quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1068: Álbum das glórias (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará (Mário Beja Santos)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Mamadu Camará, um dos soldados do Pel Caç Nat 52, sob o comando do Alf Mil Beja Santos.


Foto: © Beja Santos (2006)


Foto enviada, em 18 de Agosto de 2006, com a seguinte mensagem do Beja Santos:

Caro Luís:

Conforme prometido, dou-te notícias depois de duas semanas de férias. Creio que te disse que ia para os Condados de Oxford e Yorkshire e depois uma semana pelo interior da Escócia, sobretudo nas Terras Altas.

Recomposto, recomeço alguns reenvios. Passo-te a descrever as fotografias que vou enviar pelo correio.

(...) Esta, que hoje se publica, foi tirada em Missirá ao Mamadu Camará. Era o 222, soldado indómito, de quem guardo a memória do seu companheirismo.

Foi Furriel na 1º Companhia de Comandos Africana (1), perdeu um pé numa emboscada algures no Sul (creio que na mata do Fiofioli), veio para Portugal em 71 e cá vive. Foi o primeiro a dar muito trabalho antes da desconolização pois juntou-se a uma cabo-verdiana que tinha o morto o primeiro marido com um facalhão de talho e fez-lhe a vida mais negra do que ele era.

Havia, salvo erro, 5 filhos fora do casamento, tive de andar pelas misericórdias a pedir ajuda, os míudos cresceram e hoje aparecerem-me já com filhos.

Inevitavelmente, falar-se-à muito de Mamadu nestas memórias, até porque ele teve uma indiscutível importância nas noites de flagelação em Missirá.

(...) Hoje recomeço a escrita com uma informação prévia. Tu ficarás como fiel depositário de todo o material original que está a aparecer. Quando eu morrer, entregas tudo no Arquivo Histórico Militar. Recebe um grande abraço do Mário Beja Santos

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P1067: In Memoriam: Morreu o major cav Mendes Paulo (BCAV 2922, Piche, 1970/72) (José Martins)

Mensagem do José Martins (ex-Furriel Miliciano de Transmissões, CCAÇ 5, Os Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70)



Caro Luís:

A noticia não é das boas. Mais um camarada da Guiné que partiu! Era o Major de Cavalaria JOÃO LUIS LAIA NOGUEIRA MENDES PAULO (1), que foi Oficial de Informações e Operações no Batalhão de Cavalaria nº 2922, oriundo do Regimento de Cavalaria nº 3,  de Estremoz.

Chegou à Guiné em 23 de Julho de 1970 e assumiu o sector L 4 - Piche em 12 de Agosto de 1970. Regressou à Metrópole em 20 de Junho de 1972.

É autor do livro Elefante Dundun, que conta as suas aventuras em Macau, Angola e Guiné. O livro é acompanhado de um DVD, que contou com a colaboração de seus filhos.

Não o conhecia pessoalmente mas, na longa conversa que com ele tive há mais ou menos 2 meses, revelou ser um autêntico camarada. Contava conhecê-la brevemente num encontro que tentaria marcar com ele.

Partiu a semana passada. Mais um que parte... Cada vez somos menos...

MAJOR MENDES PAULO, presente!

Um abraço

José Martins

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Nota de L.G.:

(1) Ainda recentemente (1 de Março de 2006), numa intervenção no ForumDefesa.com (Assunto: Carros de Combate M5A1 em Nambuangongo), o major Mendes Paulo tinha feito a sua apresentação nestes termos:

Antes de mais, desejo enviar uma saudação calorosa a todos os visitantes deste fórum, aos conhecedores e interessados nas questões militares e àqueles que, por uma razão ou outra, aos modos castrenses se sintam ligados. Passo a apresentar-me: o meu nome é João Luiz Mendes Paulo, major, arma de Cavalaria, nascido em 1932 e passado à reserva em 1971.

Completei o ensino secundário no Colégio Militar e cursei na Escola do Exército (hoje Academia Militar). Fui mobilizado para Goa em 1958 (onde estive até 1961, em Valpoy, no 1º pelotão do Pel/Rec 4, com sede em Bicholim) e depois para a Zambézia, Moçambique, com o Batalhão de Cavalaria 571 (63-66).

No seguimento da vida militar (as Forças Armadas combatiam então em três frentes de guerra em África), embarquei para Angola com o Batalhão de Cavalaria 1927 (destino final e base da unidade: Nambuangongo). Em 1970 fui de novo mobilizado, desta vez para a Guiné, como Oficial de Operações do Batalhão de Cavalaria 2922 (seria a minha 4º comissão, a terceira em cenário de guerra) (...).

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1066: Homenagem a Amílcar Cabral, o Inimigo Libertador (João Tunes)

Guiné > Anos 60 > Uma das mais emblemáticas fotos de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e dirigente do PAIGC. Hoje, faria 82 anos se fosse vivo. E se fosse vivo, estaria ainda no poder ? E se sim, como o exerceria ? Sabemos da desastrosa ascensão, da mata ao poder, por parte de outros líderes da guerrilha nacionalista e anti-colonialista, nomeadamente na África dita portuguesa. Ninguém está em condições de responder a esta pergunta, que é uma mera especulação académica.
João Tunes prefere, em vez de mitificá-lo, "prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador": sem ele, a sua luta e a sua liderança, à frente do PAIGC, dificilmente teríamos tido o 25 de Abril e a reconquista da liberdade e da democracia (LG).

Foto: Fonte desconhecida


Texto do João Tunes:

NO 82º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE AMILCAR CABRAL

Caro Luís,
Hoje é dia de importante efeméride que nos respeita. Mando-te para eventual publicação no nosso blogue um texto que hoje editei sobre Amilcar Cabral no blogue Agua Lisa (6)

LEMBRANDO AMILCAR CABRAL, O INIMIGO LIBERTADOR

Se ainda estivesse vivo, Amílcar Cabral celebraria hoje o seu 82º aniversário. É impossível prever, caso não fosse assassinado em 1973, a um passo de tempo da libertação total e absoluta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, se Cabral hoje ainda estaria vivo e no poder, como exerceria ele a sua época de estadista, se seriam diferentes, melhores ou piores, as vivências dos povos e nações de que ele foi líder incontestado na fase de luta de libertação contra o colonialismo português.

Olhando para o rasto deixado por outros libertadores como Luís Cabral, Nino Vieira, Samora, Chissano, Guebuza, Agostinho Neto e Eduardo dos Santos, os exemplos não são nada animadores quanto a previsões deste tipo. Resta a mera esperança confiante em que a enorme envergadura intelectual e política de Cabral o tornaria distinto, para melhor, dos demais companheiros de luta anti-colonial.

De qualquer forma, tal como Mondlane, o seu martírio e perda durante a luta armada, deu-lhe o manto do mito e eximiu-o da demonstração prática de como conduziria o período pós-independência. Sobretudo, como iria traduzir-se, com ele no poder, o deslindar da sua fantasiosa e misteriosa utopia da unidade Guiné-Cabo Verde (utopia esta que, a par da Pide e do exército colonial, mais umas tantas conexões geoestratégicas talvez simétricas, o levou até às rajadas fatais que o abateram).

Se não se quiser entrar em fantasias panegíricas (1) ou diabolizantes, Cabral só pode ser historicamente julgado pelo que foi e pelo que fez entre a sua juventude e 1973. E, neste campo, Amílcar Cabral avulta como uma das maiores e mais prolixas inteligências políticas de África e do Mundo em todos os tempos. Como homem de cultura, mestre em sínteses de sócio-culturas centrípetas, como político, ideólogo e diplomata, como chefe militar e organizador administrativo, Cabral foi exímio, criativo, exemplar e eficiente.

Em tempo algum, os portugueses (alheando-nos da questão da legitimidade de quem, em cada momento, os representou em governo) se bateram, em guerra, contra um líder inimigo tão talentoso, tão persistente e tão eficaz. Talvez porque coincidiu, além das excepcionais capacidades próprias, que este inimigo de guerra, mais que qualquer outro que nos combateu em qualquer outro tempo e lugar, conhecia como os dedos da sua mão a cultura, o ser e o estar dos portugueses, sobretudo as nossas grandezas e misérias, além, é claro, as nossas sempre abundantes mediocridades.

De tal forma foi tão bem construída a sua praxis que o seu slogan Combatemos o colonialismo português, não os portugueses não foi nem figura de retórica nem esguicho de propaganda. E tanto foi assim que os portugueses, combatendo-o e assassinando-o, em vez de o derrotarem, libertaram-se pela sua luta e pela sua liderança, pois foi muito devido ao PAIGC de Amílcar Cabral que tivemos o 25 de Abril, a democracia e a liberdade.

Recordar hoje Amílcar Cabral, pelo menos no meu caso de português que o combateu na guerra, resume-se a prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)
(...) Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução. (...)

Guiné 63/74 - P1065: Recordações do Saltinho e do Xitole (David Guimarães)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2001 > O David J. Guimarães junto à ponte do Saltinho. Segundo o testemunho deste antigo combatente (1970/72), o Saltinho era um aquartelamento que ficava a 20 Km de Xitole na estrada para Aldeia Formosa (hoje, Quebo).
Em 2001 revisitou com amigos (inbcluindo o médico Dr. Vilar) os sítios por onde passou (Sector L1/Zona Leste).

Foto: © David J. Guimarães (2005)

Mensagem de David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole, 1970/1972, e pertencente ao BART 2917, sedeado em Bambadinca) (e-mail com data de Agosto, que não posso precisar).

