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segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2203: Artistas guineenses (2): José Carlos Schwartz (Didinho/V.Briote)


Na procura de informação sobre quem foi José Carlos Schwartz, escrevi ao Fernando Casimiro:
(...) Sou um dos co-editores de um blogue sobre a guerra da Guiné, o http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/ . Estou a colocar no blogue os principais (pelo menos os que a história e a lenda registou) protagonistas da luta. Visitante do seu Contributo, vi um trabalho muito interessante sobre o José Carlos Schwartz. Autoriza-me a citar o seu trabalho?
E onde posso recolher mais informação sobre o Pansau Na Ina, o Domingos Ramos, o Pedro Ramos e outros? Será que o PAIGC tem algum site onde tenha as biografias dos combatentes? (…)

Prontamente recebi a resposta:

Caro V. Briote,
(…) Sobre o trabalho em relação ao José Carlos Schwarz, é claro que pode reproduzi-lo da forma que achar melhor. Agradecemos isso, até porque vai no sentido da divulgação e valorização das nossas referências! Quero dizer-lhe que tem toda a liberdade para reproduzir o que entender em relação aos trabalhos que estão, ou estiverem no site http://www.didinho.org/ bastando uma pequena referência sobre o site.
Em relação aos nossos heróis nacionais, Pansau Na Isna e Domingos Ramos bem como ao Comandante Pedro Ramos, não há nenhum site que fale deles, nem doutros heróis ou antigos guerrilheiros. As referências que poderá encontrar sobre estas personalidades, estão relatadas, superficialmente, no livro “Crónica da Libertação” do antigo presidente Luís Cabral, um livro há muito esgotado, publicado em Julho de 1984 pela Editora “O Jornal”. Espero que consiga encontrar um exemplar desse livro, mas se não tiver essa sorte, eu poderei emprestar-lhe o exemplar que tenho e que me foi oferecido há cerca de 1 ano pelo autor.
Cumprimentos,
Didinho
__________

Série Artistas guineenses (*)
Quem foi José Carlos Schwartz: o testemunho de quem o acompanhou
TESTEMUNHOS DE UMA CONVIVÊNCIA
Norberto Tavares de Carvalho, o "Cote"
Genebra, 6 de Dezembro de 2006

Existem pelo menos duas possibilidades de definição do período aproximado da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira, estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país actual. O Arquivo Histórico do Ultramar, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800.
A instalação, na Guiné Portuguesa, do avô do José Carlos poderia também situar-se mais ou menos nesse periodo.
A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que levou a ruína, a fome e as doenças à Alemanha. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que hajam outros cenários.
Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família.
O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje: 6 de Dezembro de 1949, da união de Carlos Schwarz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana.
Eis o resumo do que consegui na preparação deste pequeno memorial dedicado ao aniversário natalício do saudoso José Carlos.
Logo que o seu filho atingiu a idade escolar, o Senhor Carlos Schwarz tratou de o pôr na escola. Assim, o José Carlos fez os estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa.
Segundo um dos seus próximos, o José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista Readers Digest era distribuída em Bissau e pensa-se que foi através dela que o jovem centro-urbanista deu os seus primeiros passos na literatura. (...)´.
Em meados dos anos 60, o irmão mais velho do José Carlos, o Tony Schwarz instalou-se em Dakar, no Senegal. José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados.
Tony estava empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Inscreveu o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa, (ou numa escola similar). O Tony Schwarz tinha em Dakar uma posição social relativamente estável e cedo o José Carlos viria a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa.
Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.
Dakar, a sua sociedade, a sua cultura e as suas múltiplas perspectivas, ali bem pertinho de Bissau, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana que não escapara à atenção do jovem prodígio. De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria a frequentar as festas organizadas no Cupelom de Baixo, por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (Djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era um conhecido do Tony Schwarz.
Esse Benjamin seria originário de Geba misturado com o wolof. Indivíduo selecto, distinguia-se pelo seu fato aberto sem gravata e seu chapéu de palha. No meio da festa, o Benjamin mandava abrir o campo para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes de dançarino.
José Carlos então, com aprumo, sapatos de couro de bicos compridos, tomava lugar no meio da sala e ao ritmo das músicas afro-cubanas, com entre-pernas e outras reviravoltas, dava um verdadeiro espectáculo no meio de intermináveis aplausos. Nos dias seguintes, nas ruas de Santa Luzia onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do "Gaúcho", o seu cavalo, com uma corja de crianças atrás dele. Aí nasceria o primeiro mito do "José Cabalo".
Um encontro fortuito, ou o retomar de uma velha amizade, liga o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, dava noites musicais de gala no "Chez Toi ", um dos primeiros night club de Bissau. Zeca era já considerado um bom guitarrista. Duco aprende com o irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão.
Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo "Roda Livre" e ao conjunto musical "Sweet Fanda".
Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho do lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe apresentaram. Em 1968, foi destacado para a Guiné um novo Governador, o Brigadeiro António de Spínola, que substituiu no cargo Arnaldo Schultz. Spínola lançou então a politica da « Guiné melhor » à volta da Acção Nacional Popular.
Na altura, alguns emigrantes guineenses, residentes no Senegal, reunidos à volta da Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), estabeleciam contactos pontuais com o então Governo Colonial Português. As cabeças pensantes mais conhecidas naquele tempo em Dakar eram os Senhores Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, etc.
O Tony Schwarz, que nunca escondera a sua hostilidade para com o PAIGC, pelo seu líder Amílcar Cabral e pelo seu programa da unidade entre a Guiné e as Ilhas do Cabo-Verde, (não se trata aqui de um julgamento, o Tony tinha de certeza argumentos para tal) embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos daquela era, teria exercido uma certa influência nesse sentido sobre o seu irmão cadete. Não se trata aqui duma afirmação absoluta …
Entretanto, também regressa a Bissau o Everimundo José da Silva, filho do Nhu Musante, do bairro do Chão do Papel. Jovem instruído, Everimundo tinha fugido de Bissau indo reunir-se aos combatentes do PAIGC em Conacri. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do Leste (Bulgária, RDA ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido controlado numa discoteca, pela polícia alemã e recambiado para Portugal onde teria sido entregue à PIDE/DGS.
A organização secreta do então Governo Colonial Português tê-lo-ia metido na prisão, interrogado, torturado, e, de novo, recambiado para a Guiné.

Em Bissau, Everimundo teria sido imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Não se sabe exactamente quando é que conheceu o José Carlos Schwarz. Mais adiante poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é citado nestas linhas.

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do Governador António de Spínola, um grupo de deputados da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal no quadro do programa "Por uma Guiné Melhor", promovido pelo Brigadeiro. O Governo Colonial Português, na sua propaganda anti-nacionalista, deu uma grande cobertura à visita. No filme realizado, via-se o José Carlos Schwarz no meio da delegação da ANP na Fábrica de Explosivos e Munições Braço de Prata, na região de Lisboa.
Paradoxalmente, graças a essa mesma visita, o jovem de vinte anos na altura, iria ser confrontado com as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteiramente pessoal e profundamente interior deve-se ao seu encontro, em Lisboa, com um certo Filinto de Barros, "De Gaulle". Isto toda a gente sabe pelo que não constitui segredo nenhum. José Carlos teria recebido do "De Gaulle"os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense.
O seu interlocutor, que na altura era estudante em Lisboa, conseguira convencer o José Carlos de que o seu papel não era ao lado do poder colonial. O encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros constituiria o despertar de consciência do jovem pequeno burguês.
Quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa "Por uma Guiné Melhor", um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara-se contra o feiticeiro.

O Everimundo José da Silva não teve a mesma chance de se cruzar com um Filinto de Barros. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conacri e nas regiões libertadas mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau.
De Readers Digest e outras, o nosso herói passou a interessar-se por outros tipos de literatura. Em Bissau, a Pide/DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subversivas. A "Vida Mundial", que dava valiosas informações de política internacional, não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.
Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry.
À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois Cupeluns. Exprimia-se perfeitamente com a viola ao contacto dos seus exímios dedos de ritmista. Uma grande amizade os reuniria e estaria na base da fundação de um dos primeiros conjuntos modernos de música crioula guineense, o "Cobiana Jazz" (1).
"Cobiana" instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência à "Juventude 71" que já se implantara sobretudo no meio estudantil (...). Naquela época o Ernesto Dabó evoluia nos "Náuticos", e o Sidónio Pais Quaresma, o "Sidó", preparava-se para encapotar as suas "Capas Negras". Eis os conjuntos que constituiam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso periodo juvenil.
"Cobiana Jazz" propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual.

