segunda-feira, 26 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

Guiné > Bissau > 1969 > O pai do Paulo Raposo, de férias, no Grande Hotel... Em Setembro desse ano, o nosso camarada estava em Galomaro quando recebeu a terrível notícia de que o seu pai acabava de falecer em Lisboa. Igualmente o nosso camarada Victor David (também na altura Alf Mil da CCAÇ 2405) passou, durante a sua comissão, por esta dura provação, a de perder o pai.

Foto: © Paulo Raposo (2006)


XII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 35-38 (1).


O regresso a Bissau

Aterrámos em Bissau como uma pedra. Dizem que são as melhores aterragens, pois as más são aquelas que nós não sentimos. É como as granadas e os tiros: os que nos são destinados, não os sentimos. Aberta a porta do avião, saímos sem pressa.
O calor e a humidade eram tantos que parecia que estávamos a entrar numa casa de banho onde alguém tivesse acabado de tomar um banho muito quente. Desta vez, não fui para o Grande Hotel, mas antes para uma cama que o João Saldanha me arranjou em casa dele.

Apresento-me no Quartel General e, por razões de que já não me recordo, perco a ligação aérea militar para Bafatá. Era um Dakota que fazia esse serviço. Como não havia outro transporte tão cedo, peço ao Alferes Bobone, que estava a tirar o brevet, para me levar a Bambadinca, que eu lhe pagava o tempo de vôo do Aeroclub, que era barato.

O Bobone era Chefe de Gabinete do Brigadeiro Spínola, portanto só me podia levar à hora do almoço, que, em Bissau tal como em toda a África, tinha a sesta como complemento. Fui almoçar a casa dele, pois ele tinha lá a mulher, e seguimos para o aeroporto, aonde nos aguardava o instrutor, que também seguiu.

O avião era um Auster, avião de três lugares, forrado a lona. Lá fomos, eles à frente e eu atrás, a ver se tudo corria bem. Voamos alto para não termos surpresas e, como o avião é lento no ar, parecia que estávamos parados. Ao fim de meia hora aterrámos em Bambadinca na pista de terra batida. Tudo bem.

A chegada de um meio aéreo, numa terra aonde não acontece nada, é sempre um acontecimento. Fomos para o bar tomar one for the road. Depois das contas feitas e das despedidas, o Bobone meteu-se no Auster para regressar, mas o motor não pega. Que se passa?

Ligamos para Bissau via rádio, e o chefe instrutor do Aeroclub, entre muitas coisas, diz para vermos se os cabos que ligam os borries da bateria estavam bem apertados. É claro que não, estava um solto. Foi apertado e lá seguiram. Spínola deve-lhe ter puxado as orelhas pelo atraso.

Um dos nossos passatempos nos períodos de pausa era contar histórias. O Bobone contou que um dia Spínola sentou-se na sua mesa de trabalho e com o braço, atira tudo o que estava em cima da mesa para o chão. Depois respira fundo e diz:
- Vamos trabalhar.

Coitado, era o peso da responsabilidade e era o feitio de quem se preocupa. Foi por esse seu feitio que mais tarde o apanharam. Não era uma pessoa fria. Spínola era sem dúvida um bravo. Os pilotos de heli não gostavam de voar com ele.
Se ele via uma aldeia, mandava o piloto descer, fazia uma alocução à população e seguia. Não se importava se a aldeia era controlada por nós ou pelo inimigo. Almeida Bruno passou as passas do Algarve com ele por causa destas incumbências.

No funeral do Brig. Nascimento, no Cemitério dos Prazeres, o Brig. Spínola aguentou estoicamente a carga de água que caíu, aquando das cerimónias. Não vacilava.

Novamente no Leste

Estamos em junho. Regressado à rotina de Tabancas em Auto Defesa, chega o primeiro correio e nesse correio vem uma carta de meu pai e outra de minha mãe muito estranha, que diz:
- O teu pai está melhor.

Esta era portanto a segunda carta de minha mãe, pois por capricho de destino a primeira ficou para trás. Sigo de imediato para Bafatá, o único local de onde se podia telefonar para Lisboa.

Depois de longa espera, consegui falar com a minha mãe. Naquela época pedia-se o número, e as centrais manuais iam pedindo sucessivamente o número até ao destino e, por fim diziam "está ligado".

A minha mãe contou-me então a triste história. Meu pai, passados dias após a minha partida, teve um acidente vascular cerebral. Entrou em coma e veio a falecer ao fim de três meses. Eu julgava que não era coisa que não me podia acontecer, e ainda hoje acho que é mentira.

A nada assisti. Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:
- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem.

Uma rápida vinda a Lisboa

Devo gratidão a todos estes amigos. Foram horas muito difíceis. Chego a Bissau no heli e vou para o Grande Hotel, para embarcar para Lisboa no dia seguinte. À noite vou jantar com o Francisco Ramos. Eu, que não sou de muitas falas, não me calo durante o jantar.

Era uma realidade que eu não queria aceitar. A viagem de avião foi um martírio. Da tristeza para o que ia e de alívio por folgar durante um tempo o buraco da Guiné. Chego a Lisboa e vejo a minha mãe toda vestida de preto, como nunca a tinha visto. O funeral já se tinha dado. Vou para casa e esta parecia vazia. Ainda assisti à Missa de 7º dia na Igreja de S. Nicolau. A Igreja ficava por cima da casa comercial que o meu pai tinha na Rua da Prata. A Igreja estava repleta, embora a família não estivesse completa. Passados dez dias estou de regresso àquele inferno.

Ao Alferes David, [igualmente da CCAÇ 2405], passados meses, sucedeu-lhe a mesma coisa. Perdeu o Pai em circunstâncias idênticas. Houve muitos casos destes.

Novamente o regresso

Mais uma despedida no aeroporto e uma viagem sem história, toda feita de noite, com a habitual escala em Cabo Verde.

Regresso de novo à rotina de Tabancas em Auto Defesa.

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Nota de L. G.

(1) Vd. post de Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal

(...) "No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.

"A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós" (...).

Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé (entre Finete e Missirá: vd. carta de Bambadinca, de 1/50.000).

Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

Foto: © Humberto Reis (2006)

Eis como esta acção da guerrilha foi ficou relatada nos documentos classificados que temos em nossa posse:


(i) História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 112. Documento reservado

Em 16 [de Outubro de 1969] , IN não estimado emboscou no lado direito da estrada Finete-Missirá, próximo de Canturé, uma coluna de reabastecimerntos do pel Caç Nat 52, compotso por 15 elementos, simultaneramente ao accionamento de mina A/C, causando 1 morto e 3 feridos graves às NT. O IN sofreu 1 morto quando provocava assalto.

(ii) História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 16.

Registe-se ainda a intervenção do 2º Gr Comb [do Alf Mil Carlão e dos Furriéis Mil Reis e Levezinho] que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caíu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Finete, regulado do Cuor > 1969 ou 1970: Destacamento de milícias e aldeia em autodefesa de Finete, junto ao Rio Geba. Na foto, o furriel miliciano Henriques e dois dos soldados africanos da CCAÇ 12, do 4º Grupo de Combate, o Soldado Arvorado (mais tarde promovido a 1º cabo) José Carlos Suleimane Baldé e o Soldado Umarú Baldé, apontador de morteiro 60, mais conhecido por o puto (na foto, de pé, de cachimbo; era de facto um puto, com 16 ou 17 anos...).

Foto: © Luís Graça (2005)

Comentário de L.G.:

Lembro-me ainda muito bem deste fatídico acontecimento, que causou emoção em Bambadinca, até porque integrei a coluna de socorro que partiu daqui, atravessando o Rio Geba e a bolanha de Finete. Tudo se passou quase à nossa frente. O local da emboscada estava inclusive ao alcance dos nossos morteiros. Na altura ainda não havia obuses em Bambadinca, mas apenas um esquadrão do Pel Mort 2106 (espalhado, de resto, pelos ouytros aquartelamentos do Sector L1: Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho).

O Beja Santos já me facultou cópia do relatório desta acção que ele próprio elaborou, na sua qualidade de comandante do Pel Caç Nat 52. Na carta ao Alcino Barbosa (1), há um pequeno conflito de datas: o Beja Santos diz, primeiro, que foi a 16 de Outubro de 1969, e depois, certamente por lapso, refere-se sempre a 15 (1); as nossas fontes dizem que foi a 16...
De qualquer modo, era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o "tigre de Missirá", tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto no último post que inserimos (1):

"A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos" (...).
Não foi a 15, mas sim a 16. O Corca Só não levou para Madina/Belel o escalpe do Beja Santos. E isso é o mais importante: ele hoje está vivo e entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos...
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Nota de L. G.:

Guiné 63/74 - P910: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (Fernando Chapouto, CCAÇ 1426)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > O Fernando Chapouto, residente em Bobadela, ex-furriel miliciano da CCAÇ 1426 (1965/67), que passou pela zona leste, a noroeste de Bafatá: Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda... É, além disso, um cruz de guerra.

