supusemos tratar-se de tiroteio sobre o quartel do Xime, pois bem, este homem lançou-se a nado, andou a monte até chegar à nossa estrada, o rosto estampado de pavor, levámo-lo para Missirá, veio-se a confirmar a sua versão, foi devolvido à procedência.

Tu pedes-me informação sumária sobre o período em que estive como cooperante, em 1991, na sequência da visita de trabalho de 1990, espero que te lembres que regressei a Missirá e por mais que procure um relato fidedigno dessa visita não encontro expressão para o meu estado de alma, o que eu solucei, por me encontrar naquele chão tanto calcorreado, junto de um povo que me acolheu tão familiarmente e onde julgo ter cumprido o meu dever, e deixado um rasto de fraternidade.

Annette, sobre 1991 é aquela sensação ambivalente de procurar fazer bem, ser realista nas propostas para os dois governos envolvidos, entusiasmo não me faltava, mas as deceções acumulavam-se dia após dia. Logo à chegada, em Bissalanca, dois técnicos do Ministério da Indústria e Recursos Naturais, com caras de enterro, disseram que tinha sido um erro a minha vinda, vivia-se a euforia do multipartidarismo, ia ser difícil encontrar gente disposta a pôr aquele projeto de pé, calei-me, recebera a missão e faria os possíveis e os impossíveis para falar com os parceiros necessários, lançar a semente de uma defesa do consumidor à altura das necessidades elementares da Guiné-Bissau. O que aconteceu, tanto junto da administração como das agências das Nações Unidas, bem como dos projetos internacionais em curso, das organizações não-governamentais. A comunicação social recebeu-me bem, a televisão nomeou um jornalista para prepararmos uma série de programas para uma rubrica que se intitulava “Nós somos um milhão de consumidores”, produzimos seis filmes, escrevi os guiões, acompanhei as filmagens, falou-se da água potável, do fogareiro ecológico, dos perigos de comprar medicamentos a granel, das noções práticas de higiene, das vantagens para a saúde da variedade alimentar, e por aí adiante, o programa foi muito bem acolhido. Alguém lá na televisão quis fazer dinheiro e impôs-me que a série só continuava se eu encontrasse um financiador, ao que respondi que eu era um mero cooperante estrangeiro, competia à estação televisiva angariar um mecenas, e abruptamente, sem qualquer explicação, acabou a série, mais magoado não podia ficar. O Ministro do Ambiente português visitou Bissau, estava eu já no final da minha missão, achou bem o projeto de se criar uma comissão interministerial para a defesa do consumidor, o governo português apoiaria o seu funcionamento e toda a logística com um patrocínio de 8 mil contos, não era muito mas tinha dignidade, dava ânimo para uma primeira fase de organização de medidas de política, juntava técnicos de uma dimensão apreciável de ministérios que ficariam incumbidos de elaborar relatórios e sugerir medidas plausíveis, nada de extravagâncias legislativas. Arrancou-se a ferros um despacho do Presidente da República da Guiné-Bissau a dotar a administração do país com a dita comissão interministerial, ficaria num espaço que foi selecionado dentro do antigo quartel-general português, em Santa Luzia, obras a cargo do patrocinador, a terem lugar no início de 1992. E toda aquela inércia que se me deparava em muitos ambientes caiu sobre o projeto, impunha-se uma resposta rápida para as autoridades de Lisboa, só chegou meio ano depois, era demasiado tarde, senti completamente inglório tudo quanto por ali andara a fazer. Mas mais uma vez, senti que cumprira cabalmente o meu dever. E ponto final.

