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quarta-feira, 29 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24175: Historiografia da presença portuguesa em África (361): Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
Talvez seja útil dar aqui uma justificação destes elementos soltos que vou recolhendo na Biblioteca da Sociedade de Geografia. Considero, em primeiro lugar, que a historiografia carece do mais rigoroso levantamento que as circunstâncias permitem quanto a publicações da época, desde artigos nestes anuários, imprensa periódica, boletins, relatórios da administração, e muito mais. É na conjugação destas peças que podemos ir clarificando a nossa presença colonial. Em segundo lugar, e como este artigo de anuário permite antever, a colónia estava à procura de um novo rumo, a administração é incipiente, há experiências na produção agrícola, sonhou-se com a criação de gado (rotundo falhanço), criaram-se casas agrícolas, irão falir uma a uma (caso da Sociedade Agrícola do Gambiel), não havia o cuidado de atrair a população a um projeto onde eles se sentissem parte integrante, os gestores limitavam-se a querer pagar à jorna, não entendiam que o agricultor precisa de ter ligações à terra ou saber que está a tirar vantagens de um contrato de associação. Tinham entrado em força os intermediários, seguir-se-ão a Casa Gouveia e a Sociedade Comercial Ultramarina, adquirirão terras que nunca exploraram. Não conheço nenhum estudo rigoroso sobre todos estes falhanços do experimentalismo agrícola, a despeito dos estímulos dados para o conhecimento de culturas ajustadas. E ainda hoje se pode ler com pertinência o conjunto de artigos que Amílcar Cabral escreveu quando tinha responsabilidades na Granja Agrícola de Pessubé.

Um abraço do
Mário



Informações sobre a Guiné no Anuário Colonial de 1917

Mário Beja Santos

É bem curioso o que neste volume do Anuário Colonial, editado pela Imprensa Nacional no mesmo ano de 1917 se diz sobre a colónia, tanto dependente de Cabo Verde como sobre a sua história em tempos de autonomização. Abre o artigo com a narrativa do descobrimento da Guiné (dados hoje ultrapassados), segue-se uma descrição sobre o comércio feito pelos moradores da ilha de Santiago, desde o início do séc. XVI, diz-se que o seu principal trato se efetuava no reino de Budumel e particularmente na angra de Besiguiche, e dali se espalharam pelos rios Gâmbia, São Domingos e Casamansa, rio Geba e Rio Grande de Buba. Os portugueses tinham uma feitoria nos Banhuns, na região de São Domingos, rio que também era chamado de Farim. No fim do séc. XVI, foi nomeado primeiro Capitão-Mor de Cacheu António de Barros Bezerra, que fortificou a povoação. A narrativa prossegue elencando tratados, litígios permanentes com os autóctones, refere-se a presença francesa e inglesa e assim chegamos à questão de Bolama. Um dado curioso deste tópico é que não há referência à convecção luso-francesa depois de todas as peripécias da gradual ocupação dos franceses do Casamansa. Esta resenha histórica fina-se com a menção ao desastre de Bolor, que conduziu à separação da Guiné de Cabo Verde.


É mais adiante, a propósito da superfície da Guiné que se alude ao Tratado de 12 de maio de 1886 e aos respetivos trabalhos de balizagem, o número avançado é de 36.125km. Faz-se igualmente menção à orografia, portos e população. Diz-se haver falta de dados seguros sobre a população da Guiné. “Os mais dignos de crédito fazem atribuir à colónia aproximadamente 289.000 almas.” Segue-se uma citação do livro sobre a Guiné portuguesa redigido pelo antigo governador Carlos Pereira: “No regulado do Cuor, situado na margem direita do Geba, defronte de Bambadinca, habitavam até 1908 Biafadas, cujo chefe Infali Soncó. Depois de ter sido destituído, os Biafadas abandonaram o Cuor, indo uns para o Oio e outros para Quínara. O governador investiu como régulo do Cuor o Serua Abdul Injai, ao qual se juntaram muitos outros indígenas pertencentes a diversos grupos étnicos fora da Guiné (Turancas, Serua, Saracolés, etc.). Abdul Injai não conseguiu que o Cuor se povoasse de indígenas da colónia. E como o território é pobre, foi abandonado por Abdul e ocupado imediatamente pelos Oincas, reconheciam o território como meio de comunicação indispensável com o rio Geba.”

Na referência à navegação, menciona-se que o Governo mantém uma esquadrilha de lanchas-canhoneiras, pequenos vapores e lanchas de vela. Falando das linhas de navegação, é recordado que além dos vapores ingleses fazer o serviço costeiro ao longo da costa da Senegâmbia, os portos de Bolama e Bissau estão ligados à metrópole pela carreira mensal que também passa pelo arquipélago de Cabo Verde, e adianta-se que o porto de Bissau está ligado mensalmente com a vizinha colónia francesa por uma carreira de vapores franceses.

As comunicações telegráficas eram efetuadas por cabo submarino, e mais se diz que a comunicação telegráfica terrestre estava no início. As povoações mais importantes são mencionadas: Bolama, Bissau, Cacheu, Farim, Geba, Buba e Cacine.

No destaque feito ao regime político administrativo, adianta-se que as possessões da Senegâmbia eram consideradas num concelho em tudo sujeito ao governador-geral da província de Cabo Verde, e mais se diz que este concelho era dividido em praças e presídios, administrado por um governador chamado da Guiné portuguesa, residente em Bissau. As praças fortes, presídios e mais pontos habitados, dependentes do Governo, tinham um chefe responsável. O artigo aproxima-se da desanexação da Guiné face a Cabo Verde. Por carta de Lei de 18 de março de 1879, foi o território da Guiné desanexado da província de Cabo Verde, constituindo-se uma província com governo independente, ficando igual em consideração e atribuições ao Governo de São Tomé e Príncipe, e tem a sede em Bolama.

Lendo o artigo com atenção, fica-se a saber que o governador é omnipotente, nomeia os chefes responsáveis das ditas Praças Fortes e Presídios, é ele que nomeia a comissão municipal, fica obrigado a visitar anualmente duas vezes, pelo menos, a praça de Cacheu e uma vez todos os fortes e presídios que fazem parte do seu governo; também em cada praça ou presídio havia um chamado juiz dos grumetes, igualmente nomeado pelo governador da Guiné. Para o autor do artigo, há outras datas a ter em conta: em 21 de maio de 1892, dá-se a organização do distrito autónomo da Guiné; em 18 de abril de 1895 é criado o distrito militar autónomo da Guiné; e quanto a circunscrições administrativas há a registar os concelhos de Bolama e Bissau e as circunscrições de Geba, Cacheu, Farim, Buba, Cacine, Brames e Bijagós. Esclarece-se que na Guiné não existem indústrias próprias. Destaca-se a riqueza agrícola, sendo a borracha, o coconote, a mancarra, a cera e o arroz os principais produtos (atenda-se neste tempo a produção orizícola ainda era muito baixa).

Quanto ao quadro de instrução pública, era composto por 9 professores: 2 em Bolama, 1 em Bissau, Cacheu, Farim, Bafatá, Canchungo, Bambadinca e Buba; e 4 professoras em Bolama, Bissau, Cacheu e Farim. A estrutura viária era praticamente inexistente, como se escreve: “Há execução de um troço de extensão de 3.700 metros na estrada de Bolama à Ponta Oeste, não existem na Guiné vias de comunicação que mereçam a classificação de estradas. Há largos caminhos rasgados no mato, acompanhados lateralmente de valetas em terra, bastante regularizados alguns, para trânsito de veículos, se os houvesse na província.”

No ano de 1915, os serviços telégrafo-postais da Guiné eram executados por 8 estações telégrafo-postais, por 6 estações exclusivamente postais e 2 estações exclusivamente telegráficas, estas pertencentes à Eastern Telegraph Company. No que toca à organização militar, diz-se que o governador é o comandante superior de todas as forças militares, tem ao seus dispor 2 companhias indígenas de infantaria e 2 secções de artilharia. E quanto aos serviços da marinha, regista-se uma esquadrilha composta pelas lanchas-canhoneiras Zagaia e Flecha e dos vapores Bissau, República, Rio Corubal, Rio Mansoa, Capitania e Oio. E ficamos a saber, quanto a instituições de saúde, que há em Bolama um hospital militar e civil e delegações e enfermarias em Bissau, Cacheu, Farim e Bafatá.

