segunda-feira, 30 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P3000: Bibliografia (28): Amílcar Cabral: nada mais prático do que uma boa teoria (Luís Graça)


CHABAL, Patrick - Amilcar Cabral: Revolutionary Leadership and People's War. 2 rev edition. London: C Hurst & Co Publishers Ltd; 2004. 278 p. £14.95

This text tells the story of Amilcar Cabral, who, as head of the PAIGC, Guinea-Bissau's nationalist movement, became one of Africa's foremost revolutionary leaders. He led Guinea-Bissau's nationalists to political and military success over a colonial power.

Source/ Fonte:
Hurst & Co (Publishers) (courtesy from / com a devida vénia...)



1. Ao chegarmos ao poste P3000, e às cerca de 700 mil páginas visitadas (cerca de 1300 por dia, nos últimos doze meses), deixem-me hoje, amigos e camaradas, publicar um dos meus textos, esquecidos no limbo dos meus papéis da Guiné... Criador e editor deste blogue, a publicar os papéis dos outros, não me resta tempo para escrever os meus...

É sobre a análise da estrutura social da Guiné feita por Amílcar Cabral e que é reveladora das qualidades de Cabral como pensador, como teórico, como analista social... O que ainda hoje me leva a respeitá-lo e a admirá-lo, é que, para além do grande político, do dirigente revolucionário combativo, do genial estratego militar e do tenaz organizador, há nele um homem culto e intelectualmente brilhante, seguramente um dos melhores da sua geração e de toda a África.

Ele sabia que a acção colectiva organizada, incluindo a luta armada de libertação, tem de ser guiada pela teoria. Cabral não se limitou a ler a cartilha dos pensadores (marxistas-leninistas) que, no seu tempo, influenciaram grande parte das elites e dos dirigentes africanos da época da descolonização. Uma influência desastrosa e desastrada, em muitos casos. Cabral, pelo contrário, era capaz de pensar pela sua própria cabeça e confrontar a teoria com a prática: o pensamento sempre guiou a sua acção; e foi capaz de reformular a teoria à luz dos ensinamentos da prática...

Passados trinta e cinco anos da sua morte, é pena não termos uma edição crítica das suas obras (1). Cabral está morto e esquecido. Tanto na sua terra como em Portugal, em África como no retso do mundo. Digo-o com pesar. A sua existência (física) faz-nos falta, a todos nós. E é sobretudo duro ver que ele não teve ninguém, com a sua estatura humana, intelectual e moral, para o substituir à frente dos destinos do PAIGC e da Guiné independente, um sonho que ele de resto já não chegou a viver. É confrangedor ver, por exemplo, a deriva teórico-ideológico do actual PAIGC, que ele criou e ajudou a crescer... A criatura não sobreviveu ao seu criador... Não é caso único na história...

De qualquer modo, estes apontamentos que escrevi em tempos, nos finais dos anos 70, e que revi agora, são também uma pequena homenagem ao intelectual guineense que eu já admirava, quando despertei para a política e para a problemática da guerra colonial, a partir de 1961, com os meus quatorze anos, e que, por ironia, fui obrigado a combater, de armas na mão, ao ser mobilizado para a Guiné, oito anos depois, em 1969...
Devo reconhecer que sou apenas um leitor de Amílcar Cabral, e não um especialista. Não conheço ainda, de resto, a biografia escrito pelo Patrick Chabal, considerado o seu melhor biógrafo e um especialista do seu pensamento e acção. Tive o privilégio de conhecer, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, o investigador francês, que vive em Inglaterra, e que fala o português... Estes apontamentos que a seguir se publicam são apenas um resumo crítico de alguns textos do Amílcar Cabral sobre a estratificação social da Guiné ... (LG)
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Amílcar Cabral, analista social, por Luís Graça
(i) A distinção cidade/campo
Em 1964, Amílcar Cabral fez uma sumária análise da “estrutura social” da Guiné colonial. Era uma análise tipicamente marxista, ou melhor, que usava conceitos sociológicos de inspiração marxista. Socorro-me de um texto que condensa diversas intervenções orais feitas por Cabral, em francês, num seminário organizado pelo Centro Frantz Fanon de Milão, em Treviglio, de 1 a 3 de Maio de 1964.

Estava-se ainda no início da “luta de libertação” (oficialmente iniciada em 23 de Janeiro de 1963, com um ataque ao aquartelamento Tite), mas o PAIGC já detinha, desde a sua criação em 19 de Setembro de 1956, uma larga experiência de organização e de luta política na clandestinidade, apesar da repressão da PIDE. Tinha também um ano e tal de experiência de luta armada.

Recorde-se, que de Janeiro a Março de 1964, as NT tinham lançado uma contra-ofensiva na Ilha do Como, com a Op Tridente, a maior que se realizou no CTIG, em 11 anos de guerra. Por outro lado, entre 13 e 17 de Fevereiro desse ano, o PAIGC realizava o seu primeiro Congresso, em Cassaca, em pleno Cantanhez, região que reclama como sendo a primeira “região libertada”.

Depois da Batalha do Como (o primeiro grande embate do PAIGC contra um exército convencional, reforçado por importantes meios aéreos e anfíbios), o principal linha de infiltração de homens e material a partir da vizinha República da Guiné-Conacri passa para o célebre Corredor do Povo (ou corredor de Guileje). A Batalha do Como foi bem explorada em termos de propaganda, e contribui em muitos para criar um mito: João ‘Nino’ Vieira (que não participou directamente na batalha, ao que parece, por estar hospitalizado em Conacri).

Voltando ao texto de Amílcar Cabral, ele começa por fazer a clássica distinção entre o campo e a cidade. No campo, sinaliza dois grupos principais: (i) um, que ele chama semifeudal, representado pelos fulas; (ii) e outro, o dos balantas, que seria um grupo sem Estado, leia-se, sem poder político.

Entre estes dois grupos étnicos extremos haveria depois situações intermédias: por exemplo, (iii) mandingas e biafadas, de um lado; papéis e felupes, de outro (Os exemplos são meus).

Grosso modo, haveria uma coincidência entre o semifeudalismo e o islamismo, por um lado, e a ausência de organização estatal entre os animistas, por outro. O caso dos Manjacos, animistas, merece uma atenção à parte, uma vez que “à chegada dos portugueses mantinham já relações que se poderiam qualificar de feudais” (Cabral, 1976.24).

Quanto aos fulas, o fundador, dirigente e teórico do PAIGC fala deles em termos de uma forte “estratificação social”. Em primeiro lugar, temos (i) os chefes, os nobres e os dignatários religiosos (por ex., o Cherno Rachid de Aldeia Formosa); vêm depois, (ii) os artesãos e os jilas ou comerciantes ambulantes (que circulam pela Guiné, Senegal e Guiné-Conacri); finalmente, e na base da pirâmide social , (iii) os camponeses.

Sobre o grupo dirigente, Amílcar Cabral diz o seguinte:

“Os chefes e a sua comitiva têm ainda, a despeito da conservação de certas tradições relativas à colectividade das terras, privilégios muitos importantes no quadro da propriedade da terra e da exploração do trabalho de outrem. Os camponeses que dependem dos chefes são obrigados a trabalhar para eles um certo período do ano”.

Daí chamar aos fulas, aliados históricos dos portugueses, um grupo semi-feudal.

Os artesãos desempenham um papel importante na sociedade fula, constituindo um núcleo embrionário de uma indústria de transformação da matéria-prima: do ferreiro, na base da escala, até ao artesão do couro. Os comerciantes ambulantes (jilas) são os que têm, na prática, a possibilidade de acumular dinheiro. Por fim, os camponeses: em geral desprovidos de direitos, seriam os “verdadeiros explorados da sociedade fula”.

A estratificação da sociedade fula também pode ser vista a partir da família, extensa, que é a sua célula: a família de um homem grande é constituída pela morança; um conjunto de moranças formam uma tabanca; um conjunto de tabancas um regulado; e por fim, os regulados fulas estão associados ao chão fula (Leste da Guiné, compreendendo hoje as regiões de Bafatá e de Gabu), uma entidade territorial e simbólica, ligada à conquista.

Aqui a mulher não goza de quaisquer direitos sociais: participa na produção sem quaisquer contrapartidas; por outro lado, a prática da poligamia significa que ela é, em grande parte, propriedade do marido.

Estranha-se, não haver aqui uma referência ao fanado feminino e sobretudo ao profundo significado sócio-antropológico que tinha (e tem) a Mutilação Genital Feminina entre os Fulas (mas também entre os Mandingas e os Biafadas). Será que Cabral tinha consciência das terríveis implicações, para a mulher, desta prática ancestral, e também aceitava tacitamente em nome do relativismo cultural, tal como os antropólogos colonialistas ? Não conheço nenhum texto em que o ideólogo do PAIGC tenha tomada posição sobre este delicado problema.


(ii) Os balantas, sociedade horizontal
O outro exemplo extremo é o dos balantas, um sociedade sem estratificação. É o conselho dos anciãos da aldeia (ou de um conjunto de aldeias, em geral ribeirinhas e próximas) que tomam as decisões relativas à vida comunitária. A propriedade da terra é da aldeia. Cada família recebe uma parcela para trabalhar. Os instrumentos de produção, por sua vez, pertencem à família ou ao indivíduo.

O balanta é monógama, apesar de “fortes tendências para a poligamia” (sic). A mulher tem mais liberdade e estatuto na aldeia balanta do que entre os fulas. Cabral também não refere, na ocasião, os seus rituais de passagem, a cultura da virilidade, o uso e o abuso entre os balantas do consumo do “vinho de palma” e das suas eventuais consequências (v.g., saúde mental, violência doméstica, comportamentos antissociais).

Ainda no que refere ao campo, Cabral refere a existência de um grupo minoritário de pequenos proprietários africanos que se teria revelado “muito activo no quadro da luta de libertação nacional”. Dos europeus nos campos ele não fala porque praticamente não existiam. Mas
existiam caboverdianos, com as suas pontas (hortas)… Porquê omiti-los ?