É claro que houve compensações. Encontrei-me no Cumeré com o coronel Mamadu Jaquité, alguém que por duas vezes me deixou mensagens na picada lisonjeando-me com o trato de alferes de merda, dizendo-me que eu não tivesse ilusões, viria numa urna pequena para Portugal. Depois de muito procurar, e graças a um outro cooperante, por sinal antigo combatente da Guiné, lá fui cumprimentar o tão temível adversário, ele estava a dar instrução na parada, homem de estatura meã, foi-se erguendo à espera da minha identificação, disse-lhe “meu coronel, eu sou o alferes de merda, o de Missirá, é com o maior prazer que o venho abraçar, permita-me que brindemos na companhia dos seus militares”. Falou-se da mina anticarro, que em breve te enviarei os apontamentos, é constrangedor o que vais ler, o coronel Jaquité sacudiu a água do capote, não fora ele, fora o tenente Correia, este desapareceu, quando se falou da minas tartamudeou, disse-lhe para não se apoquentar, esta era uma festa de vivos, não estávamos ali para glorificar o passado, o pior veio depois quando o tenente Correia me retirou do grupo, quase ao repelão, e segredou-me ao ouvido se eu tinha para ali 5 mil pesos (a ninharia do preço de uma refeição na pensão da Dona Berta), há dias que não havia arroz em casa, se eu podia dar uma ajudinha. Anoitecera, agarrei-me ao arame farpado, vendo Bissau ao fundo numa crepitação de luzes, chorei mansinho, a desdita de ter que estender a mão à caridade, claro que não houve dinheiro, houve nova viagem com mantimentos, tudo discreto, aprendi na minha religião que o que se dá com a mão direita a mão esquerda não sabe.

E fui figurante num filme, "Os Olhos Azuis de Yonta", o Flora Gomes, que eu encontrava com uma certa regularidade, um dia pediu-me se eu não me importava de estar no dia tal às tantas horas num bar noturno, tratava-se da sequência de uma enorme roda, tudo numa atmosfera de alegria. Não era possível dizer que não e por ali andei aos saltinhos, poderei pôr no meu currículo que fui figurante numa película guineense, com muito orgulho.

Momentos há, minha adorada, em que me apetece a total indisciplina, atirar os papéis ao ar, partir com um saco para Bruxelas e sentir o teu afago, ao pé de ti não há tédio, sinto que despertei para a vida na luz dos teus olhos, na ternura que me concedes. E tudo por causa de uma guerra. Imagina tu que há uns dias atrás vim de uma reunião algures na Baixa de Lisboa, descia a Rua do Carmo, que tu conheces, entrei na Livraria Portugal, ao pé do Elevador de Santa Justa, tínhamos uns minutos disponíveis para esgravatar novidades editoriais, e dei comigo a folhear uma antologia de Saint-John Perse, Prémio Nobel da Literatura de 1960, conheci este génio graças a uma oferta que me fez o poeta Ruy Cinatti, antes de partir para a guerra, era um livro de caráter ontológico que recolhia poemas de diferentes livros, e estava a folhear alguns desses poemas e senti uma profunda saudade da perda deste amigo, morreu em 1986, e que me ajudou tanto na Guiné, e que bom naquele momento saudá-lo lendo esta poesia genesíaca, um tanto mística, com sabor antilhano, sua proveniência:
“Grande idade, vimos de todas as margens da terra. A nossa raça é antiga, a nossa face é sem nome. E o tempo é muito instruído sobre todos os homens que fomos.
Grande idade, aqui estamos, encontro marcado, e de há muito, com esta hora de grande sentido. A noite desce, e de novo nos leva, com nossas presas de alto mar. Nenhum ladrilho familiar em que repercuta o passo do homem. Nenhuma casa na cidade nem pátio calçado de rosas de pedra sob as abóboras cenouras.
Grande idade, reinas, e o silêncio é teu número. E é imenso o sonho em que se lava o sonho. E o oceano das coisas nos assedia. A morte está no postigo, mas a nossa estrada não está lá. E eis-nos mais alto que sonho sobre os corais do século – nosso canto”
.