Luís e Paulo: Mais memórias e recordações....

O Polidoro Monteiro - na altura a que te referes - ainda Comandava o BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) pois que nós regressámos em Maio de 1972...

Quanto ao Paulo (1), creio bem que nos conhecemos, lá mesmo no Mato. O Saltinho foi uma Companhia que não teve problemas na altura da Comissão que fez - (1970/72) pois que esse Batalhão de Galomaro (2) foi enquadrar aquela zona de intervenção um mês antes de nós irmos para Bambadinca e por aí fora até ao Xitole...

Poderei dizer que quase todos os Furriéis desse batalhão andaram comigo na Recruta: de nomes lembro-me do Belarmino e do Moreira (este açoriano), que estavam no Saltinho, e do Barbosa, que estava em Galomaro, creio eu. Era um Furriel grandalhão que encontrei um dia no mato e ele gritou:
- Oh puito - olhei de imediato e sabia quem era, tantas vezes ele me tinha chamado por mim na sua língua de S. Miguel... Andou também na recruta comigo....

Os nomes passam, estes retive-os. Aliás, o Saltinho na circunstância e o Xitole eram companhias que se visitavam muitas vezes e eram o quebra-cabeças para quem vinha na coluna de Bambadinca ao Xitole e por vezes seguiam ao Saltinho (3)... Para nós, quando íamos ao Saltinho era dia de festa, embora o trajecto não fosse fácil: aquela estrada colonial era mesmo assim, charcos de água e cuidado não se vá enterrar uma viatura...

O Paulo diz lembrar-se da minha cara: era natural, e na altura decerto que convivemos. Mas os nomes passam e através das fotografias, um ou outro ainda ainda conseguimso reter as carinhas jovens. Enfim, o tempo... Ainda bem que encontro o Paulo agora... A história dele é curiosa, sim, eles tinham essa função de andar a acudir aqui e ali por aquela zona, muito provavelmente o que a CCAÇ 12 também também...

Uma coisa tenho a certeza: o Pel Caç Nat 53, como ele diz, era o pelotão dos Anjos da Guarda da CCAÇ do Saltinho... Pelo que me deram a conhecer, sei que no fim da Comissão em 1972 o Saltinho passou a ser um local bem de guerra e quem para lá foi a seguir comeu bem nos olhos. Sei que o Xitole esteve sempre na mesma como entre 1970 e 72: de vez enquando lá vinham os canhões saudá-los e os locais de emboscadas mantinham-se. Enfim, tudo se complicava para aquelas zonas...

Quanto ao Dr Vilar (Marques Vilar) (4), ele efectivamente é da Murtosa, trabalhou no Hospital de Aveiro e aposentou-se do Estado. Sei que tem consultório para aqueles lados: há dias estive com ele no convívio que tivemos da CART 2716 ...

Pronto - agora tipo professor - Luís procura o João Paulo Dinis da RDP - ele foi Furriel connosco de 70 -72 e fez programa de rádio lá - acho que era importante uma colaboração dele para sabermos o que se fazia de paz na guerra e para ele relatar o Programa das Forlças Armadas da Rádio - sei que ele esteve lá.... Bissau...

Um abraço ao Luís e outro ao Paulo: se me reconheceste na fotografia, melhor, estamos meios sintonizados - e a nossa Companhia aumenta e bem....

Como Vacas de Carvalho diz por aí, estou feliz agora com os meus amigos e sinto-me lá nos mesmos locais a conviver com eles, isso é que mais importa...

Um abraço, David Guimarães

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Nota de L.G.:

(1) Vd. os seguintes posts do Paulo Santiago, entre outros:

26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau

29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P923: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (2): Bambadinca


30 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P926: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (3): Saltinho e Contabane

5 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P938: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (4): branco com coração negro no Rio Corubal


12 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P955: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (5): O pesadelo da terrível emboscada de 17 de Abril de 1972


20 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P975: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (7): ainda as trágicas recordações do dia 17 de Abril de 1972


23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

(2) Vd. post de 25 de Julho de 2006 > > Guiné 63/74 - P985: CCAÇ 3490 (Saltinho), do BCAÇ 3872 (Galomaro, 1971/74)

(3) Vd. post de 20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Xime-Xitole- Saltinho

(4) Médico do BART 2917, psiquiatra. Há tempos (há um mês e tal) o Paulo Santiago tinha-me dado notícias dele, a meu pedido:

"Hoje, à hora de almoço, ligou uma senhora aqui para casa a perguntar quem tinha
ligado para o consultório do Dr Vilar. Expliquei-lhe o motivo do meu telefonema
dizendo-me a Srª ser a esposa do Vilar, que tinha ido dar umas consultas a
Condeixa, e quando chegasse lhe transmitia a minha mensagem.

"Ligou-me o Vilar, há meia hora, e falámos para aí uns 15 mikes. O gaijo está cada vez mais maluco. Não quer saber de internet, telemóvel só tem no carro para
chamar a Polícia se alguém lhe bater.Diz (...) só atender o telefone às horas de expediente, que são: 2ª e 6ª feiras, 15,00-19,00 horas para o 234865153 (Murtosa), 3ª e 5ª feiras, 14,00-19,00 para o 234427326 (este é em Aveiro).Diz estar tão apanhado que o maior problema dele, é não ter problemas. Pelo nome não está a ver quem tu [Luís Graça] és , mas está disposto a beber uns copos contigo. Telefona-lhe e logo vês como está a peça).

Guiné 63/74 - P1064: Hoje, Amílcar Cabral faria 82 anos se fosse vivo (Marques Lopes)

Capa do livro Amílcar Cabral : para além do seu tempo, de Oscar Oramas (Lisboa: Hugins Editores, Lda, 1998; tr. de João Marques; 173 pp.; preço: c. 15 €). Oscar Ormas é cubano (n. 1936), formado em Filosofias e Ciências Políticas. Foi embaixador de Cuba na Guiné, Mali, Guiné Equatorial, Angola e S. Tomé e Príncipe. Foi também representante permanente do seu país nas Nações Unidas (Nova Iorque, 1984-1990).

Foto: © A. Marques Lopes (2006)


Mensagem do nosso camarada A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968), dirigente da Associação 25 de Abril (A25A) - Delegação do Norte.

Caros camaradas:

Hoje, 12 de Setembro, Amílcar Cabral faria 82 anos se fosse vivo. E a Guiné-Bissau seria diferente, talvez... É uma figura que merece todo o respeito e admiração, mesmo dos inimigos que contra ele combateram. Permitam-me, pois, que transcreva o que dele diz Oscar Oramas no prefácio do seu livro Amílcar Cabral : para além do seu tempo, da Hugins - Editores, Lda., publicado em 1998.

Abraços
A. Marques Lopes
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“(...) Amílcar Cabral tem o valor do exemplo e a sua vida e obra reclamam, não só serem reconhecidas, mas também estudadas como referência de quem contribuiu de maneira decisiva para a libertação dos povos sob dominação colonial no continente africano, particularmente os subjugados por Portugal e tentou que os filhos desses países tivessem lugar reconhecido na civilização universal.

"Tanto pelo seu pensamento como pela sua estatura política, Cabral ultrapassa o panorama da luta contra o colonialismo português, e deve ser considerado uma das principais figuras do Terceiro Mundo, na sua época, esse mundo que não só reclamava a independência nacional, mas também a emancipação social e o desenvolvimento económico.

"Homem de grande cultura, não só autóctone, como europeia e universal, adquirida tanto em Portugal como nas suas viagens por diferentes países, caracterizou-se, fiel às tradições das suas raízes, por ser um excelente orador, como soe dizer-se actualmente – um comunicador. Hábil a cativar o interlocutor e brilhante negociador capaz de abordar qualquer tema com simplicidade, sem palavras rebuscadas, mas com evidente profundidade.

"Personagem multi-dimensional no quadro da sua acção, Cabral deixou nos seus escritos um balanço de excepcional riqueza: a capacidade de situar o colonialismo português como muito atrasado para manter o seu domínio colonial e muito ligado a um passado glorioso mas distante para pensar como metrópole; o conhecimento concreto das estruturas sociais das populações da Guiné Bissau e Cabo Verde, adquirido pela prática no terreno e por uma análise baseada, entre outros por um aporte conceptual das tendências filosóficas mais modernas, entre elas as de Marx e Lenine; a tenacidade dos verdadeiros criadores para construir pacientemente um partido, que estabeleceria, em primeiro lugar, as bases da identidade nacional com vista a traçar uma estratégia que promoveria a formação de quadros, estabeleceria uma infra-estrutura clandestina no seio da população, que conduziria à luta armada e a negociações políticas mediante uma organização democrática nas regiões libertadas e a seu tempo levaria o espírito da revolta pela independência nacional ao Arquipélago de Cabo Verde.

"A década de 1960, em que se inicia a luta de libertação na Guiné Bissau com intenção de a levar também ao coração de Cabo Verde, foi um momento particular da História, pois numerosos países africanos ascenderam à independência e só ficaram debaixo do jugo colonial os territórios portugueses, o Sudoeste Africano, a Rodésia do Sul e esse crime de lesa-humanidade que se chamou apartheid na África do Sul.

"A guerra fria estava em todo o seu esplendor e dois modos de produção antagónicos tipificam o panorama do planeta. Tensões aqui, ali e acolá, povos desejosos de ultrapassar o limiar das independências para percorrerem o caminho da soberania real e da construção económica, e para tanto batalhas por vezes cruéis, com as grandes multinacionais que insistiam no controlo económico das riquezas que jaziam no solo dos novos estados.