Tem um página pessoal donde se retiram os seguintes elementos biográficos, relativos à sua comissão na Guiné: (i) Partida para a Guiné no Niassa em Agosto de 1965; (ii) Em Outubro de 1965 está em Camamudo; (iii) Em Dezembro de 1965 passa por Banjara; (iv) em meados de 1966 está destacado no Geba; (v) em Março de 1967 está em Cantacunda; (vi) Em Maio de 1967 regressa à metrópole no Uíge.

Há um outro nosso tertuliano que pertenceu a esta unidade, a CCAÇ 1426 (1965/67): é o Belmiro Vaqueiro, também ex-furriel miliciano, residente em Bragança. Há um ano atrás, publicámos aqui uma mensagem do Belmiro Vaqueiro : vd. post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67): Presente!, de que se destaca aqui um excerto:

Foi com muita emoção que vi o excelente trabalho publicado na Net acerca dos bravos da CART 1690. Curvo-me perante a memória dos caídos em combate cujo historial desconhecia. É que eu percorri todos esses locais e ainda tenho bem presente os momentos vividos em Cantacunda e Banjara. Fiz parte da Companhia de Caçadores nº 1426 com sede em Geba (1965 a 1967), companhia que que pelos vistos foi rendida pela CART 1690 nos primeiros dias de Maio de 1967 (...).
A CART 1690 foi a companhia, com sede em Geba, a que pertenceu originalmente o nosso camarada A. Marques Lopes.

Foto: © Hugo Moura Ferreira (2006)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > Sérgio Pereira e Lema Santos, em amena conversa, tendo ao meio o organizador do encontro da nossa minitertúlia, o Hugo Moura Ferreira. Diz o Chapouto: Recordar é viver... Este ano fomos poucos. Para o ano iremos mais, se Deus quiser. Mas é bom conviver com alguém que nos toca na mente e no pensamento e com quem, há muitos anos, palmilhámos o mesmo mato e as mesmas bolanhas, partilhando o mesmo sofrimento (...)

© Fernando Chapouto (2006)

Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > Em frente ao Forte do Bom Sucesso e do Memorial aos Mortos dos Ultramar> Da direita para a esquerda: Sérgio Pereira, Fernando Chapouto, Hugo Moura Ferreira, um camarada não idnetificado, o Fernando Franco e um antigo combatente da Guiné. Legenda do Fernando Chapouto: "Uma demonstração de unidade... e a prova de que não há racismo entre nós".

© Fernando Chapouto (2006)

domingo, 25 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P909: O nosso Blogue informação e conhecimento: História da enfermagem na guerra colonial (Pedro Correia)

1. Eis um pedido à nossa tertúlia e que eu gostaria de ver satisfeito:

Boa tarde, Doutor Luis Graça:

Sou o Pedro Correia, aluno do 4º ano do curso de Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem Imaculada Conceição. Estou a realizar a monografia de final de curso em que decidi escolher o tema da enfermagem na guerra colonial.

Pretendo abordar a prestação de cuidados pelos enfermeiros; as suas acções, formação e preparação que possuíam; quais os meios e recursos que possuíam; evacuações de feridos.

Tendo tomado conhecimento do blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné, venho assim pedir a sua ajuda pois procuro dados acerca dos enfermeiros na guerra colonial.

Obrigada pela atenção, fico aguardar reposta.

Sem outro assunto de momento despeço-me atenciosamente.
Pedro Correia

Escola Superior de Enfermagem Imaculada Conceição
Rua Pedro Hispano, 923 - 4200 Porto
Telefone: 228 349 850
Fax 228 301 165


2. Caros amigos e camaradas da Guiné:

Temos, na nossa tertúlia, pelo menos quatro camaradas que fizeram poarte dos serviços de saúde militares:

(i) Carvalhido da Ponte, João Carvalho, Rui Esteves (ex-furriéis milicianos de enfermagem)

(i) José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro)

Alguém está em condições de dar uma ajuda ao aluno de enfermagem Pedro Correia? Recordo o pedido dele: "Pretendo abordar a prestação de cuidados pelos enfermeiros; as suas acções, formação e preparação que possuíam; quais os meios e recursos que possuíam; evacuações de feridos".

Seria útil para todos nós: este tema ainda não foi sequer abordado no nosso blogue... Que me recorde, o único que nos falou da acção (heróica) dos enfermeiros durante a guerra colonial (em combate e no apoio sanitário às populações locais) foi o Zé Teixeira, no seu diário: vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Num dos volumes Nova História Militar de Portugal (ed lit Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira). Lisboa: Círculo de Leitores,2003) também há um capítulo dedicado às mulheres (e em particular às enfermeiras paraquedistas).

3. A resposta, solidária, dos nossos tertulianos não se fez esperar:

3.1. Caro Luis: Também os enfermeiros do Esq Rec Fox 2640 (1) estão disponiveis para colaborar com o Pedro Correia.

Ex-Furriel Mil José Alberto da Costa Lima (Tel. 219376859)

Ex-1º Cabo Floriano da Silva Almeida (Tel. 239438280)

Um abraço, Manuel Mata

3.2. Feliz ideia. Por mim, será com muito gosto. Como o Pedro Correia, está cá no Porto, pode entrar em contacto comigo via e-mail ou pelo telemóvel 966238626, para marcarmos encontro.

Um abraço
Zé Teixeira


4. O Pedro Correia acaba de me mandar um e-mail, datado de 26 de Junho de 2006, a agradecer a nossa colaboração:

Boa Tarde!
Quero antes de mais agradecer-lhe o facto de ter disponibilizado no seu blogue o assunto de
'enfermagem' e também aproveitar para felicitá-lo pelo excelente blogue, um elemento bastante importante referente a um grande acontecimento da história de Portugal.
Aproveito igualmente para agradecer a todos aqueles que se disponibilizaram a ajudar-me a conhecer o trabalho realizado pelos enfermeiros durante a guerra colonial. Mais uma vez agradeço a atenção e colaboração. Sem outro assunto de momento, despeço-me atenciosamente. Com os melhores cumprimentos. Pedro Correia_____________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)

Guiné 63/74 - P908: Recordações de 1968/69 (Torcato Mendonça, CART 2339)

Texto do Torcato Mendonça, com data de 22 de Junho e a seguinte nota:

Caro Luís Graça:

Continuo a ler o Blogue com muito interesse.

Há acontecimentos vividos por mim, mas não os recordo como são descritos. O tempo, a memória e a subjectividade da análise. Falei com o Marques dos Santos e, por vezes, acontece-lhe o mesmo.

Vão umas notas sem qualquer pretensão historiográfica… nada disso!


Fui ao Centro de Saúde (...) e conheci uma senhora simpatiquíssima.


GUINÉ 68/69 RECORDADA EM 2006


"Às vezes me alegro outras me entristeço”,,, ou rio com o matchudandi di branco, os mails do (des)encontro do 10 de Junho e o cão Labrador [do J. Vacas de Carvalho, contada na tertúlia, off-record...]; comovo-me (arrepio-me) com Gadamael/Guilege, as listas de fuzilados, o Presépio de Chicri…Vou lendo o Blogue e cada vez sinto mais presente aquela terra vermelha e ardente….

Só umas notas rápidas:

(i) O Beja Santos é meu contemporâneo na Guiné. Pensava que tinha comandado o Pel Caç Nat 53.

(ii) Na História da Guiné e Cabo Verde – publicada com o apoio da UNESCO em 1973/74 e impressa em Paris –apesar da sua natural “parcialidade”, devido ao ano da publicação, pode ler-se a pag. 92: “Os povos de África prestam hoje homenagem, como seus heróis nacionais, aos combatentes... Infali Sonco (e outros ).

Sobre o Alferes português e a Campanha de 1907/08, a pag. 102 refere:

Infali Sonco, régulo do Cuor, é ofendido pelo Comandante do Posto de Geba, o qual bate na sua própria presença num dos seus colaboradores. Ele reage matando um Alferes português e prende o Comandante, que libertará de seguida. Recusa o pagamento do imposto, corta a navegação no Geba, entre Bissau (?!) e Bafatá... Tiveram depois de vir reforços de Lisboa

Não será o Governador Fortes o Comandante de Geba?

