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sexta-feira, 20 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13314: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (12): O crioulo (e as suas virtualidades)


Guiné > Zona Leste > Setor L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72) > s/d> O Alf Mil Capelão Arsénio Puim, expulso do Batalhão e do CTIG em Maio de 1971.


Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados


1. Mensagem do nosso camarada Arsénio Puim, com data de 19 do corrente

Assunto: O crioulo da Guiné

Luís Graça

Envio um pequeno trabalho com algumas considerações pessoais sobre o crioulo da Guiné, um assunto que me cativou na minha estadia neste território, para publicação no blogue, se achares que tem interesse.

Um abraço, Arsénio Puim



2- Memórias de um capelão > O Crioulo da Guiné

Um aspecto da cultura guineense que logo me chamou a atenção e despertou muito interesse durante a minha estadia na Guiné, na zona de Bambadinca, foi, precisamente, o crioulo falado pelos nativos deste território.

O crioulo, ou kriol, na língua nativa, é apenas um dos sistemas linguísticos da Guiné, pois que as populações autóctones falam, em primeira mão, a língua gentílica da sua etnia e, com alguma frequência, o português, de sabor acrioulado, simplificado nas suas regras gramaticais e com um sotaque mais afim do brasileiro. Isto leva-me a dizer que o povo da Guiné, falando habitualmente três línguas e, às vezes, conhecendo ainda alguma das línguas de outras etnias, é um povo poliglota.

O crioulo nasceu da confluência do português com as línguas indígenas e a idiossincrasia dos aborígenes. É, portanto, uma herança do país colonizador, moldada pelo povo indígena à sua medida e ao seu sabor.

Os nativos consideram-no a língua dos «criston» (os cristãos), um termo que na Guiné tem uma referência específica à etnia papel, a qual se concentra sobretudo em Bissau, e aos caboverdeanos, muito abundantes neste território.

Mas nos tempos actuais quase todas as etnias falam o crioulo, nomeadamente os papeis, os fulas, os mandingas, e os caboverdeanos, ainda que com algumas pequenas variações e peculiaridades.

Referiu-me o sr. Jamil, conhecido comerciante libanês que residia então no Xitole, que na Guiné há o crioulo fula e o crioulo papel, além do crioulo de Cabo Verde. Esta análise corresponde aos dois dialectos que alguns investigadores consideram integrar o crioulo guineense: o dialecto de Bissau / Bolama, a que se pode associar o crioulo de Cabo Verde, e o dialecto de Bafatá, que será o referido crioulo dos fulas. Na opinião dos investigadores, há ainda o dialecto crioulo do Cacheu, território situado a norte, com influência do francês, pela proximidade do Senegal.

Entre os vários fenómenos linguísticos que determinaram o processo de formação e evolução do crioulo guineense em relação à língua mãe, e o caracterizam sobremaneira, julgo poder destacar dois que lhe estão especialmente presentes: o primeiro é a eufemização sonântica, de acordo com o profundo sentido musical africano, o que lhe confere uma sonoridade e um ritmo próprios.  Na verdade, é agradável ouvir, por exemplo: «djúbi si na chúbi» – vai ver se está a chover; «cá bu tchora, fidjo» – não chores, filho; «ami cá sibi»– eu não sei.

O outro fenómeno é a descomplexificação linguística, nomeadamente pela eliminação das clássicas e complicadas regras gramaticais, tanto morfológicas como sintáticas, da língua portuguesa. No crioulo não há artigos, nem variações de género e número dos nomes, e os verbos só tem uma forma gramatical para todas as pessoas, tempos e modos, correspondente à 3.ª pessoa do singular do presente do indicativo: ami ná bai, bu ná bai, i ná bai – eu vou, tu vais, ele vai. (O na é a partícula usada na forma afirmativa, enquanto a negativa se faz com a partícula , como vimos nas últimas duas frases crioulas acima. É toda uma simplificação que roça mesmo a ingenuidade linguística e lhe dá um engraçado sabor infantil, cheio de expressividade.

E para essa ingenuidade e graça da linguagem crioula, concorre ainda a genuinidade e primitivismo do seu léxico e da construção fraseológica: corpo sta bom? (como está?); ermon di amanhã – depois de amanhã; mussa piquenino – doi um pouco; e sobretudo o pluriuso da pitoresca palavra manga, com o significado de muito, grande quantidade, nos mais diversos casos – manga di patacão, manga di giro, manga di mama firme, manga di sabe (saber muito), manga di mofineza na cabeça (ser atrasado mental), manga di cabeça grande (estar embriagado), manga di cú piquinino (ter medo) e até manga di sàtice ( grande chatice).

A Guiné, e a generalidade dos países africanos, adoptaram, para uso oficial, a língua do país colonizador, mas também é certo que essas, muitas vezes, não são as línguas mais faladas pelo povo e que, por outro lado, se tem vindo a desenvolver, em algumas regiões, movimentos linguísticos e literários de tendência indígena.

Amílcar Cabral, com a sua visão larga e profundo conhecimento da cultura indígena, já estatuíra no seu programa para a Guiné a adopção do crioulo, desenvolvido e com codificação escrita , como língua comum do povo do território.

A sua morte criminosa, e desastrosa para a independência da Guiné e para a causa africana, parece, no entanto, não ter enterrado este projecto cultural, já que o crioulo faz parte do currículo da escola primária deste país, juntamente com o português. E o crioulo continua a ser a língua corrente e generalizada da Guiné: na vida do dia a dia, nas escolas, nas Igrejas e até na política interna.

Por tudo isto, não me custa admitir que o kriol, com todas as suas virtualidades, constitua no futuro - e de alguma maneira já hoje - a grande língua do país da Guiné Bissau, ao lado do português, para uso oficial.

Arsénio Puim

2. Comentário de L.G.:

Há mais de um ano que eu não tinha notícias do nosso amigo e camarada Puim. O último mail dele (27/3/2013) dizia o seguinte (transcrevo um excerto): 

"Amigo Lus Graça: Os meus votos de Boa Páscoa para ti e tua família. Informo o meu amigo que nos últimos tempos tenho tido alguns problemas de saúde (...) e até estive há poucos meses em Lisboa fazendo tratamento (...).. Correu bem, (...) e estou a sentir-me bastante bem. Dizem que o barro de Santa Maria, que é a minha ilha, é rijo. Confio que sim. Um abraço - Arsénio Puim".

A prova de que o barro da ilha de Santa Maria é bom, aqui está hoje. Temos Puim, e a garantia de que as memórias do nosso alferes capelão vão continuar a chegar e ser publcadas no nosso blogue... Bravo!... Um xicoração fraterno! Luís

_____________

Nota do editor:

Vd, postes anteriores da série > 

14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4521: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (1): No RAP 2, V.N. Gaia, onde fez mais de 60 funerais

(...) Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.

É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja. (...)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4666: Memorias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (2): De Viana do Castelo a Bissau

(...) No dia 2 de Março de 1970, o BART 2917, em que me integrava como alferes-capelão, já deixara a Pesada [, o RASP 2,] em Gaia, e encontrava-se na linda e pequena cidade de Viana do Castelo, para fazer o IAO.

Foram dois meses e meio de intenso treino operacional, incluindo um acampamento, em princípios de Março, na serra, para as bandas de Santa Luzia, em que também participei. Um ambiente duro, onde faltava tudo o que pudesse saber a conforto. E, sobretudo, que frio, meu Deus, durante a noite! (...)

21 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4989: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71)(3): De Bissau a Bambadinca, a cova do lagarto


(...) Às duas horas da manhã do dia 31 de Maio de 1970 deixámos Bissau, numa LDG, e continuámos a subir o Rio Geba, em geral bastante largo e de margens baixas e arborizadas, pela calada da noite, estranhamente muito fria. Cinco horas de viagem, sem qualquer incidente, até ao Xime, onde ficou já a Companhia 2715.

No dia anterior tinha-se realizado a entrega das armas aos membros do Batalhão. Todos em fila, um por um. Quando chegou a minha vez, recusei receber a G3. Uma questão, simplesmente, de missão específica do capelão e de consentaneidade com as suas funções, enquanto sacerdote ao serviço da Igreja - expliquei.
- Você é testemunha de Jeová? – atalhou um oficial superior que superentendia ao acto.
- Não, sou padre católico – retorqui. (...)


(...) É natural que uma parte importante dos textos publicados por ex-combatentes da Guiné, no histórico Blogue de Luís Graça, incida sobre variadas situações de combate vividas pelos próprios ou pelos companheiros, em ataques, assaltos, emboscadas e demais operações militares dum teatro de guerra. São experiências, frequentemente, de grande dureza, muita tensão e perigosidade, que eu não tive.

Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho. (...)

12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba 

(...) Considero a Guiné uma terra bonita, pela beleza simples da sua paisagem e as suas singularidades muito próprias, pelo seu complexo faunológico, bastante rico e interessante, nomeadamente no domínio das aves, pela sua flora, com variadas espécies arbóreas, onde sobressaem as palmeiras esguias e esbeltas, disseminadas por toda a selva, emprestando-lhe um tom de exotismo tropical. Mas um dos aspectos mais bonitos, para mim, do território da Guiné são os seus rios, com a sua rede extensa de afluentes e pequenos cursos, principalmente na época das chuvas, que deslizam em admiráveis serpenteados entre a selva luxuriante e as bolanhas que alagam e fertilizam.