"Foi neste contexto que diplomática e habilmente Cabral logrou estabelecer relações de vizinhança, às vezes conflituosas, no meio de circunstâncias por vezes adversas, com a sabedoria necessária para obter o apoio de numerosos governos africanos e promover a ajuda de certos governos e organizações não governamentais ocidentais, obtendo a sua cooperação ou reconhecimento da luta de libertação, contribuindo assim para a crise do colonialismo português e posterior queda do regime fascista em Portugal.

"Cabral, com tacto e discernimento, logrou situar-se para além da polémica sino-soviética, e com uma perspicácia extraordinária criou um clima favorável para a sua causa em Moscovo, sem tomar partido contra Pequim.

"Elaborou uma teoria original ao considerar as particularidades da luta de classes no quadro das sociedades africanas, afectada sensivelmente pêlos problemas tribais, regionais e religiosos no contexto social africano; o papel e a ambivalência da pequena burguesia à frente dos movimentos de libertação nacional e o papel da cultura na luta contra o colonialismo português. O seu profundo conhecimento do meio social em que se desenvolveu, levou-o sempre a tomar em consideração o nível e os sentimento do seu povo e uma das suas preocupações fundamentais é de nunca o ultrapassar com acções que poderiam ir para além da compreensão do mesmo.

"Um desaparecimento prematuro e trágico transformou-o numa figura mítica. Foi o fundador da Nação e do partido; a sua obra não foi só a de quem dirigiu a luta armada, mas também a do pensador, a do homem que projectou um futuro para o seu povo e desenhou as bases e os caminhos do seu desenvolvimento. Foi também o poeta que sonhou e que sonhando fez história. Com esta obra queremos render merecida homenagem aos povos da Guiné Bissau e Cabo Verde, e, através deles, a todos os que foram vítimas do colonialismo português. (...)"

Guiné 63/74 - P1063: A propósito do Capitão Diamantino André: um dia em Banjara (António Moreira / A.Marques Lopes)

Guiné > Zona Leste > Sector L2 > Geba > Destacamento de Banjara > CART 1690 > 1967 > Jogando à bola... Mas o dia começava à noite...

Foto: © A. Marques Lopes (2005)


1. Texto do nosso camarada A. Marques Lopes, coronel DFA, na reforma, ex-alferes miliciano na Guiné (1967/68) (CART 1690, Geba, 1967/68; e CCAÇ 3, Barro, 1968), dirigente da Associação 25 de Abril (A25A) - Delegação do Norte.

Caro Luís

Ao ler o último post do Paulo Raposo [P1060, de ontem], em que ele fala do "Capitão André (mais tarde, Presidente da Câmara de Proença-a-Nova, durante 20 anos, até 2005)", vi que, afinal conheci bem o Capitão Diamantino André: primeiro quando ele era alferes e dava instrução em Mafra a um dos pelotões da 3ª do COM (eu era de um dos pelotões dessa companhia, o 1º, comandado pelo Tenente Chung-Su-Sing), e estive com ele, casualmente, quando ele era ainda Presidente daquela autarquia.

Disse-me o meu camarada António Moreira, ex-alferes da CART 1690, que a companhia do Domingos André o foi substituir em Banjara no fim de 1968, quando esta companhia foi para Bissau (eu estava em Barro, com a CCAÇ3). Se ele já era, então, o capitão da CAÇ 2405, esta companhia passou por Banjara. Mas, pelos vistos, terá lá estado pouco tempo.

E esta lembrança e, talvez, coincidência, fez-me lembrar o que o meu camarada António Moreira escreveu sobre Banjara, onde passou oito meses, interpolados, para o jornal Bandarra de Torres Vedras (não sei o número nem a data). Transcrevo o textro a seguir, com a devida vénia, ao autor e ao jornal (os parêntesis são acrescentos meus)

Quanto ao encontro em Montemor-o-Novo [em 14 de Outubro próximo], acho uma muito boa iniciativa. Pessoalmente não sei se lá poderei ir, com muito pena minha. A razão é que, talvez já na próxima semana, vou ser internado no Hospital Militar Nº 1, no Porto, para uma intervenção cirúrgica e não sei que tempo lá estarei (e em que condições de lá sairei). Esse internamento deve-se à necessidade de reparação das mazelas apanhadas naquela coisa da Guiné...

Um abraço
A. Marques Lopes

2. Comentário de L.G.: Vamos todos fazer votos para que a estadia do nosso coronel, no estaleiro, seja rápida e indolor... Daqui a um mês e picos ele estará, seguramente, em boas condições (físicas e psíquicas) para fruir connosco de umas horas de convívio em Montemor, na casa do Paulo Raposo... António: Um abraço quebra-costelas, à moda de Montemor-o-Novo. Obrigado pelo texto oportuno, do teu camarada António Moreira que, desde já, fica convivado para ingressar na nossa tertúlia. L.G.

3. Um dia em Banjara, por António Moreira, ex-alf mil da CART (originalmentre publicado no jornal Bandarra, de Torres Vedras. Comentários, entre parênteses rectos, de A. Marques Lopes)

Banjara fica situada a cerca de 40 Km de Geba e a cerca de 20 Km de Mansabá, na estrada Bissau/Bafatá. Fica no coração da mata do Oio, e teve, antes da guerra colonial, uma unidade industrial de serração de madeiras. Pertencia, durante a guerra, à área de actuação da Companhia de Geba, do Batalhão de Bafatá.

[Cabe aqui um parêntesis para dizer que aquela serração em Banjara pertenceu ao português Fausto Teixeira: “Antifascista desde a sua juventude, via-se no comportamento de Fausto Teixeira toda a história de um velho democrata que amou profundamente a liberdade, lutou por ela e acbou por ser vencido pelas forças da repressão e do mal. No entusiasmo e dedicação que pôs no cumprimento desta arriscada missão, sentia-se todo o seu orgulho em poder participar na luta que então travávamos, também pela liberdade, contra os mesmos inimigos”. Isto diz Luís Cabral no seu livro Crónica da Libertação, aí referindo também que a missão do Fausto Teixeira foi ajudá-lo na sua fuga para o Senegal, em 1960, levando-o no seu “Peugeot 203 pintado de cor azul forte” desde as Oficinas Navais do porto de Bissau até perto da sua serração, de onde Luís Cabral seguiu a pé até a uma aldeia senegalesa, passando por Fajonquito.]

Banjara gozava da fama, e do proveito, de ser o segundo pior destacamento da Guiné, a seguir a Beli, na zona de Madina do Boé. Não apenas pelos ataques mas, sobretudo, pelo perigo que representava, por estar muito isolado da Companhia, e por estar cercado por uma cintura de destacamentos IN, que vigiavam de fora do arame farpado e do alto das gigantescas árvores que o envolviam todos os movimentos da nossa tropa. [Consultando os mapas publicados no blogue, verão que tinha Sinchã Jobel do lado sul e Samba Culo do lado norte].

O destacamento era constituído por uma caserna, quatro abrigos subterrâneos e um posto de comando, que era uma casa abarracada, sem portas nem janelas, por onde os sardões e as cobras vagueavam livremente, sem nenhum obstáculo que lhes barrasse a passagem, a não ser a presença humana. Tinha ainda outros abrigos à superfície. A envolver este destacamento, que no essencial era uma clareira circular com cerca de mil metros de diâmetro, duas fiadas de arame farpado paralelas e em círculo. O capim era necessário cortá-lo de dois em dois meses, para evitar a aproximação camuflada do IN. As casas de banho, como é de calcular, eram a céu aberto.
A guarnição deste destacamento, comandado por um Alferes, variava entre 60 a 80 homens, normalmente (houve alturas em que tinha só um pelotão), bem armados e disciplinados, capazes de aguentar debaixo de fogo uma boas dezenas de horas. O seu comando era rotativo e por lá passámos os mais longos meses da nossa juventude, então com 23 anos, e responsabilidades tremendas em cima dos galões de Alferes.

A paisagem envolvente era de uma beleza indescritível, com dezenas de cajueiros, mangueiras, árvores gigantes, capim e as célebres lianas. O barulho ensurdecedor dos milhares de pássaros e a vozearia nocturna da mais variada bicharada, desde macacos a hienas, tornavam aquele ambiente um mistério todos os dias renovado.

O dia, em Banjara, iniciava-se naqueles anos (1967/1968), por volta das 18 horas. A essa hora o Comandante mandava distribuir a 3ª refeição, e as sentinelas avançadas ocupavam os seus postos. Toda a gente vestia então o seu camuflado, calçava as botas e recarregava as armas. Não é que de dia estivessem todos a dormir, mas durante a noite entrava-se em alerta máximo. Durante a noite era rigorosamente proibido acender luzes, fazer fogo e fumar à vista desarmada para não denunciar a presença e a localização de ninguém.

Tomada a 3ª refeição e colocadas as sentinelas, que eram sempre dobradas, iniciava-se toda uma série de rondas de posto a posto, podendo os soldados que estavam de folga, e só nos abrigos subterrâneos, jogar cartas, conviver e confraternizar, pôr a correspondência em dia, etc. De vez em quando dormia-se uma hora ou duas mas sempre em sobressalto, e sem a mínima tranquilidade. Posso dizer que durante o tempo que passei neste destacamento não dormi uma única noite descansado.

Durante a noite, de vez em quando, uma sentinela nossa dava um tiro, à aproximação do arame farpado de um macaco ou qualquer outro bicho (podia não ser...). Logo todos corriam para as armas pesadas e, normalmente, o IN respondia com dois tiros ao longe. Então a nossa sentinela, aquela ou outra, respondia passado algum tempo com três tiros. A seguir a resposta de novo do IN, então com 4 tiros. Era um jogo macabro, que nos mantinha constantemente vivos e despertos.