Carta da colónia da Guiné, 1933
Antigos armazéns da Casa Gouveia, Bolama
O Pidjiquiti, cerca de 1890
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24162: Historiografia da presença portuguesa em África (360): As últimas décadas de comércio negreiro na Senegâmbia e Cabo Verde (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24167: Notas de leitura (1566): "Guineidade & Africanidade - Estudos, Crónicas, Ensaios e Outros Textos", por Leopoldo Amado; Edições Vieira da Silva, 2013, mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Foi minha preocupação agregar a bibliografia mais significativa referente aos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959. Juntaram-se as provas documentais sobre os factos e tomam-se agora as reflexões do Leopoldo Amado para a contextualização numa perspetiva do que representou para a luta de libertação. Se algum dos confrades que gosta de estudar este período que precedeu o início da luta armada possuir mais documentação pertinente à revelação de novos factos, agradece-se penhoradamente toda a ajuda que daí vier.

Um abraço do
Mário



Mais uma achega para os acontecimentos de 3 de agosto de 1959, no Pidjiquiti

Mário Beja Santos

O historiador guineense Leopoldo Amado publicou em 2013 "Guineidade & Africanidade", um acervo de estudos, crónicas, ensaios e outros textos, Edições Vieira da Silva. Desse conjunto destaco dois documentos em que o autor releva a importância dos incidentes no Pidjiquiti, não se cinge particularmente aos factos do que ocorreu nessa tarde de 3 de agosto de 1959, insere-os num ecrã político onde se entrelaçam o movimento independentista africano, a emergência dos grupos nacionalistas na Guiné, a consolidação do pensamento de Cabral quanto à condução da guerra de libertação.

Começa por nos dar um quadro da vaga de nacionalismo guineense influenciada pela independência do Gana em 1957 e pelos países limítrofes, Guiné Conacri e Senegal, em 1958 e 1959, respetivamente. Na sua permanência na colónia da Guiné, entre 1952 e 1954, Cabral apoiou a fundação de uma agremiação desportiva, que não foi autorizada, segundo Leopoldo Amado há quem lhe atribua a paternidade da criação do MING – Movimento para a Independência da Guiné, que se revelou irrelevante. Participou em reuniões, isso está demonstrado. 

Como é sabido, Julião Soares Sousa contesta a presença de Cabral na reunião de 19 de setembro de 1956 em que foi fundado o PAI – Partido Africano para a Independência, inequivocamente inerme até 1959, nem um documento consta. O Movimento de Libertação da Guiné (MLG), da responsabilidade de Rafael Barbosa, aparecerá ligado à grande greve do Pidjiquiti de 3 de agosto de 1959, toda a glorificação do martírio não tem por detrás uma prova factual da mão do PAI. 

Este Movimento de Libertação da Guiné foi fundado em 1958, um conjunto de nomes de fundadores aparecerá mais tarde no PAIGC. Escreve Leopoldo Amado que as movimentações para a criação do MLG terão remontado aos princípios de janeiro desse ano. E escreve o autor: 

“Sedentos de passar à ação, o MLG tenta gizar um plano assente sobretudo numa teia coesa de ligações com um considerável grupo de guineenses emigrados em Conacri, rapidamente se predispuseram a participar na exaltante obra rumo à independência nacional”. 

O encontro crucial para pôr em andamento o PAI ocorre durante a estadia de Cabral em Bissau, entre 14 e 21 de setembro de 1959, é neste tempo que se estabelecem as linhas de atuação, uma parte da direção do PAI fica em Conacri, Rafael Barbosa conduzirá a subversão no interior da Guiné. 

Um dos mitos alimentados pela hagiografia do PAIGC é o da expulsão de Cabral quando trabalhou no recenseamento agrícola e na granja de Pessubé, Cabral deixou bem claro por carta que regressava a Lisboa porque ele e a Maria Helena estavam gravemente afetados pela malária. É completa atoarda que tenha sido forçado a ir para Angola, foi ele que escolheu ir trabalhar para uma empresa próspera, a Sociedade Agrícola do Cassequel, bem remunerado.

Voltemos ao Pidjiquiti e ao que escreve Leopoldo Amado: 

"Depois de Pidjiquiti, para além de Cabral ter optado por estabelecer em Conacri a retaguarda segura para o PAI, sucederam-se outros importantes acontecimentos que mostram inequivocamente a opção do PAI no sentido do desenvolvimento de uma guerra prolongada de libertação nacional”

E enumeram-se as diligências na cena internacional, são por demais conhecidas. E este trabalho conclui com a relação das ações subversivas que irão ser desenvolvidas em 1961 e 1962, mostrando mesmo a ascensão efémera de outros grupos de libertação que designadamente a partir de 1964 desaparecerão da cena.

Noutro estudo intitulado “Simbólica de Pidjiquiti na ótica libertária da Guiné-Bissau”, novamente Leopoldo Amado considera os acontecimentos como tributários de outros, e escreve: 

“O efeito multiplicador da atuação dos nacionalistas guineenses esteve por detrás da primeira greve dos marinheiros, ocorrida em 1957, no cais do Pidjiquiti, em Bissau, greve essa, de resto, bem-sucedida, na medida em que esses marinheiros viram satisfeitos grande parte das reivindicações, a ponto de a mesma vir posteriormente a potenciar, pelo precedente aberto (mas igualmente por ação de elementos do MLG), a grande greve que ocorreu em 1959, na qual foram mortos cerca de 50 marinheiros, tendo ficado gravemente feridos cerca de uma centena”.

E para o autor estas duas reivindicações do Pidjiquiti, nomeadamente a última, popularizaram rapidamente a ideia de uma luta comum contra o colonialismo português, seria estratégia do PAI a tentativa de eleger os seus membros no sindicato dos trabalhadores, rapidamente se apreendeu que não eram essas pequenas reivindicações urbanas que permitiam estender a luta aos menos favorecidos. 

Daí a tese de Cabral de que era definitivo conquistar o proletariado no universo agrícola, tese que irá revolucionar a doutrina da luta de classes que era proposta pela vulgata marxista leninista. Leopoldo Amado aproveita este trabalho para falar dos primórdios do fenómeno nacionalista, fala da Liga Guineense, das múltiplas recusas em pagar o imposto de palhota e em certos atos desumanos do trabalho forçado. Este seu trabalho retoma o primeiro que citámos e volta deste modo aos acontecimentos do 3 de agosto de 1959: 

“Para além do massacre do Pidjiquiti corresponder justamente ao momento em que a agitação clandestina atingia o seu ponto máximo, permitindo o seu violento desfecho, possui o condão de ter reforçado a consciência segundo a qual era necessário optar por outras formas de luta para responder com violência à violência colonial. Foi também este massacre que impulsionou, pouco depois (janeiro de 1960), a criação em Tunes da FRAIN (Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas), no decurso da Conferência dos Povos Pan-africanos".

Nestes termos, segundo Leopoldo Amado, os acontecimentos de 3 de agosto de 1959 representaram a irreversibilidade do processo nacionalista na Guiné, “ultrapassando o seu alcance político as de mera reivindicação laboral, na medida em que, a montante do processo libertário guineense, circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos direta ou indiretamente a ele relacionados, pelo que não é nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial”.

Dá-se por finda esta itinerância à bibliografia referente ao que se passou em 3 de agosto de 1959, persistem dúvidas quanto ao número de vítimas em mortos e feridos, a quem esteve por detrás do desencadeamento da greve, parece estar tudo claro quanto ao que aconteceu a partir do momento em que apareceu a polícia, que foi maltratada e maltratou, que regressou reequipada e depois a chegada do Exército. Não se possuem outros factos documentais para além dos citados.

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Nota do editor

Último poste da série de 20 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24156: Notas de leitura (1565): Pidjiquiti, 3 de agosto de 1959: Mais bibliografia disponível (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23769: Notas de leitura (1514): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Aqui prossegue, em marcha um tanto lenta, a tentativa de sumarização do miolo da obra que o nosso confrade José Matos teve a gentileza de me enviar. Encetou-se este trabalho com o prólogo e estamos agora no contexto histórico da emergência do nacionalismo guineense, que conduzirá à luta armada iniciada em janeiro de 1963. Convém esclarecer que aqui e acolá introduzo um apontamento histórico da minha lavra, não para distorcer o que há de essencial no livro de Hurley e Matos mas para melhor contextualizar o leitor português. Dou simplesmente o exemplo de ter referido o nome de Fernão Gomes e o seu contrato com a Coroa para melhor se entender que era sua obrigação ir explorando para Sul, tudo fazia parte daquele desígnio a que se chama o Projeto Henriquino, ir descobrindo para Sul até encontrar caminho para o Oriente. Assim se perceberá, creio eu, como aquele ponto da costa ocidental africana tinha significado numa rede comercial, nem de longe nem de perto era uma colónia, a nossa presença estava marcada no litoral e na negociação com régulos com quem se fazia a compra e a venda. O texto parece-me rigoroso, é muito incisivo, trata-se de um volume que não chega a 100 páginas, os autores foram forçados a orientar-se pelo que lhe parece de mais essencial para mais adiante se compreender as atividades da Força Aérea Portuguesa na Guiné.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (2)


Mário Beja Santos

Este primeiro volume d’O Santuário Perdido por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/. Na edição anterior procedeu-se a um sumário da introdução, vamos agora entrar no primeiro capítulo que se intitula “O Vento da Mudança”.