São disso um exemplo os dois grandes rios que passam na zona interior: o Corubal e o Geba. O primeiro, que nasce na Guiné Conacri e vai desembocar no Geba, a sul do Xime, é navegável até à região do Xitole. A partir daqui, surgem alguns rápidos: primeiro, em Cusselinta – bonita estância onde um longo braço do rio forma uma piscina natural com condições privilegiadas – e, depois, já de proporcões maiores, na pitoreca zona do Saltinho. (...)



(...) Esta foi a minha viagem de eleição no território da Guiné, pela sua originalidade, pela sua distância e pelo seu encanto. O Geba estreito constituiu, de facto, o troço mais palpitante, nomeadamente o Mato Cão – até o nome não sabe bem – onde, desta vez, não estava o nosso alferes Cabral, de Missirá, para ver o barco passar e nos proteger. O trajecto do Geba largo, até ao Xime, eu já o tínha percorrido, em LDG, quando o nosso Batalhão deixou Bissau e veio para Bambadinca, mas era de noite e foi às escuras.

A viagem do «Bubaque», desde as 10 horas às cinco da tarde - não sei se parámos em algum porto intermédio, como o Xime, já não me lembro - correu muito bem, com muita ordem, boa convivência e sem qualquer problema. Foi um espectáculo permanente oferecido aos nossos olhos e que, como em outras ocasiões, me fez pensar e sentir: que pena a guerra!... (...)

2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz

(...) Mancaman vivia na tabanca do Xime, contígua ao quartel onde estava estacionada a CART 2715 (**). De trinta e poucos anos, magro e um pouco alto, filho do chefe da tabanca - Mancaman (pai). Era mandinga, do que se orgulhava, por reconhecer a supremacia histórica e cultural desta etnia no quadro guineense e africano.

Não gostava dos Fulas e apreciava o espírito laborioso e a coragem dos Balantas. Falava, com muita graça e expressividade, o português, além do crioulo, o mandinga e o fula. Inteligente, muito humano e sabedor no que toca à guerra da Guiné, nas suas duas faces. Era-nos dedicado, correcto, amigo. E pertencia mesmo às milicias populares, armadas pelo exército português. (...)

(...) Belmira é uma guineense mandinga que vivia em Bambadinca. De vinte e poucos anos, inteligente, alegre, era lavadeira no Quartel.

Vive só e pobre, com o seu filho, de cor mestiça, cujo pai é um soldado português pertencente a uma unidade antiga de Bambadinca. Por causa disso, tem problemas na tabanca. As pessoas olham mal as mulheres que têm filhos de brancos e ostracizam-nas. (...)

20 de abril de  2010 > Guiné 63/74 - P6193: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (9): Os padres missionários italianos de Bafatá

(...) A Igreja na Guiné, em princípios da década de 70, tinha como autoridade eclesiástica máxima o Perfeito Apostólico (não era Bispo, nem a Guiné era então Diocese, ao contrário do que acontece hoje), com sede em Bissau e dependente directamente do Papa, em Roma.

Também em Bissau, e arredores, viviam os Padres Franciscanos, exercendo ao mesmo tempo o professorado no Liceu. Mais para o interior do território, haviam-se fixado os Padres Missionários Italianos, que tinham a sede em Bafatá e, se não erro, uma pequena extensão em Catió.

Para além destes, havia os capelães militares, dependentes do Vicariato Castrense, em Lisboa, em comissão de serviço temporária, por força da guerra existente, dispersos e isolados pelos quartéis do mato, onde às vezes existiam também minúsculos núcleos de cristãos nativos.

2 de maio 2010 > Guiné 63/74 - P6292: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/ Mai 71) (10): Samba Silate

(...) Um dos lugares tristemente célebres da guerra da Guiné, que eu tive oportunidade de visitar nos princípios de 1971, chama-seSamba Silate. Fica a poucos quilómetros de Amedalai, para o lado do Geba, entre Bambadinca e o Xime. Na continuação da tabanca estende-se, até ao rio, uma grande bolanha, tida como das melhores da Guiné. Para lá do Geba, fica Mato Cão e Madina.

Dantes, Samba Silate foi uma grande tabanca balanta e um importante centro de produção de arroz. Mas na altura em que lá estive, era uma terra desabitada e completamente inculta. Dizia-se que qualquer tentativa dos Fulas para o seu aproveitamento seria gorada pelos Balantas.(...)

14 de dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9195: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69 / Mai 71) (11): O nosso Natal de 1970, em Bambadinca 

(...) De todos os Natais que, na minha já longa vida, passei, em localidades e situações muito variadas, não foram menos marcantes e significativos os dois Natais que vivi na Tropa, como alferes capelão.

O primeiro, a que já me referi num texto que escrevi neste blogue há uns três anos, foi vivido no Regimento de Artilharia Pesada 2, na Serra do Pilar, em Gaia. (...)


sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Guiné 63/74 - P7458: Blogpoesia (97): Roteiro poético-sentimental para o viajante do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, com um Oscar Bravo ao camarigo Joaquim Mexia Alves (Luís Graça)







Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 3 de Março de 2008 > O antigo quartel das NT (CCS/BCAÇ 2852, 1968/70; CCAÇ 12, 1969/71; CCS/BART 2917, 1970/72...) e a antiga bolanha > No regresso a Bissau, depois de uma visita ao sul, à região do Cantanhez, no ãmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008), eu e o Nuno Rubim, fizemos um pequeno desvio para visitar Bambadinca...

As instalações de sargentos (à esquerda) e oficiais (à direita) eram agora ocupadas pelo exército guineense... Chegámos a uma hora inconveniente, a da sesta... Trocámos cumprimentos com os oficiais presentes (incluindo o comandante, à civil,  de camisola interior, bem como um coronel inspector da artilharia que estava ali, de máquina fotográfica e óculos escuros, em serviço, vindo de Bissau...). Fotos que falam por si... Estupidamente, não quis ver o meu antigo quarto (*)...


Fotos: © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados


1. Texto de L.G., a partir do poste de 13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2633: Memórias dos lugares (4): Mato Cão (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52, 1972/73)


Com um agradecimento, muito emocionado, ao Joaquim pela ternura do roteiro que ele fez para mim, em 27 de Fevereiro de 2008, antes de eu partir para a Guiné, e de que só no regresso, infelizmente, tomei conhecimento...  LG


(i) Recado para uma ida à Guiné

por Joaquim Mexia Alves


Vai, Luís,
Para essa terra quente
Que viveu dor e sofrimento
Para se fazer País.
Vai e leva o meu abraço
Porque num dia,
Num momento,
Também aí fui feliz.


Passa por Mansoa
E sobe para Mansabá
E ao carreiro da morte
Pára e contempla
Das árvores do Morés
O seu porte.
Deixa uma lágrima
E um voto
Por todos os que aí ficaram.
Depois desce a Jugudul
E segue a estrada nova
Que tanto sacrifício me deu.
Passa por Portogole
E mais à frente um bocado
Sobe ao Mato Cão,
E fica ali sentado
Com uma cerveja na mão
A assistir ao Pôr-do-Sol.


Agora que vês Bambadinca,
Depois de parares um pouco,
Segue em frente
Pela estrada do meu suor
A caminho do Mansambo,
Que fica à tua direita.


Na Ponte dos Fulas
Vai a pé,
Ali para a tua esquerda,
Sim, dentro da mata,
Vá, anda,
Porque vais encontrar,
Se agora não me engano,
Uma mata de caju
Onde o macaco cão
Faz barulho que ensurdece.


Volta à estrada
Para o Xitole
E, quando lá chegares,
Senta-te naquela varanda,
Mesmo que destruída,
(reconheci-a entre mil),
E bebe por mim um uísque
Em memória do Jamil.


Segue para o Saltinho,
Banha-te naquelas águas
E não pares,
Arranja um barco
E sobe o Corubal.


Quando chegares ao Xime,
Desembarca na lama preta
E sobe por um bocado,
Apenas para ver a vista.
Regressa ao Geba.
Lá está a Nau Catrineta
Que tem muito que contar,
Embarca agora nela,
Deixa a maré te levar,
Porque assim à noite
Estarás em Bissau, a varar.


Já é tarde,
Estás cansado,
No físico, no coração,
Então senta-te no Pelicano,
E come…
Um ninho de camarão.


Vai, Luís,
Leva-me contigo,
Mata feridas, mata mágoas,
Mata saudades até,
E abraça por mim
A Guiné…

Joaquim Mexia Alves


Monte Real, 27 de Fevereiro de 2008



(ii)  Roteiro poético-sentimental

por Luís Graça


Passei por alguns dos sítios 
que tu me sugeriste,
a alta velocidade,
com enormes ganas de parar...
Quis controlar as minhas emoções,
quando a vontade era de chorar;
segui em frente,
mesmo querendo ficar;
não tirei fotografias,
com muita raiva minha,
por que me estava a armar em forte...
Tinha apenas em mente o sul,
nunca o leste,
nunca o norte...
Queria apenas mostrar a mim mesmo
que estava a passar o teste 
da catarse...
Que eu, de facto, 
já tinha esquecido a Guiné
e o seu cheiro a morte...