Recorde-se que Cabral era de ascendência caboverdiana e originalmente casado com uma portuguesa. Sabe-se que parte da administração colonial, pelo menos ao nível de posto administrativo e de circunscrição administrativa, é preenchida funcionário portugueses de origem caboverdiana. Seria interessante termos estatísticas sobre isso.

Nas cidades, haveria dois grupos distintos: (i) os europeus; e (ii) os africanos. Ao nível mais elevado, entre os europeus, estão os altos funcionários da administração colonial, a começar pelo governador geral, mas também os directores das empresas (por ex., Casa Gouveia, pertencente ao Grupo CUF; a NOSOCO, ligada aos interesses franceses). É um grupo restrito que está isolado do resto dos escassos milhares brancos que existiriam no início da década de 1960 (dois a três mil). A um nível intermédio, pode-se referir os demais funcionários públicos, os pequenos comerciantes, os empregados de comércio, as profissões liberais. Por fim, teríamos os operários diferenciados.

A estratificação entre os africanos seria mais complexa: em primeiro lugar, temos os funcionários superiores e médios (da administração colonial e das empresas), as profissões liberais, os empregados de comércio com contrato de trabalho e os pequenos proprietários agrícolas; depois, vêm os assalariados propriamente ditos: os empregados de comércio sem contrato, os trabalhadores dos portos, dos barcos e dos transportes, os trabalhadores domésticos ou criados (em geral, homens), os operários de pequenas fábricas e oficinas de reparações. Cabral não os considera como fazendo parte do “proletariado” ou da “classe operária”.

Há por fim os “sem classe”, que Cabral divide em dois grupos: (i) o dos mendigos, desempregados, prostitutas, etc. (poderia ser o nosso "lumpen-proletariado” se na Guiné houvesse um proletariado com consciência de classe, o que não era o caso, na altura); (ii) um segundo grupo, "que se revelou muito importante na luta de libertação nacional, e que é constituído por um número muito elevado de jovens, vindos recentemente do campo, que conservam laços estreitos com este ao mesmo tempo que entraram em contacto com a vida dos Europeus”.

Seria interessante conhecer-se, com detalhe, a origem social dos principais dirigentes, políticos e militares, do PAIGC: sabe-.se que alguns, como Luís Cabral, Aristides Pereira, Turpin, eram empregados das casas comerciais europeias (a Casa Gouveia, a Nosoco, etc.) que poderíamos considerar como o “front office” do colonialismo.


(iii) A dificuldade de mobilização dos camponeses
Posteriormente, em 1969, num seminário de quadros (3), Cabral teve oportunidade de precisar melhor o seu pensamento sobre os camponeses da Guiné que ele não considerava uma “classe social”, mas antes como uma “camada especial”, pessoas que vivem no campo (“mato”), que vivem da agricultura, ou seja, dos produtos que a terra dá.

Contrariamente ao pensamento maoísta, Cabral não considera os “camponeses pobres” – os que, cultivando a terra, não saem do círculo da pobreza, são roubados no peso dos produtos, pagam impostos e taxas aos chefes tradicionais, trabalham uns tantos dias para estes dirigentes semi-feudais, aliados dos “tugas”… - como a classe mais importante da Guiné, do ponto de vista da luta de libertação. A amarga experiência de Cabral leva-o a falar das dificuldades de mobilização do campesinato guineense:

“Ainda hoje, quando alguma coisa não corre bem, fogem e põem-se do lado dos portugueses, mesmo sendo pobres e infelizes” (Cabral. 1976.111).

Lembra ainda as diferenças que, a nível do campo, existiam na época em Cabo Verde e na Guiné. No primeiro caso, havia a propriedade individual da terra, enquanto que no caso da Guiné a terra pertencia, teoricamente, à comunidade, à tabanca. Além disso, havia também a grande propriedade (nas Ilhas de Santiago e de Santo Antão) e a pequena propriedade (por ex., ilhas de S. Nicolau e Brava). Também existia a figura do rendeiro, do camponês sem terra. Em Cabo Verde faria sentido a palavra de ordem: “A terra a quem a trabalha”, mas não na Guiné. Aqui, além disso, há o factor étnico a ter em conta, e que vem complexificar a análise da estrutura social.

Cabo Verde e Guiné tinham em comum o facto de serem sociedades coloniais, ou seja, dominadas por um Estado estrangeiro, com as suas tropas, a sua polícia, a sua administração, os seus missionários, os seus antropólogos, etc. “Somos um povo sem autonomia” (Cabral. 1976. 114).

Que tipo de sociedade representam os Balantas, pergunta Cabral. Estão “talvez na fase de desagregação do comunismo primitivo, mas muito longe deste” (Canral. 1976. 115). Era uma sociedade que não conhecia o dinheiro, as relações mercantis, até aos finais do Séc. XIX. A moeda foi introduzida pelo colonialismo, o que modificou inevitalmente a sociedade balanta (e as outras, de outros povos animistas).

Já os fulas têm uma estrutura “feudal”, com chefes, com senhores, com gente que lhes está subordinada, os artesãos e os camponeses, ou seja, gente dos ofícios (“corporações”), e gente que trabalha a terra (e que na Europa do feudalismo se chamavam “servos”)… Mas seria inapropriado falar de feudalismo fula, porque a propriedade da terra não é individual, mas sim comunitária.

Usando a vulgata marxista, Cabral utiliza conceitos como “desenvolvimento das forças produtivas”, “infra-estrutura”, “super-estrutura”, “classe burguesa”, “classe operária”. etc. Mas, em geral, tem um discurso didáctico, em crioulo, procurando operacionalizar os conceitos e exemplificá-las. A sua linguagem procura fugir ao jargão, à langue du bois, tão típica dos anos 60, entre os movimentos e partidos marxistas ou de inspiração marxista.

Era o Cabral um marxista ? Teríamos que ter em linha de conta o seu pensamento, a sua escrita, os seus discursos, a sua prática… Há quem diga que ele nunca foi verdadeiramente um marxista, como é o caso do seu principal biógrafo, o francês Patrick Chabal, que escreve em inglês e vive no Reino Unido.

Onde Cabral revela o seu melhor é como pedagogo, como educador, em intervenções orais, em crioulo, como no seminário de quadros de 19 a 24 de Novembro de 1969 (“Os princípios do Partido e a prática política”). Usando uma linguagem simples, coloquial, recheada de imagens, é aí que Cabral se revela como o grande comunicador, o grande sedutor que é:

“Na Guiné, por exemplo: por um lado há gente da cidade, por outro, gente do mato, pelo menos. Na cidade o que é que há ? Na cidade há brancos e pretos. Entre os africanos há altos empregados e empregados médios, que têm a certeza de que no fim do mês ganha o seu dinheiro certo. Têm aquela ideia de comprar o seu carrinho, como eu, por exemplo, que tinha o meu próprio carro. Com geleira [frigorífico], boa raça de mulher, filhos que vão ao liceu de certeza e que mesmo, se estudarem muito, vão para Lisboa.

“Depois, há aqueles empregadinhos que fazem o seu Sábado, o seu tinto e o seu bacalhau, que podem comprar o seu rádio transistor, as suas coisas. Depois há os trabalhadores de cais, reparadores de carros, podemos meter aí também os chauffeurs e outros que vivem um bocado melhor. Trabalhadores assalariados em geral. E depois há aquela que tem nada que fazer, que vive de expedientes cada dia, por todo o lado, que nem mesmo sabem que fazer para arranjarem maneira de viver. Quer gente de vida fácil, como as prostitutas, quer pedintes, trapaceiros, ladrões, etc., gente que não tem nada que fazer. Isto é que é a sociedade das cidades” …

O que tem em comum esta gente da cidade, empregada, com um certo estatuto e um certo nível de vida ? Estão “todos agarrados aos tugas, fingindo ser portugueses o máximo que podem, até proíbem os filhos de falar outra língua em casa que não seja o português”…

Cabral está a falar para um auditório onde há gente (boa parte dos dirigentes e quadros do PAIGC) que veio desse meio relativamente privilegiado dos “empregados”, do universo (restrito) dos “assimilados”, o embrião de uma pequena burguesia africana. Conclui ele:

“Alguns de vocês, por exemplo, que eram empregados, mas que são nacionalistas, não é verdade ? Mas os interesses eram mais ou menos os mesmos, vivem sempre na mesma esfera, no mesmo grupo social” .

Tenho ideia que Cabral se movimentava (e pensava) melhor no campo do que na cidade, já que ele trabalhou como engenheiro agrónomo, na Guiné e depois em Angola, ao longo da década de 1950. Entre 1953 e 1956 fez o recenseamento agrícola da Guiné (…), e julgo que lhe veio daí a sua admiração pelos povos animistas, e em especial os balantas, os magníficos camponeses da Guiné, os grandes cultivadores de arroz.

Cabral utiliza o exemplo da sua própria origem social e da sua experiência pessoal, para melhor ilustrar os conceitos que usa na análise da estratificação social da população na Guiné e em Cabo Verde. Dá o exemplo dos trabalhadores portuários e dos transportes marítimos, que formam um outro grupo, distinto do primeiro:

“Vocês podem encontrar-se, conversar, mas sabem que não vão sentar-se juntos com eles à mesa para comer”.