Adorada mulher que me tomou na grande idade, que me faz suspirar como trémulo adolescente, sonhar sem medir a posteridade, a ti entregue, numa quase rendição incondicional. Telefono amanhã, prepara-te para os papéis que vão chegar, trazem mágoa, mágoa inextinguível, acredita. Bien à toi, Paulo.

Os Olhos Azuis de Yonta, de Flora Gomes, de que fui figurante
O pôr-do-sol nas águas da Guiné convida à transcendência, à contemplação cósmica, ver a bola de fogo cair a pique na imensa densidade florestal é passarmos do dia para a noite, sentir os passos ouvindo possivelmente o correr das águas, talvez o bruxulear de um petromax num ponto acolhedor que nos espera, ouvir o piar das aves e temer mesmo um encontro frontal com gente hostil, como algumas vezes me aconteceu, o derramamento de sangue era inevitável.
O tocador de korá, que encontrei no Bambadincazinho, parente do meu amigo Braima Galissá, estávamos em 2010
A bolanha de Finete, tal como a encontrei em 2010
Por aqui se fazia a cambança do Geba, em direção a Finete, o caminho desapareceu, agora viaja-se por estrada alcatroada
Moeda de 10 000 pesos em prata (1991), comemorativa da viagem de Nuno Tristão (1446)
Banco Nacional da Guiné-Bissau, 1975, nota de Cem Pesos, efígie de Domingos Ramos
Vista esplendorosa da Ponta do Inglês sobre a foz do Corubal. Pena ter chegado tarde, bem queria ter visitado a Ponta Luís Dias, Tabucutá, a Mata do Fiofioli, bastiões do PAIGC na região do Corubal
____________

Nota do editor

Último poste da série de 22 de janeiro de 2021 > Guiné 61/74 - P21795: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (36): A funda que arremessa para o fundo da memória

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21535: (Ex)citações (378): Talvez por causa de Madina do Boé... (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR, CCS / BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74)


1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da  autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 9 de Novembro de 2020:


TALVEZ POR CAUSA DE MADINA DO BOÉ

Talvez como consequência do abandono de Madina do Boé e o grande espaço de progressão que ficou livre até à zona de Galomaro, resultou em 5 mortos no local e mais 3 em consequência dos ferimentos, em emboscada feita à CCS/BCAÇ 2912 nas Duas Fontes em Outubro de 1971.

A CCAÇ 3491 - Dulombi - Fevereiro de 1972

Logo no período de transição teve um encontro de frente durante uma patrulha com IN, do qual só por milagre não resultaram baixas, mas cantis e casacos furados por balas, foram vários tal a violência de parte a parte.

CCAÇ 3489 - Cancolim - 1972/73

Depois seguiu-se Cancolim. Já depois de duas flagelações, a 2 de Março de 1972, Cancolim foi fortemente atacada com morteiros 82 mm tendo daí resultado a morte dos seguinte camaradas:

José António Paulo - 1.º Cabo Atirador - natural de Mirandela.
João Amado - Soldado Aux. Cozinheiro - natural de Carvide - Leiria.
Domingos do Espírito Santo Moreno - Soldado Atirador - natural de Macedo de Cavaleiros.

No final de 1972 a CCAÇ 3489 tinha 60 operacionais.

Não ficou por aí e, assim, morreram ainda em combate, alguns já em 1973:

António Martinho Vaz - Soldado Atirador - natural de Grijó da Parada - Bragança
Álvaro Geraldes Delgado Ferrão - Soldado Ap Morteiro -natural de Silvares - Fundão
Domingos Moreira da Rocha Peixoto - Soldado Atirador - natural de Alto da Vila - Duas Igrejas - Paredes
Califo Baldé - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá
Samba Seide - Soldado Milícia - natural de Anambé - Cabomba - Bafatá

Juntamos a este numero duas deserções (um capitão e um alferes) e a captura do Soldado António Manuel Rodrigues, que veio a fugir do cativeiro para o Saltinho já nós estávamos para embarcar para a Metrópole.