Não esqueci, claro está...
E a Guiné, para mim, era apenas o Corubal,
a perigosa margem direita do Corubal,
o Geba,
a Ponta Varela,
a maldita Ponta do Inglês,
o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole,
a tristeza
das  tabancas fulas em autodefesa,
o cerco ao regulado de Badora,
o estrangulamento do regulado Corubal,
o deserto do  regulado do Cuor...
A Guiné era o Geba,
o Xaianga,
o Geba Estreito,
Finete,
Mato Cão,
Missirá,
a Missirá do Tigre,
Santa Helena,
Mero,
Fá Mandinga,
a Fá do Alfero Cabral...


Ah!, e os Nhabijões,
de triste memória.
Era também Contuboel,
a do Renato Monteiro,
o homem da piroga.
Era também Bafatá...
Os tocadores de kora
e os ourives
e os ferreiros,
mandingas.
Ah!, o Bataclã,
e a sacana 
da amorosa Helena de Bafatá,
mais o bife com ovo a cavalo 
na Transmontana.
Era isto e pouco mais.



Joaquim, 
desta vez fui a Mansoa,
a Mansoa da tua CCAÇ 15,
onde nunca tinha ido...
À procura de bianda para o almoço,
imagina!...
Mas não segui para Mansabá
e muito menos para o carreiro
da morte no Morés...
Acabei por ir almoçar
ao restaurante 
do Hotel Rural de Uaque...


Tive depois um convite,
do camarigo Zé Teixeira
e do seu grupo de beduínos,
comilões,
para ir comer leitão a Jugudul…
Leitão em Jugudul, imagina!,
como antigamente,
o leitão dos balantas de Nhabijões,
atropelado pelo burrinho da tropa
(no relatório, alguém escrevia:
animal subversivo e suicidário)


Mas outros deveres,
os trabalhos do Simpósio Internacional de Guileje,
me retiveram em Bissau, 
num hotel todo chique, 
de muitas estrelas
num céu esburacado de papel de cenário...

Passei pelo teu/nosso Mato Cão,
pelos cerrados palmeirais do Mato Cão,
como cão 
em vinha vindimada,
vi o cotovelo do Geba Estreito,
onde nos emboscávamos,
para montar segurança às embarcações,
admirei a extensa bolanha de Finete,
passei por Bambadinca,
vi vacas,  magricelas,  a pastar
na imensão da sua bolanha,
triste bolanha outrora verdejante,
parei em Bambadinca no regresso,
revisitei as ruínas do meu quartel,
não ousei sequer entrar no meu antigo quarto,
não tive estômago 
ou sangue
ou fel
ou coragem 
ou sequer desejo...


Tomei a seguir  a estrada, 
alcatroada
(que não havia no nosso tempo)
de Mansambo - Xitole - Saltinho...
Não parei em Mansambo, 
por falta de dístico,
nem no teu Xitole.
Apenas no Saltinho, 
porque estava no programa turístico...
Mas lembrei-te de ti,
que me encomendaste
este roteiro poético-sentimental,
pedestre,
p'ra fazer ao pé coxinho...
Lembrei-me de ti 
e do David, o  Guimarães,
do Torcato, o Mendonça
do CMS,
o nosso Carlos Marques dos Santos,
do Mário, do Beja, do Tigre,
do Jorge,
do Bilocas, 
do Humberto, o Reis,
do Tony, o  Levezinho,
do cripto GG, 
o nosso arcanjo São Gabriel,
do Fernando Marques,
do Jaquim Fernandes,
do Tê Roda,
e de tantos outros,
sem esquecer o puto Umaré Baldé,
que a morte já levou, 
em Portugal,
nem muito menos o portuguesíssimo José Carlos,
de seu apelido Suleimane Baldé,
1º cabo, de 1ª classe,
um coração de ouro,
um homem doce,
enfim, todos os camarigos 
da minha CCAÇ 12,
e de outras unidades com quem convivi,
em Bambadinca,
e arredores,
entre Julho de 1969 
e Março de 1971...


Desculpa-me,
mas não bebi um uísque,
por ti e por mim,
à memória do Jamil.
Só bebi um uisquinho no avião 
de regresso a Lisboa,
que as bactérias e os vírus na Guiné-Bissau
é quem mais ordenam...
E eu que gostava tanto, como tu,
do nosso uísquinho,
(coisa boa, não é ?!),
com uma ou duas pedras de gelo 
e água de Perrier.


Não subi o Corubal, confesso,
mas fui a Cussilinta,
ver os rápidos,
a Cussilinta onde nunca tinha ido
nem poderia,
e foi com contida emoção
que revi os palmeirais
que bordejam o rio,
e o que resta da floresta-galeria...


Não, também não passei
pelo Xime,
nem pela Ponte Coli,
muito menos pela triste Ponte do Udunduma,
porque não é esse agora o caminho 
de quem agora vem de Bissau,
e estrada só há uma.
Não tomei o velho barco, 
ronceiro,
da outrora soberana e imperial Casa Gouveia
nem me sentei na esplanada do Pelicano,
como sugeria o teu roteiro.
E das ostras, só provei a sopa, 
uma colher,
na casa do Pepito,
no bairro do Quelélé...
Agora, vais a Quinhamel para comer ostras,
que a cólera é endémica na capital da Guiné!...


Como vês, fui frugal,
espartano,
sanitarista...
Fui mau.
Mas um dia prometo
seguir à risca
o teu plano, 
voltar ao Mato Cão,
e à bolanha de Finete,
e à Ponta do Inglês,
e à margem direita do Corubal...


Camarigo, 
já foram demasiadas emoções
para uma semana só...
Em todo o caso,
sempre gostei mais daquela terra
no tempo das chuvas
e do capim alto
e das miríades de insectos
à volta dos candeeiros 
na noite espessa e húmida...
Mas adorei,
confesso que adorei,
a tua sugestão,
o teu projecto,
o teu roteiro poético-sentimental...
Quem sabe, talvez o faremos
pelo nosso próprio pé...
Um dia destes,
nesta ou noutra encarnação, 
Tu, eu e a malta 
de Bambadinca,
da Zona Leste,
que é muita,
e que esteve no sítio tal e tal
e que faz parte da nossa Tabanca Grande...


Obrigado, Joaquim,
até pela ideia 
que aos 20 anos se poderia ser feliz.
Ou que a Guiné foi para ti, foi para nós, fado,
fatum,
destino,
destino que o Destino quis.
Vemo-nos em Maio,
no nosso III Encontro Nacional.



13 de Março de 2008 / Revisto hoje

_____________

Notas de L.G.:

Último poste desta série > 16 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7447: Blogpoesia (96): Contrato com o Exército (Manuel Maia)

(*) Vd. poste de 9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

 
(...) No percurso entre Bissau e Saltinho, não tomei grandes notas. Nem tirei fotos. A caravana seguia a boa velocidade. Fui em estrada alcatroada, ao longo do Geba, por sítios que não conhecia, com belíssimas bolanhas, sobretudo na região de Mansoa. No meu tempo, esta estrada, a norte do Geba, estava interdita. Para a Zona Leste ia-se de barco, até ao Xime, até Bambadinca, até mesmo a Bafatá...

Noto que as estradas modernas, como em toda a parte, atraiem as populações... Há mais tabancas, com maior risco de acidentes, à beira do caminho. Uma das nossas viaturas passou por cima de um cabrito. Ninguém porém parou. Há um membro do governo na caravana e leva escolta policial. Há também uma deputada, antiga combatente da liberdade da pátria...


Passo pela bolanha de Finete, agora com direito a tabuleta. Passo em Mato Cão e o Rio Geba Estreito ali tão perto... Imagino um comboio de barcos da Casa Gouveia a aparecer na curva do rio... E nós ou o PAIGC, emboscados. Passo ao largo de Bambadinca, sem aparente emoção. Mas tenho um pensamento positivo ao lembrar os velhos camaradas que andaram por aqui comigo... Cortamos para o sul, mais à frente, perto de Santa Helena, se não me engano...

Não dou conta de passar por Mansambo: do Xitole, retive apenas a fachada de uma mesquita que não existia no meu tempo... Entrevejo as ruínas do Xitole... Passo pelo Rio (seco) de Jagarajá e por Cambesse onde, em 15 de Maio de 1974, teriam morrido os portugueses em combate, segundo o José Zeferino ... A estrada antiga passava ao lado...

A viagem vale pelo Saltinho, o Rio Corubal, as lavadeiras do Corubal... Mas já não há a tensão dramática que percorria a fiada de palmeirais ao longo do Rio, no tempo da guerra... Há também maior desflorestação nesta zona. Os cajueiros são uma praga, na Guiné-Bissau. As bolanhas tendem a ser abandonadas ou a transformar-se em campos de cajueiros... Uma armadilha mortal para os guineenses, para a sua economia, para o seu futuro... O arroz continua a ser a base da alimentação do guineense, de Bissau a Bafatá... Arroz que é importado, em grande parte. (...)

quinta-feira, 13 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2633: Memórias dos lugares (4): Mato Cão (Joaquim Mexia Alves, Pel Caç Nat 52, 1972/73)






Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Pel Caç Nat 52 (1972) > Destacamento de Mato Cão. Legendas para quê ? O Joaquim Mexia Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, andou em bolandas e em bolanhas, de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973, tendo passado nada menos do que por três unidades no TO da Guiné: (i) pertenceu originalmente à CART 3492 / BART 3873 (Xitole / Ponte dos Fulas);(ii) depois mudou-se com armas e bagagens para Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão); e (iii) finalmente, CCAÇ 15 (Mansoa ) (1).