O dia amanhecia, então, e, pelas 7 da manhã, iniciava-se a distribuição da 1ª refeição. As horas mortas do pessoal eram gastas, durante o dia, à caça, quando isso era possível e o capim estava seco e caído no chão, a jogar cartas, pôr a correspondência em dia e jogar futebol. O jogo de futebol era normalmente diário, mas sempre a horas diferentes, para não se cair na rotina, e sempre com os abrigos guarnecidos de atiradores.

Terminada a 1ª refeição iniciavam-se os trabalhos de rotina, para o que o efectivo estava dividido em 4 grupos, cada um deles composto por 15 ou 20 homens, comandados por um sargento.Um grupo estava de serviço à água e à lenha para as refeições. Os banhos eram tomados na bolanha a um quilómetro do arame farpado, e sempre com 10 ou 12 homens armados em vigia. Outro dos grupos era o piquete que realizava, normalmente, uma patrulha de reconhecimento nas imediações do aquartelamento. O terceiro grupo estava de prevenção rigorosa e o quarto estava de folga.

Este destacamento tinha apenas uma coluna de reabastecimento por mês, no máximo, mas chegava a estar mais de 2 meses sem alimentos frescos e sem correio. Não havia população civil, apenas militares.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Campo de futebol de Bambadinca, em 24 de Dezembro de 1971. O Caco - alcunha por que era conhecido o Com-Chefe - passa revista. O Alf Santiago vai atrás com o Cap Tomás, ajudante campo do Spínola.

Foto: © Paulo Santiago (2006)

Mensagem do Paulo Santiago:

Luís
Mando-te uma história com algum caricato, sendo o personagem principal o A.C. (1), já aqui referido no nosso blogue.

Quando o Major caiu da cama

Uma bela noite, em Dezembro de 1971, após o jantar, dedilhando a viola, o Major A. C. lamenta-se ao Vacas, a dedilhar outra viola, andar desde a manhã sem mijar. O médico, [o Vilar,]
tinha ido jantar ao Rendeiro [,comerciante branco de Bambadinca] o Zé Luís aproveita para receitar um tratamento imediato:
- Meu Major, beba dois ou três whiskies com Perrier - aconselhou.

O A. C. , preocupado com a falta de diurese, aceita o conselho. Bebe dois uísques, bebe três, bebe quatro, começa a ficar com os copos e continua bebendo. Uma monumental bebedeira. Cantou no Bar até às duas da madrugada, não deixando ninguém dormir.

Todos os dias, às sete horas, tinha a formatura da companhia de milícias, onde estavam presentes o comandante e 2º comandante, Polidoro [Monteiro] e A.C. .Seguia-se um desfile até ao campo de futebol com o acompanhamento rufante de dois tambores.

Naquela manhã, com a companhia formada, o Polidoro presente, eu mando ombro arma, faço a continência e grito:
- Meu comante, dá licença, companhia pronta!
Diz- me:
- Mande descansar a companhia e faça o favor de ir chamar o nosso Major.

Dirijo-me ao quarto do A.C., bato à porta e uma voz debilitada pelo álcool, diz:
- Entre .
Entrei e digo:
- Meu major, o nosso comandante está à espera para apresentação da companhia.
- Oh Santiago, diga ao nosso comandante que estou adoentado e levanto-me mais tarde.

Transmito estas palavras ao Polidoro Monteiro. Reacção dele:
- O caralho é que está adoentado, doentes ficámos nós com o barulho que fez à noite. Quem não sabe beber, faz destas cenas.

Vira-se para os dois militares dos tambores e diz:
- Acompanhem o nosso Alferes e despertem o nosso Major.

Reparo que vão todos excitados, imaginando um despertar fora do vulgar. Vão à minha frente, abrem a porta do quarto, tocam os tambores. O A. C. salta da cama e cai esparramado no chão. Uma cena macaca.

Passados poucos minutos lá chega, esbaforido, à parada, ainda a compor a camisa começando logo a ouvir uma piçada:
- Não tem respeito por esta companhia, há meia hora esperando pelo senhor. Não teve
respeito pelas pessoas que não deixou dormir. Um péssimo exemplo! - atira-lhe o Polidoro sem lhe dar hipóteses para desculpas.

Enfim, uma luta entre um Infante e um Artilheiro.

Paulo Santiago

(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)

PS-Nunca tive bom relacionamento com o A. C.: era um emproado.

________

Notas de L.G.

(1) Oficial superior do BART 2917 (Bambadinca , 1970/72). Uma vez que ainda está vivo e até já terá manifestado interesse em visitar o nosso blogue, decidi pôr o seu nome em iniciais, sem consultar o Paulo Santiago que, decerto, irá compreender e aceitar a minha decisão editorial (3)... No blogue, todos os ex-combatentes, amigos e inimigos, devem ser tratados com a dignidade e a compaixão que todo o ser humano merece... Este episódio, de qualquer modo, é da esfera pública, é contada por um dos seus intervenientes e faz parte da nossa memória...

Conheci-o, ao A.C., a partir de meados do ano de 1970. Na altura, era um militarão que nos obrigava a fazer continência. Todos nós apanhámos bebedeiras de caixão à cova. Um major não era diferente dos outros militares. Só com uma diferença: era pressuposto ser um líder, um comandante, ser o exemplo vivo do RDM...

Ainda no meu tempo assisti a uma cena parecida, em que ele foi o protagonista... Dizem que foi a sua estreia em matéria de copos, na Guiné... Um dia chamei-lhe nomes feios, na sequência da terrível Operação Abencerragem Candente (26 de Novembro de 1970) (2)... Passei-me dos carretos... Mas tudo isto é fado e passado... Já não lhe guardo rancor... Éramos todos de carne e osso...

(2) Vd. post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)

(3) O Paulo mandou-me depois a seguinte mensagem: "Acho que fizeste bem ao utilizares unicamente as iniciais" (12 de Setembro de 2006).

Guiné 63/74 - P1061: Álbum das glórias (1): Um brinde no bar de oficiais de Bambadinca (Mário Beja Santos)

Texto e foto: © Beja Santos (2006)


Caro Luís, seguem-se três fotografias para o álbum das glórias. Na primeira (que hoje se insere) estou a brindar com não sei quem. Ao fundo, no lado esquerdo, está um Major que conviria identificar e que corresponde à chegada do batalhão de artilharia em Julho de 1970 [BART 2717].

Ao fundo, a meio, identifico o [Alferes miliciano] Nelson Wahnon Reis de quem iremos falar já perto do final desta saga. Foi ele quem me veio substituir em Agosto de 70, [no comando do Pel Caç Nat 52], em condições que me pareceram dramáticas para ele, visto ser cabo-verdiano.

A meio lado, a fixar a câmara temos o Tenente-Coronel Domingos Magalhães Filipe [comandante do BART 2917] que me comoveu muito com o louvor que me concedeu e mais tarde foi atribuido pelo Presidente da República.

Ao fundo, do lado direito, o [Alferes miliciano, da CCAÇ 12], Abel Rodrigues sorri como se a festa fosse toda dele e tenho a certeza que é o Vacas de Carvalho [alf mil, comandante do Pel Rec Daimler 2206] quem está junto à porta.

Mário Beja Santos

(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

domingo, 10 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros.

Fotos: © Paulo Raposo (2006)


XIX (e última parte) do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Comentário de L.G. >
O Paulo Enes Lage Raposo, que hoje vive em Montemor-o-Novo, foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70).
Durante a sua comissão, esteve em Mansoa e sobretudo na zona leste (Galomaro e Dulombi), a sul de Bafatá. A sua companhia perdeu 17 militares na travessia do Rio Corubal, na sequência da retirada de Madina do Boé.
Desde Abril de 2006 que o nosso blogue tem estado a publicar o testemunho (escrito) que o Paulo elaborou em 1997 e que só era connhecido de alguns amigos e camaradas da sua companhia e do seu batalhão. É um documento policopiado, de 65 páginas, com o seu "testemunho e visão da Guerra de África", mais concretamente sobre a história da sua vida militar, desde a sua incorporação, como soldado cadete, em Abril de 1967, na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, até à sua mobilização para a Guiné, como Alferes Miliciano da CCAÇ 2405, onde teve como camaradas os membros da nossa tertúlia Rui Felício e Victor David.
Esta unidade partiu para a Guiné em Julho de 1968. O Paulo regressou passou à vida civil "ao fim de 37 meses de tropa". Nesse espaço de tempo teve a imensa alegria da visita do seu pai a Bissau e a grande tristeza da sua partida, para sempre, desta vida.
O Paulo teve a gentileza de me escrever as seguintes palavras no exemplar que me ofereceu: "Como testemunho de gratidão pela tertúlia que proporcionaste na Net. Com amizade. Paulo Enes Lage Raposo. Março 2006".
O Paulo não esconde que tem uma visão própia da "guerra de África" (pp. 55-65), as causas e consequências, o seu contexto histórico e geo-estratégico, 0 25 de Abril, a descolonização, etc., que não coincide (nem tem que coincidir) com a minha, ou com a visão de alguns de nós, mas que eu respeito, que todos respeitamos. Essa é (e continuará a ser), de resto, a regra nº 1 da nossa tertúlia: aceitarmos mutuamente as diferentes leituras e interpretações da guerra de que fomos actores e testemunhos. Essa última parte do seu depoimento poderá ser publicada em altura oportuna.
A parte factual do testemunho do Paulo termina hoje. E é com pena que o digo. Faço votos para que as suas memórias da guerra da Giné não fiquem por aqui. De qualquer modo, o meu agradecimento por este valioso contributo para a reconstituição do puzzle da nossa memória (individual e colectiva). A curta frase com que o Paulo termina a sua história de vida na Guiné, é emblemática e pode seguramente ser subscrita por todos nós: "Odeio as guerras"... Todos nós, que fizemos a guerra da Guiné, ficámos a odiar todas as guerras...
Espero poder conhecer pessoalmente o Paulo, dentro em breve, e dar-lhe um abraço, daqueles de quebra-costelas, como ele faz questão de nos brindar. E quando digo em breve, digo no próximo dia 14 de Outubro, na Herdade da Ameira, em Montemor-o-Novo, se essa for a vontade de mais amigos e camaradas, respondendo a um convite simpático e irrecusável do próprio Paulo. (LG).
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Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 51-53 (1)
A VIAGEM PARA LISBOA

Embarcámos no Carvalho Araújo. Navio pequeno e velho. Qualquer coisa servia para sair de lá. A emoção da alegria da largada não tem descrição. À medida que o navio começa a afastar-se daquela terra, a humidade começa a diminuir. O mar estava chão.