Recordam os autores a presença portuguesa nesta região da costa ocidental africana a partir de finais da primeira metade do século XV. Presença limitada a vários pontos de comércio; um rico comerciante, de nome Fernão Gomes, fez contrato com a Coroa, a sua principal obrigação era ir explorando para Sul, fê-lo com êxito; a rede comercial instituída atingia Cabo Verde, Arguim e São Jorge da Mina, prosperou o tráfico negreiro. O monarca português reivindicou a soberania e a exclusividade económica sobre a região, a partir de 1486 acrescentou ao seu título o de “Senhor da Guiné”. Prosseguiram as viagens no reinado do príncipe D. João (futuro D. João II), e depois de se ter chegado à zona do rio Congo, intensificaram-se as viagens até que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo da Boa Esperança; preparou-se, então, uma grande expedição para a primeira viagem marítima até o Oriente, o comandante era Vasco da Gama, o ano 1498. Dois anos depois, Pedro Álvares Cabral descobria o Brasil. Iniciava-se um período prodigioso de viagens e comércio. A concorrência estrangeira na costa ocidental era praticamente incontrolável, com a expansão para o Brasil e para o vice-reinado da Índia o comércio africano foi ficando reduzido a uma escala diminuta, durante o período filipino a presença portuguesa ainda ficou mais seriamente afetada por se passar a ter os mesmos adversários que a Espanha.

Com a independência do Brasil, Portugal voltou-se declaradamente para uma presença mais efetiva em África. No caso da colónia da Guiné, a nossa presença era ténue, o clima altamente agressivo, a resistência dos autóctones era ferocíssima. Com as obrigações impostas pela Conferência de Berlim, tiveram início campanhas para subjugar a resistência dos povos locais, considera-se que o território da colónia ficou efetivamente ocupado/pacificado em 1936, depois de uma campanha numa ilha dos Bijagós, que acatou finalmente a soberania portuguesa. E, de facto, começou uma organização administrativa pautada pela criação de infraestruturas, estabelecimento de Circunscrições, uma maior presença de funcionários do quadro da Administração Colonial, criação de bairros para os funcionários, aparecimento de instalações de saúde e poderá considerar-se que com a governação do Comandante Sarmento Rodrigues, que deu largo impulso ao conhecimento da Guiné, e até mesmo trazendo ao território cientistas reputados, a Guiné passou a ter uma posição no mapa, ganhou identidade e chegou ao conhecimento dos portugueses.

Com o aparecimento do Estado Novo, o Império Colonial Português ganhou uma nova moldura jurídica, que vai desde o Acto Colonial até à Concordada com a Santa Sé. O Acto Colonial era bem claro ao definir a função histórica de Portugal em possuir e colonizar domínios ultramarinos e civilizar as respetivas populações indígenas. Realizaram-se exposições, a começar pela Exposição Colonial do Porto até, em plena Segunda Guerra Mundial, a Exposição do Mundo Português, exaltava-se o passado heroico de Portugal e o imutável caráter imperial da nação portuguesa. Em 1960, aproveitando as comemorações do centenário da morte do Infante D. Henrique, falecido cinco séculos antes, voltava-se a uma narrativa nacional, no caso vertente que ia do Minho a Timor, era uma narrativa construída em torno de um país pluricontinental e plurirracial, tudo numa unidade exemplar.

Apercebendo-se dos ventos da mudança, a descolonização estava em curso desde o fim da Segunda Guerra Mundial e Salazar apercebeu-se que a independência da Índia em 1949 iria trazer severas tensões para a sua política externa. Abandonou-se o conceito imperial, deixou-se de falar em colónias, alterou-se a Constituição e apresentou-se ao mundo o ultramar português, as províncias ultramarinas apareciam como politicamente integradas no Estado português. Tanto no interior do regime como nos areópagos internacionais sabia-se que a mudança era puramente cosmética. Salazar não deixava de dizer claramente que o regime não podia sobreviver sem o seu território ultramarino, assim se iniciou uma intensa doutrinação sociopolítica, procurando uma catequização de que este ultramar era um direito adquirido, fazia parte das realizações históricas da Nação. Mas os investimentos no ultramar mantiveram-se no nível baixo, e em 1960 o chamado Portugal europeu caracterizava-se pelo seu maior nível de analfabetismo e o menor rendimento per capita na Europa Ocidental, com níveis altamente preocupantes na mortalidade infantil e nas doenças infetocontagiosas, abaixo de Portugal só a Albânia.

Os autores relatam os acontecimentos da Abrilada, a atividade oposicionista ao regime, o esmagador apoio que a ideia de império/ultramar obtinha junto do Oficialato português. Tanto assim foi que se deu uma rápida mobilização para procurar asfixiar a sublevação em Angola. Houve quem tivesse preconizado que o descontentamento nacionalista africano se iria exprimir em primeiro lugar na Guiné, tal não aconteceu, mas em 1961 o ideal independentista já seguia o seu curso, com apoios firmes na Guiné Conacri e no Senegal. A Guiné atraía poucos capitais, tinha algumas empresas de dimensão média, as suas exportações eram interessantes para o fabrico das oleaginosas e a cultura do arroz permitia que este alimento básico chegasse a Portugal, a Guiné dava sinais de autoabastecimento muito satisfatório no caso do arroz.

Segundo o censo de 1960, a Guiné tinha um pouco mais de meio milhão de habitantes, esmagadoramente era constituída pela população indígena, havia pequenas parcelas de população branca e sírio-libaneses. Apesar da sua insignificância no contexto imperial, o Estado Novo não abdicou de tratar a Guiné como uma província ultramarina, os sinais da descolonização eram por demais evidentes, os franceses já tinham sido expulsos da Indochina, as sublevações na Malásia, Quénia e Argélia não podiam ser iludidas, a Guiné Conacri torna-se independente em 1958, no ano anterior o Gana proclamara a sua independência e a sua política externa era completamente hostil ao espírito colonial, logo na África Subsariana. A questão angolana era prioritária para o Estado Novo, só a partir de 1962, e a um ritmo muito fraco é que Lisboa foi enviando para a Guiné mais efetivos militares.

Os autores dão conta do que foram as tentativas independentistas na Guiné nos anos 1950, referindo a crescente presença do partido dirigido por Amílcar Cabral, nascido na Guiné em 1924, tendo depois vivido em Cabo Verde e tirado o curso de engenheiro agrónomo em Lisboa, seguindo depois como Diretor de Serviços Agrícolas para a Guiné, onde restruturou a Granja do Pessubé e na companhia da mulher procedeu ao recenseamento agrícola, nomeadamente no ano de 1953. Segue-se uma apreciação do contexto internacional que pesou a favor do espírito independentista, o mapa africano alterou-se profundamente e isso deu força a que Cabral propusesse a criação de um partido, ficaria um núcleo ativo no interior da Guiné a preparar a subversão e a canalização de gente para Conacri, ele ficaria na capital com um outro núcleo diretivo, à frente de uma Escola-piloto e conduzindo a sensibilização da opinião pública internacional. Cabral soubera tirar partido das lições dos acontecimentos do Pidjiquiti, em 3 de agosto de 1959, não havia condições para a subversão urbana, tinha que se ir por outro caminho.
O Governo de Salazar em 1930 junto dos próceres da ditadura nacional, Carmona é o Presidente da República, é o ano do Ato Colonial
Outra imagem do livro “O Santuário Perdido”, reproduz material propagandístico do PAI, a sigla antecessora do PAIGC
Amílcar Cabral a pousar com um grupo de guerrilheiros do PAIGC recentemente regressados de uma ação de formação na China. Nino Vieira está acocorado, é o segundo à esquerda.