CCAÇ 3490 - Saltinho - 1972

Armandino da Silva Ribeiro - Alf Mil Inf - natural de Magueija - Lamego
Francisco de Oliveira dos Santos - Fur Mil Inf - natural de Ovar
Sérgio da Costa Pinto Rebelo - 1.º Cabo Ap Metralhadora - Vila Chã de São Roque - Oliveira de Azeméis
António Ferreira [da Cunha] - 1.º Cabo Radiotelegrafista - Cedofeita - Porto
Bernardino Ramos de Oliveira - Soldado Atirador - Pedroso - V. N. de Gaia
António Marques Pereira - Soldado Atirador - Fátima - V. N. de Ourém
António de Moura Moreira - Soldado Atirador - S. Cosme - Gondomar
Zózimo de Azevedo - Soldado Atirador - Alpendurada - Marco de Canaveses
António Oliveira Azevedo - Soldado - Moreira - Maia (**)
Demba Jau - Soldado Milícia - Cossé - Bafatá
Adulai Bari - Soldado Milícia - Pate Gibel - Galomaro - Bafatá
Serifo Baldé - Assalariado - Saltinho - Bafatá

Juntar o soldado António Baptista feito prisioneiro, bem como os diversos feridos com mais ou menor gravidade.

CCS/BCAÇ 3872 - 1972/73

Manuel Ribeiro Teixeira - 1.º Cabo Rec e Inf - natural Cimo da Vila - Varziela - Felgueiras - Vítima de mina antipessoal na estrada do Saltinho.
Mamassaliu Baldé - Soldado Milícia - natural de Cossé - Bafatá
Mama Samba Embaló - natural de Cossé
Ila Bari - Soldado Milícia - natural de Campata - Nossa Senhora da Graça - Bafatá
Alberto Araújo da Mota - Alf Mil TRMS - natural de Curral - Pico de Regalados - Vila Verde - Evacuado com hepatite, morre 2 dias depois em Bissau. 

Antes tinha sido evacuado o Soldado Radiomontador Carlos Filipe e aos 20 meses de comissão é igualmente evacuado com a mesma maleita o Alferes da ferrugem Amadeu.

Para fechar o ano de 1972 foi a CCS/BCAÇ 3872 violentamente atacada ao arame no dia 1 de Dezembro.

Em 1973 uma mina na estrada do Dulombi destrói Unimog e fere gravemente o meu camarada Falé que é evacuado e já não volta.

De referir o aparecimento de minas na estrada do Dulombi e ataques em Bangacia, Campata e Cansamba, tudo na região das Duas Fontes (entre 6 e 9 km de Galomaro).

Posteriormente a CCS bem como Cancolim foram reforçados com pelotões de Dulombi em retracção, que também reforçam operacionalmente Nova Lamego. Fomos também ajudados com grupos de intervenção independentes bem como com Paraquedistas.

Tendo o meu batalhão chegado à Guiné na véspera de Natal de 1971, a sua partida só se viria a efectivar em 28 de Março de 1974. Escrevo isto para situar o período das minhas narrativas e assim dar a perspectiva da alteração e da intensidade da guerra a que estivemos sujeitos. A violência, bem como o equipamento utilizado contra nós, foram assim sendo alterados de região para região.

Enquanto o alcance da nossa artilharia era ultrapassada largamente pelo o alcance da artilharia do PAIGC, também nos vimos privados da normal utilização de meios aéreos, pese a grande coragem com que os pilotos se forçaram a voar após serem confrontados com uma arma da qual ignoravam tudo, ou quase tudo.

E passo citar o TenGeneral António Martins de Matos no seu livro Voando Sobre Um Ninho De “Strelas”:

A guerra estava a entrar numa nova fase, nada de emboscadas e confrontos directos mas sim, de duelos de artilharia e seria de esperar o aparecimento de uma aviação rebelde/mercenária.