O Historiador Leopoldo Amado certamente terá deste episódio, Infali Sonco e campanha posterior 1907/08, dados mais consentâneos com a realidade. Como também das campanhas de Teixeira Pinto e outros.

Não li a Nova História Militar de Portugal, mas com os autores que tem deve ser um óptimo elemento de consulta.

(iii) Longe de mim a pretensão de fazer história. Estórias da passagem pela Guiné! Gosto de História mas isso não interessa.

Claro que o Beja Santos ficciona as suas estórias. É natural e vale a pena ler textos com aquela qualidade.

Há (tenho) um outro livro – Grandeza Africana: Lendas da Guiné Portuguesa, de 1963- que, servindo-se da transmissão oral, relata os feitos de muitos heróis fulas, mandingas e outros. Termina com a Canção de Cherno Rachide, de Aldeia Formosa. Não conheci mas ouvi falar muito deste homem. São contos lindos sobre aqueles povos.

Gostava de aprofundar este assunto, mas já alonguei as breves notas.

(iv) Uma última: Se bem me lembro, a emboscada sofrida pelo Paulo Raposo foi próximo de Mansambo, na subida do pontão do rio Almami. A Secção era do Pelotão de Mil 145, estacionado na Moricanhe. À passagem dos militares do 145 foi accionada, com comando á distância, uma mina anti-carro. Dois mortos, um capturado – Soldado Lamine que conseguiu fugir e voltar cerca de uma semana depois – e três feridos. Um deles o Sargento Mádia ainda perseguiu o inimigo mas, esgotado devido aos ferimentos, voltou para Mansambo.

Talvez os homens do 145 fossem filhos de um Deus menor. A Virgem Mãe não conseguiu salvá-los a todos. Bocados dos mortos ficaram, por muito tempo no cimo das árvores. Os vivos ripostaram bem e provocaram baixas , previstas por mim logo no local e confirmadas posteriormente pelo Laminé .

Era outra estória!

Guiné 63/74 - P907: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (1): A nossa blogoterapia

Mensagem do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), um algarvio qu foi parar à terra da melhor cereja do mundo, o Fundão, e que há dias teve a gentileza de fazer uma visita de cortesia à minha irmã mais nova, Ana Isabel Henriques, que é enfermeira especialista no centro de saúde local... Torcato: obrigado pela parte que me toca. Apreciei muito o texto sobre o Malan Mané que, como sabes, foi gravemente ferido a meu lado. Só hoje publiquei as tuas "duas estórias para duas fotos" (o texto é teu, as fotos do Cardoso e o correio foi o Carlos Marques dos Santos). Mesmo com atraso, cá chegou ao meu SPM. Espero que continues a blogar, que é uma boa terapia. Por mor de todos nós, como se diz no Norte. Entretanto, cuida-me bem desse coração... (LG)

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Caro Luís

Há algum tempo que estou na Guiné. Não enlouqueci. Só que li o que escrevestes e, principalmente o que o Beja Santos escreveu. É duro, sabes - um voltar ao passado em segundos ou minutos, eu nem sei. Lastimo o falecimento do David Payne (1); lastimo todas as vitimas daquela brutalidade. Até que ponto não fui também corresponsável. Até que ponto não estive mais com Marte e menos com a razão?

Hoje estive na Assembleia Municipal. Não trocaram ideias. Preferiram insultos. Quando cheguei a casa tentei jantar mas desisti.Telefonei aos filhos. Depois abri a Televisão, liguei o portátil e fui ao Blogue. Parei no tempo… ou fui até lá… quase que senti os cheiros!

Quando estou tenso a música clássica, em som alto, acalma-me. Hoje é tarde para o fazer. Desde sempre que a música, mesmo no rádio, me acompanha. Ici rádio Abdijan…. Só que era música africana. Gostas de Bach. Sei que o Beja Santos era melómano e ficou sem os discos. Nunca falámos nisso. Talvez a guerra fosse mais importante…Talvez!

Desculpa este desabafo. Estou mais calmo. Será isto uma terapia?

Um abraço,

Torcato Mendonça

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Nota de L.G.:

(1) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu último post, de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).

Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)



Fotos apresentadas no almoço de convívio anual da CART 2339, que este ano se realizou em 20 de Maio de 2006. (Fotos do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; texto do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos; )

FOTO 1: Évora - RAL 3

Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na 1ª fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz, da CART 2338. Este nosso camarada coordenava a travessia do Corubal, no Cheche, quando houve aquele trágico acidente. Texto ou textos já publicados no Blogue (1).

Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço.

Na foto éramos uns jovens… não sabíamos o que iríamos enfrentar, nem onde. Curioso seria ter tirado, no regresso, outra foto no mesmo local e com as mesmas personagens. Ver-se-iam as diferenças…

Malhas que o império teceu!

FOTO 2: Turra Mané

Interrogatório a um prisioneiro.
Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané.

Só um apontamento sobre o Malan.

Em Agosto de 1969, o meu Grupo de Combate reforçado com Milícias, estava no COP 7 ou melhor, a trabalhar para a Companhia do Cap Mil Jerónimo, em Galomaro [CCAÇ 2405]. Como as Tabancas, em autodefesa, de Candamã e Afiá voltaram a ser atacadas, fomos chamados com urgência a Bambadinca. Houve uma reunião com o Comandante do Agrupamento – Coronel ou Brigadeiro Hélio Felgas -, o Tenente Coronel Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 e outros oficiais cujo nome já não recordo.

Recebemos a missão. Partir de imediato para Candamã/Afiá com mais um Grupo da minha Companhia. Recolhemos mais informações, com o Comandante da CART 2339, Capitão do Quadro Permanente Laranjeira Henriques, e, em coluna auto, deslocámo-nos para lá.

Na passagem por Afiá consegui convencer o Lhavo, caçador e guia em várias operações, para nos voltar a orientar. Mostrou-se relutante. Tinha as suas razões e, se bem me lembro, estavam correctas.

No dia seguinte lá partimos com o Lhavo e encontrámos a pista do IN. Seguimo-la, em progressão balanta. Vimos um local de pernoita, calculámos quantos seriam e, no fim do dia, descobrimos o possível local do acampamento. Som de pilão e outros indícios. Além disso, o local era óptimo para um acampamento.

Dois dias depois, salvo erro, forças das CCAÇ 2590 [CCAÇ 12], CART 2339 e o Pel Caç Nat 53 montaram emboscadas em possíveis locais de fuga do IN. Paraquedistas do Cop 7 assaltaram e destruíram o acampamento. Capturaram o Malan Mané. Na fuga o IN, junto á estrada Mansambo/Xitole, caiu numa emboscada da CART 2339. Sofreram baixas e foi ferido com gravidade o Comandante do PAIGC, Mamadu Indjai (2).

A nossa tropa regressou a quartéis e eu voltei a Mansambo. Uns dias depois entregaram-nos o Malan Mané. Íamos fazer uma operação – Pato Rufia – na zona do Xime e o Malan era o guia (3). Ele já tinha sido interrogado, creio que em Bambadinca. Não sei como decorreu mas imagino. Pelo breve relatório que nos entregaram disse pouco.

Em Mansambo o Malan foi para um dos dois abrigos do meu Grupo. Estes abrigos tinham uma sala que servia como refeitório, local de convívio, escrita e leitura e outros fins. Ficava na parte do abrigo virada para a parada, rodeada por duas fiadas de bidões com terra e tecto de zinco e colmo.

Entrei nessa zona e o Malan levantou-se, olhando para mim com um olhar inquieto, no mínimo. Fiquei, eu e os outros militares surpreendidos com aquela reacção. Como ele não falava mandinga e o meu crioulo era fraco, mandei chamar o Lali.É o guineense que se vê a sorrir na foto. Quando sentimos que o Malan estava mais calmo, conversámos com ele durante o tempo necessário para obter muitas informações. Foram passadas, as mais importante, a muitas folhas de papel.

O Malan sabia quem eu e outros camaradas éramos porque vinham, ele e outros militares do PAIGC, espiar-nos aquando da construção de Mansambo; tinha estado na fatídica emboscada da fonte, cerca de um ano antes. Viram-me passar mas não abriram fogo pois o objectivo era a fonte. Nesse dia fui com o meu Grupo á Moricanhe onde estava o Pelotão de Milícias 145. Disse-nos que o Cmdt do PAIGC para aquela zona era o Mamadu Indjai, recentemente reforçado e tendo 120/150 combatentes, com armas pesadas etc, etc. Não sabia o que entretanto sucedera ao seu ex-comandante.