O fenómeno "Cobiana Jazz" releva também o que Amilcar Cabral postulava a propósito das revoluções, a saber que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto à tese de Cabral relativo ao « suicídio » desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo.
Sociologicamente falando, o José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação não afasta em nada os outros valores do grupo, é simplesmente uma questâo de referência ideológica, cuja evolução, como referi anteriormente, pode ser dicutível.
Com o "Cobiana Jazz", o José Carlos Schwarz, o Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompante no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituiam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e da massa popular.
Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da "Zona Zero", a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida por Rafael Barbosa.
No auge das suas actividades contra o Governo Colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da PIDE/DGS em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram banalizada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram depositar o engenho na porta de grelhas, envidraçada do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando por relógio. Uma bomba-relógio!
Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da PIDE. José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais protegidas fortalezas.
A fama do "Cobiana Jazz" percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos que entretanto fora chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião em Fá Mandinga onde os Comandos Africanos recebiam preparação. Poucos meses depois seria o José Carlos convocado a Bissau onde receberia a ordem de prisão da PIDE. Aliu Barry teria a mesma sorte.
Deportados para a Colónia Penal da Ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença de dois anos. José Carlos só passou três meses na Ilha, tendo sido retornado ao Pavilhão de isolamento da Segunda Esquadra em Bissau para aí concluir o resto da sua pena fixada em três anos.
Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumíveis contactos com a população da Ilha das Galinhas ou ao facto de que, entretanto, a PIDE teria descoberto outros casos em que estaria implicado e o teria reconvocado a Bissau. José Carlos defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos Bijagós que constituíam a população da Ilha das Galinhas, era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão no seu famoso "djiu di Galinha" (2).
Foi quando a PIDE o transferiu da Ilha das Galinhas para Bissau, que o conheci de perto. Pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação no Palácio do Governo, tinha sido detido pela PIDE, por ordem do General Spínola.
Ocupei momentaneamente a cela n° 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n° 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindincar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : "É o segundo Pindjiguiti !"
Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector-Adjunto da PIDE, Raimundo Alas, que não tinha matéria suficiente para me prender: Não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai estendê-lo sobre as margens do outro vizinho.» Confesso que até hoje, não percebi o sentido desta frase.
A sentença caiu sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram na cela n° 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede, lembrei-me logo da técnica e respondi batendo na mesma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: "Quem é?" O José Carlos Schwarz encontrava-se ainda na mesma cela de há seis meses atrás !
Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na "Zona Zero".
Nas nossas conversas, contei-lhe uma cena relacionada com a peregrinação da minha mãe a Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história divertia-o imenso.
Em Lisboa, a minha mãe tinha sido abordada por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, o João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura estudante de Geologia. Disfarçaram na bagagem da minha mãe uma série de livros e revistas subversivas.
Quando a minha mãe regressou a Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Pequei nos livros, e enquanto ela vociferava que não me queria ver naquelas relações, eu já tinha ido para o meu quarto maravilhar-me com "A Mãe" de Máximo Gorki, "O Diário do ‘Che’ na Bolívia", "Portugal e o Futuro" do Spínola, etc., etc.
(...) Iniciou-me às regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a PIDE colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que lhe permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central.
Para evitar eventuais salamalécos, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era nato no exercício. A sua identificação inicial era "Djiu", depois passou a ser "Sidi". A mim baptizou-me "N’barrim" (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia o "Belankufa", o "Canhuto", o "Zarra" e variadíssimas outras versões que se competiam no Pavilhão.

"Djiu" defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da PIDE, provar o castigo, a vida dura, etc. Ele mesmo, preferia que o retornasem à Ilha das Galinhas em lugar de ser libertado. Para ele o castigo era algo de pedagógico que contribuia para a maturidade.
Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a deportação para a Ilhas das Galinhas o que naturalmente me dava cabo dos nervos recusando prosseguir a conversa com ele. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hiérárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos de dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirámide. Ele era "Comandante", pois tinha a pena máxima (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na Ilha das Galinhas, que tinha sido libertado meses antes e que fora de novo capturado pelo exército português, condenado desta vez a três anos de prisão.
José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência, de falta de rigor, disto e daquilo. Dizia-lhe assim, "Desta vez vão matar-te". Mas um dia, quando o seu colega "Comandante", apareceu no corredor depois de um intenso interrogatório, com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, lá estava o "Djiu", em primeira linha, a consolar e a animar o combatente.
Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que ia ser deportado para os trabalhos forçados na Colónia Penal, por três anos disse-me: "Agora sim, temos a mesma patente!"
Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a interrogar-me se o tempo que passara no isolamento não teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que tinha posto muita convicção na sua frase de despedida.
José Carlos era o "condómino"do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer as suas toilettes e, o que apreciava muito, passar o pano no corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sozinho passear no corredor cerca de 15 minutos, o tempo suficiente para ir falar com outros prisioneiros e oferecer-nos frutas e outras guloseimas que recebia de casa.
Durante esse periodo tive o grande privilégio de ser um dos primeiros padrinhos das belas e salientes canções que o José Carlos compôs durante o seu cativeiro. "Minino de criaçon", "Muscuta", "Quê qui minino na tchôra", "Djénabu", "N’djanga" e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos: eu animava e ele cantava.
Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n° 7, do outro lado do Pavilhão. Devíamos estar nos meses de Setembro ou de Outubro de 1973. (A margem de erro é possível.) Conduziram-me ao pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. Cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido era dotado de uma certa corpulência. De tez negra, relativamente esbranqueada, tronco nu, o homem aparentava um cansaço extremo evidente.
Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro. Alguns dias depois, o "Belankufa" (Duarte Cabral) anunciava ao Pavilhão a morte do Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.
José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de "Os condenados da terra", de Franz Fanon que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como o Jorge Ampa Cumelerbo, o Fernando Delfim da Silva, "Djumbo", o Adalberto (o seu apelido escapa-me) o Idrissa Djalló, etc. teria sido o Mumini Embaló quem fornecera um exemplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos.
A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria, inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes que teria conhecido em Lisboa. De origem cabo-verdiana e nascida no Senegal, a Teresa era também de ascendência alemã.
Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da "Zona Zero".
Fã incontestável de Kanté Manfila, o José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, as fecundas melodias do Balla e dos seus Balladins e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificência de combinar nos seus arranjos musicais, o moderno e o tradicional.
José Carlos Schwarz foi libertado em Bissau logo depois do 25 de Abril e foi convidado a pronunciar um discurso que foi difundido na rádio. Antes de ser preso, fizera este sermão: "Juro-vos, que por mais que o pau possa permanecer no mar, nunca se transformará em crocodilo", o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial. E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu público, a confirmar a sua ousada profecia.
Da Ilha das Galinhas, ouvi o discurso que iniciou dizendo: "Irmãos!", numa voz terna e carregada de emoção. O Feiticeiro transformara-se em Profeta.

(1) Cobiana era o nome de uma base das FARP-Norte

José Carlos foi solto no início de Maio de 1974. Começou com os concertos diários, mobilizando o maior número possível de pessoas para combater a ideia do referendo.

Logo após a chegada dos camaradas do mato, os choques e conflitos proliferaram entre os combatentes do mato e os camaradas de 2ª classe, que era o que chamavam aos militantes clandestinos que viviam na cidades. Zé Carlos, como tantos outros, estava entre estes. Começou a compor música de crítica social e política. Como o lugar de Director-Geral não calou o seu "espírito cabralista e rebelde" foi quase obrigado a aceitar o cargo de encarregado de Negócios em Cuba (nota de Miguel Pedras, em Contributo).

Na manhã solarenta do dia 27 de Maio de 1977, o avião da Aeroflot que o transportava para as novas funções, procedente de Lisboa com 66 passageiros fazia-se à pista do aeroporto José Marti, em Cuba. Segundo a versão oficial terá tocado num fio de alta tensão. Só houve uma sobrevivente. Fonte Maria Teresa Loff Fernandes (viúva de J. Carlos).
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Nota do co-editor: vb
Os nossos agradecimentos ao Fernando Casimiro

sábado, 10 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6707: Notas de leitura (128): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Era inevitável uma referência a esta obra de Basil Davidson, que correu mundo.
Nem tudo aconteceu conforme se previa no final do livro, mas o conteúdo apologético surtiu efeito, Cabral passou a ser muito mais conhecido no mundo anglófono graças a este texto apologético.

Um abraço do
Mário



A libertação da Guiné: o clássico de Basil Davidson

por Beja Santos

Em 1969, Penguin Books editam The Liberation of Guiné, de Basil Davidson, um publicista britânico que não escondia as suas simpatias pelos movimentos de libertação em luta na África portuguesa. O livro correu mundo, transformou-se no principal cartão-de-visita do partido de Amílcar Cabral em todo o mundo anglófono. Cabral e Davidson estivam reciprocamente. Aliás o prefácio do líder guineense, escrito no Boé, em Outubro de 1968, é de uma extrema beleza e revela profunda admiração: “[Basil Davidson] aceitou todos os riscos e canseiras para poder entrar em contacto, pessoalmente, com o modo de vida actual dos nossos povos. Três vezes entrou no nosso país, onde permaneceu tanto tempo quanto quis, falou com quem lhe apeteceu, viveu a realidade quotidiana da nossa vida e da nossa luta. Juntos usámos as mesmas canoas, os mesmos barcos, os mesmos trilhos do mato; estivemos presentes nas mesmas reuniões; bebemos pelas mesmas cabaças, comemos dos mesmos pratos, atravessámos os memos incontáveis rios do Sul, vadiámos através da mesma lama, lavámo-nos na mesma água, deitámo-nos e levantámo-nos à mesma hora, fomos escoltados pelos mesmos guerrilheiros”.