O mesmo se passa no “grupo dos tugas, por exemplo, as famílias do governador, do director do banco, do director de Fazenda, etc., não vemos aí nunca a mulher do tuga operário ou de qualquer um que é batedor de chapas. Só se ele tiver alguma filha muito linda, que toda a gente admira, e que de vez em quando vai dançar com a gente da alta. Mas a mãe, que não sabe ler nem escrever, não vai. Acompanha a filha à porta e sai. Vocês lembram-se de casos desses em Bissau”. E Cabral está a pensar nos famosos bailes da UDIB – União Desportiva Internacional de Bissau onde a só “a fina flor” colonial podia entrar, pelo menos até ao início da guerra…

Falando das gentes do mato, Cabral dá uma lição sobre os balantas, grupo que ele não só conhece, como agricultores, como admira, enquanto povo, que foi historicamente um povo resistente. Chama-lhes uma “sociedade horizontal”, isto, é, “que não classes por cima umas das outras”. Entre eles não há hierarquias. Os chefes foram uma invenção dos tugas, que lhe impuseram régulos fulas ou mandingas, nalguns casos antigos cipaios, leais aos portugueses:

“Cada família, cada morança tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselhos dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda gente”. A sociedade balanta seria uma sociedade tendencialmente igualitária, que Cabral descreve nestes termos singelos :

“A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um indivíduo não pode ser muito mais que o outro”… Explicitando melhor: “Quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se lavrou muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar”…

Já os fulas e os mandingas são sociedades verticais, estratificadas, têm os seus próprios chefes, que não foram impostos pelos tugas… Mas é bom que os camaradas saibam, acrescenta Cabral, que os fulas e os mandingas da Guiné não são verdadeiros fulas e mandingas…

Recuando no tempo, sabe-se que os mandingas vieram de fora e conquistaram o território do que é hoje a Guiné até à região de Mansoa… Os vencidos foram ‘mandinguisados’, assimilados, tornaram-se mandingas. “Os balantas recusaram-se e muita gente diz que a própria palavra balanta significa aqueles que recusam. O balanta é aquele que não se convence, que nega. Mas não recusou tanto, porque existe o balanta-mané e o mansoane. Sempre apareceram alguns que aceitaram e foram aumentando aos poucos”, islamizando-se…

E aqui põe-se uma questão interessante: por que é que os balantas foram a grande base de apoio do PAIGC ?

Em 1969, Cabral não tem dúvidas na resposta: não é por eles serem melhores do que os outros, mas por causa do seu tipo de sociedade, horizontal, rasa, igualitária, composta por homens livres que querem continuar a ser livres, sem a “opressão dos tugas":

“O balanta é e o tuga por cima dele, porque ele sabe que o chefe que lá está, o Mamadu, não é nada seu chefe, é uma criatura do tuga. Portanto, mais interesse tem ele em acabar com isso para ficar com a sua liberddae, absolutamente. E é por isso também que, quando qualquer elemento do Partido comete um erro com os balantas, eles não gostam e zangam-se depressa, mais depressa do que qualquer outro grupo” (Cabral, 1976. 125).

Luís Graça
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Nota de L.G.:

(1) Vd. Obras ecolhidas de Amílcar Cabral, de que foram publicados 2 volumes pela Seara Nova

CABRAL, A.- Unidade e luta (compil. Mário de Andrade). Lisboa : Seara Nova, 1976-1977 (Obras Escolhidas de Amílcar Cabral). 1º Volume: A arma da teoria, 249 pp. 2º volume: a prática revolucionária, 224 pp.

domingo, 29 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2999: Simpósio Internacional de Guileje: Fotos enviadas pelo Pepito

Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > Simpósio Internacional de Guileje > 29 de Fevereiro de 2008 > O vocalista do grupo musical Furkuntunda, ladeado à direita pelo António Maria de Almeida e Silva - se não me engano - e que é hoje empresário em Estarreja, fundador, em 1994, da Sibina - Fábrica de Vassouras - e à esquerda pelo António Pimentel, do Porto, e o Zé Teixeira, de Matosinhos.


Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > Simpósio Internacional de Guileje > 29 de Fevereiro de 2008 > Em primeiro, da direita para a esquerda: Abílio Delgado, Almeida e Silva, Alice Carneiro e o vocalista dos Furkuntunda, na recriação do Hino de Gandembel.


Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > Simpósio Internacional de Guileje > 29 de Fevereiro de 2008 > m primeiro plano, sentados, o Silvério Lobo e o Álvaro Basto... De pé, o Luís Graça rodeado pelos meninas e meninas, todos lindíssimos/as e cheios/as de talento, do Grupo de Teatro Os Fidalgos. No 5 de Março de 2008, assistimos, no Centro Cultural Francês de Bissau a uma série de skecthes espectaculares, apresentadas por este grupo e relacionados com a história da guerra colonial / luta de libertação, e de que ainda não falámos em detalhe.


Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Azalai > Simpósio Internacional de Guileje > 29 de Fevereiro de 2008 > Actuação do grupo musical Furkuntunda que animou a nossa primeira noite em Bissau, na sequência do cocktail oferecido a todos os inscritos no Simpósio Internacional de Guiledje pela Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria e Presidente do Comité Interministerial de Pilotagem das Comemorações do 35 Aniversário da Morte de Amílcar Cabral, Senhora Isabel Mendes Correia Buscardini. Foi a primeira de uma série de dias e noites memoráveis (1)... Na foto, da esquerda para a direita, o Paulo Santiago, o Luís Graça e o Zé Teixeira tentando aguentar a pedadalada do endiabrado e genial vocalista dos Furkuntunda.

Estas fotos foram agora enviados pelo Pepito no dia 27 de Junho corrente:

Luís: Estou a preparar a Assembleia Geral Anual da AD que se realiza amanhã. Será que tens estas fotos? abraço

pepito

Fotos: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2008). Direitos reservados.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

Guiné 63/74 - P2998: O caso do embaixador português em Bissau (3): A minha indignação (Jorge Picado, ex-Capitão Miliciano)

1. Mensagem de Jorge Picado, com data de 24 Junho de 2008 (Jorge Picado foi Cap Mil, CCAÇ 2589 e CART 2732, Guiné, 1970/72) (1):

Camaradas:

Na qualidade de ex-combatente da ex-colónia da Guiné e tertuliano da Tabanca Grande (1), mas acima de tudo como cidadão Português, sinto-me ultrajado por ter como Representante máximo do meu País na República da Guiné-Bissau, alguém que não manifesta ter sensibilidade para exercer cargos desta índole (2).

De facto, a atitude tomada para com os camaradas que se deslocaram ao Simpósio sobre Guiledje e depois para com a filha do Pepito - que não sabia ser o meu colega Carlos Schwarz ainda que de curso posterior ao meu mas que conhecia de nome - revela, digamos, falta de chá, para ser suave.

A indignação tem de facto de ser grande. Primeiro, porque mais uma vez quem, consciente ou inconscientemente, com maior ou menor mérito serviu a Pátria, se vê assim tratado por "carne para canhão" por quem lá fora representa a Nação. Segundo, em território nacional - pois que uma Embaixada isso representa - pessoas de mérito reconhecidas, incluíndo Portugueses, foram enxovalhados directamente pelo próprio Embaixador, no dia de celebração de Portugal.

É triste, mesmo muito triste, que pessoas deste nível ocupem cargos de tanta responsabilidade no meu País.

Um abraço
Jorge Picado

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

28 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2992: História de vida (12): Como eu, Eng Agrónomo, me safei de uma eventual guerra química (Jorge Picado)

24 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2983: Dando a mão à palmatória (14): O Régulo Iero não veio na coluna (Jorge Picado)

24 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2881: Estórias de Jorge Picado (2): Cutia, I Parte (Jorge Picado)

3 de Maio de 2008> Guiné 63/74 - P2807: Estórias de Jorge Picado (1): A emboscada do Infandre vivida pelo CMDT da CCAÇ 2589 (Jorge Picado)

9 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2736: Tabanca Grande (60): Apresenta-se o Jorge Picado, ilhavense, ex- Cap Mil, CCAÇ 2589, CART 2732 e CAOP 1 (1970/72)

(2) Vd. postes de:


29 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2997: O caso do embaixador português em Bissau (2): Vergonhoso dia 10 de Junho (Joaquim Pinheiro, Itanhaém, S. Paulo, Brasil)

23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2967: O caso do embaixador português em Bissau (1): Protestos (Luís Dias)

18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2958: E os nossos assobios e pateadas vão para... (1): Um embaixador que não honra Portugal... (Luís Graça / Pepito)

Guiné 63/74 - P2997: O caso do embaixador português em Bissau (2): Vergonhoso dia 10 de Junho (Joaquim Pinheiro, Itanhaém, S. Paulo, Brasil)



1. Mensagem do Joaquim Pinheiro, de 21 de Junho último, enviada à Embaixada de Portugal em Bissau, com conhecimento aos nossos editores (O Joaquim Pinheiro pertenceu à CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74, sendo portanto camarada dos nossos amigos Xico Alen e Antero Santos) (1):


VERGONHOSO DIA 10 DE JUNHO!!! (2)

Sr. Embaixador (dispenso por conta própria o Ilmo.)

Eu, como cidaão português, estou decepcionado com a sua conduta, ao expulsar de sua própria casa uma cidadã de igual nacionalidade. Sua própria casa, sim, pois uma embaixada é terreno do país que a mesma representa... A pessoa dessa nacionalidade está, pois, no que é seu.

Que ridículo esse seu ato!!!

O senhor é tão simplesmente um representante de Portugal na Guiné Bissau.... Não tem esse direito...

Me envergonho de ter pessoas com atos e ações tão descabidas, representando o MEU PAÍS....Meu e de TODOS os que lá nasceram.... Não é uma terra de um dono só...

Lembre-se, sr. Embaixador (espero que em breve seja Excia), da letra do célebre fado da nossa Amália:

Numa casa portuguesa fica bem
pão e vinho sobre a mesa.
Quando à porta humildemente bate alguém,
senta-se à mesa co'a gente.
Fica bem essa fraqueza, fica bem,
que o povo nunca a desmente.
A alegria da pobreza
está nesta grande riqueza
de dar, e ficar contente. (...)


Este é o verdadeiro e real espírito dos portugueses de verdade....

QUE VERGONHA QUE EU SINTO DE SABER QUE MEU PAÍS É REPRESENTADO POR PESSOAS COMO O SENHOR!!!