Parece um relato de um santo. Claro que não o éramos. Aplicávamos a dureza julgada necessária, a disciplina, estávamos certos que o suor poupava sangue. Além disso sobre a Convenção de Genebra… só de nome… um conjunto de Leis, será?... Genebra, a cidade Suiça e a detestável bebida!... Mantínhamos era a nossa dignidade e o respeito por quem contra nós lutava. E não só.
Voltando ao Malan Mané. No dia seguinte fomos para o Xime. Correu mal a operação. O Malan enganou-se demasiadas vezes e, além de não atingirmos o objectivo, viemos de mãos a abanar.

Essa operação foi repetida, segundo me parece e o Malan foi ferido…Encontrei-o, em Novembro de 1969 no Hospital Militar em Bissau. Ver nota anterior no Blogue (4).

Em nota de rodapé: gostava de saber onde estará o Malan, o Braimadicô – ex-comandante do PAIGC, que nos guiou na operação Lança Afiada... Ainda vou escrever sobre ele e essa operação. Mas principalmente o que terá acontecido ao Lali, Lamine, Sargento Madia Baldé e a outros militares do Pelotão de Milícia 145 ou ao Régulo António Bonco Balde. Eram outras estórias!

África, principalmente a Guiné, é uma saudade. Mas... e mais não digo por agora.


Torcato Mendonça,

ex-operacional, Cart 2339 (Mansambo, 1968/69)

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd., entre outros, os seguintes posts em que é referido o nome do Alferes Miliciano Diniz, da CART 2338:

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIII: A verdade sobre o desastre do Cheche (Rui Felício)

2 de Agosto de 20054 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

(2) Vd post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) ...

(...) "Op Nada Consta > Desenrolar da acção:

"Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; e a oeste, forças da CART 2339), veio a primeira vaga de paraquedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.

"Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2 (9). Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos paras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.

"0 prisioneiro [Malan Mané, de seu nome, de etnia mandinga], entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação [de material] ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam 80 homens (10), sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os paras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas" (...).

(3) Vd. posts de:

8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(4) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)

(5) Informação preciosa do Torcato: n relatório da Op Lança Afiada, publicada em quatro partes no nosso blogue não é referido o nome do prisioneiro, Braimadicô, que serviu de guia às NT:

Vd. posts de:

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli

sábado, 24 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio

1. No passado dia 21 de Junho de 2006, o Beja Santos mandou-me a seguinte mensagem:

Meu caro Luís,

Fico preocupado pela capacidade de retenção da tua memória.

A maior parte dos acontecimentos que aqui descreves são fidedignos. Não te esqueças que eu tive um papel vagabundo nesta guerra. Cheguei a Missirá a 4 de Agosto de 68 e lá permaneci até Novembro do ano seguinte. Só abandonei Missirá porque os soldados estavam fartos daquele tipo de guerra em que eu os envolvi. Depois, parti para Bambadinca, onde era pau para toda a obra. Se quiseres, um dia posso-te fazer esta memória descritiva. Talvez seja útil para os nossos netos. Tenho muito gosto em encontrar-me contigo a partir de Julho. Vê no que te posso ser útil. Penso reformar-me aos 67 anos, se não houver problemas de saúde. Depois, tenho agendado escrever SPM 3778. Caso não te recordes, era o meu endereço na guerra. Manda-me a morada do blogue onde está o meu texto, por favor.

Recebe um abraço do Beja Santos


2. Respondi-lhe no dia seguinte nestes termos:


Camarada e amigo Beja Santos:

Fico contente por saber dos teus planos… Vou ficar à esperar do teu SPM 3778… Que Deus te proteja, como te protegeu na Guiné, e te dê saúde para escrever as tuas memórias… Eu também tenho coisas na calha… Sei que eras católico, eu não…

Quanto à minha memória, é capaz de não ser assim tão famosa… Na Guiné ia escrevendo o meu diário… Memória de elefante tem o Humberto Reis, mas tu sabes como nós somos selectivos… Por exemplo, eu invejava a tua discoteca de música clássica quando ia a Missirá; em contrapartida, só há tempos soube que alguns colegas teus, alferes milicianos, te chamavam o tigre de Missirá… Digo-te isto com ternura, até porque sempre admirei a tua relação com os teus homens… A idade, a maturidade e a distância permitem-nos estas (in)confidências: mas é também para isto que o nosso blogue serve…

O Mário Dias, um durão dos comandos de Brá (1963/66), acabou de escrever isto a teu respeito, e que é lindo: “Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade".

(...) Estou a reunir material para construir uma página só dedicada aos destacamentos de Bambadinca: Missirá/Finete, Fá Mandinga, Ponte Rio Undunduma, Nhabijões… Se tiveres material fotográfico ou outro, a malta agradece… Os direitos de autor ficam sempre garantidos: o seu a seu dono... Num ano, já juntámos mais de 100 camaradas … e alguns amigos, não-combatentes, como o historiador Leopoldo Amadao, o jornalista Jorge Neto, ou o Pepito – Carlos Schwarz – mentor do Projecto Guileje, fundador e director da prestigiada ONG AD – Acção para o Desenvolvimento (estará cá de férias em Julho)…

3. Resposta do Beja Santos:

Meu caro Luís, mentir-te-ia se te dissesse que não me tocou profundamente a carta e os mais conteúdos. Fiquei petrificado a ver a Capela onde eu ia à missa. Assim nasceu o conto que te ofereço para o blogue. E agora pára de fazer chatagens sentimentais, obrigando-me a escrever através de novas revoadas de comoção.

Esta guerra é desinteressante para a geração dos nossos filhos, pois vem no nevoeiro de uma outra época terminal. Passará à moda na geração dos nossos netos. Por isso é que [acções] tão meritórias como aquela que estás a fazer merecem ser apoiadas. Faço Frequências na segunda e fica prometido que quando te telefonar terei à mão as fotografias que me pedes.

Atenção, que já há muita bibliografia sobre a nossa guerra. Por exemplo, o Freire Antunes escreveu dois volumes no Círculo de Leitores. Eu apareço no primeiro, com extracto do meu relatório da operação Rinoceronte Temível e o poema que o poeta Ruy Cinatti escreveu quando lhe mandei o relato que deu origem ao Presépio de Chicri. Recebe um abraço do Mário Beja Santos.


4. Acho que acabei de lhe fazer outra surpresa ao publicar a fotografia que mostra o estado em que ficou o Unimog 404, depois de accionar uma mina, quando o Beja Santos seguia de Finete para Missirá, no dia 15 de Outubro de 1969, por volta das 18h00... Era voz corrente que ele tinha a cabeça a prémio... Ele acaba de o confirmar no magnífico texto que é a carta ao Alcino Barbosa e a que chamou "mais um continho para o teu álbum de memórias" (vd. post anterior).

O Beja Santos não me levará a mal se eu lhe roubar a ideia do título de um dos seus próximos livros e passar a chamar às suas estórias, reais e ficcionadas, SMP 3778 ou estórias de Missirá...

Só uma ressalva: Mário, o blogue não é meu, é nosso... Ficamos honrados com a tua presença, a tua lucidez, a tua frontalidade, o teu talento, o teu testemunho, puro e duro... Como sabes, uma das nossas poucas regras, é o respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)... Aqui, nesta caserna virtual, ninguém é juiz de ninguém... É a única maneira de falarmos, abertamente, sem ressentimentos, das nossas experiências como homens e como combatentes...

Obrigado também pelas publicações que me mandaste pelo correio. Com tempo, farei aqui uma breve recensão dos teus livros, para os nossos amigos e camaradas te conhecerem melhor... (LG)

Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 examinam o estado em que ficou a viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé. O accionamento da mina foi seguido de emboscada. A NT, que seguiam em coluna de reabastecimento ao destacamento de Missirá, sofreram um morto (sold condutor Manuel Guerreiro Jorge, da CCS do NCAÇ 2852) e quatro feridos (1º cabo Alcino Barbosa e o sold Cherno Suabe, ambos do Pel Caç Nat 52; 2º Sarg Milícia Albino Mamadu Baldé, do Pel Mil 101; Sold Trms Arlindo Guiomar Bairrada, do Pel Mort 2106/CCS do BCAÇ 2852).

O Pel Caç Nat 52 foi depois transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006)

Carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade

Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Alcino, esta carta está escrita no meu coração desde o dia 16 de Outubro de 1969, quando tu passaste a ser sinistrado de guerra. Até então, tu eras o 1º cabo a quem eu confiava a manutenção da dispensa, a preparação das escalas dos turnos da noite, a limpeza das metralhadoras nos abrigos, a elaboração da lista das munições que traríamos do batalhão.