A viagem/reportagem começa no Quitáfine, fala do napalm lançado pelos Fiat, na travessia dos arrozais e depois o autor faz uma resenha histórica da colonização portuguesa na Guiné até ao levantamento dos grupos anti-colonialistas. Apresenta algum dos líderes políticos e militares como Osvaldo Vieira ou Otto Schacht. Combatentes como Pascoal Alves, um dos principais políticos da frente Sul falam da sua adesão ao partido, da luta ideológica dos primeiros tempos, dos medos, das alterações que se operaram no mapa. Basil Davidson evidencia as analogias que vai encontrando entre a luta do PAIGC e o combate que presenciou na Jugoslávia, durante a II Guerra Mundial, e a resistência dos vietnamitas perante os norte-americanos. Regista as conversas de Cabral em toda a região do Quitáfine, por onde vão passando. Fala das Lojas do Povo, da nova organização instalada nas chamadas regiões libertadas. O combatente Armando Ramos diz: “Chamamos zona libertada a uma área em que temos controlo quotidiano, em que apenas excepcionalmente temos de usar o nosso exército para neutralizar uma possível sortida portuguesa a partir de uma dessas guarnições e em que a população está mobilizada para o nosso lado, tanto no sentido político como no sentido militar da palavra. Outro activista do PAIGC, António Bana, fala da mobilização dos camponeses e da sensibilização dos homens grandes, a partir de 1960. A aceitarmos os dados expressos do Davidson, a acção doutrinária do PAIGC fermentou cerca de três anos eclodir a luta armada e a separação dos campos. Cabral e os outros dirigentes falam dos fulas e da sua ligação às autoridades portuguesas, isto quando visitam as zonas do Sudoeste. Os ataques maciços a Beli são explicados pormenorizadamente até ao abandono do aquartelamento, que irá isolar Madina do Boé (também abandonado em Fevereiro de 1969). Cabral vai contando a Davidson como está organizado o PAIGC nas suas bases exteriores, sobretudo a partir de Conacri, como são formados os quadros na Academia de Nanquim, e nos centros de Moscovo e Praga. Revela que em Outubro de 1967 cerca de 500 quadros frequentavam cursos na URSS e na Europa oriental.

Tratando-se de uma obra de divulgação, Davidson dá conta da evolução do pensamento político de Cabral e das principais etapas da política diplomática, da chegada do equipamento militar e da estratégia de guerrilhas centrada em dois objectivos: desarticulação da economia e dos transportes dos portugueses e construção da economia das zonas libertadas.

Escusado é dizer que estamos perante uma obra panfletária, apologética, Amílcar Cabral é o centro da placa giratória, destaca-se o crescendo da guerra que leva inclusivamente ao ataque do aeroporto de Bissau, no início de 1968. Na derradeira conversa entre Davidson e Cabral fica claro que o PAIGC estava pronto a negociar uma retirada pacífica dos portugueses, estes tinham-se metido num dilema infernal, sabiam que já não podiam recuperar o controlar da Guiné e temiam que negociar a independência deste pequeno país iria minar a posição portuguesa em Angola e Moçambique.

“A Libertação da Guiné, aspectos de uma revolução africana”, por Basil Davidson, foi editado pela Livraria Sá da Costa em 1975.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 9 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6701: Notas de leitura (127): Caminhos Perdidos na Madrugada, de Fernando Vouga (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Guiné 61/74 - P22997: Notas de leitura (1418B): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Março 2019:

Queridos amigos,
Se me perguntarem quais os livros mais importantes para estudar o pensamento e a obra de Cabral, não hesitarei em pôr este trabalho de Chilcote no escasso punhado de obras obrigatórias. Todos os conceitos que este académico expõe estão baseados numa amplíssima investigação, procedeu com a sua equipa a um levantamento minucioso de todos os artigos, intervenções e comunicações de Cabral, igualmente o que publicou na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco por toda a parte e traça-nos uma bibliografia sobre os principais documentos referentes à luta armada, muitos deles de consulta obrigatória para quem quer conhecer a luta armada na Guiné. E mesmo o escol das entrevistas que fez em Cabo Verde e Guiné-Bissau não é raridade histórica para guardar num museu, podem-se tirar elações e uma delas salta imediatamente à vista, o que distinguia a classe intelectual cabo-verdiana dos principais combatentes guineenses. Leitura imperdível, pois, para os mais estudiosos deste período.

Um abraço do
Mário



A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (2)

Beja Santos

“Amílcar Cabral’s, Revolutionary Theory and Practice, A Critical Guide”, por Ronald H. Chilcote, Lynne Rienner Publishers, 1991, é, indiscutivelmente, um dos estudos mais detalhados e bem organizados sobre o pensamento de Amílcar Cabral feito por um investigador estrangeiro. É um documento de referência, Ronald Chilcote é um académico norte-americano detentor de uma apreciável obra de investigação, desde cedo que se interessou pelo império colonial português, já aqui se fez referência a uma outra obra também de consulta obrigatória, a documentação que ele e a sua equipa organizaram sobre as posições assumidas perante a descolonização portuguesa, é um histórico muito bem elaborado para qualquer consultor à escala internacional.

Recapitulemos em síntese o que o académico releva como essencial do pensamento e da ação daquele que foi considerado um dos principais teóricos revolucionários africanos: dá-nos o itinerário curricular, a sua experiência em Lisboa onde já germina o nacionalismo africano, a construção da teoria do nacionalismo revolucionário, a originalidade do conceito de vanguarda da revolução; a construção do modelo de denúncia do colonialismo português nos areópagos internacionais e o papel desse colonialismo português como meramente subsidiário do imperialismo internacional; a conceção de nacionalismo com base na luta de libertação nacional, onde instituiu uma unidade de dois povos, sem minimizar a importância primordial das culturas étnicas, Cabral estimava que estava a emergir uma nova cultura e uma nova economia decorrente da originalidade da luta armada; percorre-se o seu pensamento quanto à transição da luta armada para a construção do Estado, como ele supunha edificar um modelo de desenvolvimento com o máximo de democracia sob a liderança do PAIGC. Resta dizer que este vasto modelo tem sido objeto de críticas, mormente depois da independência e como em breve veremos aquando da análise da obra “Descolonizações, Reler Cabral, Césaire e Du Bois no século XXI”, com organização de Manuela Ribeiro Sanches, os conceitos de unidade e desenvolvimento, por exemplo, são altamente contestados por estudiosos com provas dadas.

Ronald Chilcote percorrera Cabo Verde e a Guiné entre agosto e setembro de 1975, entrevistou um bom punhado de dirigentes do PAIGC em ambos os países, um apêndice que ele intitula “Perspetivas da vanguarda revolucionária”, entrevista Luís Cabral, Fernando Fortes, dois dirigentes da primeira hora, Felinto Vaz Martins, Paulo Correia, Domingos Brito dos Santos, Manuel Boal, Juvencio Gomes, Carmen Pereira, Augusto Pereira da Graça, José Araújo, Chico Bá, Otto Schacht, entre outros. Para o estudioso, a consulta destes respondentes não é uma mera raridade histórica. Encontram-se contradições, como a questão do envolvimento do PAIGC nos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, há quem diga abertamente que o PAIGC não teve qualquer envolvimento com o protesto dos trabalhadores Manjacos. Recorde-se que estas entrevistas decorrem naquele estado de graça do sonho de um socialismo africano em que a ajuda internacional parecia fadada a pagar todos os devaneios das nacionalizações e de uma industrialização sem pés nem cabeça, muitos dos respondentes dão respostas uníssonas quanto à organização do Estado, à política externa. Ponto curioso, nenhum deles põe acento tónico na necessidade de uma reconciliação nacional após tão longo período de luta armada, com cavadas divisões da população, incluindo as etnias que procuraram a neutralidade, como os Felupes e os Bijagós. Há respostas de grande qualidade, caso de Juvencio Gomes, que foi o responsável pela presença do PAIGC em Bissau no período de transição, quando se deu a retirada portuguesa. Os líderes ligados à educação mostram um compreensível entusiasmo, e apercebemo-nos de alguns homens da envergadura intelectual, caso de José de Araújo que depois dos acontecimentos do 14 de novembro de 1980 se retirou para Cabo Verde. Vale a pena pôr em comparação as respostas dos guineenses e dos cabo-verdianos, sente-se a identidade cultural, sente-se que o verdadeiro fio de ligação são os sonhos de Cabral para a construção de um Estado com dois países.