Como estávamos nós de saúde? Mal. A nossa cor era verde e o nosso cheiro tinha-se alterado. Na Guiné tinha tido dois ataques de paludismo, embora tivesse tomado o quinino todas as 5ªs feiras. Os ataques de paludismo deitavam-nos muito abaixo. Primeiro eram uns frios grandes e depois uns calores insuportáveis.

A minha úlcera duodenal estava numa lástima. A bordo seguia um médico que nos fez várias análises. Ao sangue, urina e feses. A bicharada que estava nos intestinos era obra. Tomámos uns purgantes.

Como o navio não estava com muito combustível, o Comandante resolveu acostar na Madeira para reabastecimento. Aquela ilha é realmente bonita. O Capitão André (mais tarde, Presidente da Câmara de Proença-a-Nova, durante 20 anos, até 2005) e eu demos uma volta pelo Funchal num carro militar, gentilmente cedido pelo Regimento local. Flores há-as por todos os lados, é um paraíso. Numa dessas floristas comprámos flores para serem entregues em Lisboa.

O Capitão André manda à sua mulher, com um cartão. Ela estava no fim do tempo para ter uma criança. Eu mando à minha mãe, também com um cartão. Quando cheguei a Lisboa, a minha mãe perguntou-me que cartão era aquele. Tinham-nos trocado.

Do Funchal a Lisboa foi num instante. Começámos a ver terra muito cedo, já estávamos todos acordados, e para fazer tempo para o navio acostar à hora certa ainda fomos fazer um círculo perto do Guincho. Novamente a alegria e a emoção do fim daquele tormento.

A CHEGADA

Estavam lá todos, a família e os amigos, mas o meu pai não estava. Desembarcámos. Mais um desfile e vá de ir para casa. Tudo era diferente. Não só eu me tinha transformado, como cá também tudo tinha evoluído.

Se me custara passar de civil a militar, o inverso depois de 37 meses de tropa foi também muito complicado.

A ansiedade que adquiri no fim da comissão nunca mais me largou. Diminui ou aumenta conforme o cansaço. Está sempre dentro de mim.

Quanto a terrores nocturnos, tive-os durante muitos anos. Por causa de ter adormecido profundamente no mato e não ter ouvido os tiros do inimigo, tive pesadelos pela eventualidade de a companhia avançar e me deixar para trás, só e isolado no mato. Outra situação que me apavorava era a possibilidade de ser novamente chamado para nova comissão como capitão.

Odeio as guerras.

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Nota de L.G.

(1) Vd. posts amteriores:

12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(...) "Entrei para o Convento de Mafra - E.P.I., como soldado Cadete, na 2ª incorporação do ano de 1967, mais precisamente no dia 10 de Abril. Escolhi esta incorporação para não apanhar os rigores do inverno dentro daquele grande Convento.O choque da entrada foi grande, passar de civil a militar não é fácil. Após a entrada, só podiamos sair depois de saber marchar, conhecer as patentes e saber fazer a continência. Aquela primeira semana parecia que nunca mais acabava" (...)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

(...) Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano. Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

"Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores" (...).

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (3): De Santa Margarida ao Uíge

(...) "Após termos dado a instrução aos soldados em Abrantes, lá fomos para o grande campo de Santa Margarida para tirar o IAO, a Instrução de Adaptação Operacional.Santa Margarida era, na realidade, parecida com aquilo que víamos nos filmes de cowboys. Uma avenida muito larga e comprida, com uma capela ao fundo. De um lado e de outro dessa larga avenida havia enormes quartéis de todos os ramos do Exército. Estavam lá os carros de combate, a Engenharia, a Infantaria, as Comunicações, o Estado Maior de Brigada, etc." (...)

5 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

(...) [Spíonla] põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa diz-me: - Você tem sorte.Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente: - Porquê, meu Comandante? - Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.

"Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso: - Você que se cuide" (...)

7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa


(...) "Seguimos finalmente para Mansoa, em coluna. Como ainda não estávamos armados, nos sessenta quilómetros que se seguiram, íamo-nos perguntando:- E se houver ataque à coluna, como é?

"Mansoa era uma terra importante com ruas alcatroadas. Durante essa primeira noite, o Batalhão que lá estava, o 1911, simpáticos, fizeram uma salva de artilharia à noite para verem a reacção dos periquitos (alcunha dos recém chegados)." (...)


8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

(...) "Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada." (...)


11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(...) "A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra. Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:- Atenção heli, aqui tropa à rasca" (...).

19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste


(...) "Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula. O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

"Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio. Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca". (...)

22 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (9): Fome em Campatá e Natal em Bafatá

(...) "Ao meu grupo de combate calhou a Tabanca de Campata. Ali nos deixou a Companhia, por muito tempo e sem qualquer razão, sem comida. Durante cerca de uma semana, praticamente não tínhamos de comer. Dizia-me um soldado:- Ó meu Alferes, a fome é negra!Em face disto, fomos subtraindo galinhas e cabritos à população, que não os queriam vender por serem o único meio de subsistência que tinham" (...).

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

(...) "Estacionámos na margem sul do rio Corubal, nós e a companhia de Madina [CCAÇ 1790], durante toda a noite para protecção. Durante a noite a jangada foi transportando para a outra margem todas as viaturas. Já de madrugada [ do dia 6 de Fevereiro de 1969] e passados todos os carros, foi a nossa vez de atravessar o rio. Como tínhamos por hábito rodar as nossas posições assim que parávamos, a nossa companhia passou para a frente da de Madina e o meu grupo de combate., por sua vez, passou para a frente da minha companhia. Com o meu grupo de combate na frente, a companhia dirigiu-se para a jangada para fazer a travessia. A jangada já estava praticamente cheia e só coube o meu grupo. Para trás ficaram dois grupos da minha companhia [CCAÇ 2405]e toda a companhia de Madina [CCAÇ 1790]". (...)


21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal


(...) "Depois de dormitar um pouco para pôr em ordem o equilíbrio, chegámos por fim a Lisboa. Passada a alfândega, depois de termos escondido as garrafas de whisky, que custavam 75$ na Guiné, lá estava toda a família e os amigos. Naquele tempo era assim. Menciono apenas alguns, a família Albarraque, Cardoso de Oliveira, Campos Rodrigues e Palma Carlos.

"Meu pai mostrou-me o relógio dele. Desde a sua estada na Guiné ainda não tinha mudado as horas do relógio. Ainda não se tinha desligado da sua estadia em Bissau. Foi uma grande alegria ir para casa, tomar banho,dormir na minha cama, comprar o jornal, que subira de preço, para 1$50, e poder sair à rua sem perigo. Foram quatro semanas estupendas passadas no mês de Maio" (...).


26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai

(...) "Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem" (...).

6 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P941: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (13): Operação ao Fiofioli

(...) "Para as operações é costume contratar carregadores locais, para nos levarem água adicional e munições. Habitualmente não fugiam e era uma forma de dar trabalho na região. Por vezes a verba disponível para estes serviços era gasta em falsos contratos, e eram os soldados que tinham de carregar com os pesos.Estas operações mais compridas eram muito penosas e assim eu, por minha conta, contratava um carregador para me levar a arma, bebidas e comida adicional. O que mais apreciávamos comer no mato era a fruta em calda. Era refrescante e o sumo tinha o açúcar necessário para nos dar as forças suficientes para a caminhada. Por desidratação, em cada operação, perdíamos sempre vários quilos" (...).

10 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P949: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (14): regresso às tabancas em autodefesa

(...) "Vivíamos pois no meio da população e nunca tivemos qualquer tipo de problemas. Em que condições íamos para lá? Aos soldados era-Ihes dado um colchão pneumático Repimpa de cor verde-tropa, igual aos que se utilizam na praia. As formigas baga-baga tinham umas tenazes que chegavam a ferir. Resultado: no dia seguinte o colchão estava furado, o ar ia-se e os rapazes passavam a dormir no chão.

"No que me diz respeito, levava a minha cama, colchão, mosquiteiro, frigorífico e cimento, que roubava ao Furriel Tavares, para pavimentar a Tabanca aonde ia dormir.No exterior desta colocava um tambor aberto para receber água, e, com duas esteiras, uma no chão e outra lateral, fazia uma casa de banho onde diariamnete, ao fim do dia, tomava o meu banho e fazia a barba.Junto à cozinha, fazíamos um forno para cozer pão. Tínhamos sempre pão fresco" (...).