Enviaram-me agora uma fotografia da Capela de Bambadinca, e a minha primeira recordação foi para ti. Um dia, regressava eu de um coluna do Xime, e alguém da secretaria me informou da tua chegada. Recordo um jovem transido, a olhar-me apavorado. Devem ter dito de mim cobras e lagartos, que ias para o inferno de Missirá sob o comando de um louco que andava permanentemente na mata. Tu vinhas substituir o Raposo, a quem apliquei 10 dias de prisão por ter adormecido no posto de sentinela. Apanhaste a fase épica da reconstrução do quartel, depois dos incêndios de Março, que devoraram as moranças, abrigos, depósitos. Ajudaste-me imenso. Eras reservado, o meu irmão mais novo a quem eu entregava aspectos de logística que me enfastiavam. Sei que adoeceste um dia que recebeste uma carta, sabe-se lá que calúnias ou suspeitas infundiram sobre o teu ânimo. Mas eu continuo a ver-te a tremer junto à Capela de Bambadinca, assombrado com a guerra que se aproximava. Eras um camponês, e ao longo destes anos eu interrogo-me sobre o que tens feito na vida, coxeando na tua fractura de calcâneo. Ora eu sou inteiramente responsável por tudo quanto se passou em Ganturé, pelas 18 horas de 15 de Outubro, e tu uma das minhas vítimas. Segue a minha confissão.

Os meses de Agosto e Setembro foram tumultosos, com operações, patrulhamentos diários a Mato Cão, a montar a vigilância às lanchas que navegavam até ao porto de Bambadinca. Tu deves estar recordado que em Agosto, entraste afogueado no meu abrigo aos gritos:
- O Furriel Casanova diz que vai matar toda a gente!.

Quando cheguei à porta do abrigo, de facto o Casanova andava de metralhadora em punho a ameaçar toda a gente de morte, caso lhe desobedecessem. Alguns soldados riam, pensando que se tratava de uma paródia. Mas não. Os nervos do Casanova tinham cedido. Demorei meia hora a avançar para ele, ele gritava:
- Não se mexa, mais um passo e dou-lhe um tiro na cara!

Quando lhe tirei a arma pelo tapa-chamas, ele caiu redondo no chão da parada. Como te recordas, foi evacuado e não mais voltou. Era assim a nossa guerra, eu via-te triste, penso que tu estavas muito distante, mordido de saudades da tua gente.

A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos.

Mandava o bom senso que eu desse ouvidos ao nosso condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que me pediu insistentemente que ficássemos em Finete. O Unimog 404 vinha carregado de combustível, rolos de arame farpado, munições e alimentos. E em Ganturé a roda dianteira do lado do condutor pisou a mina anti-carro que desfez completamente a frente da viatura.

Os minutos que se seguiram foram de apocalipse e caos, à altura daquela guerra. Saí com a G3 na mão e foi o que me valeu. O Cherno, que seguia no guincho, desapareceu, isto quando o guincho ficou completamente retorcido. O Cherno apareceu a dezenas de metros de distância, feito num Cristo, felizmente andou pelos ares e aterrou num morro de baga-baga. O desastre maior foi mesmo o Manuel Guerreiro Jorge que ficou desfeito da cintura para baixo e já chegou morto a Finete. Estou neste momento com a carta que o pai dele me escreveu quando regressei a Portugal, pedindo-me para o ir visitar ao Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique. Prometi ao Sr Jesuíno Inácio Jorge ir visitá-lo em breve, o que nunca aconteceu.

De acordo com o relatório que fiz sobre esta emboscada e accionamento da mina anti-carro, tu ficaste ferido, bem como o Comandante da Milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé e o soldado Arlindo Bairrada. Imagina tu que o Bairrada foi ferido com estilhaços num saco lacrimal, andou com um olho pensado durante semanas e recompôs-se rapidamente. Também perdi o rasto do Bairrada.

Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar.

Escrevo-te agora pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me perdoes a minha incúria naquela guerra demencial, onde eu arriscava tudo, esquecendo-me que comandava homens, jovens da minha idade. Devia ter-te procurado. E de vez em quando sinto-me intranquilo sabendo que tu, meu caríssimo Alcino, merecias que te tivesse procurado, dado companhia e confirmado a amizade que sempre senti por ti.

Não sei exactamente porque te estou a escrever hoje. Creio que o detonador foi a tal fotografia da Capela de Bambadinca, onde muito perto te conheci. Estamos numa idade em que não vale a pena guardar rancores e só me resta ter pena deste meu estúpido silêncio que alivio agora com esta confissão. A ver se ganho coragem para descobrir onde tu paras e tentar dar força à nossa amizade.

E se acaso leres esta carta, tal como nós dizíamos nos aerogramas, espero que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade.

Teu, Mário Beja Santos.

Guiné 63/74 - P903: SPM 3778 ou estórias de Missirá (2): o presépio de Chicri (Beja Santos)

Vd. post de 21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P902: SPM 3778 ou estórias de Missirá (1): a lenda do alferes Hermínio (Beja Santos)

Vd post de 18 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P882: Infali Soncó e a lenda do Alferes Hermínio (Beja Santos)

sexta-feira, 23 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P901: De Viana do Castelo a Cansissé (Américo Marques)

Texto do Américo Marques, ex-soldado de transmissões da 3ª CART do BART 6523, com sede em Nova Lamego (Gabu), destacado em Cansissé (Jun. 1973 / Set. 1974)

Boa tarde Luís!


Mais uns escritos, muito simples e sem conteúdo que doa, a recordar, como acontece com outros relatos. Unicamente descrevo um bocado da vivência, que em parte todos viveram. O ir, chegar e sobreviver – até regressar. Numa África que nos foi comum.


© Américo Marques
Américo Marques



A Estibordo do Niassa

Após ter ido de Viana do Castelo (B C 9) para formar batalhão até Penafiel e desta até Lisboa para embarcar no Niassa. E, como se tivesse acordado, dou comigo sentado no castelo da proa a estibordo do meu transportador marítimo. Num fim de tarde de Junho de 1973, quando avistei reconfortante vegetação – que me fez lembrar rapidamente a vida verde das montanhas e dos campos minhotos. Neste caso, as rendas verdes de Viana. Cidade pequena, dotada pela natureza com um rio calmo um mar muito iodado, e uma montanha que é destino de peregrinos. No resto é como outra qualquer. Composta de cedros, acácias, pinheiros, carvalhos, esquilos e miradouro para um deslumbrante horizonte. Quando o sol namora o mar, ao fim da tarde.

Depois deste devaneio ou divagação que me confundiu, resultante de um estado psicológico muito frágil (porque enjoei), deixei-me aconchegar pelos sendeiros de terra vermelha de Bissau. Envolvimento irreversível. Fazendo nascer em mim uma ligação que é neste momento - passados 33 anos - uma saudade maior que o oceano que nos separa... Fisicamente como é óbvio. Porque na mente a Guiné só não é a minha primeira terra porque existe uma outra, chamada Portugal.

E assim, já muito picado, fui andando, indo e me envolvendo com a realidade da Guiné. Foi quando nos enviaram para o Cumeré, para ouvir as boas vindas do supremo, o General A. Spínola. No dia seguinte, carregados de petiscos, bombarda e o Racal, foi dar ordem às botas até Mansoa. Cumprir o terrível I. A. O, que se estendia também às zonas de Nhacra e Dugal.

Passadas duas semanas, toca a carregar de novo o equipamento de campismo para definitivamente ficarmos acampados… Ah, mas não fomos à pata! Fomos enlatados num ferry, uma LDG, até ao Xime. Hall de entrada, via berliet, para as terras do Gabu.

Aqui tracei (mal) ou alterei o meu destino mais imediato. Como o bazuqueiro era amigo e companheiro de trabalho e como pertencia a outro grupo de combate que não o meu, pedi para trocar. Saiu-me a fava! Pois deixei de poder ficar em Nova Lamego. Que tinha comércio de gente ibérica, cinema, raparigas das nossas e vinho Lagosta. E de novo lá vou com as ferramentas. Desta vez para a vida paleolítica de Cansissé, acompanhado na viagem por muitos macacos que, para meu espanto, ladravam.

Ao chegar, embora nos tenham recebido com uma enorme festa, eu sou mal tratado (mas aceitei as caneladas) pois os 2 operadores de rádio que já cantavam; estaaaa´na mala… ficam encornados! Aguardavam dois transmissões e só chega um, e de maca, devido a estar com uma carga de paludismo.

Acreditem, que cá o doente teve pena do Lisboeta e do Alpalhão. Este grupo de combate até tinha o título de Os Duros de Cansissé, que chatice não os livrar das noites de escuta (até ao último dia) no Racal TR28.