Joaquim Pinheiro da Silva
Itanhaém/São Paulo-BRASIL

Em tempo: Farei questão de relatar esse triste e vergonhoso fato a todos os meus comPATRIOTAS, com os quais me relaciono, quer seja em clubes, reuniões ou confraternizações da 'massa' portuguêsa e descendentes, aqui em terras brasileiras.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)

15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIV: Que maravilha de trabalho (Joaquim Pinheiro, CCAÇ 3566, Empada/Catió, 1972/74)

19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)

18 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCX: O Cherno Rachid da Aldeia Formosa (Antero Santos, CCAÇ 3566 e CCAÇ 18)


(2) Vd. postes de:

23 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2977: Recortes de imprensa (6): a cidadã portuguesa, Cristina Silva, expulsa da Embaixada de Portugal em Bissau no 10 de Junho

19 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2967: O caso do embaixador português em Bissau (1): Protestos (Luís Dias)

18 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2958: E os nossos assobios e pateadas vão para... (1): Um embaixador que não honra Portugal... (Luís Graça / Pepito)

Guiné 63/74 - P2996: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (18): Cacine, a voz dos abandonados (II)


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Depoimento de Armando Abasse Camará, um antigo militar das NT (1966/74), natural de (e residente em) Cacine.

Com uma comissão em Angola em 1972, voltou para Cacine onde foi escolhido como elemento de contacto das NT com o PAIGC em 25 de Abril de 1974. Como muitos outros guineenses, depois de servir Portugal e os portugueses, foi abandonado por nós. Uma história que ainda hoje nos envergonha... Poderias ter escrito a história de outra maneira ? Poderíamos, ao menos, ter feito alguma justiça a estes e outros combatentes ?

Hoje estes antigos combatentes guineenses, que serviram Portugal, nem uma mísera pensão de vinte e poucos euros recebecem, o equivalente ao salário mínimo do país (!), o suficiente até há pouco tempo para se comprar um saco de arroz de 50 quilos e alimentar (mal) a família.
O saco estava até há pouco a 12500 francos CFA (cerca de 19 euros). Devido è escassez no mercado local do alimento base, que é o arroz, resultante da conjugação de múltiplos factores (subida exponencial do preço do petróleo, escassez de combustíveis, crise cerealífera local, regional e mundial, especulação, açambarcamento, corrupção, desastre da política agrícola do FMI que impõe a ditadura do cajú aos guineenses, abandono das bolanhas, etc.), o preço do arroz não pára de aumentar... No princípio de Junho, o arroz já estava a 15 mil francos CFA o saco de 50 quilos, até desaparecer do mercado e obrigar o Goberno a intervir no mercado.

Cito o portal Notícias Lusófonas, com notícias de 24 de Junho do corrente, sobre o recente aumento de preços na Guiné-Bissau:

"O peixe e o arroz foram os principais produtos alimentares que registaram aumentos na Guiné-Bissau após a revisão dos preços dos combustíveis anunciada sábado pelo governo, mas os transportes públicos devem subir as tarifas ainda esta semana.

"Os pescadores aumentaram e nós tivemos de aumentar também, afirmou hoje à Agência Lusa o peixeiro Issiaca Nanqui, com banca no mercado central de Bissau. Segundo Issiaca Nanqui, os aumentos do preço do quilograma de peixe variam entre 250 francos cfa (0,38 euros) e 500 francos cfa (0,76 euros), dependendo do peixe. Já no mercado do Bandim, o preço do saco de 50 quilogramas de arroz varia entre os 17.500 francos cfa (26,71 euros), fixado pelo governo sábado juntamente com o preço dos combustíveis, e os 21.000 francos cfa (32 euros).

"Questionada pela agência Lusa sobre as razões para a variação do preço do arroz, uma comerciante explicou que o saco de 17.500 francos cfa é de segunda qualidade e o mais caro de primeira qualidade. Sobre as reclamações dos consumidores, Márcio Santos Cá, um outro comerciante de arroz, afirmou que 'as pessoas queixam-se do preço, mas compram'...'Os que têm dinheiro compram e os que não têm compram de segunda qualidade', disse, sublinhando que as vendas não diminuíram. Os legumes, a fruta e o óleo, muito consumido pelos guineenses, não registaram aumentos, ao contrário da carne, que aumentou nas últimas duas semanas.

" 'A carne aumentou porque neste momento as vacas são difíceis (escassas) e o preço subiu, afirmou Roberto Mendes, vendedor de carne de vaca no mercado do Bandim. Enquanto os produtos base da alimentação dos guineenses, peixe e arroz, aumentaram imediatamente, os transportes públicos aguardam as directivas do governo para procederam à regularização das tabelas. 'Os aumentos devem ser esta semana, estamos à espera que o governo decida', afirmou Miguel Binhancarem, condutor de um toca-toca (transporte público). Para já, o preço de um bilhete custa 150 francos cfa (0,22 euros). Nos táxis, a corrida varia entre 250 francos cfa (0,38 euros) e 350 francos cfa (0,53 euros) e os aumentos são esperados ainda semana.
" 'Vamos aumentar porque a situação está difícil com a subida do preço do gasóleo', afirmou o taxista Bubacar Baldé. O executivo guineense decidiu sábado aumentar o litro do gasóleo para 729 francos cfa (1,11 euros), mais 25 cêntimos, enquanto a gasolina subiu para 801 francos cfa (1,22 euros), contra os 1,02 cobrados a semana passada.

"O aumento dos combustíveis ocorreu depois de duas semanas de um braço-de-ferro entre o governo e as distribuidoras do país, que deixaram de importar combustível por estarem a perder dinheiro já que o preço dos carburantes não acompanhava o estabelecido no mercado internacional. O aumento do preço do gasóleo tem consequências directas nas condições de vida dos guineenses, porque apesar de este combustível não ser utilizado pela maior parte da população, é garante do funcionamento do país. Um guineense ganha em média o equivalente a 45,80 euros por mês. O ordenado mínimo ronda os 22,90 euros mensais. Actualmente, um guineense que ganhe um ordenado mínimo não consegue comprar um saco de 50 quilogramas de arroz, base da sua alimentação" .

Vídeo (5' 26''): © Luís Graça (2008). Direitos reservados. Vídeo alojado em: You Tube >Nhabijoes
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 29 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2994: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (17): Cacine, a voz dos abandonados (I)

Guiné 63/74 - P2995: O Nosso Livro de Visitas (19): António Pádua (CCAÇ 2406, Olossato e Saltinho, 1968/70)

1. Em 1 de Junho de 2008 recebemos uma mensagem de António Pádua que só recentemente tomou conhecimento do nosso Blogue

Caro colega:

Hoje, no almoço da CCaç 2406, tive conhecimento da existência deste blog. Eu permaneci na Guiné desde 24 de Julho de 1968 até 17 de Junho de 1970. Estive no Olossato e no Saltinho.

Tenho algumas fotos destes dois locais, que gostaria de partilhar, dado serem um bom testemunho da nossa passagem por eles, tanto da população local como também da paisagem.

Como devo fazer?

Fico aguardando notícias, um grande abraço.
António Pádua


2. No mesmo dia foi enviada resposta a este nosso camarada

Caro António Pádua: Gratos pelo teu contacto, convidamos-te a aderir à nossa Tabanca Grande.
As formalidades são simples, basta enviares uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, para que te possamos conhecer. Estas fotos irão um dia fazer parte da nossa fotogaleria que está em fase de remodelação.

De ti queremos saber o teu antigo posto miltar, o teu Batalhão 2852(?), locais por onde andaram, datas de ida e volta da Guiné, etc. Já agora diz em que região do país te encontras.

Poderás, quando entenderes, contares umas estórias da tua Companhia e coisas passadas contigo ou com os teus camaradas da CCAÇ 2406. Farás acompanhar isso das fotos que dizes ter.

Na nossa página, http://www.blogueforanadaevaotres.blogspot.com, poderás encontrar as nossas normas de conduta que se resumem ao respeito pela liberdade de expressão, desde que se respeite a opinião dos outros, respeito pela propriedade intelectual, respeito pela soberania da Guiné-Bissau, abstendo-nos de comentários que sugiram ingerência nas suas vidas social e política, etc.

Já sabes que, cá dentro, nos tratamos todos por tu, como verdadeiros camaradas que somos e nos sentimos ser.

Ficamos a aguardar a tua resposta.

Um abraço dos editores deste blogue

Luís Graça
Virgínio Briote
Carlos Vinhal

Guiné 63/74 - P2994: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral (29/2 a 7/3/2008) (Luís Graça) (17): Cacine, a voz dos abandonados (I)

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio > Rio Cacine, perto do cais de Cacine: Tarrafo...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Depois de um belíssimo almoço em praia fluvial e porto piscatório de Cananima, na margem direita do Rio Cacine, houve um grupo de cerca de 30 valentões (e valentonas) que se meteram numa canoa senegalesa, motorizada, de um pescador local, e aproveitaram a tarde para visitar a mítica Cacine. A distância entre as as duas margens ainda é grande... A canoa a motor, carregada de pessoal, terá levado meia hora a fazer a travessia...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, frente a Cacine > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, o Pepito observa a partida da canoa rumo a Cacine, tendo à sua direita o Zé Teixeira e, à esquerda, o Domingos Fonseca (que técnico da AD, do Programa Integrado de Cubucaré, ocupando-se me preferencialmente das acções ambientais em Cantanhez, nos domínios de ecoturismo, formação de professores de verificação ambiental, colecta de plantas medicinais e identificação de percursos naturais). O Domingos foi um dos elementos-chave da organização (excepcional, impecável) que permitiu levar uma enorme caravana de jipes, de Bissau até ao Bissau, cerca de 600 quilómetros ida e volta, e largas dezenas de pessoas... Fomos a um sábado, dia 1 de Março, com várias paragens (Saltinho, Ponte Balana, Gandembel, Guileje), pernoita em Iemberém (sábado); no dia 2, domingo, visita a Iemberém, Madina do Cantanhez - Acampamento Osvaldo Vieira, almoço em Canima e visita a Cacine, e de novo pernoita em Iemberém... Segunda feira livre, com regresso a Bissau, antes das 17 horas, início do Simpósio, no Hotel Palace de Bissau (*)...