(continua)

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Notas do editor:

Vd. poste de 28 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23745: Notas de leitura (1511): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23762: Notas de leitura (1513): "Fora de Jogo", com a participação de Amadu Dafé, Claudiany Pereira, Edson Incopté, Marinho de Pina e Valdyr Araújo; Ku Si Mon Editora, 2019 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23708: Notas de leitura (1505): Uma escultura de renome mundial, a Nalu (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Há por vezes a necessidade de lançar um apelo. No caso vertente, trata-se da arte Nalu, que é possível encontrar em museus de grande renome, é elemento construtivo das grandes coleções de arte africana. Não é novidade para ninguém que a arte Nalu e a arte Bijagó são admiráveis. É curioso como há estudos sobre a arte Bijagó e parece que ninguém escreve sobre a arte Nalu, por essa razão aqui se repesca um trabalho de Artur Augusto Silva publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, seguramente que há hoje mais elementos e reflexões sobre esta representatividade plástica, tão credora da nossa admiração. É facto que ainda não bati à porta do Museu Nacional de Etnologia, acontecerá um dia. O que eu pergunto aos meus confrades é se não têm a amabilidade de me informar de quaisquer outros estudos sobre uma escultura que põe a Guiné Bissau em tão conceituados museus.

Antecipadamente grato,
Mário



Uma escultura de renome mundial, a Nalu

Mário Beja Santos

Estava a ser uma manhã de leituras muito interessantes, voltei a folhear os dois cartapácios referentes aos Ecos da Guiné, tudo começou por uma edição da secção técnica de estatística, secção de publicidade, comércio da Guiné, publicação criada em 1949, na governação de Raimundo Serrão, passou depois a intitular-se Boletim de Informação e de Estatística, crónica mensal da colónia, foi aqui que Amílcar Cabral, enquanto responsável pela Granja de Pessubé, no âmbito da Direção-Geral dos Serviços Agrícolas dedicou um punhado de reflexões sobre a indispensável reforma agrícola.

Tinha saudades de aqui relembrar a arte Nalu, há um texto meu no blogue que data de há 10 anos. Bem procurei bibliografia na Sociedade de Geografia sobre esta corrente plástica, nada encontrei, é muito provável que tenha de bater à porta do Museu Nacional de Etnologia, pode ser que tenha mais sorte. Assim, voltei a pegar no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. XI, nº44, outubro de 1956, deu-me imenso prazer voltar a ler o artigo escrito por Artur Augusto Silva sobre a arte Nalu, ainda é possível encontrar nos alfarrabistas uma separata deste curioso texto. A que se propõe este investigador? Responde logo no início do seu trabalho: “Procuraremos surpreender as suas determinantes, as relações da sua arte com a necessidade de exprimir as preocupações dominantes do agregado social e ainda demonstrar que o meio ambiente condicionou o modo de vida, a sua organização económica e, como resultado desta organização, todas as superestruturas daí derivadas”. Recorda que a etnia Nalu não está circunscrita à colónia da Guiné portuguesa, também tem alguma importância na Guiné francesa, no caso da Guiné portuguesa habitavam as regiões da circunscrição de Catió, Cacine e Bedanda e pontos isolados do Cubisseco (região de Fulacunda).

O autor estima a população Nalu na colónia em perto de 4 mil habitantes. Dedicavam-se à orizicultura, às culturas da cola, banana, laranja e ananases. Habitam só solo continental. Não possuem escrita e só conheciam a literatura oral, o verosímil e o inverosímil andam de mãos dadas, são prolongamentos da mesma realidade. Os Nalus, habitantes de floresta eram, ainda há 40 anos, um dos povos mais primitivos de toda a África. Seguiram-se os contactos com os muçulmanos, tudo começou por aspetos comerciais dado que estes são grandes consumidores de cola, iniciou-se depois a islamização dos mais jovens, a arte Nalu passou a desinteressar as novas gerações, crescentemente islamizadas [esta apreciação de Artur Augusto Silva não se veio a revelar definitiva, a arte Nalu continua a ter grande projeção não só no artesanato guineense, muitos espécimenes são disputados por colecionadores e museus, algumas das maiores leiloeiras internacionais quando fazem leilões de arte africana não é incomum porem à venda arte Nalu e arte Bijagó].

A espiritualidade destes animistas baseia-se na crença das energias, as forças, são estes elementos o que dominam a representatividade plástica Nalu. Nas máscaras refugia-se a energia. A serpente é em toda a zoolatria Nalu um animal de maior prestígio. As máscaras são a síntese de todas as forças vivas. O autor chama a atenção para algo que é a aculturação animista, neste caso os Nalus praticam a circuncisão.

O artista Nalu procura construir unicamente moradas para as forças que animam o seu mundo sobrenatural. É de notar que as máscaras e tambores destinados a folguedos são usados por Nalus e Sossos. O autor avisa-nos que não pôde confirmar se os Bagas também participam deste processo estético.

Em jeito de síntese, Artur Augusto Silva observa que a escultura Nalu nasceu da necessidade de representar as forças a que nós chamamos religiosidade, em termos plásticos escultóricos estas forças prendem-se com a necessidade de ter uma residência porque quando não há lugar qualquer força é inoperante, a pessoa fica à deriva, sem comunicação com o transcendente.

As esculturas são feitas em madeira de poilão ou em mancone. Os Nalus usam uma enxó para desbastar a madeira e um canivete para os trabalhos de pormenor. As tintas usadas: preta, branca, vermelha e verde. Conseguem a tinta branca através da trituração da casca de ostras.

Chegou a hora de bater a outras portas para saber mais sobre a arte Nalu. Será que os nossos amigos guineenses não nos poderão ajudar?

Ninte-Kamatchol, escultura Nalu, Museu Afro-Brasil
Máscara Nalu, Instituto de Arte de Chicago
Máscara Nalu, coleção da Sociedade de Geografia de Lisboa
Arte Nalu, Arquivo Histórico Ultramarino
Povos da Guiné-Bissau, painel de Augusto Trigo
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23690: Notas de leitura (1504): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Guiné 61/74 - P21279: (In)citações (165): Da Guerra da Guiné, sem branquear nem reescrever a história: há 60 anos, as ideias Negritude, Nacionalismo, Libertação e Descolonização ou vírus da pandemia que matou a portugalização africana - Parte I (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

1. Em mensagem do dia 18 de Agosto de 2020, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), enviou-nos um texto a que deu o título: "Da Guerra da Guiné, sem branquear nem reescrever a história: há 60 anos, as ideias Negritude, Nacionalismo, Libertação e Descolonização ou vírus da pandemia que matou a portugalização africana", do qual publicamos hoje a Parte I


Da Guerra da Guiné, sem branquear nem reescrever a história: há 60 anos, as ideias Negritude, Nacionalismo, Libertação e Descolonização ou vírus da pandemia que matou a portugalização africana

A Resolução n.º 1542 ou “Declaração Anticolonialista”, de Janeiro de 1960, fomentou a litigância de Portugal com a ONU (Organização das Nações Unidas) durante 14 anos e espoletou a sua guerra ultramarina, que durou 12. Como não é possível evocar “todos os nomes”, esta narrativa homenageia a Geração de 40, as centenas de milhares de portugueses, europeus e africanos, seus “varões assinalados” e carne para canhão dessa guerra, que libertou Portugal do seu Ultramar, mas que tarda a libertar os seus Povos.
A ONU como comunidade internacional, interestadual, com fins da estabilização das nações, foi concepção e projecto de Theodore Roosevelt, então Presidente dos USA, concretizado em 1945 pelo seu sucessor e parceiros vencedores da II Guerra Mundial, e foi também o inspirador da dissolução dos impérios coloniais da Inglaterra, França, Holanda, Bélgica, Portugal incluído, o 3.º país mais antigo do Mundo, menos colonialista que eles, cuja admissão a União Soviética vetou até 1955 – a inveja de um império euro-asiático, formado pela II Guerra Mundial, por um império ultramarino, com 500 anos de história.
A ONU é pessoa colectiva, uma soma de pessoas singulares, logo capaz de todas as grandezas e misérias da condição humana, inclusive os pecados da incongruência e de não olhar a meios para atingir fins.
Até a essa Resolução e sua circunstância, a Guiné (e Angola, Moçambique, etc.), não era nem de Salazar/Caetano nem fascista, era portuguesa de facto histórico e de direito internacional, convencionado fazia precisamente 500 anos, pela Bula Papal “Romanus Pontifex”, de 8 de Janeiro de 1455, em troca da desistência do rei D. Afonso V do senhorio da Galiza e da desistência dele e do Infante D. Henrique do senhorio das Canárias (ambas a favor da Espanha), reconhecido em 1885, nos termos da Conferência de Berlim (escapou de ser francesa, inglesa ou alemã) e confirmado pelo Pacto da Sociedade das Nações, em 1920.

A partir de 1960, a ONU e Amílcar Cabral resolveram reescrever a sua história.

A Colonização é a dominação de uns povos por outros, é um poder do conhecimento, fenómeno transversal a todos os estádios evolutivos do homem, com registo sociológico e histórico quase tão antigo quanto a humanidade. Os povos sempre se invadiram, se dominaram uns aos outros, miscigenaram e mutuaram as suas economias e as suas culturas. A sabedoria popular diz “quem não está bem muda-se” e Karl Marx pensou fazer revolução com quem não está bem.