Era só operações!... Na primeira, devido a levar a antena do STORNO à vista, o capitão chamou-me nomes feios, daqueles que se chama aos do apito... Desde o nascer do sol até ao pôr do mesmo. Quando assim não era, tinha que se cortar palmeiras - ai as minhas mãos! - para novos abrigos, pois o inimigo tinha armamento terrível. Nem os jactos escapavam. Eu que escutava nos diferentes rádios sei o que comunicavam, em cifra ou em codartemar.

Mas o pior era comer tripa seca (dobrada), tomar banho à bidonville; andar à pancada a escorpiões e aos tiros a serpentes. Iluminados com petróleo, que se metia em garrafas da cerveja Sagres e cuja torcida era feita de gaze, que nem sempre havia devido a ter duas estafadas Mercedes, constantemente avariadas. Obrigando durante as colunas que alguém tivesse que ir para trás, de bicicleta (emprestada!), por picadas não batidas até ao Destacamento ou a Canjadude, para trazer óleo. Neste caso, e que me lembre, o meu conterrâneo foi um dos valentes voluntários a fazer de aguadeiro (género o grande Joaquim Agostinho) para nós.

Escrever sobre sofrimento, situações sangrentas ou mortes dos da minha CART e das outras, não o faço, pois é provável que possa contar estórias sobre esta nossa História, no seu ponto mais dramático. E essa, só diz respeito ao colectivo do BART 6523. Nunca a uma vontade (embora normal) individual de prosar.

Concluo com uma grande necessidade de descarga emocional: nenhum Soldado devia ser sujeito a submeter-se - pois fomos obrigados a arrumar as armas e acatar ocontrolo do PAIGC - a um inimigo que tinha razão. E nós não sabíamos e foi uma grande humilhação. Por isso e só por isso. E por conseguinte, fomos escorraçados e hostilizados com palavras e gestos de desprezo, durante o percurso da viagem sem retorno, do Cumeré, local de concentração, até ao aeroporto. Naquela manhã de 9 de Setembro de 1974. Dia do Fim!

Junho 2006

Américo Marques

Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

1. Há dias pedi ao António Santos o seguinte: "Gostava que nos contasses como é que foi em Nova Lamego, em 1974, a ‘passagem de testemunho’ ou a ‘troca de galhardetes’ entre as NT e o PAIGC… Tens fotos dessa época, a seguir ao 25 de Abril ? Como é que os fulas e futafulas reagiram ? E os comerciantes, brancos e outros, como é que se portaram ? Alguém me disse (o Américo Marques) que chegou a haver manifestações dos civis contra as NT... Houve problemas com o PAIGC ? Tens memórias desse tempo ? Por exemplo, aerogramas ?"

2. Resposta pronta do A. Santos (ex-sold trms, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74)

Amigo Luís:

Em resposta ao teu pedido, sobre Abril em NL [Nova Lamego]:

Houve alguma confusão mas, como é lógico, ninguém me tira da cabeça que houve mãozinha do PAIGC.

No 1º de Maio [de 1974], NL acordou com muitas montras partidas, portas arrombadas e muita pilhagem, claro que houve muitos estragos, materiais e fisicos:

(i) materiais: tudo o que se podia levar para casa marchou, sendo os alvos principais as casas tradicionais do comércio guineense e as casas de libaneses;

(ii) físicos: 4 ou 5 mortos e vários feridos, não sei precisar.

De início a tropa tentou segurar a sublevação mas, como não estava a conseguir, o Coronel, comandante do CAOP2, mandou avançar os paraquedistas, que estavam ali à mão e o resultado foi o atrás descrito.

Quanto aos Fulas, sempre me dei bem com eles e vice versa, inclusive alguns até considerava como amigos. Recordo que principalmente as mulheres diziam que o branco não devia vir embora.

Após esse dia só houve mais uma tentativa, mas não me recordo de haver males fisicos, depois os ânimos serenaram, os militares do PAIGC começaram aparecer fardados, alguns até eram lá do sítio, e ostentavam a arrogancia própria dos vencedores,peito inchado... Na grande maioria, ao passar uns pelos outros nem nos cumprimentavamo, uns aos outros... Havia tensão no ar, mas nunca passou disso.

Todo o tempo de guerra dá cabo dos nervos aos seus intervenientes, mas, Luís, o período que mediou de finais de 1973 até depois do 25 Abril deu cabo dos meus. Na altura não avaliei a situação, como é natural, mas hoje passados estes anos todos é que sei o quanto me fez mal à saúde.

Um abração

A. Santos

Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)

Guiné > Zona Leste > Contuboel > A dolce vita dos dois primeiros meses de comissão (1)... Luís Graça (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11), em passeio pelo Rio Geba, em Junho de 1969.

Foto do arquivo pessoal de © Luís Graça (2005)

Tenho este texto guardado, há um ano, com uma enorme gana de o publicar... Não o fiz por respeito à vontade (tácita) do seu autor, que eu conheço de Contuboel, dos brevíssimos meses de Junho e Julho de 1969, e de quem perdi depois, completamente, o rasto (mas não o rosto)... O rosto vim a reconhecê-lo na contracapa de um livro: enfim, uma estória singela de encontros e desencontros já aqui evocada no post anterior...

O Renato, que faz parte da nossa tertúlia, ainda não disse quem era: dei-lhe um tratamento de privilégio... Mas já agora ficam a saber mais alguma coisa sobre o misterioso homem da piroga:

Embarcou para a Guiné em 18 de Fevereiro de 1969, fazendo parte da Cart 2479 / BART 2866... Passou por Contuboel (Junho/Julho)(1) e Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares... Sem entrar em detalhes, por razões de confidencialidade e respeito pela privacidade do meu amigo, julgo que caso destes não eram tão raros quanto isso no nosso tempo... Já aqui o João Tunes falou do caso dele (2)... A porrada valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.

Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, ao resto da tertúlia, mais um camarada da Guiné, com uma históira de vida e uma sensibilidade singulares, um homem desalinhado como eu, e sobretudo que sabe oôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta e um artista. O Renato vai-me perdoar por lhe retirar um pouco do seu mistério... (LG)


Texto do Renato Monteiro (ex-furriel miliciano, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969):
Diga se me ouve, escuto!

Amigo Luís:

Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia: -- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada”.

É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares e por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...

Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.

Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho,
acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.

Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do Furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!

Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho) sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar orgãos e pianos gripados...). Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969) vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o Diário da Companhia ( a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram na Fotobiografia) e uma outra a pretexto de beber um copo...

Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...

Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...

Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei.

Salvo os graduados, a maior parte era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...

Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias) conservo dele a
melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o
desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.

A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.

Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 > Ponte do Rio Undunduma. A segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre ataque a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, a guerrilha tentara dinamitá-la. Desde Junho de 1969 a ponte era defendida por 2 secções da CART 2520 (Xime) e, mais tarde, por um Gr Comb da CCAÇ 12 (a partir do final do ano de 1969), alterando com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos (transferido de Missirá para Bambadinca em Novembro de 1969, sendo substituído em Missirá pelo Pel Caç Nat 54, do Allf Mil Correia). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor primário em Bambadinca, em 1997)

A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte.

No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.

Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!

À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!

Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.

Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra...
Mas o pior de tudo foi ter sido incumbido de gerir a logística e de me ver obrigado a aplicar as formas de camuflar o saldo negativo que ingenuamente (?) herdara do camarada anterior, enquanto aguardava, ansiosamente, pela nossa transferência para a Ilha de Bissau, onde viria a ser internado no Hospital com uma infecção que me proporcionou o regresso, dois meses antes do previsto, a Lisboa.

Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...

Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...

Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.

Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05
__________

Notas de L.G.

(...) "O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
"Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
"E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
"O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!
"Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros" (...).
Texto delicioso onde relata as noites, chatas p'ra burro, em que era obrigado a jogar king com o seu comandante, o tenente-coronel Romeira; as bravatas sexuais dos tugas; e a porrada que apanhou por recusar bater num cabo de transmissões sob o seu comando, porrada essa que o levou do Pelundo até ao Catió.

Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969: Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11).


Foto (e legenda): © Luís Graça (2005)

1. Publica-se a seguir (ponto 5) a última mensagem do misterioso homem da piroga, um grande amigo que eu fiz na Guiné embora só tenha com ele convivido durante um mês e três semanas... Depois desaparecemos do mapa e só viemos a reencontrarmo-nos trinta e seis anos depois, graças à nossa página na Internet... Esta estória merece ser contada, sobretudo para os mais novos dos nossos tertulianos que a não conhecem...