De primeiríssima importância é o estudo conduzido pela equipa de Ronald Chilcote quanto ao levantamento de todos os escritos de Cabral (livros, discursos, documentação panfletária, textos de ocasião, intervenções em conferências,…), é um levantamento datado de 1942 até à sua morte, bem como edições posteriores até 1988. Também em anexo se juntam por ordem cronológica os artigos de Cabral na imprensa de Cabo Verde, de Portugal e um pouco pelo mundo inteiro. Em secção à parte, a relação dos trabalhos sobre a Guiné e Cabo Verde tendo a luta pela libertação nacional como eixo principal, um impressionante alfobre documental que nenhum estudioso pode ignorar.

Como é evidente, os estudos sobre o pensamento e ação de Cabral conheceram uma significativa evolução depois de 1991. Mas só por pura incúria é que não se deixa referência maior a todo este trabalho de Ronald Chilcote. Está aqui a matriz de um pensamento que foi evoluindo de um adolescente a um cientista que gizou uma teoria sobre o colonialismo e o imperialismo. Não se ilude uma certa confusão entre expetativa e realidade, aquela ideia de federações e de unidades entre países que Cabral viu nascer e que de um modo geral foram um malogro. Cabral distinguia entre o colonialismo e o neocolonialismo, a dominação direta e a dominação indireta, pretendia que o PAIGC estivesse municiado contra o neocolonialismo. Igualmente o seu pensamento traduzia-se numa ideia de nacionalismo diferente daquela que era experienciada pela cultura europeia. O seu conceito de nacionalismo revolucionário articulava perfeitamente cultura e economia, ele imaginou que a luta armada e o processo da independência, em si próprios, esbateriam os sentimentos étnicos, afinal tão profundos. O seu olhar sobre as classes e o desenvolvimento das forças produtivas é indiscutivelmente original e contenda com a cartilha soviética e até chinesa do tempo, nunca quis iludir a inexistência de um proletariado industrial, alçapremou a pequena burguesia à condição de decisor revolucionário, sem contestação a sua análise desobedecia aos cânones marxistas convencionais. Se igualmente se pensar que este teórico revolucionário criou um partido, uma escola-piloto, uma estratégia militar, alcançou gradualmente apoios internacionais para formar os seus quadros e receber armamento cada vez mais sofisticado, se notabilizou pela habilidade diplomática e liderou os termos de uma coesão entre os independentistas das colónias portuguesas, fica-se com o quadro completo de um construtor, um homem de ação, um visionário como houve poucos em África.

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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22989: Notas de leitura (1417): A teoria e a prática de Amílcar Cabral por Ronald H. Chilcote (1) (Mário Beja Santos)

domingo, 19 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P64: Tão (ini)(a)migos que nós fomos! A propósito do álbum fotográfico pessoal de Amílcar Cabral (Luís Graça)

1. O sítio da Fundação Mário Soares merece uma visita demorada. Mais: deve ser acrescentado à nossa lista de favoritos. Por muitas razões, e muito em especial pela qualidade e originalidade da documentação que disponibiliza, de interesse histórico e cultural.

De as entre as várias iniciativas desta Fundação que são de destacar, temos o Arquivo & Biblioteca.

O Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares disponibiliza, por exemplo, para visualização (não dá para fazer download), mais de um milhar de fotos do arquivo pessoal de Amilcar Cabral. Segundo a explicação que é dada, "em 1999, a Fundação Mário Soares, com a colaboração da Dra. Iva Cabral, procedeu à recolha de centenas de fotografias respeitantes a Amílcar Cabral e à luta de libertação nacional que se encontravam em iminente perigo de destruição". Muitas delas eram inéditas.

É grato registar que "todo esse importante espólio fotográfico foi objecto de tratamento e reprodução fotográfica e digital", tendo sido a partir de Janeiro de 2003, "gradualmente disponibilizado na Internet, ao mesmo tempo que se prossegue à sua descrição e classificação".

As fotos estão organizadas por conjuntos de 10, num total de 119. Não se perecebe, no entanto, qual foi o critério de ordenação. Aparentemente, não há nenhuma ordem lógica ou cronológica na organização do álbum. A pesquisa, no entanto, pode ser feita por temas ou palava-chave.

Infelizmente, muitas vezes não é indicado o local (nem a data) onde foram tiradas muitas das fotos, nas zonas libertadas ou nas frentes de combate... Presumo que uma boa parte tenham sido tiradas em bases mais recuadas e mais seguras do PAIGC: Ziguinchor, por exemplo (51/119). Tenho dificuldade em reconhecer os sítios por onde passei, de 1969 a 1971, com os meus camaradas da CCAÇ 12: por exemplo, a região do Xime e do Xitole que o PAIGC considerava como "zona libertada".

Há fotos de Cacine, em reuniões do PAIGC com a população (45/119). Há fotos de Cheche e do Rio Cheche (96/119), e até de um cemitério em Cheche (87/119). Mas em muitos casos a legenda limita-se apenas a indicar que a foto foi tirada no "interior da Guiné".

Há, por exemplo, uma foto do hastear da bandeira do PAIGC, com um poster do Amílcar Cabral, em Guileje (30/119). Essa foto só pode ser posterior ao abandono do aquartelamento pelas NT em 1973. Há também uma que parece ser de Gandembel, a crer na legenda que o fotógrafo terá escrito no verso do original (59/119).

Há outra, com elementos mais explícitos, que tem como legenda: "Quartel português da Companhia de Caçadores 3477, ocupado pelas forças do PAIGC; distinguindo-se além das insígnias da Companhia, uma imagem religiosa" (parece ser a imagem de Nossa de Senhora de Fátima, de pé, no parapeito de uma janela) (58/119).

Há muitas fotos de Cabral com dirigentes e combatentes do PAIGC (por exemplo, 50/119), ou de dirigentes, sozinhos ou em grupo. Dos operacionais, destaco a título exemplificativo os nomes de: Nino Vieira (10/119; 81/119), Kecuta Mané (8/119), André Gomes (10/119), Umaru Djaló (2/119), Malan Sanhá (3/119), Francisco Mendes (25/119), Otto Schacht (4/119 e 7/119), Arafan Mané (49/119), Quemo Mané (72/119).

Honório Chantre aparece numa foto mais recente (1974), tal como Manuel dos Santos (Manecas), confraternizando com tropas portuguesas já depois do 25 de Abril de 1974 (77/119) Há também retratos de Manecas em 1973 e 1970 (77/119). E ainda em 1972 (67/119).

Nas outras fotos (34/119) aparecem prisioneiros portugueses "a conviver" com guerrilheiros, disputando uma partida de futebol (34/119). Há retratos de militares portugueses, prisioneiros ou desertores (44/119). Ou ainda de militares portugueses a serem entregues à Cruz Vermelha, no Senegal (61/119).

Numa dessas fotos, por exemplo, vê-se um grupo de cinco prisioneiros portugueses, a jogar futebol, descalços,em Conacri, num espaço murado (18/119).

Pergunto ao Marques Lopes se não serão alguns dos nossos 11 camaradas da CART 1690 (Geba), que desapareceram na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, no ataque e assalto do IN ao destacamento de Catacunda ?

Há também fotos de aeronaves portuguessas destruídas (49/119) ou de veículos apreendidos: Por exemplo, um veículo blindado do Batalhão de Cavalaria 311 ("Os Pipas") (17/119) e, mais à frente, de um jipe do mesmo batalhão (103/119) e uma Fox 3115 (MG-34-69); uma Berliet destruída por uma mina (MG-61-01) (35/119); uma vitura abandonada numa picada (64/119); armamento capturado (36/119). Há uma ou outra foto de aquartelamentos portugês. Há uma, por exemplo, que é referida como "quartel português destruído" (48/119) ou "saqueado" (103/119). Nunca é referido o tempo e o lugar (68/119).

Já agora seria interessante saber se alguém conheceu este azarado Batalhão de Cavalaria 311, "Os Pipas", onde esteve e em que época...

Há muitas fotos de grupos de combatentes, empunhando armas, em desfile, em acções de formação e treino (33/119; 38/119), em marcha ou coluna (39/1119; 40/119; 55/119), a pôr ou a levantar minas (32/119; 41/119), cambando um rio (26/119)ou cozinhando no mato (72/119) mas muito poucas tiradas debaixo de fogo, ou em popsição de combate, as verdadeiras "fotos de guerra" (56/119; 68/119; 91/119; 92/119).

O papel das mulheres na luta de libertação, como enfermeiras, professoras, carregadoras de material, milícias, etc., também está bem documentado (27/119; 75/119), bem como a relação da guerrilha com a população (93/119; 98/119).

É claro que também há fotos de "informação e propaganda", destinadas a consumo interno e externo, e nomeadamente dos países amigos do PAIGC (ex-União Soviética, República Popular da China, Cuba, Argélia, Suécia...)e para a opinião pública internacional.