31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1007: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (15): as colunas logísticas de Galomaro a Bafatá e a Bambadinca

(...) "Das muitas colunas que faziamos de Galomaro a Bafatá ou a Bambadinca, há duas que me ficaram gravadas na memória.Aquele itinerário não tinha qualquer perigo, era uma zona perfeitamente em paz. Geralmente ao lado do condutor segue o militar mais graduado.1. Um dia segue connosco o Capitão Portugal e, como era o mais graduado, dei-lhe o lugar ao lado do condutor. Recusou e disse para ir eu nesse lugar e ele seguiu no banco traseiro do Unimo" (...).

3 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1022: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (16): De novo em Bissau, a caminho de... Dulombi

(...) "Estávamos em Fevereiro de 1970 e contávamos, por tudo o que já tínhamos passado, ir para os arredores de Bissau, para o descanso, pois a nossa comissão terminava em Maio.Dulombi ficava a sul de Galamaro. Será que ainda tínhamos de ir para lá? Passado pouco tempo de chegado à Companhia surge a ordem para a [CCAÇ] 2405 seguir para Dulombi para instalar um aquartelamento.A desmoralização foi muita. Íamos para pior e bem pior." (...)

7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(...) "Dulombi era uma Tabanca que já não tinha população e ficava a sul de Galomaro. Assim que lá chegámos, rodeámos o perímetro com arame farpado e começámos a fazer os abrigos onde passámos a dormir. Passámos à condição de toupeira.

"Os abrigos eram feitos da seguinte maneira: abre-se uma cova até à altura da cintura. Depois cobria-se a vala com troncos de palmeiras. Em cima destas colocava-se a chapa dos tambores, que abríamos. Por fim, colocávamos terra.

"Era um sufoco ali em baixo! Foi ali que, tal como os presos, comecei a contar um a um os dias que faltavam para me vir embora. O Capitão, que não estava para dormir no chão, fez um bunker em cimento só para ele" (...).

16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1034: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (18): O fim da comissão

(...) "No dia do embarque formámos novamente nos adidos em Brá, onde o General Spínola faz o agradecimento e se despede. Nesta cerimónia faz-se a chamada dos mortos. É um momento muito emocionante. A medida que se vai pronunciando o nome de cada um que caiu, nós respondemos:- Presente!

"Era uma parte de nós próprios que lá ficou. Porquê aqueles e não nós? Como reagiram os pais daqueles rapazes que não voltaram para casa? A pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um filho. Não há nenhum que substitua outro" (...).

Guiné 63/74 - P1059: Estórias do Zé Teixeira (14): A Maria-tira-cabaço-di-branco (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


Guiné > Ingoré > 1968 > O 1º cabo auxiliar enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2831 (1968/70), posando em cima de uma autrometralhadora Daimler, no início da sua comissão que o levaria do Cacheu (Ingoré) até ao Sul, às regiões de Quínara (Buba, Empada) e Tombali (Quebo, Mampatá, Chamarra).


Foto: © José Teixeira (2005)


Continuação das estórias do Zé Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)


A Maria tira cabaço di branco


Quando chegamos a Empada (2), lá aparece a Maria, mais a irmã, a dar-nos as boas vindas. Rapidamente se soube da sua arte e mestria em tirar cabaço a branco e satisfazer as necessidades a quem já sabia da poda, para desgraça da nossa jorna, já de si tão pequena e que se esvaía na cerveja e agora tínhamos a Maria.

Um alferes, a quem não foi contada a história da pequena, tenta o engate e, záz!, arranjou namorada que até ia ao quartel, durante o dia, prestando-se para todo o serviço. Ninguém lhe podia tocar, era a namorada do alferes, durante o dia, mas, à noite, zumba que zumba com toda a gente que tivesse uns patacõezitos para gastar. Até faziam fila e a irmã dava uma ajuda.

Houve cenas engraçadas com a Maria-tira-cabaço. Um camarada e amigo encabaçado, tinha vontade e. . . inexperiência, vergonha, medo, falta de jeito, etc. Então foi meter uma cunha a outro companheiro para pedir à Maria para o atender bem. Este foi, meteu a cunha e gozou de borla. O outro pagou a dobrar, isso de tirar cabaço a branco tinha de ser bem pago !

Tanto quanto pude apreciar até o Nino sabia da sua vida, pois num célebre ataque ao cair da noite, as primeiras canhoadas foram para a casa da Maria, só que os brancos que lá estavam eram velhinhos e voaram ao sentirem o som das saídas do canhão.

O pobre do alferes é que, quando soube, rebentou de raiva. E foi uns dias depois, quando foi à sua procura na morança, um dia ao fim da tarde (talvez a fosse convidar para jantar): encontrou o lugar ocupado e gente à espera...
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post anteriores:

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1055: Estórias do Zé Teixeira (12): O Balanta que fugia do enfermeiro

4 de Setembro de 2006 >

Guiné 63/74 - P1042: Estórias do Zé Teixeira (9): camaleões, putos e cobras

Guiné 63/74 - P1043: Estórias do Zé Teixeira (10): O embalsamador amador

Guiné 63/74 - P1044: Estórias do Zé Teixeira (11): As vitaminas abortivas

(2) Vd. posts de:

1 de Janeiro de Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

(...) O diário do Zé Teixeira foi já publicado, entre 1 de Janeiro e 14 de Março de 2006. É composto por 19 posts. Eis como o Zé Teixeira, no post de 1 de Janeiro de 2006, resumiu as saus deambulações por terras da Guiné:

"Fui enfermeiro de campanha na CCAÇ 2381. Fui para a Guiné em fins de Abril de 1968 e regressei em Maio de 1970. Estacionei cerca de 3 meses em Ingoré, no Norte, onde a companhia fez o seu treino operacional. Seguimos depois para Buba e fixámo-nos em Quebo (Aldeia Formosa), [no final de Julho de 1968].

"Aí a CCAÇ 2381 teve como missão fazer escoltas de segurança às colunas logísticas de abastecimento entre Aldeia Formosa/Buba e Aldeia Formosa/Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a autodefesa de Aldeia Formosa, Mampatá e Chamarra.

"Regressámos a Buba, em Janeiro de 1969, para servirmos de guarda às equipas de Engenharia que construiram a estrada Buba/Aldeia Formosa. Face ao desgaste físico/emocional fomos enviados, a partir de 1969, para Empada onde vivemos os últimos meses de Comissão".

sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt


Capa do romance de Curzio Malaparte (1898-1957), Kaputt (Lisboa, Edições Livros do Brasil, 1962. Tr. de Amândio César. Edição original italiana: 1940).



Mensagem de 29 de Agosto de 2006:

Caro Luís, aqui vai um terceiro texto e algumas notícias:

Primeiro, e sem insídia, sugeri ao Paulo Raposo que tivéssemos este ano pelo Natal o nosso primeiro encontro bloguista ao vivo. Como tu és o pai espiritual desta matéria-prima, vê se queres animar a malta.

Segundo, em função de algumas leituras que fiz durante a guerra e que vou referir no blogue, sempre que possível seria interessante ilustrar com tais livros. Por exemplo, no texto de hoje faço referência a Kaputt e parece interessante ilustrar, já que curiosamente o livro está à venda tal como o li. Na primeira flagelação que sofri em Missirá, em 6 de Setembro de 1968, estava a ler As Sandálias do Pescador, por Morris West, editado pela Clássica Editora. O livro ardeu, como sabes, não tenho ilustração. Paciência.

Terceiro, espero enviar-te ainda esta semana três fotografias referentes a matérias que vamos abordar. Terei a preocupação de dar a informação que julgo a mais conveniente, já que tu tens sido bondoso nos comentários que fazes. Se considerares toda esta prosa está a mostrar-se excessiva, não te coíbas de me fazer reparos.

Recebe um abraço do Mário.


Kaputt


Na segunda semana de estar em Missirá, vi com os meus olhos a minha morança pronta. A palha fora toda limpa e a morança envolvida de palha nova, o chão recebeu saibro e o interior caiado. Nesse dia, um soldado das milícias, Ieró Candé, avançou para mim e olhou-me determinado:
-Quero ser guarda costa de alfero!

Como não conhecia tal intendência, perguntei-lhe o que era um guarda costas e ele respondeu:
-Alguém que leva a roupa de alfero à Binta (a lavadeira), prega os botões que a Binta estraga, limpa a arma, arruma a habitação de alfero, engraxa a bota e se necessário dá a vida pelo alfero.
Ieró foi aceite, pois nunca pensara que a vida humana era menos classificável que engraxar botas e aquela sinceridade tocou-me até aos dias de hoje. Passei horas a arrumar os meus discos, fez-se com tábuas um pequeno armário para a roupa e com mais outras tábuas e tijolos de adobe estantes para as centenas de livros que me iriam fazer companhia até arderem em Março de 69.

Na arrumação dos livros, encontrei cheio de alegria o Kaputt, de Curzio Malaparte. Para quem não conhece esta obra - prima da literatura universal, seguem-se as minhas impressões e recordações. Comprei o Kaputt em 1964, e não supunha que aquela ferocidade inumana, aquela bestialidade da II Guerra fosse transponível para outras guerras. Estão ali registados os horrores do nazismo e do facismo, descritos num estilo que hoje se poderá chamar de Romance de não-ficção (aliás, A Sangue Frio, de Truman Capote, que não li antes nem durante a guerra, é outra obra- prima deste estilo).
Malaparte era um jornalista brilhante, um enfant terrible do fascismo italiano, ideologia com o qual veio romper, sendo mesmo perseguido pela Gestapo devido à crueza dos seus comentários na correspondência que enviou da frente russa. O livro é redigido com extrema elegância, pautando-se pelo cinismo e a narrativa frontal do horrível, do imundo e da beleza.