Duelos de artilharia? Interroga-se o autor. A grande maioria desses obuses  estavam no Sul, autênticos monos da II Guerra com alcance não superior a 14.000 metros. Na maioria dos quartéis da Guiné só tinham direito a morteiros 81 mm (4000 metros) e ainda 11 morteiros 105 mm espalhados por diversos sítios de alcance igual.

O PAIGC usava o 120 (5700 metros) depois haviam os foguetes 122 mm (20.000 metros) e a breve trecho emprestados por Sekou Touré, peças de 130 mm (27.000 metros) e enquanto a artilhara utilizada pela guerrilha só podia ser posta em causa pelo aparecimento da nossa força aérea. Estas últimas peças fariam fogo directamente do Senegal e da Guiné Conácri e sete dos nossos aquartelamentos ficariam assim debaixo de fogo.

Tudo isto para relembrar que aquela guerra era intensificada consoante interesse do PAIGC, uma fez que lhe chegavam abastecimentos cada vez de maior qualidade e quantidade, enquanto a nós há muito enfermávamos de uma penúria franciscana.

PS: Publico os nomes dos nossos mortos porque lembrá-los é honrá-los e é uma obrigação registar os nomes de quem na flor da idade nos deixou.

*******************

O António Tavares que pertenceu à CCS do BCAÇ 2912, que nós fomos render, sobre a emboscada das Duas Fontes fez-me chegar a correcção sobre o numero de mortos e assim: 

Na emboscada morreram 5 militares e posteriormente três dos feridos que foram evacuados vieram a falecer em resultado dos ferimentos.

Os mortos foram oito e não seis como eu tinha inicialmente escrito.

Da parte do ex-Alf Mil Luís Dias, que chegou a comandar a companhia do Dulombi, chegaram-me estas informações mais precisas sobre a actividade operacional do Batalhão 3872.

CURIOSIDADES OU NOTAS SOBRE A NOSSA ZONA

Podemos verificar que os 4 quartéis do Batalhão sofreram 22 ataques/flagelações (CCS-1; CCAÇ 3489 - 12; CCAÇ 3490 - 0 e CCAÇ3491 - 9) e que as Tabancas das nossas populações em redor dos nossos aquartelamentos sofreram 23 ataques/flagelações, sendo que 9 deles foram contra populações indefesas e num acto de salteadores de estrada, o IN roubou dinheiro e bens a 16 elementos da população que transitavam na picada Saltinho-Galomaro.

BCAÇ 3872

FLAGELAÇÕES E ATAQUES AOS NOSSOS QUARTÉIS

CCAÇ 3489 - CANCOLIM

8 Flagelações em 1972 (1 delas c/ 3 mortos, 5 feridos graves e 5 feridos ligeiros)
2 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCAÇ 3490 – SALTINHO

Não sofreram quaisquer ataques ou flagelações durante a comissão

CACAÇ 3491 – DULOMBI

3 Flagelações em 1972
4 Flagelações em 1973
2 Flagelações em 1974

CCS - GALOMARO

1 Ataque/flagelação em 1972 c/1 IN morto confirmado e prováveis feridos IN

MINAS ACTIVADAS E DETECTADAS

Cancolim: Mina A/P reforçada accionada c/1 morto e 1 ferido+mina A/C accionada c/12 feridos graves, 1 ferido ligeiro e 2 feridos pop.+2 minas A/P levantadas
Saltinho: 3 minas A/C levantadas e 1 A/P levantada
Dulombi: 2 minas A/C levantadas e 2 minas A/P levantadas
Galomaro: 1 mina A/P reforçada accionada c/1 morto+1 mina A/C reforçada accionada c/1 ferido grave