Fotos:  Joaquim Mexia Alves (2008). Direitos reservados.


1. Não sei se ele foi voluntário à força, ou não se gostava dos lençóis da Intendência Militar, ou se embirrava com os mosquitos, ou se era muito requisitado por ter o curso de ranger... Além disso, tinha alma de fadista e de poeta (e ainda tem)... A verdade é que dos poucos, de nós todos, que se pode gabar de ter sido operacional de três subunidades distintas.

Há dias ele escreveu a uma coisa bonita ao Beja Santos, na sequência da festa do lançamento do seu (dele, Mário) livro. Já aqui foi publicada. Mas voltemos a reproduzir alguns excertos:

(...) Foi linda a festa, pá!... Foi lindo o convívio, (não falemos do bacalhau!), foi linda a conversa, foi lindo o riso, foi lindo a visita à Sociedade de Geografia, foram lindos os 'discursos', foi lindo o som da Guiné, foi linda a tua emoção, foram lindas as cervejas que ainda bebi a matar saudades, ah, e o livro é lindo!

Não vale a pena dizer mais nada, porque não há mais palavras para dizer o que vai no coração. Ah, e senti um grande orgulho em ter sido comandante do 52!

Espero que tenhas percebido que o sujeito de pé e arma na mão, na fotografia do sintex, que colocaste no teu livro, é este teu camarada e amigo.

Começo hoje a mandar-te as fotografias que tenho do 52 e que, se não me engano, são todas do Mato de Cão. Ao mesmo tempo mando-as também para o blogue, para arquivo. Com tempo farei seguir legendas para todas. (...).


São algumas dessas fotos que publico hoje. Com um agradecimento, muito emocionado, ao Joaquim pela ternura do roteiro que ele fez para mim e que só hoje, infelizmente, tomei conhecimento... 

Passei, no meu regresso à Guiné, de 29 de fevereiro a 7 de março de 2008 por alguns dos sítios que ele sugere, a alta velocidade, com enormes ganas de parar... Quis controlar as minhas emoções, quando a vontade era de chorar; segui em frente, mesmo querendo ficar; não tirei fotografias, com muita raiva minha, por que me estava a armar em forte... 

Tinha apenas em mente o sul, nunca o leste... Queria apenas mostrar a mim mesmo que estava a passar o teste da catarse...Que eu, de facto, já tinha esquecido a Guiné... Não esqueci, claro está... E a Guiné, para mim, era apenas o Corubal, a perigosa margem direita do Corubal, o Geba, o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, as tristes tabancas em autodefesa de Badora e do Corubal, o Geba Estreito, Finete, Mato Cão, Missirá, o Cuor, Fá Mandinga... Era também Contuboel, era Bafatá... E pouco mais.

Joaquim, desta vez fui a Mansoa, onde nunca tinha ido... À procura de bianda para o almoço, imagina!... Mas não segui para Mansabá... Acabei por ir almoçar ao restaurante do Hotel Rural de Uaque... Tive depois um convite, do Zé Teixeira e do seu grupo de beduínos, para ir comer leitão a Jugudul, mas outros deveres, os trabalhos do Simpósio Internacional de Guileje, me retiveram em Bissau... 

Passei pelo Mato Cão, vi o cotovelo do Geba Estreito, onde nos emboscávamos, admirei a extensa bolanha de Finete, passei por Bambadinca, vi vacas a pastar na imens~~ao da bolanha de Bambadinca, parei em Bambadinca no regresso, tomei a estrada (que não havia no nosso tempo) de Mansambo - Xitole - Saltinho... Não parei em Mansambo, nem no Xitole. Apenas no Saltinho, porque estava no programa... Mas lembrei-te de ti, do David Guimarães, do Beja Santos, do Humberto Reis, do Tony, do Marques e de tantos outros camaradas e amigos da minha CCAÇ 12 e de outras unidades com quem convivi, em Bambadinca, entre Julho de 1969 e Março de 1971...

Desculpa-me, mas não bebi um uísque, por ti e por mim, à memória do Jamil. Só bebi um uisquinho no avião de regresso a Lisboa, que as bactérias e os vírus na Guiné-Bissau é quem mais ordenam... E eu que gostava tanto, como tu, do meu uísquinho com uma duas pedras de gelo e água de Perrier.

Não subi o Corubal, mas fui a Cussilinta, e fui com contida emoção que revi os palmeirais que bordejam o rio... Não passei pelo Xime, porque não é esse agora o caminho de quem vem de Bissau. Não tomei o velho barco da outrora soberana Casa Gouveia nem me sentei na esplanada do Pelicano. E das ostras, só provei a sopa, uma colher, na casa de uns amigos...

Como vês, foi frugal, espartano, sanitarista... Mas um dia prometo voltar ao Mato Cão, e à bolanha de Finete, e à Ponta do Inglês, e à margem direita do Corubal... Já foram demasiadas emoções para uma semana só... Sempre gostei mais daquela terra no tempo das chuvas e do capim alto e das miríades de insectos... 

De qualquer modo, adorei o teu roteiro poético-sentimental... Quem sabe se não o voltaremos a fazer pelo nosso própio pé... Tu, eu e a malta de Bambadinca, que é muita e que faz parte da nossa Tabanca Grande... Obrigado, Joaquim. Vêmo-nos para Abril ou Maio, no III Encontro Nacional da Nossa Tertúlia ou Tabanca Grande... Vou divulgar as datas que sugeres.

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Janeiro de 2008 > Estrada Bissau-Bafatá > Passagem do Xico Allen pelas proximidades de Mato Cão, onde foi criado, no tempo do Polidoro Monteiro, comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), um destacamento, guarnecido pelo Pel Caç Nat 52 (2).

Foto: Xico Allen / Albano Costa (2008). Direitos reservados.
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. alguns dos postes anteriores do Joaquim Mexia Alves (e de outros camaradas, com referências ao Mato Cão):

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2631: Dando a mão à palmatória (5): Recado para uma ida à Guiné (Joaquim Mexia Alves)

19 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2364: O meu Natal no mato (5): Mato Cão, 1972: Com calor, muito calor, e longe, muito longe do meu clã (Joaquim Mexia Alves)

15 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2179: Fado da Guiné (letra original de Joaquim Mexia Alves)

25 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1997: Álbum das Glórias (22): O Alf Mil Pires, cmdt do Pel Caç Nat 63, em Mato Cão, na festa do meus 24 anos (Joaquim Mexia Alves)

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (54): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba

2 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1912: Um buraco chamado Mato Cão (Nuno Almeida, ex-mecânico de heli / Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil, Pel Caç Nat 52)

12 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1271: O cruzeiro das nossas vidas (1): O meu Natal de 1971 a bordo do Niassa (Joaquim Mexia Alves)

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

(2) Vd.poste de 20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2561: Ser solidário (5): Um mimo para o Beja Santos (Xico Allen/Albano Costa)

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Guiné 63/74 - P1927: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (53): Ponta Varela e Mato Cão: Terror no Geba

Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > No passado dia 20 de Junho fez uma ano que o Mério Beja Santos (a par do comandante Pedro Lauret) entrou para a nossa tertúlia (hoje, Tabanca Grande) (1). Fui desinquietá-lo ao Instituto do Consumidor (hoje, Direcção Geral de Consumidor)... O Mário começou furiosa, compulsivamente, a escrever, a reconstruir as suas memórias do Cuor, de que ele foi dono e senhor entre 1968 e 1970... O Tigre de Missirá voltou aos seus bons velhos tempos... Semanalmente publicamos um episódio da série Operação Macaréu à Vista. Hoje será o nº 53. O Mário quer publicar estes seus textos em livro. Está a negociar com uma editora. E , a levar o livro (eventualmente em dois volumes) para a frente, quer que os direitos de autor revertam para projectos de interesse comum, no âmbito da nossa tertúlia. No peisódio de hoje, ele relembra os temíveis ataques às embarcações que demandavam o Xime e Bambadinca. Estam,os em finais de Julho de 1969, quando a CCAÇ 12 ( aminha unidade) é colocada ao serviço dos barões de Bambadinca. O BCAÇ 2852 acaba de ser decapitada. Spnínola renova o comando. Pimentel Bastos, humilhado, acabou ali a sua carreira. O novo senhor da guerra chama-se agora Pamplona Corte Real.

O Mário escreve à Cristina, sua noiva: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal". É um elogio ao Cuor vegetal...Não tenho nenhuma foto da época para ilustrar este estado de espírito... Fui ao meu álbum (secreto)... As flores e abelha (não assassina como as do Cuor) são portugesas e recentes (Lourinhã, Junho de 2007). É também uma pequena homenagem a um dos nossos mais activos, entusiásticos e profícuos tertulianos, a quem desejamos continuação de boa navegação na blogosfera.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tomada do lado da bolanha. Em Julho de 1969, há um novo senhor da guerra, à frente dos destinos do Sector L1 e do BCAÇ 2852, o tenente-coronel Pamplona Corte Real.

Foto: © Humberto Reis (2007). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Uma autogrua, da engenharia militar, de marca Galion, a (des)embarcar vacas no cais de Bambadinca, onde havia um pelotão de intendência, e onde ficavam armazenados muitos dos víveres e mantimentos que alimentavam as tropas da Zona Leste (Bafatá e NovaLamego).