Muitas das fotos são do início da luta armada: por exemplo, tomada da Ilha do Komo (52/119) ou congresso de Cassacá (50/119). Grande parte das fotos de Cabral estão relacionadas com a sua actividade política internacional e diplomática. Por exemplo, Amílcar Cabral com Fidel Castro (76/119), ou com dirigentes de outros movimentos de libertação (Angola, Moçambique).

Mas há também bastantes imagens da actividade do líder histórico do PAIGC, em visita ao interior da Guiné ou nas bases do PAIGC: por exemplo, com Nino Vieira e Constantino Teixeira (105/119). Uma das mais emblemáticas e mais conhecidas é a do líder do PAIGC atravessando um rio, de canoa, de pé, juntamente com Constantinto Teixeira, outros guerrilheiros e uma mulher (104/119).

2. Em resumo, peço aos amigos e camaradas da Guiné para visitarem, com tempo e vagar, esta pagína da Fundação, e verem com mais atenção e detalhe este ábum de fotografias que pertenciam ao arquivo pessoal do grande dirigente político Amílcar Cabral, de quem é bom lembrar que sempre disse que não combatia contra o povo português mas sim contra o regime político de António Salazar e de Marcelo Caetano.

terça-feira, 20 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18439: (D)outro lado do combate (22): "Plano de operações na Frente Sul" (Out-dez 1969) > Ataque a Bolama em 3 de novembro de 1969 - Parte I (Jorge Araújo)


Citação: (1963-1973), "Umaru Djaló e outros combatentes numa base do PAIGC", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43455 (2018-3-12)



Jorge Alves Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494 

(Xime-Mansambo, 1972/1974); coeditor do blogue desde março de 2018



GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE > "PLANO DE OPERAÇÕES NA FRENTE SUL" [OUT-DEZ 1969] - ATAQUE A BOLAMA EM 3 DE NOVEMBRO DE 1969  (AO TEMPO DA CCAÇ 13 E CCAÇ 14)  (Parte I)




1. INTRODUÇÃO

Nove dias depois do ataque a Bedanda (25OUT'69 – o 2.º) e três semanas após terem realizado igual acção a Buba (12OUT'69 – o 1.º), as forças do PAIGC voltaram a concretizar nova flagelação prevista no seu "plano", a terceira, desta vez à cidade de Bolama, a 3 de Novembro de 1969, 2.ª feira, com recurso exclusivo a duas peças "GRAD", cada uma delas preparada para projectar dois foguetes 122 mm.

Recorda-se que este "plano de acções militares", num total de nove ataques, havia sido delineado para ser cumprido durante o último trimestre desse ano nas regiões de Quinara e de Tombali, situadas na zona Sul da Guiné, com recurso a uma logística considerável de equipamentos de artilharia pesada (morteiros 82 e 120; foguetes 122 "GRAD" e peças anti-aéreas "DCK") e a mobilização de um numeroso contingente de guerrilheiros, pertencentes ao "Corpo Especial do Exército", comandado por "Nino" Vieira (1939-2009).

No caso particular da cidade de Bolama, o efectivo destacado para esta missão era constituído por cerca de cento e vinte elementos comandados por Umaru Djaló, uma força menor do que as anteriores, uma vez que no "calendário" estavam programados outros ataques para os dias imediatos, como eram os casos de Cacine e Cabedú, por esta ordem, conforme se indica no quadro abaixo.




Para a elaboração da presente narrativa, como para todas as outras que fazem parte deste dossiê específico, já publicadas ou a publicar, continuaremos a utilizar o relatório "das operações militares na Frente Sul" [http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40082 (2018-1-20)], documento dactilografado em formato A/4, sem capa e sem referência ao seu autor [mas acreditamos ser possível identificá-lo no decurso desta pesquisa], localizado no Arquivo Amílcar Cabral, existente na Casa Comum – Fundação Mário Soares.



Para além deste facto histórico a que o comandante Umaru Djaló ficou ligado [primeiro ataque a Bolama com foguetes/foguetões 122 mm], outros actos ou acontecimentos haveriam, mais tarde, de constar no seu projecto de vida, como sejam:

No pós "25 de Abril de 1974", no contexto do processo negocial com os representantes do governo português, visando a independência da Guiné-Bissau, Umaro Djaló  fez parte da delegação do PAIGC que se deslocou a Londres para participar nas sessões de trabalho de 25 e 26 de Maio de 1974. A delegação do PAIGC era constituída por Pedro Pires (chefe da missão), Umaru Djaló, José Araújo, Lúcio Soares, Júlio Semedo e Gil Fernandes.

Três meses depois, a 26 de Agosto de 1974, o acordo era finalmente assinado em Argel, ficando definido o dia 10 de Setembro como o do reconhecimento da República da Guiné-Bissau. Neste acto participaram, então, como representantes do PAIGC: Pedro Pires (1934-), Umaru Djaló (1940-2014), José Araújo (1933-1992), Otto Schacht (-1980/ass.), Lúcio Soares (1942-) e Luís Oliveira Sanca.

Depois da Independência, tomou parte do I Governo da República da Guiné-Bissau, constituído por João Bernardo "Nino" Vieira (1939-2009, assassinado.), Umaru Djaló (1914-2014), Constantino Teixeira, Carlos Correia (1933-), Paulo Correia (?-1986, assassinado), Vítor Saúde Maria (1939-1999, assassinado), Filinto Vaz Martins (1937-), João da Costa e Fidelis Cabral d'Almada [da esquerda para a direita,  na imagem abaixo]. 

Era então Presidente da República Luís Cabral (1931-2009). Aquando do "golpe militar" de Novembro de 1980, que levou "Nino" Vieira ao poder, Umaru Djaló era chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas.


Citação: (1974), "Tomada de posse do I Governo da República da Guiné-Bissau", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43933 (2018-3)


A 29 de Maio de 2014, Umaru Djaló travou o último combate da sua vida, vindo a falecer no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, aos 74 anos, depois de aí lhe terem sido prestados, durante alguns meses, os cuidados e a intervenção clínica especializada em função do seu "problema" de saúde.


2. DESTINATÁRIOS DO ATAQUE A BOLAMA EM 3NOV1969:


A CCAÇ 13 (CCAÇ 2591), A CCAÇ 14 (CCAÇ 2592) E O CIM  DE BOLAMA


Certamente que a data escolhida para o ataque a Bolama [Ilha] não foi por acaso, pois é credível que a mesma tenha sido aprovada sobre informações recolhidas pela sua "secreta", aliás procedimento habitual em qualquer contexto de guerra, e mais natural seria, em função do método utilizado na guerra de guerrilha que tem no conceito "surpresa" o seu princípio estratégico.

Sendo Bolama a cidade do CIM (Centro de Intrução Militar) por excelência, onde muitas das unidades metropolitanas realizavam o seu IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), visando a adaptação ao clima e às condições da guerra, como foi o caso da minha CART 3494 (Xime) e restante contingente do BART 3873 (1971-1974) – [Bambadinca (CCS), Mansambo (CART 3493) e Xitole (CART 3492)] –, um ataque bem sucedido seria visto como um "grande ronco" e, por consequência, poderia influenciar o comportamento prospectivo das NT.




Recordam-se, com vista aérea de Bolama e respectiva legenda, os espaços mais frequentados pelos militares durante a sua premanência na cidade. Imagem postada pelo camarada grã-tabanqueiro ex-Alf Mil Rui G. Santos, Bedanda e Bolama da 4.ª CCAÇ (1963/1965) – in: http://riodosbonssinais.blogspot.pt/search/label/bolama ou "Bolama… no meu tempo – Guerra do Ultramar", com a devida vénia.

Entretanto no CIM,  em finais de Outubro de 1969, estavam em fase de conclusão de formação/instrução mais duas Companhias de Caçadores,  designadas por CCAÇ 13 e CCAÇ 14, saídas da união entre praças africanas do Recrutamento Local e oficiais, sargentos e praças especialistas oriundos da Metrópole. Os quadros metropolitanos destas novas Unidades Independentes, mobilizados pelo Regimento de Infantaria 16, de Portalegre, pretenciam à CCAÇ 2591, que deu origem à CCAÇ 13, e a CCAÇ 2592 à CCAÇ 14, respectivamente.

Sobre as emoções, sensações e experiências gravadas por todos aqueles que, ao fim daquela tarde de2.ª feira, a primeira do mês de Novembro de 1969, assistiram à explosão dos foguetões de 122 mm, recupero os testemunhos dos camaradas ex-furriéis Carlos Fortunato (CCAÇ 13/CCAÇ 2591) e Eduardo Estrela (CCAÇ 14/CCAÇ 2592), ambos membros da nossa Tabanca Grande

Carlos Fortunato refere que "no dia 3/11/1969 quando a [companhia da etnia balanta] CCAÇ 13 [CCAÇ 2591 - "Os Leões Negros"] estava no cais de Bolama, preparando-se para embarcar numa LDG [rumo a BISSORÃ], ouviu-se um longínquo 'pof' vindo da parte continental (zona de Tite). Um dos africanos disse 'saída' sorrindo, mas logo a seguir passaram sobre as nossas cabeças 3 [no relatório constam quatro] foguetões de 122 mm. Um acertou numa das pequenas vivendas que corriam ao lado da rua principal, que ligava o porto ao largo principal da cidade, apenas a uns escassos 30m do local onde estávamos. Outro caiu no largo principal um pouco mais acima, e o terceiro mais longe, já fora da zona habitacional. Corremos de imediato para o local dos impactos para prestar assistência às eventuais vítimas, mas felizmente apenas houve ferimentos muito ligeiros entre a população". […] "Os morteiros 107 mm existentes no quartel de Bolama responderam ao fogo". […] [sítio: CCAÇ 13 – Os leões Negros: Memórias da Guerra na Guiné (1969/71)]. [P9337].