Kaputt (palavra alemã que quer dizer estragado, perdido, estilhaçado e reduzido a pedaços), é uma narrativa em cinco partes e com protagonistas completamente diferentes. Em Os Cavalos, Malaparte encontra-se com o Principe Eugénio da Suécia, depois do seu regresso da frente filandesa. Fala-se de Paris, de Capri, dos prisioneiros soviéticos que comiam os cadáveres dos seus camaradas no campo de Smolensk, dos cavalos russos que caíram num lago e gelaram, formando a composição mais inacreditável que é possível com as cabeças de cavalo apontadas a outra margem do rio.

O irmão do Gustavo V da Suécia chora mansamente enquanto Malaparte descreve os fuzilamentos e as matanças dos nazis na frente russa, os pogroms dos fascistas romenos aos seus judeus.
Em Os Ratos que li sempre como o mais pungente episódio sobre qualquer guerra e em qualquer cultura, Malaparte encontra-se com Hans Frank, o Governador Geral da Polónia em vários momentos. Num ambiente de verdadeiro encontro do Renascimento, rodeado de altos dignatários do nazismo, fala-se dos judeus empilhados nos guetos de Varsóvia e outras cidades e os doutrinadores raciais de Hitler expendem considerações sobre a extinção dos ratos judeus. Não resisto esta transcrição que me apareceu durante anos em sonhos:

- Repare neste muro - disse-me Frank.- Vê realmente essa terrível muralha de cimento eriçada de metralhadoras de que falam os jornais ingleses e americanos? Na voz arrogante de Frank havia um não sei quê que eu julguei reconhecer, alguma coisa de triste: uma crueldade humilde e triste.
- A atroz imoralidade deste muro - respondi - não consiste apenas no facto de impedir que os judeus saiam do guetto, mas no facto de impedi-los de aí entrar.
- E contudo - disse Frank, rindo - embora a violação da proibição de sair do ghetto seja punida com a morte, os judeus entram e saem à vontade.
- Escalando o muro? - Oh, não! - responeu Frank. - Saem por pequenas aberturas, semelhantes a buracos de ratos, cavam durante a noite na base do muro e escondem de dia com terra e folhas. Enfiam-se por esses buracos e vão à cidade comprar víveres e roupas. O mercado negro do guetto pratica-se em grande parte através desses buracos. De vez em quando, alguns desses ratos caem na ratoeira: são crianças de oito a dez anos, não mais arriscam a vida com vedadeiro espírito desportivo...
- Em Cracóvia - disse Frau Wächter - o meu marido construiu em redor do ghetto um muro à oriental, com curvas elegantes e bonitas seteiras. os judeus de Cracóvia não têm razão de queixa.É um muro muito elegante, em estilo judaico.
Todos começaram a rir, batendo os pés na neve gelada. - Ruhe! (Silêncio) - disse um soldado que, de espingarda apontada estava ajoelhado a alguns passos de nós, escondido por um montão de neve.

O soldado visa um buraco cavado num muro à flor do chão. Um outro soldado, ajoelhado atrás dele espiava por cima do ombro do seu camarada. De repente, este disparou. A bala atingiu o muro precisamente no bordo do buraco.

-Falhou! - exclamou alegremente o soldado, carregando de novo a arma. Frank aproximou-se dos dois soldados e perguntou contra quem disparavam. - Contra um rato! - responderam eles, rindo rudiosamente. -Contra um rato? Ach so! - disse Frank ajoelhando-se para olhar por cima do ombro do soldado. Tínhamo-nos aproximado também e as mulheres riam e meneavam-se, erguendo as saias até meio da perna como fazem habitualmente as mulheres quando se falam de ratos.

-Onde está ele? Onde está o rato? - perguntou Frau Brigitte Frank. -Achtung! - disse o soldado fazendo pontaria. Pelo buraco cavado na base do muro vimos aparecer um tufo de cabelos negros desgrenhados: depois duas mão emergiram do buraco e apoiaram-se na neve. Era uma criança.

O tiro partiu. Desta vez ainda, falhou o objectivo por pouco. A cabeça da criança desapareceu. -Dá cá isso- disse Frank com impaciência- nem sequer sabes servir-te de uma espingarda!- Apoderou-se da arma e fez pontaria.
A neve caía sobre o silêncio.

A terceira parte chama-se Os Cães. Num encontro entre diplomatas, Malaparte descreve a chacina de militares soviéticos na Ucrânia. Na quarta parte Os Pássaros, a barbárie continua à solta e Malaparte conversa com a Princesa Luísa da Prússia. Falam das atrocidades praticadas pelos fascistas croatas. Na quinta parte, As Renas, Malaparte descreve o seu encontro com Himmler na Finlândia. Por fim, na sexta parte, As Moscas, é o encontro de Malaparte com Edna Ciano, a filha de Mussolini, os bombardeamentos a Nápoles pelos Aliados e a premonição do fim da guerra.

Como escreveu Malaparte: "A alegria cruel é a mais extraordinária experiência que tirei do espectáculo da Europa no decorrer destes anos de guerra.". Daí, igualmente, a impressão que Kaputt me voltou a trazer nessas noites de Agosto de 68, quando o reli sofregamente, entre dois turnos de sentinela. Porque nascera outro hábito da minha existência. Com o auxílio de um 1º Cabo e com a chancela de um furriel, eu aprovava os turnos de sentinela entre as 18 horas e as 6 horas da manhã. E aparecia de surpresa, fosse a que horas fosse para confirmar que tudo está a correr bem. Centenas de pessoas dependiam da vigilância destes guardas. Falhar era imperdoável.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > 1969 > A morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , destruída por uma granada incendiária, por ocasião de um grande ataque ao destacamento em Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, inclkuindo os seus haveres mais preciosos: os livros e os discos...
Foto: © Beja Santos (2006)


Quando cheguei a Missirá os meus soldados eram números. Eu dizia assim:
-Quero falar com Mamadu Silá.
Alguém respondia:
- Vai chamar o 109. 
Eu dizia:
-Diz ao Cherno para vir imediatamente. 
 Outra voz proclamava:
- Vai chamar o 118.

Nasceu aí uma ordem de serviço: "A partir de amanhã, toda a gente nos pelotões será conhecida como gente. Pode haver números, mas no trato seremos gente!". Quem escrevia esta declaração seria e continua a ser tratado por Veiga Santo, Beja Santo, Mário Santo e, excepcionalmente, Mário Beja Santos ou coisa mais parecida.

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1057: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > s/d > Um dos valentes soldados do Pel Caç Nat 52, e um dos novos amigos do Beja Santos.

Foto: © Beja Santos (2006)


Texto do Beja Santos, enviado em 25 de Agosto de 2006 :

Caro Luís, agora é que eu descobri que tenho episódios para contar entre Agosto de 68 e Setembro de 70, com as sequelas do meu regresso à Guiné em Janeiro de 90 e de Setembro a Dezembro de 91.

Espero cumprir cabalmente a missão que me propus. Para a semana enviar-te-ei novo sobrescrito com fotografias. Não tenho palavras para te agradecer os cuidados que vais pondo na minha prosa ilustrada. Procurarei corresponder a tais provas de estima. Como já te escrevi, ficarás fiel depositário de toda a minha documentação. Os aerogramas do Contra-Almirante Teixeira da Mota, se houver condições, poderiam vir a ser oferecidos a um departamento da Guiné, já que ele amou profundamente aquela terra. Espero termos vida bastante para encaminhar para os locais certos papelada que vai pertencer à História.



Os inolvidáveis encontros humanos, e a fala da razão e do coração: os meus novos amigos

por Beja Santos

Na minha primeira semana em Missirá (1), lembro-me de ter anotado numa folha:

"1- Os míudos precisam de aulas, temos que pôr uma escola a funcionar; 2- Não se pode comer desta maneira: os cozinheiros têm que ir estagiar a Bambadinca; 3- Importa calendarizar as obras de segurança do quartel: estacas e arame farpado, três fiadas novas; pedir metralhadoras modernas, já que não se vai a parte nenhuma com a Breda e a Dreyse; fazer casas de banho pois os militares vão permanentemente atrás da árvore..."

Quanto à escola, chamei o Zé Pereira, um papel de Bissau que tinha frequentado a missão católica. Era 1º Cabo, falava primorosamente, tinha mesmo uma encenação professoral. Disse-lhe:
- Zé, temos cerca de 40 crianças que sabem agricultura e que vão connosco com uma Mauser na mão até Bambadinca. Temos que as preparar para fazer exames de instrução primária. O que é que tu sugeres?.