O Rio Geba era navegável até Bafatá, mas do Xime para cima o curso do rio, sinuoso e mais estreito, só permitia a navegação de pequenas embarcações, de menor calado, militares (LDM, LDP) ou civis (por exemplo, da Casa Gouveia: a propósito, havia o mito de que as embarcações da Casa Gouveia, ligada ao Grupo CUF, e onde Luís Cabral trabalhara, como empregado antes de passar à clandestinidade, tinham livre trânsito do PAIGC, nunca sendo atacadas...) .

Esta autogrua da engenharia militar viu-se grega para chegar até aqui - estória que já contámos noutra ocasião mas que poderá ser retomada em breve. A Galion veio para reforçar os parcos equipamentos portuários existentes até então no cais de Bambadinca. E, se a memória não me atraiçoa, esse reforço coincide com o desenvolvimento do ambicioso e polémico projecto de reordenamento de Nhabijões, a que esteve ligado o Luís Moreira e outros camaradas de Bambadinca (incluindo malta da CCAÇ 12, como o Alf Mil Carlão, o Fur Mil Fernandes e o Sold Cond Soares, que aqui encontrará a morte em 13 de Janeiro de 1971).

Foto de 1970, gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), gravemente ferido numa mina anticarro em 13 de Janeiro de 1971. Tive o grato prazer de o rever e abraçar no nosso encontro em Pombal, em 28 de Abril de 2007. (L.G.).


Foto: © Luís Moreira (2005). Direitos reservados

O Geba Estreito, junto a Bambadinca. Pirogas, na margem esquerda, que faziam a cambança do rio (ligação ao Cuor: Finete, Mato Cão, Missirá...).

Foto: © Luís Moreira(2005). Direitos reservados.


Mensagem de Beja Santos, com data de 20 de Junho passado (um ano depois de entrar, a meu convite, para a nossa tertúlia):

Caro Luís, aqui vai o apontamento enviado ontem, agora devidamente corrigido. Pelas minhas contas, o primeiro volume [do livro Operação Macaréu à Vista] terminará com mais três episódios, ou seja, em meados de Agosto de 69. Vou ser recebido pela Guilhermina Gomes, editora do Círculo de Leitores, para apreciarmos o projecto.

Penso que com os créditos fotográficos não haverá quaisquer problemas, o Humberto, com quem trabalharei amanhã, não põe objecções nas suas fotos. É essa a razão também porque te reenvio uma fotografia [, uma vista aérea do quartel de Bambadinca,] que me parecia útil para este episódio. Vai separadamente. Peço-te a gentileza, quando tiveres uma aberta, de mandares os primeiros [os links dos] 50 episódios anteriores. Igualmente, quando tiveres tempo e oportunidade, seria útil promoveres o debate acerca da transformação dos meus direitos de autor no nosso bem comum. Recebe toda a amizade do Mário.

53ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Os destaques a bold e a cores são da responsabilidade do editor.


As danações de Ponta Varela
por Beja Santos


Chegou o terror sanguinolento ao Geba, para lá do Xime.


É um amanhecer luminoso e do planalto de Chicri avista-se um [Rio] Geba de prata, estuante, quase genesíaco. É um tempo invulgar para esta época das chuvas, mas desde ontem que a Mãe Natureza parece querer advertir-nos que vem aí outro tempo, de calor persistente.

Olho o relógio, o comboio de batelões já devia ter passado há cerca de meia hora, de novo assesto os binóculos para o fim do horizonte, nada, nenhum ponto se avista, certamente que houve algum atraso na saída de Bissau. Tenho um mau presságio, parece que para lá do Xime se ouvem obuses, talvez o som dilacerante dos rockets. Interpelo Mamadu Camará acerca deste fogo e ele responde que sim, é para lá do Xime, talvez uma emboscada, talvez uma flagelação, pode ser mesmo um reconhecimento de obus, são sons cavos que a distância não permite identificar. Segue-se o silêncio, sufocante. Depois olho para a estrada que bordeja toda a vareda do rio e se perde ao fundo, onde eu sei estar o que resta de Saliquinhé.

Sinto uma enorme atracção por voltar ao Enxalé, para quem não sabe, caso não houvesse esta guerra, o burrinho em cerca de hora e meia chegaria a Bissau, depois de passar pelo Enxalé, Porto Gole, Nhacra. É a mesma estrada que para cima leva ao Gambiel, e depois a Geba e a Bafatá. A minha ansiedade cresce enquanto o Geba refulge os tons de prata, para lá de Madina ouvem-se uns tiros esparsos como se nos avisassem que há território hostil à nossa espera.

É então que assoma uma embarcação ziguezagueante, estranhamente morosa. Dirijo-me, intrigado, para o ancoradouro e depois de meia hora de espera díficil, o contramestre fala comigo com o horror estampado nos olhos. Uma coluna de 5 batelões, aproveitando a correnteza do Corubal aproximara-se do Geba estreito perto de Ponta Varela. Súbito, várias roquetadas atingiram a casa das máquinas deste barco e ele mostra-me os estilhaços, os vidros partidos, vestígios de algum sangue, um dos feridos vinha ao leme. O terceiro barco foi atingido nas máquinas, vem agora rebocado ao segundo barco, vem lentamente, quase encostado a esta berma do rio. Suplica-me que não me vá embora, que espere por eles, os feridos mais graves vão já para Bambadinca.

E, de facto, quase uma hora depois o pequeno comboio de barcos atacados chega a Mato de Cão. Há sinais de pavor, dou comigo a pensar se a estratégia da guerrilha não mudou radicalmente, Ponta Varela agora é o local temível da destruição, não sei medir as consequências, mas sinto que é necessário rever a protecção desta margem do rio, mesmo em frente a Ponta Varela. Seguimos no último barco, quero ir relatar este episódio ao 2º Comandante.



Uma conversa com o novo comandante, Pamplona Corte Real


Chegado a Bambadinca, sou informado no aquartelamento que chegou o novo comandante. Dou sinal no gabinete ao lado do comando que cheguei, anunciam-me e para minha surpresa sou imediatamente recebido.

Jovelino Sá Moniz Pamplona Corte Real é um cinquentão robusto, ainda com farripas de cabelo louro, tem um sorriso ameninado, um olhar azul inocente, tem boas maneiras e pede-me informações sumárias sobre o Cuor. Começo por lhe falar em Mato de Cão, dou-lhe conta do ataque sofrido há horas pelas embarcações civis, repiso no conceito de que é indispensável reinstalar Enxalé no nosso sector, não se me afigura possível deslocar diariamente pelotões para Ponta Varela a partir do Xime e ao mesmo tempo montar segurança nesta margem do rio, com Enxalé seria mais fácil acompanhar os movimentos na estrada de Mato de Cão, em Missirá e Finete passaríamos a ter condições para voltar aos patrulhamentos ofensivos, pela força das circunstâncias estamos cada vez mais limitados a Mato de Cão, às emboscadas nocturnas e às colunas de reabastecimento.



Um operação com um nome mexicano para ajudar a fazer rodagem à CCAÇ 12

O novo Comandante ouve atentamente, escreve num bloco de notas, despede-se com cordialidade, remete-me para o 2º Comandante. Ainda não houve oportunidade para apresentar o Major Herberto Sampaio, voz tonitruante, procurando acamaradar mas recordando sempre a hierarquia piramidal. Fala-me sumariamente na operação Gaúcho que terá lugar ainda esta semana. Este nome mexicano, para uma ida a dois pelotões até Sancorlã, patrulhando até Salá, descendo junto da antiga tabanca de Cossarandim, emboscando no rio de Biassa, descendo por Mato Madeira até Gambaná, é um perfeito enigma. Mas quando já se participou nas operações Hipopótamo, Bate no duro, Goldfinger, Fado Hilário, por exemplo, tem pouco interesse saber porque é que uma operação se chama Gaúcho.

O que importa é que me deslocarei com um grupo de combate da CCAÇ 12 que está a chegar a Bambadinca e precisa de rodagem. Digo a tudo que sim, despeço-me, vou cumprir a burocracia com o Tenente Pinheiro, levanto material da construção civil, alguns géneros, vou comprar ao Rendeiro lâmpadas, uma toalha para a mesa das nossas refeições, camisas para os petromaxes, comemos uma bifana no Zé Maria e rumamos para a bolanha de Finete.


Um elogio ao Cuor vegetal

Ao longe, os palmeirais parecem acenar neste dia de céu luminoso que vai secando os charcos de lama que dão conta da longuíssima época das chuvas. Interrogo-me como ainda é possível receber como primeiras sensações o deslumbramento deste bissilões que agitam os seus braços frondosos, ou contemplar com pasmo as imponentes árvores de pau sangue. Antes de entrar em Finete olhos os mangais, os arrozais túrgidos, os campos de legumes, falo com mulheres e crianças que trazem quiabos, papaias, beringelas.