Por outro lado, Eduardo Estrela, da CCAÇ 14 [companhia das 
etnias mandinga e manjaca] - [CCAÇ 2592], acrescenta que "partimos em 3 de Novembro de 1969 para a zona operacional que nos tinha sido destinada, CUNTIMA, junto à linha de fronteira do Senegal. Ainda em Bolama (…) sofremos, à hora da saída da LDG, um ataque onde o PAIGC utilizou pela primeira vez foguetões terra-terra. Ninguém sabia que tipo de armamento o PAIGC utilizara e só em Bissau, no dia seguinte, nos foi comunicado o tipo de arma". [P11365].

Na linha desta investigação daremos conta, no ponto seguinte, do que consta no relatório elaborado a propósito deste ataque.


3. O ATAQUE A BOLAMA EM 3NOV1969… COM FOGUETES 122 MM "GRAD" LANÇADOS DA PONTA BAMBAIÃ

Objectivos da acção:

O objectivo definido para esta acção concretizou-se no dia 3 de Novembro de 1969, ao fim da tarde, com o bombardeamento da cidade de Bolama, através da utilização de quatro [testemunhas referem três] foguetes 122 mm lançados de duas peças "GRAD" colocadas na orla costeira da zona sudoeste da região de Quínara, mais precisamente na Ponta Bambaiã. Para esta missão foram mobilizadas forças de infantaria e artilharia, as primeiras só com funções de segurança e apoio ao desempenho das segundas.

Como elemento de comparação entre as logísticas dos ataques já divulgados, apresentamos o respectivo quadro.




Desenvolvimento da acção: (as forças do PAIGC)





As nossas forças estavam constituídas por 3 bi-grupos de infantaria e duas peças de GRAD sob a responsabilidade do camarada [cmdt] UMARO DJALÓ.

Saída de Botché Chance pelas 17 horas do dia 29 de Outubro [de 1969], 4.ª feira. 


A operação deveria realizar-se no dia 3 de Novembro, 2.ª feira, à caída da noite. 

Na noite de 29 para 30 de Outubro a coluna cruzou o rio em Botché Col, e na manhã do dia 30 atingiu as imediações de Gândua. 

Na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, a coluna cruzou o rio Tombali em Iangue, e na manhã do dia 1 de Novembro chegou a Bolanha Longe. 

A coluna deveria cruzar o rio na noite de 1 de Novembro, mas por falta de canoas só o pode fazer na noite de 2 de Novembro, domingo, tendo atingido Paiunco na manhã de 3 de Novembro, 2.ª feira. 

Chegada da coluna à Ponta de Bambaiã às 16 horas do dia 3 de Novembro (ponto escolhido de antemão para posição de fogo).



Na impossibilidade da elaboração de uma infogravura referente ao itinerário percorrido pelas forças do PAIGC mobilizadas para este ataque, por dificuldade em identificar os locais referidos no relatório, o que lamento, optei por utilizar a imagem de satélite abaixo.


Final da Parte I.

Na Parte II desta narrativa, serão abordados os seguintes pontos:

1 – O trabalho técnico da artilharia na posição de fogo – uso do GRAD.
2 – Reacção das NT.
3 – Resultados.
4 – Quadro de baixas da CCAÇ 13 (de 14Nov1969 a 23Abr1973).
5 – Quadro de baixas da CCAÇ 14 (de 11Nov1970 a 4Abr1974).

Obrigado pela atenção.
Com forte abraço de amizade,

Jorge Araújo.
12MAR2018.
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Nota do editor:

Último poste ds série > 8 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18391: (D)o outro lado do combate (21): "Plano de operações na Frente Sul" (Out - dez 1969) > Ataque a Bedanda em 25 de outubro de 1969 (ao tempo da CCAÇ 6, 1967-1974) - II (e última) Parte (Jorge Araújo)

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19146: Notas de leitura (1115): Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) (Mário Beja Santos)

Capa da revista do Expresso de 16 de Janeiro de 1993


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
À pergunta de quem mandou matar Amílcar Cabral, manda a probidade que se responda que não há provas concludentes sobre a natureza dos mandantes. Sabe-se que havia organização, assassinado o fundador do PAIGC os sublevados repartiram-se em diferentes atividades, é óbvio que havia um plano.

 Desapareceram ou continuam religiosamente escondidas as conclusões das comissões de inquérito. Mesmo que um dia venham a aparecer, também se poderá pôr em causa o que ali vem escrito, já houve testemunhos suficientes de que foram arrancadas declarações ao sublevados da forma mais bárbara, à altura das polícias políticas mais torcionárias.

Não deixa de embaraçar quem analisa os factos a situação chocante de duas fações distintas, cabo-verdianos e guineenses, estes apresentam-se a Sékou Touré alegando que estão fartos de ser dominados pelos cabo-verdianos, por quem nutrem uma hostilidade multissecular. Creio que não se pode ir mais longe sem exibição de provas. Mas reconheça-se que para os velhos nostálgicos da unidade Guiné-Cabo Verde continua a saber bem alegar que foi Spínola e a PIDE/DGS em Bissau que dirigiram a manobra. 

E, por fim, convém não esquecer que a morte do fundador do PAIGC é o início de um mito poderosíssimo: o que teria acontecido ao país independente sob a liderança de Amílcar Cabral?

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral, reportagem publicada no Expresso em 16 de Janeiro de 1993 (2) 

Beja Santos  (*)

A reportagem de José Pedro Castanheira publicada na Revista do Expresso em 16 de Janeiro de 1993 teve o mérito de reacender em bases de investigação proba e rigorosa a investigação histórica quanto às motivações e constituição do complô que levou ao assassínio de Amílcar Cabral. 

Anos depois de José Pedro Castanheira ter dado forma de livro à sua importantíssima reportagem aparecia na imprensa portuguesa um livro-testemunho de análise irrecusável. Oscar Oramas, embaixador cubano em Conacri, ao tempo dos acontecimentos, tecia um rasgado elogio ao homem Amílcar Cabral e ao génio construtor de nações. É uma biografia, infelizmente cheia de imprecisões: atribui uma falsa importância a Juvenal Cabral na formação de Amílcar, pura mistificação; faz de Cabral um deportado pelo Governador Mello e Alvim, quando ele fazia o recenseamento agrícola, está demonstrado que Cabral regressou à pressa com a mulher a Portugal, estavam gravemente doentes com paludismo… 

O antigo embaixador estudou a história muito à pressa, atrevendo-se a dislates como dizer que o território da Guiné foi descoberto por navegadores portugueses nos finais do século XV… A despeito deste quadro de perniciosas imprecisões, coube-lhe assistir de perto ao assassinato de Cabral. O fundador do PAIGC vinha a insistir de que havia um processo de sabotagem dentro do partido e advertia que a maquinação era incentivada pelas forças coloniais que se aproveitariam de traidores e delinquentes. Minutos depois dos tiros assassinos, Otto Schacht, chefe da segurança do PAIGC telefona a Oramas, pede a sua comparência. No local do assassinato, o segurança cubano que acompanha o embaixador adverte que há um grupo escondido.

E ele escreve no seu livro “Amílcar Cabral para além do seu tempo”, Hugin Editores, 1998: “Mais tarde soube-se que escondido atrás daquelas árvores estava também Osvaldo Vieira”

Oramas procura um dirigente guineense, Bacary Ghibo, este telefona a Sékou Touré, Oramas conversa com o presidente da Guiné-Bissau. Entretanto, Oramas conversa com o embaixador soviético e acerta-se numa estratégia para procurarem recuperar Aristides Pereira que fora sequestrado por sublevados e levado numa lancha. 

Oramas assiste no palácio presidencial à reunião de Sékou Touré com a delegação de sublevados. Entre os conjurados estão Momo Touré e Inocêncio Kani que “explicam que a direção do PAIGC tem estado controlado pelos cabo-verdianos em detrimento dos guineenses que são os que lutam de armas na mão contra os portugueses. Dizem ter denunciado esta situação em várias oportunidades mas Amílcar nunca lhes deu importância. Acrescentam que não queriam matar Amílcar, apenas conversar com ele, convencê-lo a mudar, mas como resistiu, na confusão foi liquidado”.