Tinha-o reconhecido antes como coautor de um livro que li e apreciei muito sobre a guerra colonial (Renato Monteiro e Luís Farinha - Guerra colonial: fotobiografia. Lisboa: D. Quixote. 1990. 307 pp). 

Natural do Porto, apaixonado por Lisboa, professor do ensino secundário, o Renato tem-se dedicado escrita e à fotografia. Publicou recentemente um belíssimo álbum fotográfico sobre os pescadores da Costa da Caparica. Ainda lhe devo, em troca de um exemplar autografado, uma nota de recensão sobre essa publicação...

No início da nossa tertúlia, quando ainda éramos poucos (o Sousa de Castro, o David Guimarães, o Humberto Reis...) eu mandei-lhes esta foto, com o seguinte pedido, em e-mail datada do dia 1 de Maio de 2005, e com a secreta esperança de um dia dar de caras com ele numa esquina da cidade do Porto (....Afinal, ele vivia e trabalhava perto de mim, em Lisboa!):

"Amigos:

"Quem conhece este gajo ? Não o que vai sentado na canoa (que sou eu, ou era eu… ), mas o homem que está na popa, de remo na mão… Esta foto foi tirada em Contuboel, Guiné, no 2º trimestre de 1969… O fulano chama-se Renato Monteiro, ex-furriel miliciano Monteiro, pertencente à CCAÇ 11… Conhecemo-nos em Contuboel, e convivemos durante três meses, no período em que estávamos a formar as nossas companhias (eu, a CCAÇ 12; ele, a CCAÇ 11).

"Sei que nasceu no Porto, em Dezembro de 1946, que fez mais tarde o curso de história e que hoje deve ser professor do ensino secundário. Publicou, juntamente com Luís Farinha, uma Fotobiografia da Guerra Colonial (Lisboa: D. Quixote, 1998; há também uma edição do Círculo de Leitores). Se é o mesmo que eu penso, também esteve ligado ao movimento das rádio locais. Há um fotógrafo com o mesmo nome, não sei se é o mesmo. Já não me lembro do seu 1º nome… A ponte que vocês vêem ao fundo era a de Contuboel, uma ponte em madeira e que na base fazia uma espécie de represa… Um dia o Monteiro mergulhou perto dela e estava a ver que o gajo nunca mais vinha ao de cima… Gostava de o encontrar para lhe mandar esta chapa… Tínhamos muitas afinidades (políticas, culturais, humanas…). A companhia dele foi para Nova Lamego, e perdemos definitivamente o contacto. Sei que voltou da Guiné ainda em 1970, uns meses mais cedo do que eu (que vim em Março de 1971)".

3. Passado uns tempos, o Renato deu caras com a foto, inserida na nossa página na Net (Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (1963/74) > Memória dos lugares > Bambadinca)

Amigo Luis,

Muito surpreendido por me rever numa piroga no rio Geba. Na verdade, não me lembrava desse episódio. Não menos espantado por rever a picada do Xime e outros locais que, passado tanto tempo, ainda se encontram bem presentes na minha memória... Lamento, ao contrário, não ter reconhecido ninguém nas fotos nem, sequer, te referenciar. Não sei a explicação.

Sou, na realidade, co-autor do livro que referes. Fico ao teu dispor para o caso de quereres comunicar, e feliz pela Internet ter possibilitado este reencontro. Um abraço, Renato Monteiro.

... A partir daqui mantivemos algum contacto regular,mas cedo percebi que o Renato tinha voltado a fechar o baú das memórias da Guiné e estava noutra... Com muita pena minha, como devem imaginar!

4. Mensagem de L.G., de 11 de Julho de 2005:

"Renato:

"Ainda não te pus na lista do Grupo da Guerra Colonial, porque não sei se estás interessado neste exercício serôdio de contadores de estórias, que estão a chegar ao limiar da sua esperança média de vida à nascença… De qualquer modo, ainda não me disseste por onde andou a tua CART 11 (confirmas ?)… Reconheci-te a ti e aos teus soldados nalgumas imagens da fotobografia…

"Sei que também publicaste dois livros de poemas, mas ao que parece fechaste esse departamento… Estou ansioso para ter tempo para recuperar o tempo perdido em que andámos por aí, tão perto e tão longe… A tua magnífica mensagem merecia outro tratamento, mas o dever chama-me e eu hoje fico por aqui… Um abraço apertado do amigo de um mês e meio, da Guiné, do lugar mais frio da memória… Luís (ex-furriel miliciano Henriques da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, Contuboel, Junho e Julho de 1969).


5. Mensagem do Renato Monteiro, acabada de chegar esta noite, e que no fundo foi o pretexto para este exercício de saudade(s):

Luís:

Acho que da última vez que te escrevi estava a fazer as malas para uma viagem [à Polónia]. Acontece, agora, o mesmo só que para uma incursão breve, ao Porto. Um fim de semana lá.

Tenho acompanhado, com gosto, a comunicação mantida na página. Isto para te dizer que o meu silêncio não deverá ser interpretado como alienação. De forma alguma.

Espero, em breve, ver-te. Como tu, também passo este ano férias cá dentro.

Tenho umas coisas para te enviar que de certo modo explicam este não dizer nada até aqui. E também hei-de precisar da tua memória de Contuboel.

Um grande, grande abraço

Renato

quinta-feira, 22 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P897: Pitéus da gastronomia local (Hugo Moura Ferreira)



Texto do Hugo Moura Ferreira, datada de 31 de Maio de 2006 (e que já circulou, por e-mail, pela tertúlia):

Caros Amigos.

Depois de ver o Post Guiné 63/74 - DCCCVIII: A Tertúlia do Porto (Albano Costa) e receber a mensagem do Marques Lopes titulada como Grande Almoço em Jugudul (1), fiquei com água na boca e com muitas recordações da Guiné nas papilas gostativas.

Assim, fui até aos meus arquivos e encontrei algo que certamente vos vai agradar receber. Receitas de culinária da Guiné que vos mando com amizade, que nunca se irão alterar, haja ou não bons ventos trazidos pela História.

Espero que possam tirar partido do que mando e que de vez em quando troquem o "Cozido à Portuguesa" por um bom "Caldo de Mancarra" e um "Chabéu de Galinha".

Um abraço a todos com amizade e votos de boa digestão.

Hugo Moura Ferreira
Ex-Alf Mil Inf(1966/1968)
CCAÇ 1621 (Cufar) e CCAÇ 6 (Bedanda)
_____________

Nota de L.G.

(1) Vd. posts de:

28 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCVIII: A tertúlia do Porto (Albano Costa)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P854: Do Porto a Bissau (26): leitão à moda de Jugudul (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Região do Oio (Mansoa) > Jugudul > Abril de 2006 > O leitão da região do Oio, feito à moda de Jugudul, em casa do Manuel Simões, não ficava atrás, bem pelo contrário, do leitão à moda da Bairrada. Foi comer e chorar por mais... (LG)

Foto: © A. Marques Lopes (2006)


Receitas culinárias da Guiné

Fonte: Cozinha e doçaria do Ultramar Português. Lisboa: Ag~encia-Geral do Ultramar, 1969.









Guiné 63/74 - P896: Bafatá: Ataque com 'bazucas' de 75 cl (Mário Cruz, aliás, Shemeiks)

Guiné > Zona Leste > Bafatá > os guerreiros da CCS do BCAÇ 2856 (1968/70)...


Texto e foto do Mário Cruz, que foi furriel miliciano, da CCS do BCAÇ 2856 (Bafatá, 1968/70), juntamente com o Jorge Tavares (1)...

O Mário, mais conhecido pelo seu nome de guerra - Shemeiks - é um tertuliano fugidio, mas sempre bem humorado e melhor acompanhado. Agradeço-lhe o envio do seu notável curriculum vitae, que tomo a liberdade de divulgar, já que é um exemplo, entre outros, de como os cacimbados da Guiné, os apanhados do clima, os sobreviventes da guerra do ultramar também podem tornar-se casos de sucesso (social, profissional, económico, mediático...). Aliás, é a altura de falarmos e divulgarmos das nossas vidas depois da peluda... Quem quer dar o pontapé de saída ? Afinal, a maior de parte conseguiu sobreviver... (LG)

Caros Guerreiros:

Noite agitada no Bafatá com Bazucas a estalar por todo o lado !!!! Se bem me lembro os restos das camisas até pegaram fogo !!!!! E dançámos à volta da fogueira !!!!! Guerra é guerra !!!!!