Colonialismo e Descolonização são conceitos políticos do século XVIII, gerados pela Revolução Francesa, criados pela Revolução Americana, nutridos pelo “jornalismo amarelo” do ex-Soldado de Cavalaria Joseph Pulitzer (pró-descolonização de Cuba), de efeito dirigido aos interesses americanos e ao termo do colonialismo da Espanha na América Latina (Portugal deixara de ser americano, em 1822, com a descolonização do Brasil), perfilhados pelo Partido Democrata americano e por Theodore Roosevelt, então secretário da Marinha dos USA, apropriados pelo russo Lenine, para tarar a carga psicológica e psiquiátrica da sua revolução, extensivamente propagados na década de 30 do século passado.
Lenine, sectário de Marx e revolucionário russo, começou por contribuir para a derrota da Alemanha na I Guerra Mundial, pela instigação às amotinações e à deserção massiva dos soldados russos dos campos de batalha do então aliado, exterminou a dinastia russa, ocupou o trono do czar e foi o arauto da “dilatação da fé e do império” da União Soviética, que Estaline concretizou. Theodore Roosevelt organizou a vitória da II Guerra Mundial, pela derrota da Alemanha, Itália e Japão, as “potências do Eixo” e o seu imperialismo, deixou-se manipular por Estaline, pela sua promoção a libertador e propiciou-lhe a “cortina de ferro” ou o “colonialismo soviético” nas nações da Europa do Leste.
A Liberdade precisou (precisa e premeia) do jornalismo de Pulitzer, para seu sustento, a Humanidade precisa dos ideais do Comunismo (não necessariamente leninistas e estalinistas) para impulsão das mudanças sociais, mas seria mais feliz, se prescindisse de líderes sociopatas e criminosos, do jaez de Hitler, Lenine, Estaline, Mao e seus herdeiros.

Amílcar Cabral, nacionalista visionário, português guineense, Eng.º Agrónomo e Alferes Miliciano do Estado Português na disponibilidade, foi homem do seu tempo, tão ambicioso quanto talentoso, renunciou à nacionalidade mas acabou como os portugueses de antanho – “morreu o homem, ficou a fama”.
Já trintão avançado e no cúmulo de 10 anos de trabalho – 5 de funcionário público, pelas veigas de Trás-os-Montes, campinas do Ribatejo, herdades do Alentejo, bolanhas da Guiné, e 5 na iniciativa privada (capitalista e colonialista) em Angola, na Sociedade Agrícola do Casseque, C.ª de Açúcar de Angola, C.ª da Agricultura de Angola e na C.ª dos Diamantes de Angola (Diamang), descobriu que a Guiné era o “calcanhar de Aquiles” do Portugal ultramarino, dedicou o resto dos seus dias ao fim da portugalidade africana, acabou às mãos de seguidores e passou à história como fundador da nacionalidade bissau-guineense.

O senhorio plurissecular de Portugal na Guiné não se sustentou apenas no facto histórico e no direito internacional. Este blogue de Camaradas da Guiné veiculou-nos há dias a investigação do Armando Tavares da Silva de, entre 1826 (na alvorada do conceito Descolonização) e 1918 (fim da I Guerra Mundial), ao longo de 90 anos, Portugal celebrou 76 Tratados e Convenções com as suas autoridades naturais, muitos por iniciativa delas próprias; e, com as suas recensões de tudo o escrito sobre a Guerra da Guiné, o Mário Beja Santos veiculou-nos que, entre 1901 e 1936, durante 35 anos, Portugal desencadeou mais de 30 grandes operações militares de pacificação, transversais à quase totalidade das etnias, à excepção da Fula.
A perda da soberania da Guiné não implica a lavagem da sua história nem a perda dos direitos de autor de Portugal de colónia nem a perda da patente da sua formatação em país. Os colonialistas portugueses que a descobriram e promoveram a exponenciação da sua escravatura (não foi Portugal que inventou ou instituiu a escravatura) foram os mesmos que lhe derramaram a civilização dita ocidental, que respeitaram a sua identidade e culturas, mormente a sua faixa da civilização oriental, que delimitaram as suas fronteiras físicas e, também, os mesmos que lhes levaram e foram o garante da sua paz.

Antes da emergência da ONU e do fenómeno Amílcar Cabral, a resistência guineense bélica à colonização portuguesa não passara de heterogénea, étnica, regional ou local. A sua única resistência armada, à dimensão nacional, foi a levantada por Amílcar Cabral, o seu PAIGC e o intrometimento internacionalista.
Em 1974, ao forçar o seu apressado abandono por Portugal, por exibicionismo e cantatas de vitória, o PAIGC desnatou a Nação guineense do seu mais importante activo - o seu elemento unificador. “Erros meus, má fortuna” - não por culpa de Amílcar Cabral, mas por culpa do “vão-se embora”, o “diktak” dos seus herdeiros, o cabo-verdiano Pedro Pires e o angolano José Araújo, negociadores do Acordo de Argel. A Guiné seria a mesma de hoje se, a par das ajudas internacionais, Portugal tivesse condições para investir o orçamento da sua guerra no seu desenvolvimento, num período de 5 anos de autonomia-transição?
O General Spínola quis ser para a Guiné o que De Gaulle fora para a Argélia; os negociadores de Argel quiseram ser para Portugal, o que Sékou Touré fora para a França. “Diz-me com quem andas e eu dir-te-ei quem és”!

Amílcar Cabral fez a sua iniciação revolucionária com a ideia da união política da Guiné e Cabo Verde e com a visão da independência das duas colónias com o nome de República da Guinela (antiga designação da região de Buba). Meteu Cabo Verde no mesmo saco e terá adoptado essa onomástica, plausivelmente para subtrair sustentabilidade e embargar qualquer apoio internacional à ambição expansionista de Sékou Touré de formatar a sua Grande Guiné, com a anexação da portuguesa; este havia declarado a intenção de vir a anular ou violar a Convenção Luso-Francesa de 1885 (celebrada no contexto da crise do Mapa Cor-de-Rosa), ao arrepio do postulado da ONU e da OUA (Organização da Unidade Africana), do respeito pelas fronteiras anteriores à descolonização. Desde 1956, que o seu Partido Democrático estendia a propaganda da Grande Guiné pela região continental e insular de Catió, onde chegou a formar “clubes de trabalho”, como meio para atingir os seus fins. A peia da sua ambição expansionista foi ter a transformado a Guiné-Conacri num país faminto e sem vintém, com a sua incompatibilidade com De Gaulle e a sua ruptura com a França.

A onomástica Guiné-Bissau é criação da imprensa internacional, que ignorou nos seus despachos a diferenciação cabralista de República da Guinela.
Amílcar Cabral tinha sentimentos e ADN português, era neto biológico do padre António Lopes da Costa, natural da freguesia de S. Tiago de Cussarães, Mangualde, e Leopold Senghor, poeta e filósofo da Negritude, se não tinha ADN português, tinha o apelido, por pertinente razão. Se esse Presidente da República do Senegal fosse do jaez do ditador guinéu, ele teria levantado o PAIGC e o seu exército, inicialmente não o investiria contra as Forças Armadas Portuguesas, seria seu aliado, para que a Guiné-Bissau não fosse riscada do mapa.
Pela abolição dessa Convenção, a região de Cacine regressaria à Guiné-Conacri, a Guiné-Bissau deixaria de ter massa crítica de país, e ele poderia formatar a Grande Guiné dilatado até à actual fronteira à fronteira de Casamansa. Leopold Senghor jamais alinharia nisso, não obstante Sékou Touré lhe ter oferecido como contrapartida a consideração da Gâmbia como área da expansão natural do Senegal e todo o apoio à anexação. Argumentação: a falta de equidade dessa Convenção, o facto de essas fronteiras não ser divisória das etnias, a indiferença destas pela sua delimitação e do lado português haver mais falantes de francês que de português. Queria fazer e deixar obra.

Sékou Touré invejava e subavaliava o fenómeno Amílcar Cabral mas receava Portugal, potência da NATO, enquanto Leopold Senghor, inconvicto dos princípios e fundamentos marxistas, começou por o descartar e ao seu PAIGC, tendia para o apoio aos movimentos independentistas pró-ocidentais, como a UPG (União dos Povos da Guiné), liderada por Henri Laberi, o seu preferido era o MLG (Movimento da Libertação da Guiné), liderado por François Mendy, que autorizara a basear-se em Dandula-Turene.