Esta leitura dos acontecimentos vistos por uma testemunha privilegiada dão conta de uma tensão profunda que se procurava camuflar, embora diversos dirigentes do PAIGC tenham vindo a declarar, pouco depois do assassinato, que a atmosfera em Conacri era irrespirável, era patente que se urdia uma conjura cabo-verdianos e guineenses já não sentavam à mesma mesa.

No seu relevante trabalho, Castanheira houve opiniões díspares. Por exemplo, o Coronel Carlos Fabião era de opinião que fora a PIDE a montar o esquema. Fragoso Allas nega qualquer envolvimento. O respetivo ministro, Silva Cunha declara que não houve intervenção portuguesa. Alpoim Calvão também atira achas para a fogueira, envolve a PIDE. Nas suas investigações dos arquivos da PIDE, nenhum dos documentos trabalhados por Castanheira permite aduzir envolvimento da PIDE no complô, igualmente não há um papel incriminatório para Spínola.

Castanheira vai até Conacri ao local do crime e escreve:  

“É um círculo de cimento, de dois metros de diâmetro, pintado de branco. À volta, um murete baixo, igualmente caiado. No meio, desenhada com pedras do tamanho de uma unha, uma estrela de cinco pontas. Foi ali que caiu Amílcar Cabral a escassos metros da residência, junto à majestosa mangueira que filtra a luz quente e clara do sol africano. Durante anos, aquele punhado de terreno esteve simplesmente protegido por uma cerca de arames velhos e enferrujados. Foi preciso esperar por 1988 para que o local passasse a estar assinalado com alguma dignidade. Em Maio de 1960, Amílcar instalou-se em Conacri, ao PAIGC foram concedidas as quatro casas que hoje são património da embaixada da Guiné-Bissau (…) os quatro imóveis, simples, funcionais, de um único piso, faziam parte de um vasto conjunto urbanístico erguido, no final dos anos 1950, pela Société Minière”.


Neste preciso local foi assassinado Amílcar Cabral ao fim da noite de 20 de Janeiro de 1973

No final da reportagem, Castanheira ouve Nino Vieira. Desconhece-se o número dos fuzilados, mas diz que houve muito mortos, admite mesmo que houve inocentes mortos e comenta: “No congresso de 1984, Fidélis Almada declarou publicamente que foi mandatado para acusar muita gente”. Interpelado quanto ao facto do grupo dos conspiradores ser composto por guineenses, não ilude a clivagem que se estabelecera, mas pensava que a causa principal da morte de Amílcar fora a infiltração, era coisa trabalhada pela PIDE. Não adiante provas. Aqui e acolá, faz a sua crítica azeda a Aristides Pereira e a Luís Cabral.

Esta reportagem de José Pedro Castanheira veio abrir espaço a diferentes interpretações quanto a organizadores. Acrescente-se que não há provas nenhumas sob a natureza dos mandantes: não se sabe quem foi o cérebro do complô guineense, que houve complô demonstra-se pela capacidade de manobra dos revoltosos ao sequestrar Aristides Pereira, ao prender todo o grupo cabo-verdiano, ao querer captar as simpatias e aquiescência de Sékou Touré. Sobre esta matéria, o relato de Oscar Oramas é muito pobre, está constantemente a invocar o que veio na reportagem de José Pedro Castanheira. 

Mas Oramas revela profundo ceticismo quanto ao comportamento de Sékou Touré, pergunta mesmo como é que os conspiradores chegaram ao palácio no meio de uma grande mobilização militar que começou logo quando o embaixador cubano conversou telefonicamente com Sékou Touré. E está comprovado que naquela manhã de 20 de Janeiro um alto funcionário guineense, a mando de Sékou Touré, vai informar Amílcar Cabral que está uma intentona em marcha, este chama Mamadu N’Diaye e pede-lhe cautelas redobradas, como hipótese de trabalho terá sido esta determinação de Amílcar que levou os conspiradores a prontamente a entrar em ação.

Enfim tudo no campo das hipóteses mas há factos iniludíveis, de um lado, estavam cabo-verdianos e, do outro, guineenses, foram estes que se sublevaram em número elevado e ninguém acredita que Momo Touré e Inocêncio Kani tivessem estofo para pôr tanta gente em movimento naquele complô. A segunda morte de Cabral será confirmada a 14 de Novembro de 1980, quando os cabo-verdianos forem definitivamente arredados do poder, na Guiné-Bissau.
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Notas do editor

terça-feira, 3 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Muito estranho é o livro em que o apêndice documental e as entrevistas pesam mais que o testemunho do autor. A Guiné-Bissau continua sem uma obra de referência publicada pelos seus principais responsáveis, ficamos com os textos políticos de Amílcar Cabral e documentação avulsa que se dispersa pela Fundação Mário Soares e as suas herdeiras; dispomos de testemunhos de jornalistas durante o período da luta armada, predominantemente encomiásticos; o depoimento de Luís Cabral e o testemunho de Aristides Pereira e muito pouco mais no que se refere aos grandes marcos históricos dos cerca de 50 anos da vida do PAIGC que em tanto se confunde com a história da Guiné-Bissau.
Para quem quer estudar este período, recomenda-se sem qualquer hesitação o testemunho de Aristides Pereira exactamente pelas entrevistas, algumas delas são textos de eleição e o apenso documental.

Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira (3)

Beja Santos

À distância destas décadas, importa reconhecer que a estratégia de Amílcar Cabral que conduziu ao reconhecimento de direito do Estado da Guiné-Bissau, proclamado unilateralmente, em 24 de Setembro de 1973, na região do Boé, se revelou um êxito no sentido de ultrapassar o impasse militar.

A diplomacia portuguesa ficou impotente para resolver o imbróglio, em escassos meses mais de 80 países reconheceram o novo Estado. Em termos de direito internacional, Lisboa perdeu manobra, aos poucos, com o avolumar dos problemas militares e a necessidade de reduzir o dispositivo militar, procurou saída com conversações directas com o PAIGC, quando tudo era irremediavelmente tarde.

Entretanto, Cabral é assassinado em Conacri, em condições que ainda hoje não estão esclarecidas. Aristides Pereira sente-se no dever de alinhavar dados e factos que, escreve, poderão fornecer pistas e sugestões para uma futura clarificação do acontecimento. Quanto aos autores materiais, logo ficaram conhecidos, eram militantes guineenses do PAIGC. Quanto à autoria moral, Aristides Pereira insinua que o projecto de proclamação do Estado da Guiné-Bissau precipitou o objectivo das autoridades coloniais em concretizar o que falhara na invasão de 22 de Novembro de 1970, os assassínios de Amílcar Cabral e Sékou Touré. E escreve: “Cabral sabia que os colonialistas portugueses estavam a tentar a todo custo conseguir a desmobilização dos combatentes em geral, procurando, pelas fraquezas inerentes à própria luta, infiltrar-se no seu seio, a fim de conseguir os intentos de desagregação do PAIGC”. Curiosamente, em nenhuma circunstância o autor refere outras tentativas de assassinato, ao contrário de Luís Cabral que alude a tais situações, se bem que também não especifique o móbil nem quem eram os possíveis autores.

Segundo Aristides Pereira, Cabral tinha a consciência perfeita de que a máquina-colonial na Guiné tudo faria para liquidá-lo e desmembrar o PAIGC. Num memorando datado de Setembro de 1962, Cabral propôs a Sékou Touré um conjunto de medidas de segurança que passavam pelo envio para a linha fronteiriça de elementos das forças armadas da Guiné, patrulhas continuadas ao longo da linha de fronteira com o objectivo de dissuadir tentativas de agressão e o recenseamento de todos os refugiados oriundos da Guiné-Bissau e instalados na República da Guiné. Aristides mostra-se peremptório acerca da segurança do PAIGC e refere o aviso de 20 de Janeiro de 1973 quando Sékou Touré enviou ao secretariado do PAIGC em Conacri um alto funcionário para dizer que tomasse cuidado pois estava em marcha uma tentativa para o matar. Logo Cabral convocou Mamadu Indjai e alertou-o para este aviso, só que Mamadu era um dos conjurados e terá transmitido aos seus companheiros o alerta de Sékou Touré. Aristides Pereira não descarta a hipótese da operação de assassinato ter sido preparada pelas autoridades portuguesas e cita Alpoim Calvão bem como Fragoso Allas. Procurando ir mais atrás, o autor menciona que desde 1966 era já perceptíveis os esforços da PIDE para infiltrar as estruturas do PAIGC. E, por último, cita longamente uma carta que lhe foi dirigida por Óscar Oramas, o embaixador cubano em Conacri e foi o primeiro estrangeiro que chegou ao local do crime, poucos minutos após o acto consumado. Oramas era vizinho de Cabral, ouviu os tiros, prontamente se dirigiu para a residência do líder do PAIGC, encontrou Cabral já morto, censurou Otto Schacht, um outro responsável pela segurança e verificou que havia um grupo de pessoas escondidos atrás de uns arbustos.