Sobre a nossa viagem à Guiné, por ocasião do Simpósio Internacional de Guileje, vd. também a excelente cobertura fotográfica feita pelo Carlos Silva, hoje advogado, feita na sua página na Net, Guerra da Guiné 63/74, de Carlos Silva, BCAÇ 2879 > Viagens 2008.


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > O nosso amigo Leopoldo Amado, historiador, organizador do Simpósio e conferencista, veio encontrar aqui um antigo condiscípulo de liceu, hoje administrador de Cacine.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Por aqui passou a CART 1692... Esta tosca placa, em cimento, diz-nos que em dois dias, de 16 a 18 de Abril de 1968, foi construído este abrigo, em tempo seguramente recorde, a avaliar pelas "60 bebedeiras neste 'priúdo'... TRABALHO RÁPIDO".


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Cacine > Simpósio Internacional de Guileje > Visita dos participantes ao Cantanhez > 2 de Março de 2008 > Cacine ainda tem hoje muitos restos da presença portuguesa, desde os edifícios de traça colonial aos abrigos militares... Por aqui passaram importantes contingentes das tropas portugueses, e nomeadamente tropas especiais, como os fuzileiros e os pára-quedistas, nomeadamente em Maio, Junho e Julho de 1973, quando o PAIGC lançou uma grande ofensiva contra as nossas posições no sul, em especial no corredor de Guileje: Iemberém, Guileje, Gadamael...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio > Restos do espaldão do morteiro...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > O Silvério Lobo, de Matosinhos, e que esteve em Aldeia Formosa, no tempo da guerra... Aqui em frente a um dos bunkers de Cacine que, ao fim destes anos todos, ainda conseguem resistir, embora mal, à força avassaladora da natureza... Eu, o Silvério e outros camaradas ainda andámos, em vão, à procura de sepulturas de antigos militares portugueses... Não conseguimos localizá-las, apesar dos palpites dos residentes locais... Alguns deles são estrangeiros, cidadãos da República da Guiné-Conacri, que se dedicam à pesca e que não falam português... Dialogámos em francês... Por serem jovens (e estrangeiros), não sabem o que se passou na guerra colonial... No cemitério de Cacine, ficou pelo menos o Jeremias Barcelos Cosme Damião, Soldado da CCaç 273, morto em 14.07.63, em Cacine, vítima de acidente com arma de fogo. Era natural da raia da Vitória, Praia da Vitória.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita ao Cantanhez dos participantes do Simpósio > Uma das portentosas cabaceiras que se erguem na vila de Cacine... O seu fruto é muito apreciado para a produção de sumo...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Cacine... O ex -1º Cabo de Artilharia Pesada Armando Abasse Camará, natural e residente de Cacine... Esteve ao serviço das NT desde 1966. Pelo que percebi foi apontador de obus 14. Em Cufar, por exemplo. Tem uma comissão em Angola, em 1972. De regresso a Cacine, foi elemento de contacto das NT com o PAIGC em 25 de Abril de 1974, ao serviço do COP 5, na altura chefiada por um oficial superior da Marinha.

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Cacine > Simpósio Internacional de Guileje > Visita dos participantes ao Cantanhez > 2 de Março de 2008 > Cais de Cacine, ao fim da tarde... No cais, um pescador remenda as suas redes... Provavelmente é um estrangeiro, da vizinha Guiné-Conacri...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > Está na hora do regresso a Cananima... O pessoal deixa Cacine, já ao fim da tarde, de sapatos na mão, para tomar o seu lugar na canoa... Em primeiro plano, a Maria Alice e o antigo embaixador cubano, na Guiné-Conacri, Oscar Oramas (estava lá, quando foi assassinado, em 1973, o fundador e dirigente histórico do PAIGC)...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Cacine > Cacine, na margem esquerda do Rio Cacine > 2 de Março de 2008 > Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008) > Visita dos participantes ao sul > De regresso à canoa... Em primeiro plano, o único jornalista português que nos acompanhou, o José Marques, do Correio da Manhã...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, frente a Cacine > 2 de Março de 2008 > Chegado do pessoal a Cananima, com a canoa ao fundo... O Carlos Silva está em primeiro plano...


Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, frente a Cacine > 2 de Março de 2008 > Em primeiro plano, de costas ou de perfil, a Alice e o Paulo Santiago... Ao meio, o Pepito falando com o régulo local, um fula, que foi tropa durante a guerra colonial...

Guiné-Bisssau > Região de Tombali > Sector de Bedanda > Cananima, frente a Cacine > 2 de Março de 2008 > Actual régulo de Cananima. Apontei o seu nome, num dos meus caderninhos que agora não encontro. Foi fuzileiro, pertenceu ao Destacamento de Fuzileiros Especiais 21... No período a seguir à independência, fez uma retirada estratégica, andou fugido pelo mato (ou por um dos países vizinhos, já não posso precisar qual). Depois as coisas acalmaram e os fulas souberam usar alguns dos seus trunfos, incluindo a habilidade política... Hoje é régulo, quem diria!

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados.

sábado, 28 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2993: Tabanca Grande (77): António Azevedo Rodrigues, ex-1.º Cabo do Agrupamento 2957 (Bafatá, 1968/70)


António Azevedo Rodrigues
ex-1.º Cabo
Comando de Agrupamento 2957
Bafatá, 1968/70



1. Em 27 de Maio de 2008, recebemos uma mensagem de António Rodrigues, mais um camarada que se quer juntar a nós.

Amigos e Camaradas,
Boa noite e os meus respeitosos cumprimentos.
Esta é a minha primeira mensagem que vos escrevo e como é a primeira vez espero ser bem sucedido.

Estive em Bafatá-Guiné, desde Outubro de 1968 a Abril de 1970 e como até esta data ainda não tive o prazer de encontrar nenhum camarada do meu tempo, nessa missão, e como já se passaram 40 anos, ou melhor, faz este ano os 40 anos da nossa partida para a Guiné, gostaria de encontrar os meus e outros camaradas de armas desse tempo, pois convivi com o pessoal do Agrupamento 2957.

Como estava na parte de Operações e Informaçoes, privei de perto com o Gen Spinola, Cap/Gen Almeida Bruno, Maj Carlos Saraiva/Lamego, Cor Teixeira da Silva e o meu grande amigo Cor/General Hélio Felgas.
Com ele tive a felicidade de no ano passado ter uma conversa ao telefone e hoje lembrei-me dele, mas como não sei da sua saúde, até tenho receio de voltar a ligar e já não o encontrar.

Gostava de poder fazer parte desta tertúlia, pois só agora disporei de algum tempo e gostava de falar convosco, se isso me for permitido, pois também tenho algumas boas/más recordações da Guiné, como por exemplo a Operação Lança Afiada (1), que foi por mim escrita e reescrita não sei quantas vezes, mas isso fica para mais tarde.

Vi o Spinola a chorar em Bafatá com a barba por cortar de cinco dias e o Hélio Felgas abraçado ao Teixeira da Silva, também a chorar.

E foi assim há 40, não 39 anos, como o tempo passa... até já...

Estas fotos são do 1.º Cabo Rodrigues e do António Rodrigues 40 anos depois...

Pertenci ao COM AGRUP 2957, Bafatá-Guiné 1968/1970.

Estou a viver, como sempre, em Vila Nova de Famalicão e gostava de deixar o meu contacto, pois estou reformado e estou sempre disponível, até mesmo para os e-mails que possam aparecer, já que aprendi a lidar com estas coisas novas, por isso o meu contacto é: (...)

Antonio Azevedo Rodrigues

2. Em 3 de Junho foi enviada a seguinte mensagem ao nosso camarada

Caro António Rodrigues
Bem-vindo à nossa Tabanca Grande.

Queria pedir-te o favor de enviares outra fotografia antiga, pois a que mandaste não se aproveita para publicação. Se não tiveres nenhuma em tamanho tipo passe, manda-me uma normal onde estejas bem visível que eu transformo-a em tipo passe.
Tenho a tua apresentação presa pela falta dessa foto.

Recebe um abraço dos Editores do Blogue, Luís Graça, Virgínio Briote e de mim
Carlos Vinhal

3. Caro António Rodrigues

Como nunca mais deste notícias, nem mandaste a foto fardado, estás a ser apresentado à Tertúlia só à civil.

Pelo que dizes no teu mail, estavas bem relacionado.

Infelizmente, como certamente já viste no nosso Blogue, o General Hélio Felgas (2) já nos deixou.

Não te esqueças da foto que te pedi e já agora ficamos à espera das tuas estórias, já que terás muito que contar, do que viste e viveste nos bastidores da guerra.
CV
_____________

Notas de CV:

(1) Vd. postes relacionados com a Operação Lança Afiada de:

15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII: Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli (Luís Graça)

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas (Luís Graça)

9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli (Luís Graça)

14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)


(2) Vd. postes relacionados com a morte do General Hélio Felgas de 24 de Junho de 2008

Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

Guiné 63/74 - P2981: Hélio Felgas, com Spínola, em Bambadinca (Jaime Machado)

e ainda do dia 25 de Junho de 2008

Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

Guiné 63/74 - P2985: Homenagem ao meu professor da Academia Militar, Hélio Felgas (António Costa, Cadete aluno nº 11/650, Curso ART 1964/67)

Guiné 63/74 - P2992: História de vida (11): Como eu, Eng Agrónomo, me safei de uma eventual guerra química (Jorge Picado)




Jorge Picado,
ex-Cap Mil,
CCAÇ 2589 e CART 2732,
Guiné, 1970/72



1. O nosso camarada Jorge Picado, ex-Cap Mil, que entre 1970 e 1972 palmilhou, como tantos de nós ao longo da guerra colonial, terras da Guiné, vem trazer uma nova visão desta mesma guerra, pelo prisma de um Técnico Superior de Agronomia, como é o caso dele.