EMBOSCADAS/CONTACTOS/FLAGELAÇÕES AUTO

CCAÇ 3489 - 1 contacto com o IN, após flagelação ao quartel, em 1972+1 emboscada aos milícias em Anambé, em 1973 c/2 mortos e 1 ferido
CCAÇ 3490 - 1 emboscada no Quirafo c/ 9 mortos+1 milícia e 2 civis+1 militar capturado. 1 emboscada c/feridos e mortos do IN+1 contacto do IN c/milícias de Cansamange
CCAÇ 3491 - Flagelação numa operação no Fiofioli+1 emboscada/contacto com 4 feridos ligeiros nossos e mortos do IN (s/confirmação de quantos, mas a rádio do PAIGC referiu que tínhamos tido 8 mortos e eles também tinha tido mortos+1 emboscada/flagelação junto à recolha de águas no Dulombi+2 flagelações a coluna de escolta e protecção na estrada Piche-Buruntuma.
CCS - Contacto entre forças milícias e o IN, após ataque a Campata c/elemento IN capturado.

ATAQUES A TABANCAS EM AUTO-DEFESA E TABANCAS INDEFESAS

- Tabanca indefesa de Bambadinca/Cancolim, em 25/1/72;
- Tabanca indefesa de Mali Bula/Galomaro, em 1/2/72;
- Tabanca de Umaro Cossé/Galomaro, c/2 feridos civis, em 7/12/72;
- Tabanca de Campata/Galomaro, em 20/6/72;
- Tabanca indefesa de Sinchã Mamadu/Saltinho, na mesma data de 20/6/72;
- Tabancas indefesas de Sana Jau e Bonere/Saltinho, em 30/6/72;
- Tabanca de Cassamange/Saltinho, em 15/7/72;
- Tabanca indefesa de Guerleer/Galomaro, c/ morte de 3 prisioneiros civis e 1 ferido grave, em 27/7/72;
- Tabanca de Patê Gibele/Galomaro c/ 1 sarg. milícia morto+1 ferido grave e 2 feridos ligeiros da pop., em 11/8/72;
- Tabanca de Anambé/Cancolim c/1 morto (CCAÇ 3489)+3 feridos também da mesma CCAÇ, que ali estava de reforço, em 5/9/72;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, c/3 feridos IN confirmados, em 20/9/72;
- Tabanca de indefesa de Bujo Fulpe/Galomaro, em 26/9/72;
- Tabanca ainda indefesa de Bangacia/Galomaro, com 1 milícia e 2 civis mortos, no mesmo dia (26/9/72);
- Tabanca de Dulô Gengele/Galomaro, com 3 mortos IN confirmados e 3 mortos civis (que tinham sido feitos prisioneiros antes do ataque e que foram abatidos+1 ferido grave e 1 ferido ligeiro dos milícias e 4 feridos graves da pop e 5 feridos ligeiros da pop., em 17/10/72;
- Tabanca indefesa de Sarancho/Galomaro, com 2 mortos civis e 2 feridos civis;
- Tabanca indefesa de Samba Cumbera/Galomaro, c/1 ferido grave da pop., em 13/11/72;
- Tabanca de Cansamange/Saltinho, 17/12/72;
- Picada Saltinho-Galomaro c/16 elementos da pop. capturados e roubados dos seus haveres (dinheiro), em 18/1/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, c/2 mortos civis+2 feridos civis+2 feridos milícias, em 1/2/73;
- Tabanca de Campata/Galomaro, c/5 mortos do IN e 1 capturado+3 mortos milícias e 3 mortos civis, em 16/3/73;
- Tabanca de Sinchã Maunde Bucô/Saltinho, em 14/5/73;
- Tabanca de Bangacia/Galomaro, em 18/9/73;
- Tabanca de Madina Bucô, em 20/1/74.

09 de Novembro de 2020 às 21:26
____________

Nota do editor

Último poste da série de17 de outubro de 2020 > Guiné 61/74 - P21457: (Ex)citações (377): As visitas da D. Cecília Supico Pinto ao leste da Guiné (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)