Shemeiks

- Deutranómalo (Yale University, U S A )
- Master of Wine (London Wine College)
- INSEAD-Marketing MBA (Fontainbleau, Paris)
- Grão Mestre-Confraria de S.Gonçalo (AVEIRO)
- Singing Master(Salzburg Muzik Haus, Austria)
- Acrobatic Ski Teacher-E E E (Escuela Espanuela de Esqui)
- SKIPPER ALTO MAR- Instituto Maritimo Portuário (Lisboa)
- Master Cook-Royal School of Amesterdam (Holland)
- Master Paint - Van Gohg Arbeit Schulle(Holland)
- PUNHETEIRO - Empiric House Training (Since 1957)
- EXPERIMENTADOR OFICIAL das camisas DUREX (Portugal)
- Cod Fisher Adviser-Alesund Knurn (Norway)
-Cork Expert Lector-Amorim Search Lab.(Portugal)
- Dog Trainer-Hot dog Specialist ( U S A )
- EMPRESÁRIO-F D A A M (Fábrica de Descascar Alhos à Mão), Frossos(Portugal)
- F. C. A. Chairman-Fábrica de Correntes de Ar, SA (Ventosa de Baixo-Portugal)
- Broadcast Speaker-BBC (London)
- Enófilo-Comissão Vitivinicola da Bairrada-ANADIA
- Jornalista-Crítico Gastronómico ("PASKIM","O AVEIRO","DIARIO DE AVEIRO")
- TENOR - Cantante da Confraria de São Gonçalo" (AVEIRO)

Shemeiks>

Campus U A (Universidade de Aveiro)
Alameda das Cricas,6
Sala Aromatisada
3810-AVEIRO
__________

Nota de L.G.

(1) Vd. pots de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVIII: A doce nostalgia de Bafatá (BCAÇ 2856, 1968/70)


Jorge Tavares, ex-Furriel Miliciano, Radiomontador, da CCS do Batalhão de Caçadores 2856 (Bafatá, 1968/1970). Foto: © Jorge Tavares (2005)

Guiné 63/74 - P895: Humor de caserna: 'Matchundadi di branco' e o sentido de humor da nossa caserna (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Guileje > Antigo aquartelamento das NT > Uma planta chamada matchundadi di branco, na expressão local usada pelos antigos milícias... Simbolicamente, é a vida que triunfa sobre a morte, a amizade que renasce da luta, a serenidade da paz que se impõe à lógica da guerra...

Foto: © Pepito (2006)

A propósito da flor que brota, hoje, do chão do antigo aquartelamento de Guileje - que os antigos milícias locais chamam matchundadi di branco, segundo preciosa informação do Pepito -, os nossos tertulianos não se coibiram de dar largas ao seu proverbial sentido de humor, reforçado seguramente pelo seu duro tirocínio em terras da Guiné, sempre em perigos e guerras esforçados...

Aqui ficam algumas bocas de caserna:

(1) Pepito: Semanticamente falando, que o assunto é delicado, a palavra em crioulo matchundadi vem directamente da palavra matcho, que vem de macho e, mais vernaculamente, de caralho...
(2) Mário Dias: Matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto.

(3) Paulo Raposo: Olá, pessoal,estamos sempre a aprender. Assim, e para o futuro quando se toca a sentido dir-se-á: - Ena, com matchundadi! Tá!... Diga se ouve, escuto.

(4) Zé Teixeira: O problema é que para alguns de nós já é difícil pôr o matchundadi de pé,quanto mais em sentido!... Um abraço para toda a gente e boa disposição.

(5) A. Santos: Correcto e afirmativo!!!Eu, dei tanto trabalho ao matchundadi pensando que não se gastava e agora vejo que não é verdade, que chatice... À escuta.

(6) Pepito: Como diz o Mario Dias, na realidade matchundadi também pode ser interpretado como coragem. É um pouco como o que se passa com a palavra colhões que são o que são (ou que foram um dia...), mas que pode ter outro significado quando se diz: é um gajo de colhões.

Guiné 63/74 - P894: Fuzilados do Pel Caç Nat 53 (Paulo Santiago)

1. Mensagem do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, 1970/72)

Camarada Luís:

Vi agora o P886 do João Parreira (1) onde vêm dois soldados fuzilados pertencentes ao Pel Çaç Nat 53. Não são do meu tempo. Deverão ter ido para o 53 após Agosto de 1972.

Do meu tempo sei do fuzilamento do Queta Mané, sold 82035466. É mais um nome a juntar à trágica lista.

Paulo Santiago
(ex Alf Mil do Pel Caç Nat 53)


2. Comentário de L.G.:

Paulo Santiago, será que nos cruzámos nalgumas operações ? Creio que estiveste em Bambadinca, entre 1970 e 1972...Quanto ao teu e-mail, muito obrigado. Queremos a verdade e só a verdade... Quanto a ti, já reparei que ainda não fizeste um pedido formal para entrar na nossa caserna... Espero que aceites o convite, já cá temos os comandantes de vários Pel Caç Nat... Cibersaudações. LG

______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P886: Terceiro e último grupo de ex-combatentes fuzilados (João Parreira)

Guiné 63/74 - P893: 'Matchundadi di branco' e outras blogarias em crioulo (Mário Dias)

Texto do Mário Dias, ex-sargento comando (Brá, 1963/66), em resposta a uma provocação minha: "Obrigado ao Pepito, pela sua delicadeza (e competência) em matéria de tradução do crioulo para o português… Mas, já agora, também gostava de ouvir a opinião do outro meu assessor sociolinguístico, o Mário Dias… Agora digam-me lá se os nossos queridos nharros não tinham sentido de humor… A propósito, este termo (nharro) é actualmente ofensivo ? Usa-se ? Não poderá ter uma conotação racista, aliás como tuga ? Temos de ter cuidado com a língua… Mas aqui, na nossa caserna, cultiva-se o humor"…


Caro Luis e restantes tertulianos:

1. Antes de mais, congratulo-me com o aparecimento de novos militares na nossa caserna. Sem desprimor para os restantes, quero saudar o Beja Santos cujo Presépio de Chicri me encantou e comoveu até às lágrimas. A idade tem destas coisas: torna-nos um pouco piegas. Ou será outra coisa? Estou em crer que as barreiras sentimentais que a nós próprios impomos enquanto novos, devido à nossa condição de machos, se esboroam com a idade.

2. E essa condição de macho vem mesmo a calhar para melhor entendermos a tal matchundadi referida pelo Pepito.

Eu sempre disse ao Luis que o crioulo é uma língua cheia de subtilezas. O Pepito traduziu a matchundadi com o significado implícito no contexto da fotografia da tal flor ou seja: pénis dos brancos.

Porém, e pelo meu entendimento do língua crioula (o Pepito que me emende se estiver errado) matchundadi designa especialmente a qualidade própria dos homens no sentido de másculo, valente, varonil, robusto. Aliás, alguns dicionários de português já registam a palavra machundade nesse sentido, fazendo menção da sua origem na Guiné-Bissau.

Por outro lado, e dado que fisiologicamente o atributo que distingue os machos é o seu aparelho genital, tem esta palavra, subjectivamente, o significado de órgão genital masculino. (Cada um traduza a seu gosto: pénis, gaita, etc. etc.).

3. Quanto ao termo nharro, e dado que actualmente é utilizado com uma certa dose de ternura, de afeição, ninguém, julgo eu, se ofenderá. O mesmo se passa com o tuga que, sendo antigamente uma palavra intencionalmente humilhante, já se tornou de tal forma vulgar para referir os portugueses (culpa do mundial de futebol na Coreia em 2002) que ninguém se ofende. Creio que o sentido das palavras se altera com o rodar dos tempos.

Um abraço para todos.

Mário Dias

quarta-feira, 21 de junho de 2006

Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)


Guiné > Zona Leste > Gabu > Estandarte do Pel Mort 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)


Texto e fotos: António Santos (2006)


Camarada Luís,

Este é o 3º folhetim da minha história e de parte do pessoal do Pel Mort 4574/72 (1)

Desta vez junto mais umas fotos, a começar pelo nosso estandarte, já velhinho.



(1) Ainda em Bissau, em Brá, nos adidos, antes de rumar a Nova Lamego, já tinhamos ído ao shopping.


(2) Em Nova Lamego, no Cine Gabu, os caramelos são: da esquerda o G.G.G., eu e o Graça.


(3) A capela de Nova Lamego: pela mesma ordem, Graça, Cunha e eu.


(4) E a última por hoje, o café do Jacob, onde passei bons momentos, a ordem continua: eu, um amigo de Pirada, o Graça e um dos cabos criptos do BCAV 3854.


Um abração para ti, extensivo aos tertulianos.

A. Santos
Ex-Sol Trms
Pelotão de Morteiros 4574/72 (Nova Lamego, 1972/74)

_________

Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:
8 de Maio de 2006
> Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)

29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)