Curioso será se entre a tertúlia houver alguém capaz de responder às suas interrogações, abrir um novo campo de discussão, neste caso, guerra biológica. Existiu? Não existiu? Houve tentativa de implementação?

Fica o relato do Jorge Picado.


Foto: © Albano Costa (2008). Direitos reservados.


2. SONHO
Por Jorge Picado

Depois de ler tantos argumentos explanados sobre "A Guerra estava ou não Militarmente Perdida?" veio-me à lembrança uma dúvida sobre uma suposição que fiz muito tardiamente acerca dumas recordações que nunca se me apagaram da memória. Por isso resolvi apresentar essa minha estória, que é verídica. Se julgarem que não tem interesse publicá-la, não faz mal.

SERÁ QUE O “SONHO” DE FICAR EM BISSAU ME PODERIA TER TORNADO COLABORADOR DUMA GUERRA CRIMINOSA?

Vou contar uma estória passada comigo que, se tivesse tido concretização, ter-me-ia causado graves danos, pelo menos de ordem psicológica. Poderão julgar inverídicos os factos que vou narrar, mas não são inventados, nem tão pouco sonhados. Sonho houve de facto, mas foi o de supor que podia inverter o destino da mobilização e cumpri-la em Bissau e, também como todos os sonhos, foi de curta duração.

Possivelmente nem o colega e amigo – ainda vivo, alentejano de gema e que desde Outubro de 1954 percorreu as mesmas salas de aula no velhinho ISA (Instituto Superior de Agronomia), passando pelos gabinetes e laboratórios do desaparecido Laboratório de Fitofarmacologia em que fomos companheiros de caminho, até eu abandonar esse percurso em 1963 e instalar-me nos Serviços Regionais de Agricultura – que me fez sonhar, se ler este relato, talvez não se recorde.
Mas eu lembro-me muito bem do sucedido, tão grande foi a esperança que ele fez nascer em mim, de evitar o percurso para o mato e instalar-me, pensava eu, confortavelmente em Bissau.

Esta era a triste realidade de muitos que naquela época se viram confrontados com o espectro duma guerra que não lhes dizia nada.
Já que não lhe podiam fugir, pelo menos que apanhassem uma cadeira e uma secretária num qualquer ar condicionado longe do mato e dos perigosos encontros com os malvados turras!
Eu não fiz excepção a estes pensamentos… mas tinha o destino traçado noutra direcção…e tive de o cumprir.

Seguindo o meu destino após a mobilização e uma vez desembarcado em Bissau a 19 de Fevereiro de 1970, depois dum cruzeiro marítimo, gentilmente oferecido pelo Ministério do Exército, numa viagem de carreira normal no N/M Alfredo da Silva da extinta SG – Sociedade Geral, uma Companhia de Navegação do Grupo dos Melos –, onde tive por companhia vários camaradas que iam em rendição individual – dos quais recordo um Capitão do Quadro Permanente de Transmissões, destinado ao respectivo Batalhão de Transmissões de Bissau – e um Destacamento de Fusos que ficaram em Cabo Verde, instalaram-me no Clube de Oficiais, onde fiquei a aguardar que quem desse pela minha falta me viessem reclamar

Como alguns dos desembarcados do Alfredo da Silva tínhamos combinado fazer a despedida numa refeição do Hotel (?), qual o meu espanto e, o dele, ao dar de caras com o amigo Covas de Lima, Eng.º Agrónomo – ex-Cap Mil José Covas de Lima que foi Cmdt duma CCaç em Farim, do BCaç aí estacionado de 1969-1971 e do qual também fazia parte outra CCaç cujo Cmdt era o então Cap do QP Vasco Lourenço – procurei situá-lo militarmente para o caso de algum Tertuliano ter sido seu camarada ou, como há alguns alentejanos que podem ser de Beja, conhecer esta família.

Nem eu sabia que ele já me tinha precedido no CPC/QC, nem ele tinha iguais notícias minhas. Daí o espanto de ambos.

Encontrava-se em Bissau a recuperar duma doença estando instalado no próprio Hotel e, dados os seus muito bons relacionamentos e conhecimentos, estava contactável com o Eng.º Agrónomo funcionário superior da Administração Ultramarina (?) que superintendia nos Serviços Agrícolas da Guiné e Cabo Verde (?), naquela ocasião em Bissau para tratar, com o Governador Geral (GG), precisamente de assuntos da área Agrícola.

Uma possibilidade de colocação

Naquela altura a Estação Agrícola e Florestal de Bissau (EAFB) encontrava-se sem chefia, pois o colega Agrónomo, por sinal também meu conhecido ainda que mais velho, que exercia o cargo, tinha terminado a comissão e regressado poucos dias antes à Metrópole. Convém recordar que depois de iniciada a guerra colonial aquele lugar deixou de ser cobiçado como lugar de carreira, passando então a ser ocupado, em regime de comissão militar, por colegas que assim se libertavam do comando de tropas, garantindo uma estadia mais calma em Bissau com todas as mordomias.

Estando por conseguinte o Covas de Lima conhecedor desta situação, que me transmitiu e, doutras preocupações que o dito colega da Administração Ultramarina lhe comunicara, sabendo da minha especialidade agronómica – Fitiatria e Fitofarmacologia com vastos conhecimentos no ramo dos Herbicidas –, logo me colocou ao corrente do seu plano. Precisavam de alguém com conhecimentos sobre o uso e aplicação daqueles produtos e como eu apareci e em rendição individual ia expor o caso ao Responsável da Agricultura e preparar um encontro com ele.

Embarquei logo naquilo que não passou dum sonho… de curta duração, mas julgando que o interesse fosse puramente agrícola… Nem outra coisa me passava pela cabeça. Julgava apenas que se tratava duma ferramenta técnica para aumentar a produção do arroz – uso de herbicidas nesta cultura onde tinha efectuado alguns trabalhos experimentais na Metrópole – e possivelmente no amendoim, duas das culturas que sabia mais importantes naquela Colónia.

O encontro e a desilusão

Tomei uma nova refeição no Hotel com ambos, que serviu de ponto de partida para uma longa conversa em que tive a possibilidade de responder às questões que me foram apresentadas e dar conta dos meus conhecimentos profissionais (não militares, claro), inclusive sobre os ditos herbicidas. Repiso este tema dos herbicidas, porque na realidade parecia ser este o busílis da questão… e não o da chefia da EAFB…que até talvez já tivesse destinatário… Tinha chegado em cima do acontecimento já que o assunto ia ser debatido um ou dois dias depois numa reunião com o GG.

Afinal a resposta que me deram foi negativa. Parece que já não havia interesse… e assim o meu sonho não durou mais do que 3 dias, pois tudo isto decorreu entre 20 e 22de Fevereiro. A 23 já tinha o destino traçado e na manhã de 24 lá estava o meu jeep no Clube de Oficiais, com o Alf Martinez a reclamar a sua substituição pela minha… à frente da CCaç.

Interrogações e evidências

Perguntarão então os que me lêem. Mas qual a piada desta estória? Qual o interesse nisto? O que é que isto tem a ver com o conteúdo do Blogue? De facto já estão a abastardar a finalidade e os objectivos dos fundadores, pensarão. É o resultado do alargamento e o aparecimento dalguns que andavam por lá com o rabinho metido entre as pernas e como não experimentaram outras sensações vêem agora com estas anedotas.

Pensem o que quiserem, porque eu também quando isto aconteceu não percebi bem a jogada em que me ia metendo e explico:

i) Não sabia que em 1970 a agricultura daquela Colónia estava desorganizada, pois as populações já não ocupavam as suas terras tradicionais, encontrando-se deslocalizadas. Só quando verdadeiramente desembarquei na guerra é que tomei conhecimento da real situação que se me apresentou;

ii) Quando uns tempos mais tarde vim a encontrar em Bissau o colega – um dos 4 que fizemos o 2.º Turno do CPC (Carne Para Canhão, como depreciativamente passei a traduzir a sigla) do QC de 1969, por sinal igualmente alentejano – cuja mobilização… lhe calhou… para a dita EAFB… atribui-lhe a culpa pela resposta negativa que me deram;

iii) Mas só muito mais tarde, então já na vida civil novamente, é que relacionei aquele possível interesse, depois de tomar conhecimento do uso desmedido e desregrado de desfolhantes feito pelas Forças Militares dos EUA no Vietname. Como é do conhecimento geral os Campeões das mais amplas Liberdades e Respeito pelos Povos de Todo o Mundo usaram herbicidas – dos designados totais e desfolhantes – em doses maciças para acabarem com o coberto vegetal natural formado pelas densas florestas equatoriais. Foram os também denominados agentes laranja – herbicidas primários do grupo 2,4 D – que na época ainda eram de uso agrícola e que eu bem conhecia e dominava – apliquei-os várias vezes. Só que os de uso agrícola, ainda que com os mesmos inconvenientes, eram um pouco mais seguros e mais purificados, isto é, mais limpos de certos componentes químicos por serem mais refinados, enquanto que os agentes laranjas usados no Vietname eram muito mais impuros… logo com ainda mais graves consequências não só para o meio ambiente, mas também e infelizmente para as pessoas, dados os seus efeitos toxicológicos e teratológicos.

A ideia de passar esta minha vivência ao blogue surgiu depois de ler tantos e tão bem documentados argumentos sobre a questão da “Guerra Estar ou Não Militarmente Perdida”. Será que algum dos camaradas com maior facilidade de consulta da vasta documentação militar poderá esclarecer se foi ou não aventada a hipótese de se empregar qualquer tipo de arma biológica na nossa Guerra Colonial?

É que, como disse, inicialmente julguei que as conversas que tive à minha chegada a Bissau com os meus colegas, se destinavam ao preenchimento da chefia da EAFB e, só muito mais tarde, associei tal interesse nos herbicidas à anologia com o Vietname… mas não tenho acesso a fontes bibliográficas que me confirmem as suposições… daí as muitas dúvidas que se me apresentaram quando descobri tal hipótese.