O Zé lembrou-me que era militar e que não queria abandonar tal estatuto. Cortei rápido:

-Vamos fazer uma instalação para a escola, tu propões-me um professor, vou arranjar livros, cadernos e ardósias e toda a gente do pelotão de caçadores nativos e das mílicias de Missirá e Finete vai aprender a falar português.
Para quem não se recorda, o português era falado entre brancos, entre brancos e alguns guineenses como o Zé Pereira. Eu recorria sistematicamente a vários intérpretes: ao Zé, ao Domingos Silva (quando não estava bêbedo), ao Albino Mamadu Baldé, Comandante da Milícia de Missirá ( também conhecido por Samba, não me perguntei porquê), entre outros, visto ser interpelado em crioulo, mandinga e fula com a maior das naturalidades. Interpelado em quê? Para levar doentes ao posto médico; para fazer uma coluna a Finete para fazer sacos de arroz; para trazer géneros, equipamento militar e até petromaxes (mesmo com as promessas do Spínola, deixei Missirá sem electrificação).
A escola foi negociada com o régulo, acertou-se o horário das aulas, fui arranjar um professor ao Bambadincazinho (avisei os arranchados que iriam comer "um pouco menos bem", já que algum dinheiro seria destinado ao professor, o que ao princípio deu contestação, mas no mês seguinte foi aceite, quando passei a regatear mais comida na CCS [do BCAÇ 2852, com sede em Bambadincxa], episódio a não perder num dos próximos capítulos), o Zé e eu passámos a dar aulas à tropa, ao sabor dos tempos livres (o Luis Graça é capaz de descobrir uma fotografia alusiva).
Passando para a comida, o frango praticamente cru e o arroz espapaçado que o Doutor me atirou num prato de alumínio pelas 5 horas da tarde daquele dia 4 de Agosto de 1968 não me saem da memória. Passei a viver em levantamento de rancho espiritual. Nessa altura era o Cabo Veloso que exercia as funções de vagomestre, arroz num lado, caixa de folha de flandres com bacalhau noutro, caixas com leite achocolatado noutro e ainda hoje tenho um zumbido nos ouvidos com o barulho do frigorífico que trabalhava a petróleo.
O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso.
Resta dizer que as instalações onde comíamos e a cozinha eram alfurjas, a que chamaríamos hoje espaço multiusos. Com efeito, mal se dava por fim a refeição, havia quem jogasse o loto a feijões, quem escrevesse aerogramas e ouvia rádio (ouvíamos o Manuel Alegre a partir de Argel, como se ouviam igualmente as canções do momento ou os grandes clássicos a pedido da tropa, tipo Adeus, Guiné ou Mãe, estás tão longe de mim). Foi à porta desta espelunca que nos fins de Setembro uma rajada de PPSH levou o telhado e o Teixeira das transmissões atirou-se para dentro de um bidão com restos de garrafas. Eu depois conto.

Quanto ao armamento, foi guerra que perdi para sempre. Tirando algumas HK21 e depois o morteiro 81, fiquei sempre reduzido a armamento pré-histórico. E, como se verá adiante, eu era credor de ter uma peça de artilharia para responder às sucessivas arremetidas do PAIGC.

Vou ganhar a batalha da higiene, pois claro. A engenharia de Bissau irá oferecer-nos um engenhoso mecanismo de 6 bidões que irão facilitar a limpeza de quem combate e patrulha diariamente Mato de Cão. A chegada deste mecanismo a Missirá é um episódio de gesta heróica. As amizades estreitam-se. A confiança estabelece-se. A autoridade surge espontaneamente. Nenhuma provação em tempo de guerra prescinde de valores e da sinceridade da relação humana. Naquele ponto do Cuor, estabeleciam-se misteriosas concordâncias entre o coração e a razão. Coisas que também se irão contar.
___________
Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P1056: Estórias avulsas (1): Mato Cão: um cozinheiro 'apanhado' (Joaquim Mexia Alves)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mato Cão > Pel Caç Nat 52 > 1972 > O Alf Mil Mexia Alves, ao centro, ladeado pelo seu impedido, o Mamadu (à esquerda) e o cozinheiro, herói desta estória (à diereita).

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto do Joaquim Mexia Alves, com data de 3 de Agosto de 2006:

Caro Luis Graça:

A propósito de apanhados (1) e outras vivências, junto fotografia tirada no Mato Cão, onde estou eu, o Mamadu, impedido da messe, e o cozinheiro, de quem não lembro o nome, mas penso que pertenceria ao Pelotão de Morteiros de Bambadinca, que tinha uma secção no Mato Cão (2).

O referido cozinheiro era um bom rapaz, muito ingénuo e um pouco apanhado, e que nunca tinha saído para o mato (já lhe chegava estar no Mato Cão!).

Retenho esta história:

Um dia, irritado com as graças e ditos acerca da sua pessoa, declarou solenemente que se ía embora.

Meteu pernas ao caminho, passou o arame farpado no lado contrário ao do Rio Geba e continuou pela mata dentro.

Claro que eu não fiquei nada preocupado e disse ao resto do pessoal:
- Não há problema. O gajo anda um pouco, vê-se sozinho e volta a correr.

Só que o tempo foi passando e o cozinheiro não havia modo de voltar.

Ao principio fiz um pouco de finca-pé, do tipo "Se pensas que te vou buscar estás muito enganado", mas depois comecei a ficar preocupado.

Lá vesti qualquer coisa mais conveniente para sair para a mata, peguei nas armas e acompanhado - salvo o erro, pelo Furriel Bonito -, saí do perímetro para ver se o encontrava.

Não estava muito longe, mas como tinha começado a escurecer o medo era tanto que já não andava nem para a frente nem para trás.

Lá o trouxemos para dentro, preguei-lhe a descasca conveniente e, claro, no outro dia a seguir lixou-se, porque foi mais gozado que antes.

No entanto todos gostavam muito dele e por isso era tudo foi feito com muita camaradagem.

Mais uma história leve, que também servia para nos irmos libertando das tensões.

Abraço

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029

_______

Nota de L.G.

(1) Sobre a temática dos cacimbados ou apanhados, vd. entre outros os seguintes posts:

2 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1018: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (III): E o jipe nunca voou

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1013: Também eu, apanhado, me confesso (Jorge Cabral)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1003: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes)(II): tirem-me daqui!

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P999: Eu, cacimbado, me confesso (João Tunes) (I): tudo bons rapazes!

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P992: 'Estar apanhado' dava muito jeito e algum gozo (Joaquim Mexia Alves)

21 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P973: Estar ou fazer-se 'apanhado' para não enlouquecer (Jorge Cabral)

19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P972: Cacimbados ou apanhados do clima ? (Zé Teixeira)

17 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P965: 'Cacimbados', 'apanhados do clima'... ou os nossos comportamentos de risco, bravatas, diabruras, loucuras... (Luís Graça)

13 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P958: 'Gajos das tropas africanas eram doidos' (Joaquim Mexia Alves, CART 3492, Pel Caç Nat 52 e CCAÇ 15)


15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVIII: Cancioneiro de Mansoa (7): Os periquitos do pós-guerra

13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá (Jorge Cabral)

16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)

(2) Vd. post de 4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1024: Pel Caç Nat 52, destacamento de Mato Cão (Joaquim Mexia Alves)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1045: Pedido ao Joaquim Mexia Alves (Pel Caç Nat 52) para ajudar a desvendar o passado (Beja Santos)

6 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1049: O destacamento de Mato Cão (Paulo Santiago)

Guiné 63/74 - P1055: Estórias do Zé Teixeira (13): O Balanta que fugia do enfermeiro (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Ponta Brandão > 1970 > Dois velhos balantas (1).

Foto: © Humberto Reis (2006).


Continuação das estórias do Zé Teixeira (ex-1º cabo auxiliar enfermeiro, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (1)


O Balanta que fugiu à seringa


Em Mampatá Forreá, os dois únicos balantas que lá conheci (a população era Fula, Futa-fula e Mandinga) eram lenhadores, contratados pela tropa a troco de uma marmita de comida diária para cortarem lenha para a cozinha militar.

Um deles tinha tanta força como de ingenuidade. Um dia peguei numa faca e disse-lhe que o ia matar. Desatou a correr e eu atrás dele, a rir-me às gargalhadas, correndo os dois a tabanca toda.

Ninguém sabia o que se passava nem entendia porque quando eu parava, atrás de uma morança, ele parava e, se eu começasse a correr, ele fugia por entre as moranças, a rir-se, mas sempre longe de mim. Um bom espectáculo para um fim de tarde de alguém que apenas precisava de queimar o tempo e ainda faltava tanto .

Só parámos, quando deitei a faca ao chão. Depois demos um abraço e . . . fizemos as pazes. Certo dia acertou com o machado num pé., cortando profundamente um dedo. Por pouco não traçava o osso por inteiro.

Dirigiu-se à enfermaria, ao ar livre, isto é, ao cantinho onde todos os dias eu montava o meu engenho de enfermaria.

O meu dilema era completar a obra do machado e sacar o dedo ou tentar suturá-lo, na esperança de o osso solidificar. Ou, então, aguardar dois dias pela avioneta do correio e mandar o embrulho para Bissau.

Optei pela sutura, lavei muito bem o pé - que talvez nunca tivesse sido lavado na vida -, e preparei a seringa para a anestesia local. Ele baixa a amostra de calções mais negros que a sua pele, convencido que ia tomar uma injecção. Quando se apercebe que ia ser picado no pé, começa a gesticular que não. No pé, não. Claro que eu não sabia balanta, ele não sabia crioulo, nem português. Assim não nos entendíamos, mas ele encontrou a solução. Desata a correr pela aldeia fora com o dedo dependurado e a sangrar. Pica no pé, nunca, só no traseiro.

Passado algum tempo lá voltou. Com a ajuda do companheiro, conseguimos entendermo-nos melhor. Fiz de novo a higienização da ferida, suturei como pude e passados uns dias, com a ajuda de umas picas de penicilina lá se curou e voltou ao trabalho de lenhador para ter direito a comer (os nossos restos).