Procuro Fatu Cassamá, dentro de dois dias vou levá-la de novo ao David Payne [, o Alf Mil Médico do BCAÇ 2852,] depois do incêndio de 19 de Março perdeu-se todo o processo, voltámos ao ritual das deprecadas, inquéritos, questionários, exames médicos. Marco com Bacari Soncó um novo horário para a ida da população civil à enfermaria, anuncio que o burrinho irá até à berma do rio para irmos buscar mais sacos de arroz a Madina Bonco, o sol está no zénite quando galgamos a íngreme subida de Finete e me despeço, na estrada de Canturé, de duas secções do pelotão de milícias que vão patrulhar de Cansonco até Gã Joaquim

Trago cartas, com expediente da guerra e nosso correio de além-mar, vou passando em revista as actividades que nos esperam esta semana em Missirá, flanqueamos a estrada cheio de capim alto, um convite para uma boa emboscada, atravessamos os morros de baga-baga em Canturé, sinto sempre nostalgia quando vejo as estacas calcinadas das velhas moranças, dos ferros das destilarias exploradas por um cabo-verdiano e um açoreano. Depois Caranquecunda feita uma seara de capim, atravessamos o pontão por onde corre a ribeira abundante, chegamos a Missirá ao entardecer.

Quantas vezes já fui a Mato de Cão: duzentas? trezentas? Mais, menos? Mal chegados, cumpridas as formalidades das arrumações de tudo quanto foi adquirido em Bambadinca, antes mesmo de abrir o correio e saber que Bissau comunica a chegada de substitutos de outros soldados, antes mesmo de saber que três dos meus bravos vão ser condecorados, antes mesmo de abrir a carta do Batalhão de Engenharia que refere o gerador com o seu manual de instruções, sento-me à minha secretária e escrevo.

Primeiro para o Luis Zagalo [de Matos], agradecendo-lhe as suas últimas notícias, enviando-lhe fotos de alguns soldados, tal como ele pediu. Inevitavelmente, falo-lhe do que aconteceu na noite de 15 de Julho, demoro-me nas marcas da flagelação, os destroços da casa de Quebá Soncó, que também foi seu picador, falo-lhe do sinistro de Fatumana, das birras da anciã que não quer cubata quadrangular, falo-lhe das vissicitudes do processo de Abudu Cassamá e anuncio que a época seca já está a dar sinais. Despeço-me pedindo-lhe que telefone à Cristina e lanço a suposição que casaremos em breve, talvez em Lisboa.

Depois escrevo ao Ruy Cinatti, agradecendo-lhe os livros de Saint-John Perse, o Prémio Nobel da Literatura de 1960 e a beleza dos poemas Eloges e Anabase. Folheio a bonita edição da Gallimard e como se escrevesse para mim transcrevo: "Homens, gentes de poeira e de todas as maneiras, gentes de negócio e de lazer, gentes dos confins e gentes de alhures, ó gente de pouco peso na memória destes lugares; gentes dos vales e dos planaltos e das mais altas vertentes deste mundo no termo das nossas margens: farejadores de sinais, de sementes e confessores de sopros no Oeste; seguidores de pistas, de estações, levantadores de acampamentos à brisa de madrugada; ó pesquisadores de olhos de água sobre a casca do mundo; ó pesquisadores, ou achadores de razões para se ir alhures, vós não traficais com sal mais forte, quando pela manhã, num presságio de reinos e de águas mortas, altamente suspensas, por cima das fumaças do mundo, os tambores do exílio despertam nas fronteiras a eternidade que boceja nas areias".

Sim, andei a plagiar inconscientemente este mestre de fosforecências, elogios sagrados, sinais do transcendente. Mas que importância tem eu curvar-me perante a ressonância destas imagens quando elas me tocam nos cinco sentidos dos assombros da mata à volta?

Continuo a escrever para Lisboa, as páginas desalinhadas do meu diário para a Cristina. Sim, vamos recuperar a casa de Quebá Soncó, um novo chuveiro está a funcionar, tenho desgosto pela partida do Pimentel Bastos, Bambadinca está diferente, um dia de consistente ensolaramento foi a nossa companhia, prometo regressar a Bafatá dentro de dias para tratar dos nossos papéis, escrevo uma frase dilacerante: "Sinto-me hoje muito emotivo, estas belezas naturais comovem-me sem eu perceber porquê, é como se o fervor que eu já não tenho na oração o transferisse para a consagração deste reino vegetal".

Depois falo-lhe de Bambadinca e do novo comando onde se sente que as preocupações defensivas passaram a ter mais peso. Faço perguntas sobre os seus estudos e despeço-me esmagado pelas saudades. Fecho os aerogramas e então sinto o chamamento do cansaço, vou para o balneário não sem antes contemplar embevecido a abóboda celeste estrelejante, uma quase resposta ao belo dia que entrou no negrume profundo.

Ao jantar, com auxílio do Pires, falamos dos reforços dessa noite, do grupo que vai emboscar, notício sem detalhes que vamos ter a Gaúcho, fiquei a saber igualmente que em Setembro voltaremos ao Xime e ao Burontoni, ele vai partir para a emboscada, hoje não há loto nem bisca lambida, tenho que ver as contas da cantina com o Alcino e o Queiroz. Aproveito para dizer ao Teixeira que já traz uma mensagem descodificada nas mãos a anunciar que devo voltar a Mato de Cão ao meio dia, que chegará em breve um colaborador, um tal Alcino Bairrada, que ficará ferido a 16 de Outubro, em Canturé.

As horas passam, já fui ver os postos de sentinela, conversei com Mussá Mané que me fez vários pedidos em nome da população civil, fui visitar soldados com malária ou carregados de viroses, confirmo que as contas estão em ordem, o Alcino apresenta-me a lista das munições e do equipamento em falta, são assuntos para resolver para a semana.

Foi um dia intenso e preocupante. Ainda não disse a ninguém, embora o Setúbal e o Xabregas estejam desconfiados com as inúmeras perguntas que fiz à mesa sobre o estado do 404 e do burrinho. Para surpresa dos dois, saíremos amanhã, igualmente com sol radioso, para Mato de Cão e depois Enxalé. Será uma linda e comovente viagem que vai selar, mal sabia eu, a reaproximação de Enxalé ao sector de Bambadinca.

Chegou o momento de gozar a solidão, vou ler até adormecer.


A semana de Jean Cocteau

Ao longo da semana, reli ou conheci obras de Jean Cocteau, tudo graças ao Carlos Sampaio. Reli Les Enfants Terribles, uma obra prima muito próxima do surrealismo, onde não estão ausentes as sequelas do dadaísmo. É o sonho e o inconsciente, um estilo musculado, frases sóbrias cheias de contra-senso e provocação. Dois irmãos, adolescentes, vivem num quarto numa desordem inacreditável. O pai já desapareceu , a mãe vai falecer, um outro jovem amigo pede a um tio rico que ajude estes dois irmãos. A relação destas crianças paira pelo obsessivo e o freudiano, quase que somos induzidos a um estado incestuoso. No final, os dois irmãos suicidam-se quase que ao nível de uma ópera. Quando digo dadaísmo é porque esta prosa balança-se entre o ilógico e o absurdo, a denúncia da demência da guerra é um propósito descarado, feita num barroco que se veste de escândalo e falta de sentido.


Capa do livro - peça de teatro em 4 actos - de Jean Cocteau (1889-1963), La machine infernale. Paris: Bernard Grasset. 19674 (Livre de Poche, 854).

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).


Capa da novela de Jean Cocteu. Tomaz, o impostor. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Miniatura, 51). Capa de Bernardo Marques.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007).
Até agora o que mais me entusiasmava no génio de Cocteau eram os seus filmes e algum do seu teatro. La machine infernale, Édipo e Jocasta, Tirésias e Antígona, sempre me pareceram soberbas reaproximações da tragédia grega. Esta peça foi representada pela primeira vez com a voz de Cocteau, e enquanto a releio imagino-o a declamar: "Regarde, spectateur, remontée à bloc, de telle sorte que le ressort se déroule avec lenteur tout le long d'une vie humaine, une des plus parfaites machines construites par les dieux infernaux pour l'aneántissement mathématique d'un mortel".

É com gosto que leio Tomaz, o Impostor, uma grande novela que ele escreveu com pouco mais de 20 anos. É igualmente um Cocteau dadaísta e surrealista, denunciando a guerra das trincheiras, a ingenuidade de um adolescente aldrabão e lunático que se move num círculo decadente e procura o heroísmo até sucumbir, vítima do mundo delirante que ele próprio urdiu. Esta guerra das trincheiras não me vai sair da cabeça tão cedo. E a lição de que não devemos engrandecer-nos com as paródias do inferno.


Um ano de Guiné

Para a semana, faz um ano que desembarquei no cais de Bissau. Não acredito que o tempo seja tão breve, tão intenso. Não acredito que tenha mudado tanto. Não acredito que tenha chegado num barco de mancarra, de saco a tiracolo, com latas de leite e pão apresuntado. Fiz a mesma viagem onde hoje faço vigilância, mais do que diária.
Um menino falou comigo durante toda a viagem. Ia visitar uns tios a Bafatá, falou-me das ilhas, anoiteceu, passámos as luzes do Xime, e em Mato de Cão o Almeida e o Pel Caç Nat 63 não sabiam que eu vinha ali. Nada tem importância, Missirá é um ponto no mapa, Finete é um encargo, a única coisa que conta em termos militares é que os barcos cheguem a Bambadinca, e todos com vida.

Não passaremos à história, mas os barcos, todos eles, vão chegar a Bambadinca, com a nossa vigilância, nesta margem do Geba. Louvado seja Deus pela coragem e pelo entusiasmo que tomam conta de mim.

___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P887: Dois novos tertulianos: Pedro Lauret e Beja Santos (Luís Graça)

(...)" O caso do nosso camarada Beja Santos foi ainda mais célere... Comecei com cerimónias [, ao telefone,] e acabámos no tu-cá-tu-lá, voltando aos velhos tempos de Missirá, Finete, Mato Cão, Bambadinca...