Um abraço
Jorge Picado

OBS:- Subtítulos da responsabilidade do editor
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Nota de CV:

Vd. último poste de Jorge Picado de 24 de Junho de 2008> Guiné 63/74 - P2983: Dando a mão à palmatória (14): O Régulo Iero não veio na coluna (Jorge Picado)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2991: Com os páras da CCP 122 / BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (7): Depoimento do José Casimiro Carvalho

1. Mensagem, com data de 13 de Maio último, do José Casimiro Carvalho , ex- Fur Mil Op Especiais, CCAV 8350, os Piratas de Guileje (1972/73) :


Ora, tendo eu lido na íntegra o texto que me foi enviado (1), só posso tentar rebuscar na minha memória o que ela me faculta, ou seja:

A hierarquia dos páras eu não posso comentar. Os actos heróicos e/ou de cobardia também não, mas umas verdades este homem diz, tais como as condições desumanas e cruéis em que estávamos colocados, a emboscada a uma patrulha , da qual eu era 2º cmdt, onde morreu o alferes Branco, 1 cabo e dois soldados, além de um ferido (o "pica") africano, que levou um tiro no cú.

Essa patrulha foi constituída ad hoc, com cerca de 16 homens, dois dos quais eu dispensei, pois eram 2 miúdos que se tinham oferecidos como voluntários. Saímos portanto 14 homens (!!!).

O estado dos cadáveres foi retratado tal e qual no texto, a emboscada em que caíram os páras foi interminável, com muitos RPG e dilagramas à mistura. Regressaram com cerca de desasseis feridos, um dos quais um sargento com um tiro numa perna, e que...sorria, pasme-se

A cena das salgadeiras foi verdade, pois até nós nos rimos de tanta urna sem ter ocupantes para elas e depois...foram insuficientes. Os mortos eram regados com creolina, na enfermaria, tal a putrefacção.

A fome, a sede, o cansaço e a desmoralização eram totais. Embora o autor tenha dito que o pessoal não saía das valas, eu acho que foi o contrário, o pessoal fugiu na maioria para o mato pois no quartel era onde caía a metralha.

Fui ferído em combate e fui evacuado ,e bem, pois fui num patrulha, o Orion, julgo eu, onde fui tratado e apaparicado pela Marinha. Fui para Cacine, donde mais tarde me ofereci voluntariamente para regressar ao "inferno", e aí o autor tem razão, eu não sei se foi um acto heróico ou de loucura, mas fui.

Imperava a lei do desenrasca, roubava-se e comprava-se cabritinhos aos pretos que eram cozinhados em bidões. Quando havia morteirada, eram esventrados bidões com vinho e o pessoal deitava-se por baixo com a boca aberta... Patético, mas verdadeiro. De um a dez em verdades, eu dava 7 ao autor.

O Rebocho (2) sabe bem do que se fala neste texto, duma boa parte pelo menos.

Um abraço

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Nota dos editores:


(1) Vd. os dois primeiros postes desta série:

4 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2915: Com os páras da CCP 122/ BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (1): Aquilo parecia um filme do Vietname

5 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2917: Com os páras da CCP 122/BCP 12 no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (2): Quase meia centena de mortos... Para quê e porquê ?

(2) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2969: Com os páras da CCP 122 / BCP 12, no inferno de Gadamael (Carmo Vicente) (6): O grande comandante Araújo e Sá (Manuel Rebocho)

Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina



Subintitulado «Crónica de uma cidade interior», Prefácio de Ferreira de Castro, Capa deslumbrante de António Domingues, Publicações Europa-América, 1960. É um romance gigantesco,uma obra susceptível de escapar à erosão do tempo.Gigante no recorte dos personagens,na trama, na história de amor,na tragicomédia do poder.São Jorge de Ilhéus ganha uma dimensão de um Novo Mundo,dos negócios,da multiculturidade,das paixões.A luta entre conservar e progredir, a tensão entre a velha e a nova classe,entre a paixão sem medida e a liberdade de um amor verdadeiro.Foi uma grande felicidade, reler este prodígio, 40 anos depois.


Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.

Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 19 de Março de 2008:


Luís, aqui vai o episódio n.º 36, amanhã começo a escrever o 37. Interromperei entre 31 de Março e 10 de Abril, faço umas férias de desintoxicação, embora saiba já que os restantes episódios que faltam escrever andem a bailar na cabeça. Tens aí as ilustrações, agora vou para a neuropsiquiatria, é a vez do Jorge Cabral me invejar a capacidade de delirar, de gargalhar e surrealizar os territórios da guerra. Recebe um abraço do Mário



Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVI > UM GRANDE BATUQUE PARA A SENHORA DE ALFERO
por Beja Santos (1)

(i) Chegou a vez de Cherno Suane entrar em cena


Ainda não era 9h de uma noite quente de Março de 2008 quando Abudu Soncó e eu atravessámos o Largo de São Paulo, ali ao lado no Mercado da Ribeira, enfiámos numa rua estreita e tocámos na campainha de um primeiro andar. A janela abriu-se de repelão e Cherno Suane, vasculhando demoradamente a rua com a sua miopia acentuada, recebeu-nos com uma casquinada, mandou-nos subir.

Entrámos numa dessas residenciais em trânsito onde os guineenses pernoitam por tempo limitado ou até por largos meses, até alugarem um quarto ou uma casa: uns, ouvem a telenovela da Guiné-Bissau, um deficiente visual (ex-combatente que picou uma mina numa estrada em Mansoa) desloca-se no corredor e fala ao telemóvel, há uma divisão onde as visitas estão a deixar encomendas, alguém parte em breve para Dakar.

Cherno abraça-me, perguntamos pelas nossas famílias, retiro o meu caderninho viajante do bolso, rememoro com a sua ajuda algumas datas dos últimos trinta e oito anos: em 1970, Cherno, com Mamadu Camará e Queta Baldé, abandona o Pel Caç Nat 52 e vai para a 2ª Companhia de Comandos Africana, que estava a constituir-se em Fá. Ficou nesta unidade até à independência. É preso e levado para o Cumeré, vê execuções, vive diariamente humilhado e aterrorizado. Um dia escapa-se e foge para Bambadinca, o comité local do PAIGC, ao princípio, nega-lhe a entrada no Cuor, ele esconde-se na mata, mais tarde consegue arranjar trabalho na importante serração da Socotran, em Biassa, Gambiel.



Cherno Suane regressou finalmente a Portugal, depois de 2 anos em Bissau e Missirá. O que lhe devo não tem preço,é uma desmedida que me tolhe o sentimento. Partiu do Pel Caç Nat 52 para a 2ª Companhia de Comandos Africana, em 1970, levava consigo uma folha de serviços invejável. Em 1974, foi preso e assistiu aos horrores do Cumeré, com as suas execuções sumárias e as humilhações mais degradantes a que se pode sujeitar o ser humano. Foi trabalhar para a Socotran, no Gambiel, depois de ter fugido. Reencontrámo-nos em 1990, em 1991, quando fui cooperante na Guiné-Bissau, fiz o que era possível para o trazer, depois aqui recebeu nacionalidade , tem uma pensão pequenina, continua a trabalhar.


É ali que eu o vou encontrar, em 1990, e em 1991 iniciou-se o processo para vir para Portugal, o que aconteceu no ano seguinte. Cherno é hoje cidadão português, tem uma pequena reforma da segurança social, e, como muitos outros militares com uma relevante folha de serviços de louvores e condecorações, tem um trabalho humilde para subsistir e ajudar a família.

Traz-me correio de antigos soldados, faço perguntas sobre a nossa gente e quando vem à baila o nome de Trilene, um valoroso milícia de Missirá que fora para os Comandos (Demba Baldé, mas que gostava tanto de calças em terilene, que ficou assim conhecido), o rosto de Cherno ensombrou-se, baixou ainda mais o seu melodioso fio de voz, parecia que me estava a segredar:
-Desculpa, nunca te disse, foi fuzilado também em 1977, por engano, não podes imaginar os gritos que deu diante dos que o mataram, a perguntar porquê, porquê, o que é que eu fiz?

E deu ainda mais notícias: Ussumane Baldé, que fora o 104, o meu soldado prussiano, morreu muito doente, também queria vir para Portugal ganhar a vida, Adulai Djaló, o Campino, trabalha agora no Senegal para sobreviver. Oiço-o atentamente, faço perguntas com a voz embargada, sinto pelo meu guarda-costas um grande enlevo. Não o vejo há mais de dois anos, no início de 2006 Cherno partiu para Bissau para construir uma nova casa, voltou a casar, foi fazer negócios ao Senegal, chegou há dias, trouxe escultura em madeira que tanto aprecio, aprazámos este encontro com toda a urgência. Estamos a pôr a escrita em dia, conto-lhe esta aventura narrativa de toda a minha comissão na Guiné, começara a escreve-la quando ele já partira, peço-lhe encarecidamente ajuda, ele foi cumprimentar-nos à Catedral de Bissau em 16 de Abril de 1970, a seguir organizou um grande batuque em honra da Cristina, um acontecimento memorável na Mãe d’Água, na rua de Boé, no Cancote, perto do mercado de Bandim.

- Cherno, por favor, conta-me tudo, houve batuque, dança e marimbas, lembras-te?
Felizmente que Cherno se lembra de quase tudo.


(ii) O grande batuque na Mãe d’Água


Os mandingas são grandes músicos e adoram dançar. Possuem um bailado individual, lento e muito cadenciado, à partida; depois, com os acordes do tambor, o ritmo cresce freneticamente. A batucada aparece associada à dança. São bailados que se executam em círculo, três tambores de diferente porte asseguram esse ritmo trepidante, avassalador. As raparigas têm um papel importante, competindo-lhes acompanhar o tambor com cânticos e palmas. Os três artistas do tambor, que respondem pelos diferentes ritmos do batuque, acompanham as danças das raparigas. Ela avançam devagar em direcção ao local onde está o músico, da lentidão passam à rapidez dos movimentos.