Amílcar Cabral tombou em 20 de Janeiro de 1973, à vista da família e à porta de casa, vizinho de Sékou Touré, no perímetro do complexo residencial governamental, ocorrência alvo de três investigações, todas diáfanas e inconclusivas no referido ao mandante, a judicial guineana, o inquérito internacional conduzido pelo líder rebelde angolano Agostinho Neto e o inquérito do Conselho Superior de Luta, que resultou no fuzilamento de cerca de 200 compatriotas – o esplendor do PAIGC, como “máquina da morte” dos seus concidadãos.
No final do ano havia declarado, ante os quadros do PAIGC, a certeza de não estar na mira das armas dos portugueses, que lhe reconheciam o valor (optimismo decorrente dos encontros de Maio, entre o General Spínola e o Presidente da República Senghor, em superação dos anteriores, veiculados por Mário Soares, (comerciante de Pirada), manifestara-se suspeitoso das lealdades do seu “balneário”, escondera o esfriamento da relação com Sékou Touré e o seu temor do ego xenófobo e invejoso do seu anfitrião. Enquanto a sua estrela, sendo mulato, pequeno de estatura, apenas aspirante errático a estadista dum pequeno e putativo país, brilhava na galáxia política internacional, a dele, africano genuíno, apessoado, e líder de um grande país era fosca.

O assassinato foi perpetrado poucos dias depois do regresso dele da Conferência do Comité de Libertação de África, em Acra. Em Fevereiro de 1972, na reunião do Conselho de Segurança da ONU, na sede da OUA, em Adis-Abeba, havia influenciado a derrota diplomática de Sékou Touré, com a sua oposição à expulsão de Portugal da ONU; com a sua tradicional loquacidade, dia antes de ser assassinado havia respondido, pelo mesmo meio e no mesmo tom, às críticas tecidas na primeira página do principal diário argelino, a verberar a sua teimosia no ensino da Língua portuguesa nas “áreas libertadas”; e, ao saber que ele iniciara diligências junto do Mali e do Senegal (foram federação até 1960), tentando a formação de uma coligação militar, para correr com Portugal da sua vizinhança, ignorando ostensivamente o PAIGC e a escalada da sua guerra independentista, fizera-lhe saber que se a Guiné-Bissau tivesse que ser colónia, lutaria para que continuasse portuguesa e não de nenhum outro país africano.
“A Guiné só é Guiné porque é Portugal”, veredicto do Almirante Sarmento Rodrigues, ao despedir-se de seu Governador para ser ministro do Ultramar. Premonição? A antiga Guiné Portuguesa correrá o risco de deixar de ser Guiné-Bissau?

As recorrentes diferenciações de Guiné-Conacri e Guiné-Bissau, mais consentâneas com a sua história (iniciativa de patriotas bissau-guineenses?), constituirão antídoto à ameaça da perda da identidade bissau-guineense?
Nessa altura, em 1972, as Forças Armadas portuguesas na África eram o maior exército a sul do Sahara e o exército do PAIGC era considerado pequeno, o melhor preparado e o mais eficaz dos africanos.
Em 1974, a Guiné-Bissau saiu da órbita portuguesa, é lusófona em teoria, mas na órbita francófona, e, passados 60 anos, aquela argumentação de Sékou Touré será mais actual, plausível culpa dos seus governos, sempre de mão estendida ao neocolonialismo da “cooperação” e, também, ao experimentalismo da “reforma educacional pela controvérsia política”, perspectiva do teórico brasileiro Paulo Freire, o primeiro consultor do seu primeiro “comissariado” da educação do seu primeiro governo nacional. A propósito, trazemos à colação a declaração do nosso camarada da Guiné, Francisco Henriques da Silva, notável Embaixador em Bissau, em 1988, gestor magistral da crise Ansumane Mané, negociador com a Junta Militar do exílio do Presidente da República Nino Vieira em Portugal e da libertação da missão francesa refugiada na embaixada de Portugal, em como a instabilidade política da Guiné-Bissau tem o dedo da França…

Amílcar Cabral formou-se engenheiro e semeou a Guerra da Guiné à custa do Estado Português, convenhamos não a tempo inteiro do seu horário laboral, por ter produzido um notável trabalho tecno-profissional.
Regressou à Guiné para trabalhar nos Serviços Provinciais de Agricultura, em substituição do colega e amigo Eng.º Sousa Veloso, futura vedeta do programa “TV Rural” que desistira a seu favor. Em Agosto de 1953, o seu Chefe de Serviços Provinciais, Eng.º Agrónomo Nobre da Veiga, encarregou-o do estudo, planeamento e execução do Recenseamento Agrícola, coincidente com o início do mandato do Capitão-de-Mar e Guerra Mello e Alvim, transitado de Governador da Zambézia para Governador da Guiné, que lhe dispensou todo apoio, inclusive a importação do Senegal duma caravana francesa, para a sua logística.
Esse Recenseamento foi a oportunidade soberba do seu contacto, em extensão e profundidade, com a Guiné profunda, com as etnias tendencialmente revoltosas e para o seu diálogo instrutivo-subversivo com os “homens grandes” das tabancas balantas, manjacas, nalús, etc., ganhando-lhes a veneração de “homem grande” de Bissau. Em plena época das chuvas de 1964, nas “operações de intervenção” de “cerco e assalto” no Sul, entre a tralha propagandística do PAIGC, capturamos fotos suas encaixilhadas, de formato postal, bem ataviado, engravatado e enchapelado, a decorar as paredes das tabancas, ao lado das dos Governadores Melo e Alvim e Vasco Rodrigues, nas suas fardas n.º 1 de Oficiais Superiores da Armada.

O seu primeiro momento revolucionário terá sido a criação com a malta da Granja de Pessubé do MING (Movimento da Independência da Guiné), em 1955, tertúlia ou espécie de partido informal, que sequenciou com o projecto e diligências da fundação de uma associação desportiva nativista, com a ideia-força da pedagogia nacionalista da juventude, exclusiva aos “filhos da Guiné”, não arriscando a infiltração no Sport Bissau e Benfica, clube formal e da maior implantação (ele fazia parte dos seus corpos sociais), então tendencial ao poder colonial.
A polícia (PSP) pusera o Governador Mello Alvim ao corrente do seu activismo, nas suas viagens pelo interior seguia-lhe a peugada subversiva, admoestou-o pelo telefone como “mau-mau” guineense, indeferiu-lhe o requerimento, retirou-lhe o seu apoio, despediu-o da Estação Agrária de Pessubé, considerou-o “persona non grata”, cancelou-lhe a residência permanente - mas atendeu-lhe e autorizou-lhe a visita anual à mãe, a permanência de 8 dias em Bissau, e, no tempo de espera para emigrar com a família para Angola não o sujeitou a qualquer coacção.

Iva Pinhel Évora, mãe de Amílcar Cabral
Foto editada

Amílcar Cabral e Maria Helena Rodrigues, sua esposa
Foto editada
Com a devida vénia a Expresso

Com a escalada do seu activismo independentista, Amílcar Cabral “chamou” a PIDE para Bissau, e, se a sorte não o tivesse protegido com a demora na sua instalação (em finais de 1958), a minha (nossa) história de combatentes e a história da Guiné-Bissau talvez fossem diferentes. Homem determinado e incapaz de arrepiar caminho, ele não deixou de registar para a posteridade a adoração pela mãe e a gratidão ao Governador Melo e Alvim.
Em 1959, o casal deixou Angola, ele despediu-se do emprego na Diamang, a Maria Helena de professora do liceu de Luanda, vieram passar os 8 dias a Bissau, o ambiente da cidade era o rescaldo do famigerado “massacre do Pidjiquiti” ou a morte de 16 marinheiros e estivadores das embarcações de cabotagem da Casa Gouveia, uma crise social, instigada por agitadores dos partidos na clandestinidade MLG e PAI (o seu irmão Luís Cabral era o técnico de contas da Casa Gouveia e militava nos dois, que é registado como advento da guerra independentista.
Ambos fundados em Bissau, o partido MLG (Movimento da Libertação da Guiné) era liderado pelo manjaco François Mendy, ex-combatente da Guerra da Argélia e ex-sargento do exército francês, e o PAI (Partido Africano da Independência), fundado em 19 de Setembro de 1956 e presidido por Rafael Barbosa, pedreiro natural de Safim, como ele filho de mãe guineense e de pai cabo-verdiano, militante do Partido Comunista Português, que cooptara os militantes residuais do extinto Partido Socialista da Guiné, também fundado por ele, e do informal MING, de Amílcar Cabral, sob o patrocínio da comunista alentejana Drª Sofia Pombo Guerra, proprietária da Farmácia Lisboa, na Bissau antiga, vizinha de porta com porta do chefe da PIDE.