Apurado que o grupo conspirador tinha raptado Aristides Pereira, Oramas pediu a intervenção de Sékou Touré e escreve: "Penso que aqueles assassinos o que evidenciaram foi que o inimigo terá explorado alguns ressentimentos pessoais e certas ambições e apetites pessoais de alguns homens para fomentar o descontentamento e a divisão no seio do partido... Tenho a mais profunda convicção de que aquilo não foi um acto isolado mas fruto de um trabalho bem dirigido pela potência colonial". Como tem sido referido continuadamente, ainda não se encontrou um só documento, seja em que arquivo for, que abone tais teses de um braço longo português, uma decisão de Bissau ou uma iniciativa da PIDE.

Levantou-se, com o assassinato de Cabral, a questão da escolha de um sucessor para secretário-geral, todas as opiniões recaíram sobre Aristides.

Referindo-se aos acontecimentos político-militares de 1972 a 1974, o autor parece convencido de que Spínola falhara rotundamente a sua política de acção psicológica, tendo-se lançado numa ocupação de território no Sul. Só que em finais de Março de 1973 chegaram os mísseis Strella que puseram fim à supremacia aérea portuguesa, isto numa altura em que os pilotos guineenses estavam a ser preparados na União Soviética. Proclama-se unilateralmente a independência que foi saudada pela ONU através de uma resolução que felicitava o acesso à independência. Em Novembro a nova República foi admitida na organização da unidade africana. Aludindo à recusa de Caetano, em princípios de 1974, para haver uma mediação do Senegal, Aristides Pereira nunca refere as conversações de Março de 1974, em Londres, o que é surpreendente, não é imaginável que a delegação do PAIGC presidida por Vitor Saúde Maria não tivesse recebido instruções da direcção do PAIGC.

Procede a uma descrição minuciosa dos acontecimentos posteriores ao 25 de Abril, releva as contradições de Spínola e aborda demoradamente as negociações para o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau pelas autoridades portuguesas. Em vão Spínola tentou um referendo da população da Guiné-Bissau bem como não tiveram expressão os partidos políticos que surgiram repentinamente no território guineense. Alude também ao ambiente pesado e à suspeição de que os comandos africanos se recusavam a ser desarmados e dá conta de uma reunião que se realizou em Cacine, em 22 de Julho de 1974 e em que estiveram presentes, por parte dos comandos africanos os capitães Saiegh e Sisseco. Não deixa de mencionar um imprevisto quadro de detenções entre Sékou Touré e a direcção do PAIGC. Ganha realce o destaque que o autor dá ao relato da reunião entre o encarregado do Governo da Guiné, brigadeiro Carlos Fabião e a delegação do PAIGC, fica-se com uma ideia dos conflitos que se tinham entretanto instalado entre as autoridades portuguesas e as suas forças militares com as tropas do PAIGC.

A República da Guiné-Bissau foi admitida nas Nações Unidas em 17 de Setembro de 1974 e as últimas tropas portuguesas abandonaram o território em 15 de Outubro.

O livro termina com a descrição das diferentes peças referentes à independência de Cabo Verde.
Findo o testemunho e de acordo com a estrutura inicialmente apresentada pelo, incorporam-se neste volume monumental contributos de protagonistas guineenses e cabo-verdianos. Na impossibilidade de fazer referência a todas, referem-se concretamente Ana Maria Cabral, Gérard Challaind, Idrissa Sow, Manuel dos Santos (Manecas) e Rafael Barbosa.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3846: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (2): O nº 54, Outubro de 1973, dedicado à proclamação da independência: pp. 3-4

1. Continuação da publicação da revista mensal PAIGC Actualités, nº 54, Outubro de 1973, um número histórico de que nos foi enviado uma cópia, digitalizada pelo nosso amigo e camarada Eduardo Magalhães Ribeiro, mais conhecido na Tabanca Grande como o pira de Mansoa. (*)

As páginas 3 e 4 foram traduzidas do francês paar português pelo Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, os Tigres de Cumbijã (1972/74).


Imagens: © Magalhães Ribeiro / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2008). Direitos reservados.




Guiné-Bissau > Região do Boé > 24 de Setembro de 1973 > "O Comandante Paulo Correia, do Comité Executivo da Luta, primeiro vice-presidente do Conselho de Estado, crava no chão, frente à Presidência, a bandeira nacional" . [Paulo Correia, de etnia balanta, será mais tarde julgado e condenado à morte, sendo executado em 1986, juntamente com o jurista Viriato Pã, um e outro acusados serem os autores morais da tentativa de golpe de Estado, que ficou conhecida como o "Caso 17 de Outubro" ou "A rebelião dos balantas". L.G.]




"A ASSEMBLEIA NACIONAL POPULAR, reunida a 23 e 24 de Dezembro, adopta a primeira Constituição da História do nosso povo.

"O PAIGC permanece como força política dirigente da nossa sociedade.

"O LEMA DO ESTADO DA GUINÉ BISSAU É UNIDADE, LUTA, PROGRESSO.

"O Secretário Geral do nosso Partido inaugurou a ANP, perante a qual apresentou um balanço das realizações do nosso Partido que conduziram às eleições e à convocação da ANP de acordo com os planos estabelecidos pelo nosso saudoso dirigente Amílcar Cabral, principal obreiro de todas as vitórias alcançadas pelo nosso povo.

"O camarada Pereira refere-se também às novas perspectivas que se abrem à nossa luta na Guiné e às Ilhas de Cabo Verde, assim como às pesadas e novas responsabilidades que recaem sobre todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido.

"O Estado da Guiné-Bissau é um Estado soberano, republicano, democrático, anti -colonialista e anti - imperialista e tem como objectivos principais a libertação total do povo da Guiné Bissau e Cabo Verde e a construção da união destes dois territórios através da edificação de uma pátria africana forte e rumo ao progresso. A modalidade desta união será estabelecida após a libertação dos dois territórios de acordo com a vontade popular.

"O Estado da Guiné Bissau fixa como dever sagrado agir no sentido de acelerar por todos os meios a expulsão das forças de agressão do colonialismo português da parte do território que ainda ocupam na Guiné Bissau e no sentido de tornar mais forte a luta nas Ilhas de Cabo Verde, parte integrante e inalienável do território nacional do povo da Guiné Bissau e de Cabo Verde. Nas ilhas de Cabo Verde será criada no momento oportuno a Assembleia Nacional de Cabo Verde, tendo em vista a formação de um órgão supremo da soberania total do nosso povo e do seu Estado Unido: A Assembleia Suprema do Povo da Guiné e de Cabo Verde.

"O Estado da Guiné Bissau considera, como um dos princípios base da sua política externa, o reforço dos laços de solidariedade e fraternidade combativa do nosso povo com todos os povos das colónias portuguesas; solidariza-se com os povos em luta pela sua independência na África, Ásia e América Latina e com todos os povos árabes contra o sionismo.

"O Estado da Guiné Bissau é parte integrante de África e luta pela unidade dos povos africanos, respeitando a liberdade, a dignidade e o direito ao progresso político, económico, social e cultural desses povos".

O Conselho de Estado exerce, nas sessões da A.N.P., as funções que lhe são atribuídas pelas leis e resoluções da própria Assembleia. É responsável perante a A.N.P. e compõe-se de quinze elementos, cujo mandato é de três anos, eleitos, entre os deputados à A.N.P. na primeire sessão da sua legislatura.



Foto: "O Camarada Luís Cabral, secretário geral adjunto do nosso Partido, eleito Presidente do Conselho de Estado, seu representante nas relações internacionais, sendo igualmente o comandante supremo das Forças Armadas Revolucionárias do Povo ( FARP)".



Os deputados à ANP prestam juramento nos termos seguintes: “Juro que servirei com todas as minhas forças no sentido de conseguir os objectivos principais da Constituição: liquidação total do regime colonial, unidade da Guiné Bissau e das Ilhas de Cabo Verde, progresso social”.


Os outros membros do Conselho de Estado:

- Comandante Umaru Djalô, Vice-Presidente

- Comandante Lúcio Soares, membro do C.E.L. [Comité Executivo da Luta], Secretário

- Pascoal Alves, membro do C.E.L.

- Otto Schacht, membro do C.E.L.

- Carmen Pereira, membro do C.E.L.

- Paulo Correia, membro do C.E.L.

- Bacar Gassamá, membro do C.E.L.

- E ainda Sr. El-Hadj Fodé Mai Turé, Sra. Chica Vaz , Sra. Mansaba Sambu, Sr. Wangne Tchuda e Sr. Musna Sambu



Foto: "Em primeiro plano e da direita para a esquerda: Os Comandantes Umaru Djalô, membro do C.E.L. , Vice-Presidente de Estado, João Silva, membro do C.S.L. e Constantino Teixeira, membro do C.E.L., eleito no Conselho de Estado".

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Nota de L.G:

2 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3828: PAIGC Actualités (Magalhães Ribeiro) (1): O nº 54, Outubro de 1973, dedicado à proclamação da independência: pp. 1-2