A tradição dos grandes batuques, nas tabancas, é realizarem-se só à noite, mas a guerra veio alterar tudo, naquele dia 18 de Abril de 1970 Cherno Suane encomendara o batuque para as 6h da tarde, dera instruções sobre o que queria que se cantasse, convidara um roda de raparigas, alguns caramôs (pessoal notável pelos conhecimentos do Alcorão, da escrita e da língua mandinga) iriam assistir, bem como familiares dos Soncó, dos Mané, gente de Farim, da família de Cherno, talvez aparecesse um tocador de Korá, mas só depois do batuque e da dança.

Saímos do Bairro da Ajuda, Cherno, Cristina e eu, foi um passeio agradável até à Mãe d’Água, o calor abrandara. Cherno insistiu em pagar tudo, não sei se pagou em dinheiro, em cabritos ou outros alimentos. Quando chegámos, já havia um círculo, a pequena multidão engrossava com mirones, alguns balantas-mané ofereceram-se para tocar marimbas. Como na Grécia clássica, dois jovens untavam o tronco, vestiam calções de algodão colados às coxas. Um simpático caramô procurava explicar-nos o essencial daquele torneio de luta: os lutadores têm uma dança própria, também ao som de três tambores, desafiam-se por gestos, mostram amuletos, são ovacionados, não aqueles que estamos agora a ver, são jovens amadores, mas os outros que pelejam em torneios são conhecidos por alcunhas artísticas: djató (leão), ñ ñ kumó (gato), çubá lóló (estrela da manhã). Assistimos a tudo de pé, os jovens faziam piruetas, desafiavam-se empinando busto, parece que tinham deitado pela cabeça abaixo um líquido que contera a tinta com que se escrevera versículos do Corão, eram ágeis nos golpes de braços e pernas, quando um deles caiu no chão, alguém, feito árbitro decidiu quem tinha sido o vencedor.

Os lutadores saíram, a roda estava cada vez maior, entraram os tocadores, um dançarino emplumado, as raparigas começaram a fazer o coro e a bater as palmas; o bailarino saracoteava-se, parecia recorrer à pantomima, depois falava, a assistência acenava, parecia confirmar o que ele dizia, depois o coro erguia a vozearia, os tambores irrompiam com a sua música. Cherno tinha-me avisado durante o percurso que o bailarino/cantor iria exaltar as minhas façanhas, imagine-se. Sei que foi a meio deste bailado que Cherno começou a vociferar, o olhar cuspia fogo, o bailarino protestava com igual veemência.

Achei estranho este repentino desaguisado, novamente o caramô justificava-me a zanga dizendo que Cherno exigia para que o bailarino/cantor falasse mais das minhas façanhas, era para isso que ele lhe tinha pago. Terão certamente chegado a um acordo, pois ainda houve mais música e dança, a seguir ainda apareceu outro bailarino enfeitado com um barrete, chegara a hora dos balantas-mané exibirem as suas marimbas de vinte teclas tocadas com pequenos paus, era um som muito agradável, debaixo das teclas viam-se pequenas cabaças, fiquei a pensar como a cabaça permite tão belas ressonâncias. À despedida, o bailarino percutiu intensamente o grande tambor, a assistência bateu as palmas apoteoticamente e depois veio cumprimentar-nos.

Anoitecera completamente, convidámos Cherno a vir jantar connosco, viemos passeando sem pressa, ao longe via-se o Bandim Alto e o cais da Dicol, em panorâmica, descemos como se fôssemos para a Amura, virámos à esquerda e fomos jantar ao Pelicano. Se reconstituo esta tarde inesquecível é porque Cherno guardou tudo e prometeu dar-me mais ajuda sobre os acontecimentos de Maio, Junho e Julho, em que disponho de pouca correspondência para a Cristina.

Findo o encontro com Cherno, quando voltámos a atravessar o Largo de São Paulo, em direcção ao Cais do Sodré, eu recordei a Abudu Soncóum acontecimento de grande delicadeza, que viera confirmar a amizade sem mácula que eu nutria por Cherno, ao longo destas décadas. No princípio de Agosto de 1970, o Pel Caç Nat 52, completamente aprumado e ataviado, leva-me ao Xime, de onde vou partir para Bissau. A lancha sairá dentro de minutos, faço questão de voltar a agradecer a todos a camaradagem que partilhara com eles durante dois anos, as lições de coragem que deles recebera.

Despeço-me emocionado de todos e quando pergunto pelo Cherno, o último de quem me faltava despedir, alguém me disse sem hesitação, justificando assim o seu desaparecimento:
- Não gostamos que nos vejam a chorar, Cherno sabe que acaba de perdeu um grande amigo, não vai voltar a ser guarda-costas de ninguém, e ele não quer que se saiba que está triste.

Fora esta mágoa de Cherno que eu levei para Bissau, quando a guerra acabara para mim.



(iii) Os nossos passeios pela península de Bissau


Até ao fim do mês de Abril [de 1970] vagabundeámos no que se chama a península de Bissau, entre o rio Mansoa e o Canal de Geba, onde estão Quinhámel, Prábis, o Cupelão, Safim, até Nhacra. Chegámos a ir até João Landim, mas houve o bom senso de não viajar para Mansoa ou mesmo Bula. Viajámos na companhia da Inês e do Alexandre Carvalho Neto (este desapareceu da circulação a partir de 21 de Abril, após o massacre, no dia anterior, de quatro oficiais no chamado “chão manjaco”), da Elzira e do Emílio Rosa, da Isabel e do David Payne, do Rui Gamito e outros. Era um turismo de fim de tarde, umas vezes íamos até junto ao mar, outras vezes internávamo-nos por estradões entre palmeiras poilões e bissilões, vimos Bissau no lado do Cumeré, petiscámos em Quinhámel e Nhacra.

Todos os passeios possíveis dentro da cidade de Bissau tiveram lugar: as cavernas de Ali Bábá da Taufik Saad e Casa Gouveia, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, o museu, a Associação Comercial e Industrial, a Udib, o porto, os cafés, os serões no convívio do Quartel General, com ou sem cinema. Telefonámos para Lisboa, escrevemos, lemos. Recordo um livro espantoso que a Cristina tinha trazido, Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado.

Deste autor lera anteriormente Jubiabá, Mar Morto e Terras do Sem Fim. Aliás, encontrei afinidades entre este último e Gabriela, são passados em São Jorge de Ilhéus, nos tempos heróicos do cacau. Gabriela é um romance monumental, tem uma galeria de figuras de primeira água na literatura brasileira, com Gabriela e Nacib, o coronel Ramiro Bastos e Mundinho Falcão, o Capitão, o Doutor, Malvina, os ambientes como os bares e os bordéis parecem saídos de quadros em movimento, o presépio das irmãs Dos Reis é alucinante, a luta entre os conservadores e os progressistas é tão impressiva naqueles anos vinte como naquele 1970 em que dela partilhávamos o fulgor literário.

Líamos o livro da seguinte maneira: a Cristina estudava ou escrevia, eu lia a chegada da Gabriela a Ilhéus e como fora recrutada para o bar Vesúvio; enquanto eu escrevia, a Cristina lia o que se estava a passar no bar Vesúvio, com Chico Moleza e Bico Fino a servir de mesa em mesa, com a ajuda do negrinho Tuísca, seu Nacib a conversar com o coronel Manuel das Onças ou o Dr. Maurício. Depois comentávamos a vivacidade da prosa, a descrição das atmosferas, o prodígio dos diálogos. Aprendi pois que um bom livro pode entrar numa lua-de-mel, exercitar apreciações a dois, desenhar até um novo tipo de comunicação nos casados de fresco. À noite, visitámos amigos de amigos e foi assim que conheci o compositor Pedro Jordão, creio que fazia parte do Fotocine, voltei a vê-lo em Junho quando ele veio filmar as obras do alcatroamento da estrada Xime-Bambadinca.

Assim passávamos uma lua-de-mel serena, às vezes ouvindo o troar longínquo dos canhões e morteiros, às vezes os temas bélicos entravam insidiosamente nas conversas, como tínhamos projectos para o nosso futuro, como a Cristina ainda sonhava fazer alguns exames em Junho, andámos entre a casa dos Payne, o Grande Hotel e a pensão da D. Berta sempre divertidos, a Cristina mergulhada nos seus apontamentos de estudo, eu escrevia, lia policiais e até livros religiosos. Tinha levado O Senhor, de Romano Guardini, obra de grande profundidade, e li em pequenos sorvos Poemas para Rezar de Michel Quoist. Estes poemas impressionaram-me muito, como se a vida fosse tornada oração, um diálogo permanente com Deus no quotidiano, poemas sobre as crianças, sobre a paz, orações para acompanhar a Via-Sacra. Estas meditações trouxeram-me alívio, julguei-me melhor preparado para o Seu Reino de justiça e de amor.


Era um livro de referência na JUC (Juventude Universitária Católica, onde militei).

Tradução de Lucas Moreira Neves, revista por Pedro Tamen, capa de Sebastião Rorigues,4ª edição, 1967, Livraria Morais Editora.

Preces curtas, ajustáveis aos novos tempos de então:hinos para as crianças, reflexões do padre-operário,orações na escola,aceitação do Amor.Trouxe para os cristãos uma abordagem refrescada da oração,nessa nova atmosfera da recém aparecida sociedade de consumo.




Findava o mês de Abril quando o David Payne me recordou que chegara a hora de me apresentar no HM 241. Cordato, tudo aceitei. Uma noite, depois do jantar, ele preparou a Cristina para o insólito que se ia seguir: além de uma consulta de rotina à oftalmologia, iria ser internado nos serviços de neuropsiquiatria. Se é verdade que a guerra tem dimensões de crueldade inultrapassáveis, no meu caso iria beber uma volumosa taça de grotesco, ladeado por dois perturbados mentais com quem vivi alguns dos episódios mais hilariantes da minha vida.

Como passo a contar.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. poste de 20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2968: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (35): Just Married