(...) Amigos e camaradas: a nossa caserna fica hoje mais rica, com a entrada do Pedro Lauret e do Beja Santos... A entrada de cada novo amigo ou camarada é sempre um momento bonito... Há trinta e tal anos atrás, seria celebrado mais ruidosamente, com umas valentes rajadas de G3... Agora estamos mais calmos, mais sábios, menos folgosos, mais amigos do ambiente, mais respeitadores do erário público, quiçá mais pacifistas, seguramente mais velhos... Espero que eles se sintam em casa, nas suas sete quintas, no seu meio (aquático, terrestre, aéreo, cibernáutico...) e que continuem sobretudo com essa imensa vontade de partilhar connosco a sua excepcional experiência como homens e como operacionais...

"Mário e Pedro: É também um privilégio contar convosco!... Vocês são mais dois pesos pesados da guerra que nos calhou em sorte... Conto convosco para nos ajudarmos, uns aos outros, a reconstituir o puzzle da nossa memória colectiva... Temos essa obrigação, perante nós próprios, o povo português, o povo guineense e a nossa história parcialmente comum" (...)

(2) Vd. post de 29 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1898: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (52): O ataque a Missirá de 15 de Julho de 1969, visto pelo bravo mas modesto Queta Baldé

sábado, 6 de abril de 2024

Guiné 61/75 - P25348: 20.º aniversário do nosso blogue (4): Alguns dos nossos melhores postes de sempre (IV): Um roteiro poético-sentimental para um regresso àquela terra verde-rubra (Joaquim Mexia Alves / Luís Graça)


Guiné > Zona Leste < Sector L1 (Bambadinca) > Vista aérea do aquartelamento e povoação do Xitole 


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xitole > c. 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, chega a Xitole, atravessando a ponte dos Fulas, sobre o rio Pulom, ao fundo. A viatura civil, em primeiro plano, podia muito bem ser do nosso conhecido comerciante libanês Jamil Nasser, amigo de alguns dos nossos camaradas que passaram pelo Xitole, como foi o caso do Joaquim Mexia Alves (*).  Foto do álbum de Humberto Reis, ex-fur mil op esp, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).

Fotos: © Humberto Reis  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > Um coluna logística ao Xitole... O pessoal fazendo uma paragem na famosa  Ponte dos Fulas, destacamento do Xitole.

A Ponte dos Fulas (sobre o Rio Pulom, afluente do Rio Corubal) era uma espécie de guarda avançada do Xitole (na altura, a subunidade de quadrícula, do Setor L1, mais a sul, era a sede da CART 2716, em 1970/72).

Perspetiva: norte-sul, quando se vem de Bambadinca e Mansambo para Xitole e Saltinho. A ponte, em madeira, de construção ainda relativamente recente e em bom estado, era vital para as ligações de Bambadinca e Mansambo com o Xitole, o Saltinho e Galomaro... A ponte era defendida por um 1 Gr Comb do Xitole, em permanência, dia e noite... Na foto sãos visíveis, em segundo plano à esquerda, o fortim; em terceiro plano, ao fundo, à direita, as demais instalações do destacamento.

Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste < Sector L1 (Bambadinca) >  CCAÇ 12 (1969/71 ) > Chegada ao Saltinho.. Ponte Craveiro Lopes sobre o Rio Corubal... O troço de estrada a seguir, para Aldeia Formosa, estava interdita... Na imagem,  em primeiro plano os Fur Mil Reis (Humberto) e Levezinho (Tony)... De costas, o Fur Mil Graça Henriques.

Foto: © Arlindo Roda (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Oio > Mansoa > Distância, em quilómetros, de Mansoa a algumas das principais povoações, a leste (Bafatá, Bamabadinca, Enxalé), a sul (Porto Gole) e a leste (Bissau, Nhacra, Encheia)... Na foto, o ex-Alf Mil Paulo Raposo, CCAÇ 2405/BCAÇ 2852 (1968/70).

Foto: © Paulo Raposo  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


IX Encontro Nacional da Tabanca Grande > Palace Hotel Monte Real > 14 de junho de 2014 > Missa na igreja paroquial de Monte Real >  O Joaquim Mexia Alves (Monte Real / Leiria, a viver na Marinha Grande). Membro da Comissão Organizadora dos nossos Encontros Nacionais (interrompidos com a pandemia de Covid-19 em 2020), é um histórico do nosso blogue, tendo mais de 310 referências.

Foto: © Manuel Resende  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) >  Possivelmente 2º semestre de 1969 (tempo das chuvas)

Foto: © Arlindo Roda (2010).  Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > O Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, em fim de comissão, junto ao edifício de comando, messe e instalações de oficiais.  Do lado esquerdo, eram as instalações dos sargentos; o edifício em U fora construído pela Engenharia Militar, BENG 447, ao tempo do BART 1904 (que será substituído pelo BCAÇ 2852, 1968/70)... O Beja Santos, que esteve em Missirá, conheceu estes 3 batalhões.

Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > 3 de Março de 2008 > O antigo quartel das NT (CCS/BCAÇ 2852, 1968/70; CCAÇ 12, 1969/71; CCS/BART 2917, 1970/72...)  > No regresso a Bissau, depois de uma visita ao sul, à região do Cantanhez, no ãmbito do Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2008), eu e o Nuno Rubim, fizemos um pequeno desvio para visitar Bambadinca... (Éramos acompanhados pelas nossas caras-metade, Júlia e Alice, e pelo Antero, condutor do jipe da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento; as fotos foram tiradas pela Alice)

As instalações de sargentos (à esquerda) e oficiais (à direita) eram agora ocupadas pelo exército da República s Guiné-Bissau... O antigo quartel estava em ruínas. Chegámos a uma hora inconveniente, a da sesta... Trocámos cumprimentos com os oficiais presentes (incluindo o comandante, à civil,  de camisola interior, bem como um coronel inspector da artilharia que estava ali, também à civil, de máquina fotográfica e óculos escuros, em serviço, vindo de Bissau...). Fotos que falam por si... Estupidamente, não quis ver o interior do meu antigo quarto (*)...

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Texto de Luís Graça,  a partir do poste P2633 (*)  

Com um agradecimento, muito emocionado, ao Joaquim Mexia Alves pela ternura do roteiro poético-sentimental  que ele fez para mim, em 27 de Fevereiro de 2008 (Poste P2631) (**), antes de eu partir para a Guiné (onde estive de 29 de evereiro a 7 de março de 2008) (***), e de que só no regresso, infelizmente, tomei conhecimento...

No dia em que ele, Joaquim,  celebra 74 anos, achei que este roteiro, a quatro mãos, podia figurar, sem imodéstia da minha parte, na série comemorativa dos nossos 20 anos de blogue (****). Daí esta republicação.


(i) Recado para uma ida à Guiné

por Joaquim Mexia Alves



Vai, Luís,
Para essa terra quente
Que viveu dor e sofrimento
Para se fazer País.
Vai e leva o meu abraço
Porque num dia,
Num momento,
Também aí fui feliz.

Passa por Mansoa
E sobe para Mansabá
E ao carreiro da morte
Pára e contempla
Das árvores do Morés
O seu porte.
Deixa uma lágrima
E um voto
Por todos os que aí ficaram.
Depois desce a Jugudul
E segue a estrada nova
Que tanto sacrifício me deu.
Passa por Portogole
E mais à frente um bocado
Sobe ao Mato Cão,
E fica ali sentado
Com uma cerveja na mão
A assistir ao Pôr-do-Sol.

Agora que vês Bambadinca,
Depois de parares um pouco,
Segue em frente
Pela estrada do meu suor
A caminho do Mansambo,
Que fica à tua direita.

Na Ponte dos Fulas
Vai a pé,
Ali para a tua esquerda,
Sim, dentro da mata,
Vá, anda,
Porque vais encontrar,
Se agora não me engano,
Uma mata de caju
Onde o macaco cão
Faz barulho que ensurdece.

Volta à estrada
Para o Xitole
E, quando lá chegares,
Senta-te naquela varanda,
Mesmo que destruída,
(reconheci-a entre mil),
E bebe por mim um uísque
Em memória do Jamil.

Segue para o Saltinho,
Banha-te naquelas águas
E não pares,
Arranja um barco
E sobe o Corubal.

Quando chegares ao Xime,
Desembarca na lama preta
E sobe por um bocado,
Apenas para ver a vista.
Regressa ao Geba.
Lá está a Nau Catrineta
Que tem muito que contar,
Embarca agora nela,
Deixa a maré te levar,
Porque assim à noite
Estarás em Bissau, a varar.

Já é tarde,
Estás cansado,
No físico, no coração,
Então senta-te no Pelicano,
E come…
Um ninho de camarão.

Vai, Luís,
Leva-me contigo,
Mata feridas, mata mágoas,
Mata saudades até,
E abraça por mim
A Guiné…

Joaquim Mexia Alves

Monte Real, 27 de Fevereiro de 2008

(Revisão / fixação de texto: LG)


(ii)  Roteiro poético-sentimental

por Luís Graça


Passei por alguns dos sítios 
que tu me sugeriste,
a alta velocidade,
com enormes ganas de parar...
Quis controlar as minhas emoções,
quando a vontade era de chorar;
segui em frente,
mesmo querendo ficar;
não tirei fotografias,
com muita raiva minha,
por que me estava a armar em forte...
Tinha apenas em mente o sul,
nunca o leste,
nunca o norte...
Queria apenas mostrar a mim mesmo
que estava a passar o teste  da catarse...
Que eu, de facto, 
já tinha esquecido a Guiné
e o seu cheiro a morte...