(Continua)

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OBS:
- Links, negritos e itálicos da responsabilidade do editor
- Pesquisa das fotos, edição e legendagem da respondabilidade do editor
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21147: (In)citações (164): Há 50 anos: Quando a Igreja Católica Apostólica Portuguesa abençoava Guerra do Ultramar e a Igreja Católica Apostólica Romana abençoou a Guerra Colonial (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Não se pode estudar o período da luta armada na Guiné sem consultar um conjunto de obras-chave, onde se incluem nomes como Julião Soares Sousa, Leopoldo Amado, António Duarte Silva, entre outros. Em língua portuguesa, não há livro mais rigoroso que esta biografia que Julião Soares Sousa escreveu sobre Cabral, investigação exaustiva, com arquivos, entrevistas, sempre no afã de procurar e encontrar provas novas. Livro bastante incómodo para os hagiógrafos e beatos do líder fundador. Fica-se com o retrato de um jovem educado em ambiente cabo-verdiano, numa cultura tipicamente ocidental, mas já evado de preocupações sociais, que reformula o seu pensamento no ambiente de Lisboa, que volta à Guiné e percorre o território, ali descobre a razão porque vai lutar e fundar, seguramente em 1959, um partido revolucionário com uma base ideológica singular: uma vanguarda pequeno-burguesa local à frente de um proletariado agrícola, coisa impensável para o marxismo leninismo canónico.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa: 
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (1)

Beja Santos

Julião Soares Sousa
“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”,[1] edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

É por isso um documento incontornável, atendendo que o biografado não só fundou e liderou o PAIGC como, pelo pensamento e ação, está consagrado como um dos políticos africanos de renome internacional. Julião Soares Sousa recorda que nas últimas décadas a investigação sobre esta grande figura do século XX tem aberto novas perspetivas de análise, graças à abertura de arquivos que estavam inacessíveis. O investigador sentiu-se estimulado a fazer uma nova leitura cruzada sobre o assassinato de Cabral, é este o capítulo mais alargado nesta edição revista.

A abordagem da estrutura da biografia não conheceu mudanças de tomo. No primeiro capítulo da parte primeira (da formação do homem à conquista da liderança do movimento de libertação da Guiné e de Cabo Verde) temos a infância de Cabral passada na Guiné, onde nasceu, em 1924, a sua deslocação para Cabo Verde, em 1932, fará aqui o liceu, conhecerá o desvelo sem tréguas da mãe, Iva Pinhel Évora, veremos nascer o seu estro poético e seu olhar em torno da condição cabo-verdiana. Recebe uma bolsa e irá estudar para Lisboa, o mundo está em estrepitosa mudança, emerge um radicalismo ideológico, nos meios que vai frequentar discute-se o nacionalismo africano, põe-se em causa o colonialismo. Segue-se o capítulo segundo, Cabral faz a sua aprendizagem política em Lisboa, torna-se engenheiro e parte para a Guiné, vai trabalhar na granja de Pessubé e acompanhado pela mulher procederá ao recenseamento agrícola, operação que o fará conhecer todo o território do futuro país. Em 1955, abandona a Guiné e volta a Lisboa. Vejamos o que demais relevante trata Julião Soares Sousa no seu estudo incontornável.

Quando Cabral nasce Bafatá, Juvenal Cabral é professor em Geba e depois Bafatá. Iva seria uma pequena proprietária, em Cabo Verde vê-la-emos no desempenho de trabalhos muito humildes, será ela a pagar os estudos do filho. Em Cabo Verde, Juvenal Cabral contrairá nova relação, ao contrário do que sugere certa hagiografia, a influência de Juvenal Cabral não foi tão relevante como a apregoada, a gratidão pela mãe aparece inequivocamente testemunhada na página do seu livro de curso: “Para ti mãe Iva,/Eu deixo uma parcela/Do meu livro de curso…/Para ti, que foste a estrela/Da minha infância agreste./A tua alma viva/E o teu amor profundo,/Aceita este tributo,/Que tudo quanto eu fora,/Será do teu amor,/-Tua carne, Mãe, teu fruto!”.

Julião Soares Sousa enquadra a formação do jovem estudante, Cabral denota aí as bases da sua cultura portuguesa, que jamais renegará. Em Lisboa conhecerá novo ambiente. Fica atento ao MUD – Movimento de Unidade Democrática, contacta regularmente com a Esquerda portuguesa e vai firmando a opinião de que a luta antifascista não está verdadeiramente motivada para a luta anticolonial. O autor aborda as influências literárias, ideológicas e culturais, o pendor marxista começa a germinar. Afluem a Portugal cada vez mais africanos, as discussões sobre a independência das colónias africanas ganha expressão. O autor desvela a vida do Centro de Estudos Africanos, a par das atividades da Casa dos Estudantes do Império.

Em 1950, Cabral terminou o seu curso, dois anos depois defendeu a sua tese de tirocínio, é reconhecido como especialista em erosão de solos. Há anos que se sente atraído por África, apresenta candidaturas, é aceite para um lugar disponível de Engenheiro Agrónomo na Repartição Técnica dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné, desembarca a 21 de Setembro de 1952, a mulher junta-se-lhe em Novembro. Os grupos oposicionistas de Bissau vivem dentro dos princípios da luta antifascista, Cabral está motivado pela luta nacionalista, deixa o antifascismo para os oposicionistas portugueses. Torna-se um comunicador brilhante ao nível da sua profissão, tenta criar o Clube Desportivo em Bissau, a Administração não dá seguimento. Aspeto curioso sublinhado pelo autor, a pretensão baseava-se num clube exclusivamente para guineenses, põe-se a dúvida se nesta fase Cabral ainda não tinha urdido a tese da unidade Guiné-Cabo Verde. O autor esclarece outras coisas, como a alegada fundação do MING por Cabral ou a ele se tenha associado. Põe-se como hipótese que tanto o Partido Socialista da Guiné como o MING tiveram vidas efémeras. Em Março de 1955, Cabral e a mulher regressam a Portugal, vêm doentes, certos hagiógrafos têm escrito que foram expulsos ou perseguidos, não há provas, no entanto a ficha de Cabral na PIDE começa a crescer.

A vida profissional de Cabral vai aproximá-lo de Angola, da convergência com outras lutas anticoloniais, encontra-se em Paris com dirigentes angolanos, são-tomenses e moçambicanos. Sobre a fundação do PAI (Partido Africano pela Independência da Guiné e de Cabo Verde) em 1956, o autor põe sérias reservas quanto à natureza do partido criado e não vê hipóteses de Cabral lá ter estado presente. Não há uma só menção na correspondência trocada entre Cabral e outros camaradas revolucionários da fundação do PAI em 1956. Recorde-se que o mesmo se passa com a data da fundação do MPLA, sobre a qual há manifesta controvérsia.

Em Setembro de 1959, Cabral está comprovadamente em Bissau, inteirou-se da agitação política existente e do massacre do Pidjiquiti, contactando com a única organização política existente em Bissau, o Movimento de Libertação para a Guiné, onde pontifica Rafael Barbosa. Acorda-se na necessidade de uma estratégica, Cabral e Rafael Barbosa são as duas figuras chave para o impulso dinâmico do partido. Criou-se uma organização clandestina, definiram-se propósitos. Ainda hoje há muitas nebulosas sobre quem são os fundadores e alegados fundadores do PAI, futuro PAIGC. Já no exílio, e sobretudo a partir de Conacri, onde funciona o seu escritório e a escola piloto, Cabral vai contactar outras organizações nacionalistas da Guiné e Cabo Verde. A luta vai arrancar, a sua liderança, gradualmente, ir-se-á impondo.

(Continua)
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 22 DE NOVEMBRO DE 2016 > Guiné 63/74 - P16746: Agenda cultural (521): "Amílcar Cabral (1924-1973): vida e morte de um revolucionário africano", nova edição, revista, corrigida e aumentada (622 pp.): convite da embaixada guineense para o lançamento do livro do prof doutor Julião Soares Sousa, na Universidade Lusófona, Lisboa, sábado, dia 26, às 15h00

Último poste da série de 4 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20939: Notas de leitura (1282): “Corações Irritáveis”, por João Paulo Guerra, Clube de Autor, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20298: Notas de leitura (1232): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (30) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Junho de 2019:

Queridos amigos,
Temos o BCAV 490 em Farim, o bardo dá-nos um retrato com alguma pompa e circunstância. Remete-nos a imaginação para um outro nível de preocupações, que Guiné é aquela de que os historiadores tão pouco falam, dito com brusquidão parece que aquele conflito teve um ator de alto coturno chamado António de Spínola, o que aconteceu antes é traçado como história melancólica ou tempo perdido. O triste disto tudo é que no momento presente escreve-se sobre a guerra da Guiné e continua-se a não dar o corpo ao manifesto, isto é, ninguém quer fazer frente às toneladas de papel em arquivo relacionadas com a documentação que saiu de Bissau para os Ministérios do Ultramar e da Defesa. E o que se continua a escrever é baldear o mais do mesmo, a bibliografia conhecida tratada à luz de um olhar pretensamente inovador, ora abóbora!

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (30)

Beja Santos

“A Companhia do Comando
faz um grande servição.
Alferes Pires, nas Transmissões,
orienta todo o Batalhão.

E formada por exploradores
e por muitos electricistas,
temos alguns especialistas,
uns, deles, os estofadores.
Também temos os sapadores
que andam sempre actuando.
As Transmissões vão falando
para qualquer local
e não há outra que igual
a Companhia do Comando.

Temos muito escriturário,
fazendo participações;
nas armas e nas munições
o Alfredo e o Mário.
O Furriel Januário
às armas faz inspecção.
Temos o Lopes e o Ganhão,
Grifo, Caramelo, Ferreira,
Pécurto, Dimas e Oliveira,
fazem grande servição.

Fazendo serviço num pelotão
p’ra Guidage Filipe abalou
e seguidamente alinhou.
Pombo noutra ocasião
pois nesta povoação
comia-se muitas rações
travavam-se comunicações
com o Jorge e o Matias
e orientando as companhias
Alferes Pires nas Transmissões.

Nuno e Horácio, cifradores,
Centro de mensagens, o Armando,
Sargento Pedro vão trabalhando,
com os seus rádio-montadores,
os estafetas transportadores
pertencem à mesma secção.
Temos o nosso capitão:
também leva tudo avante.
E o nosso Comandante,
orienta todo o Batalhão.”

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O bardo apresenta-nos o Comando em Farim, e ficamos a pensar qual o delineamento estratégico que lhe está subjacente. A história da guerra da Guiné é uma nebulosa neste período. Quem sobre ela escreve, do Brigadeiro Louro de Sousa ao General Arnaldo Schulz foge como gato das brasas, vai tartamudeando boletins das Forças Armadas, como se não houvesse diretivas, orientações, decisões tomadas sob ordenamentos de população, ação psicossocial, enfim, os investigadores ainda não meteram as mãos na massa nos arquivos dos Ministérios da Defesa Nacional e do Ultramar, seguramente que aqueles jornais oficiais informavam os seus superiores de como pretendiam travar a guerrilha e dar esperança às populações que confiavam na bandeira portuguesa, neste tumultuoso período em que se separavam as águas e o PAIGC procurava afirmar-se designadamente na região Sul e no Morés e redondezas, sem prejuízo de abrir corredores do Senegal e da Guiné Conacri para as suas bases. O que se publicou sobre este período é escasso e não está sistematizado.

Procurando saber como Schulz procurou contra-atacar na ação psicológica, encontrou-se na Revista Africana, N.º 10 de Março de 1992, do Centro de Estudos Africanos da Universidade Portucalense, um elucidativo artigo de José Abílio Lomba Martins, esteve à frente de tais serviços. Começa por nos dizer que em 1965, o Gabinete Militar do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné, por determinação de Schulz, decidiu elaborar uma diretiva de ação psicológica adequada ao quadro de subversão em curso, foi designada uma equipa de oficiais, elaborou-se um estudo sobre o meio humano da Guiné, uma diretiva e um plano de ação psicológica, um serviço de radiodifusão e imprensa e propuseram-se diligências quanto ao envio de ordens às unidades territoriais e especiais e recomendações às autoridades civis. Fez-se o estudo do meio humano, o posicionamento das etnias, e em função deste posicionamento elaborou-se um plano de ação psicológica com motivações, slogans e materiais a produzir. Criaram-se programas radiofónicos diários de horário intenso, o Programa das Forças Armadas emitia em crioulo, francês, fula, mandinga, balanta e, eventualmente, noutras línguas. Havia igualmente a emissão de comunicados de informação pública, visitantes, jornalistas e cineastas eram convidados a visitar a Guiné. Folhetos e cartazes foram difundidos profusamente, do tipo “Gente do mato apresenta-se às autoridades, só vive no mato gente enganada, a gente que pensa direito vive na Tabanca, no mato há fome, doença e morte, na Tabanca há alegria, há comida e há visita de médico, vem ter com a tropa”.

Lomba Martins avança informações de grande importância:
“A rarefacção de funcionários civis no Interior era compensada pela existência de uma quantidade apreciável de militares com especialidades como medicina, enfermagem, mecânica, serviço religioso e de oficiais e sargentos que ministravam cuidados médicos, educação escolar e davam apoio social e económico às populações mais carenciadas.
Quer o Ministério do Ultramar quer o Ministério da Defesa concediam à Província meios financeiros importantes, equipamentos, navios e materiais que eram utilizados no desenvolvimento agrícola, no apoio sanitário, na acção social e nos transportes aéreos, rodoviários e fluviais. As estradas eram construídas por Companhias de Engenharia Militar ou por empresas de construção civil, com o apoio e segurança imediata de Companhias de quadrícula”.

Diz o autor que as milícias normais e especiais atingiram 29 Companhias com a missão de colaborar na defesa e proteção das populações e que desde o início os portugueses tiveram sempre controlo sobre a ilha de Bissau, Mansoa e Teixeira Pinto, sobre Bolama e o arquipélago dos Bijagós, sobre o Gabu e Bafatá, o que correspondia, de grosso modo, aos “chãos” dos Papéis, Manjacos, Bijagós, Mandingas e Fulas. E esclarece, ainda: “Os portugueses reforçaram os seus aquartelamentos e estabeleceram uma linha importante de tabancas em autodefesa na região de Bafatá e Gabu”. Dá-nos elementos detalhados sobre o que foi o desenvolvimento económico neste período, refere as prospeções petrolíferas e as prioridades nas ações de fomento desde a metalomecânica, passando pelos curtumes e congelação até aos têxteis e tabaco, entre outros. É igualmente minucioso sobre os serviços de Saúde e o combate às doenças tropicais.

Não se pode igualmente subestimar o que apareceu escrito em obras de propaganda, e aqui se destaca um livro do jornalista e escritor Amândio César intitulado “Em ‘Chão Papel’ na terra da Guiné”, publicado pela Agência-Geral do Ultramar em 1967. Em 1965, Amândio César fora à Guiné e fizera uma reportagem sobre o estado da guerra, mais adiante falaremos dessa obra. Neste segundo livro, o escritor espraia-se pelas realizações do primeiro ano da governação de Schulz: feira do livro em Bissau, a atividade escolar da Guiné, com realce para o Liceu Honório Pereira Barreto, o trabalho do Movimento Nacional Feminino na Guiné, refere o ainda despique entre o PAIGC e a FLING, mas o desenvolvimento de Bissau é onde ele é mais entusiasmante, alude as alterações que a cidade sofreu de um ano para o outro, o alargamento do mercado de Bandim, o fornecimento de eletricidade aos bairros “Chão de Papel” e “Alto Crim”, a valorização do campo de jogos desportivos Estádio Sarmento Rodrigues, estava novo em folha o Bairro da Ajuda que iria albergar, até ao fim do ano de 1966, 3 mil pessoas.

Amândio César
Confiava-se, ao tempo, ainda ser possível a ressurreição de Bolama, Schulz terá animado a criação de uma cooperativa de pesca e uma Escola de Magistério, destinada a criar professores de postos escolares. Bolama tinha um Centro de Instrução Militar onde se formavam as tropas provinciais, o autor diz mesmo que Bolama estava destinada a ser o centro de repouso das Forças Armadas, dadas as qualidades da ilha em clima, boa praia e infraestruturas e caráter turístico. Vai desvelando outras iniciativas sob a égide de Arnado Schulz: a nova mesquita de Bissau, a luta contra o analfabetismo, as preocupações com o desenvolvimento rural e daí as suas longas conversas na Granja do Pessubé sobre as potencialidades das culturas, do gado, da borracha; refere o artesanato, as obras do Porto de Bissau, a pavimentação da estrada Mansoa – Mansabá, a construção da Ponte-Cais de Bambadinca, a melhoria da rede de comunicações internas e externas, conclui a sua extensa digressão esperançado de que aquele desenvolvimento era a melhor forma de descredibilizar Amílcar Cabral e o seu sonho nacionalista.
Proximamente voltaremos a Amândio César e ao seu modo de ver a guerra naqueles primeiros anos em que se demarcaram os campos, em que cada um dos contendores parecia ter condições de esmagar rapidamente o outro.

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 28 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)