Não esqueci, claro está...
E a Guiné, para mim, era apenas o Corubal,
a perigosa margem direita do Corubal,
o Geba, a Ponta Varela,
a maldita Ponta do Inglês,
o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole,
a tristeza das  tabancas fulas em autodefesa,
o cerco ao regulado de Badora,
o estrangulamento do regulado Corubal,
o deserto do  regulado do Cuor...
A Guiné era o Geba, o Xaianga, o Geba Estreito,
Finete, Mato Cão, Missirá, a Missirá do Tigre,
Santa Helena, Mero, Fá Mandinga, a Fá do Alfero Cabral...

Ah!, e os Nhabijões,
de triste memória.
Era também Contuboel,
a do Renato Monteiro,
o homem da piroga.
Era também Bafatá...
Os tocadores de kora e os ourives
e os ferreiros, mandingas.
Ah!, o Bataclã,
e a sacana  da amorosa Helena de Bafatá,
mais o bife com ovo a cavalo  na Transmontana.
Era isto e pouco mais.

Joaquim, 
desta vez fui a Mansoa,
a Mansoa da tua CCAÇ 15,
onde nunca tinha ido...
À procura de bianda para o almoço, imagina!...
Mas não segui para Mansabá
e muito menos para o carreiro da morte no Morés...
Acabei por ir almoçar
ao restaurante  do Hotel Rural de Uaque...

Tive depois um convite,
do camarigo Zé Teixeira
e do seu grupo de beduínos, comilões,
para ir comer leitão a Jugudul…
Leitão em Jugudul, imagina!,
como antigamente,
o leitão dos balantas de Nhabijões,
atropelado pelo burrinho da tropa
(no relatório, alguém escrevia:
animal subversivo e suicidário)

Mas outros deveres,
os trabalhos do Simpósio Internacional de Guileje,
me retiveram em Bissau, 
num hotel todo chique, 
de muitas estrelas
num céu esburacado de papel de cenário...

Passei pelo teu/nosso Mato Cão,
pelos cerrados palmeirais do Mato Cão,
como cão  em vinha vindimada,
vi o cotovelo do Geba Estreito,
onde nos emboscávamos,
para montar segurança às embarcações,
admirei a extensa bolanha de Finete,
passei por Bambadinca,
vi vacas,  magricelas,  a pastar
na imensão da sua bolanha,
triste bolanha outrora verdejante,
parei em Bambadinca no regresso,
revisitei as ruínas do meu quartel,
não ousei sequer entrar no meu antigo quarto,
não tive estômago  ou sangue ou fel
ou coragem  ou sequer desejo...

Tomei a seguir  a estrada, 
alcatroada
(que não havia no nosso tempo)
de Mansambo - Xitole - Saltinho...
Não parei em Mansambo, 
por falta de dístico,
nem no teu Xitole.
Apenas no Saltinho, 
porque estava no programa turístico...
Mas lembrei-te de ti,
que me encomendaste
este roteiro poético-sentimental,
pedestre, p'ra fazer ao pé coxinho...
Lembrei-me de ti 
e do David, o  Guimarães,
do Torcato, o Mendonça
do CMS, o nosso Carlos Marques dos Santos,
do Mário, do Beja, do Tigre,
do Jorge, do Bilocas (o Machdinho),  do Humberto, o Reis,
do Tony, o  Levezinho, do cripto GG, 
o nosso arcanjo São Gabriel,
do Fernando Marques, do Jaquim Fernandes,
do Arindo Tê Roda,
e de tantos outros,
sem esquecer o puto Umaré Baldé,
que a morte já levou,  em Portugal,
nem muito menos o portuguesíssimo José Carlos,
de seu apelido Suleimane Baldé,
1º cabo, de 1ª classe,
um coração de ouro,
um homem doce,
enfim, todos os camarigos 
da minha CCAÇ 12,
e de outras unidades com quem convivi,
em Contuboel, Bambadinca, e arredores,
entre julho de 1969  e março de 1971...

Desculpa-me,
mas não bebi um uísque, por ti e por mim,
à memória do Jamil.
Só bebi um uisquinho no avião 
de regresso a Lisboa,
que as bactérias e os vírus na Guiné-Bissau
é quem mais ordenam...
E eu que gostava tanto, como tu,
do nosso uísquinho (coisa boa, não é ?!),
com uma ou duas pedras de gelo 
e água de Perrier.

Não subi o Corubal, confesso,
mas fui a Cussilinta,
ver os rápidos,
a Cussilinta onde nunca tinha ido nem poderia,
e foi com contida emoção
que revi os palmeirais
que bordejam o rio,
e o que resta da floresta-galeria...

Não, também não passei
pelo Xime, nem pela Ponte Coli,
muito menos pela triste Ponte do Udunduma,
porque não é esse agora o caminho 
de quem agora vem de Bissau,
e estrada só há uma.
Não tomei o "barco turra", o velho barco,  ronceiro,
da outrora soberana e imperial Casa Gouveia
nem me sentei na esplanada do Pelicano,
como sugeria o teu roteiro.
E das ostras, só provei a sopa,  uma colher,
na casa do Pepito, no bairro do Quelélé...
Agora, vais a Quinhamel para comer ostras,
que a cólera é endémica na capital da Guiné!...

Como vês, fui frugal, espartano, sanitarista...
Fui mau.
Mas um dia prometo seguir à risca o teu plano, 
voltar ao Mato Cão,
e à bolanha de Finete,
e à Ponta do Inglês,
e à margem direita do Corubal...

Camarigo, 
já foram demasiadas emoções
para uma semana só...
Em todo o caso, sempre gostei mais daquela terra
no tempo das chuvas e do capim alto
e das miríades de insectos à volta dos candeeiros 
na noite espessa e húmida...
Mas adorei, confesso que adorei,
a tua sugestão, o teu projecto, 
o teu roteiro poético-sentimental...
Quem sabe, talvez o faremos
pelo nosso próprio pé...
Um dia destes,
nesta ou noutra encarnação, 
Tu, eu e a malta  de Bambadinca,
da Zona Leste, que é muita,
e que esteve no sítio tal e tal
e que faz parte da nossa Tabanca Grande...

Obrigado, Joaquim,
até pela ideia 
que aos 20 anos se poderia ser feliz.
Ou que a Guiné foi para ti, foi para nós, fado,
fatumdestino,
destino que o Destino quis.
Vemo-nos em Maio, na Ortigosa, Monte Real,
no nosso III Encontro Nacional.

13 de Março de 2008 / Revisto.

_____________

Notas do editor:


(**) Vd. poste de 13 de março de  2008 > Guiné 63/74 - P2631: Dando a mão à palmatória (5): Recado para uma ida à Guiné (Joaquim Mexia Alves)

(***) Vd. poste de 9 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

 
(...) No percurso entre Bissau e Saltinho, não tomei grandes notas. Nem tirei fotos. A caravana seguia a boa velocidade. Fui em estrada alcatroada, ao longo do Geba, por sítios que não conhecia, com belíssimas bolanhas, sobretudo na região de Mansoa. No meu tempo, esta estrada, a norte do Geba, estava interdita. Para a Zona Leste ia-se de barco, até ao Xime, até Bambadinca, até mesmo a Bafatá...

Noto que as estradas modernas, como em toda a parte, atraiem as populações... Há mais tabancas, com maior risco de acidentes, à beira do caminho. Uma das nossas viaturas passou por cima de um cabrito. Ninguém porém parou. Há um membro do governo na caravana e leva escolta policial. Há também uma deputada, antiga combatente da liberdade da pátria...

Passo pela bolanha de Finete, agora com direito a tabuleta. Passo em Mato Cão e o Rio Geba Estreito ali tão perto... Imagino um comboio de barcos da Casa Gouveia a aparecer na curva do rio... E nós ou o PAIGC, emboscados. Passo ao largo de Bambadinca, sem aparente emoção. Mas tenho um pensamento positivo ao lembrar os velhos camaradas que andaram por aqui comigo... Cortamos para o sul, mais à frente, perto de Santa Helena, se não me engano...

Não dou conta de passar por Mansambo: do Xitole, retive apenas a fachada de uma mesquita que não existia no meu tempo... Entrevejo as ruínas do Xitole... Passo pelo Rio (seco) de Jagarajá e por Cambesse onde, em 15 de maio de 1974, teriam morrido os últimos portugueses em combate, segundo o José Zeferino ... A estrada antiga passava ao lado...

A viagem vale pelo Saltinho, o Rio Corubal, as lavadeiras do Corubal... Mas já não há a tensão dramática que percorria a fiada de palmeirais ao longo do Rio, no tempo da guerra... Há também maior desflorestação nesta zona. Os cajueiros são uma praga, na Guiné-Bissau. As bolanhas tendem a ser abandonadas ou a transformar-se em campos de cajueiros... Uma armadilha mortal para os guineenses, para a sua economia, para o seu futuro... O arroz continua a ser a base da alimentação do guineense, de Bissau a Bafatá... Arroz que é importado, em grande parte. (...)